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ENSAIO

A China é capitalista ou socialista?


Samir AMIN1

sta pergunta, na verdade, é mal foi concedido às famílias rurais. Na


medida em que se repete constante-

E
colocada, demasiadamente geral
e abstrata para qualquer respos- mente ao redor do mundo que os cam-
ta que faça sentido em termos poneses anseiam ardentemente somen-
de alternativa absoluta. De fato, te pela propriedade da terra. Por que
a China tem realmente seguido um razão a implementação do princípio de
caminho original desde 1950, e talvez que as terras agrícolas não são merca-
mesmo desde a Revolução de Taiping, dorias foi possível na China (e no Viet-
no século XIX. Tentarei aqui esclarecer nã)? Se tal fosse o caso na China, a de-
a natureza deste caminho original e cisão de nacionalizar a terra teria leva-
cada uma das etapas de seu desenvol- do a uma guerra de camponeses sem
vimento, de 1950 até hoje, 2013. fim, como foi o caso quando Stalin co-
meçou a coletivização forçada na Uni-
A questão Agrária ão Soviética.

Mao descreve a natureza da revolução A atitude dos camponeses da China e


realizada na China, por seu Partido do Vietnã (e em nenhum outro lugar)
Comunista, como uma revolução anti- não pode ser explicada por uma supos-
imperialista/antifeudal com o olhar em ta “tradição” na qual eles desconheci-
direção ao socialismo. Mao nunca as- am a propriedade. Foi o produto de
sumiu que, depois de ter lidado com o uma linha política inteligente e excep-
imperialismo e o feudalismo, a popu- cional implementada pelos partidos
lação chinesa tenha “construído” uma comunistas desses dois países.
sociedade socialista. Ele sempre carac-
terizou esta construção como a primei- A Segunda Internacional tinha como
ra fase do longo caminho ao socialis- certo a aspiração inevitável dos cam-
mo. poneses pela propriedade, real o sufi-
ciente na Europa do século XIX. Os
Devo enfatizar bastante a natureza es- socialistas da Segunda Internacional
pecifica da resposta dada à questão aceitaram este fato consumado da "re-
agrária pela Revolução Chinesa. A ter- volução burguesa", mesmo lamentan-
ra (agrícola) distribuída não foi priva- do-o. Eles também achavam que pe-
tizada; permaneceu como propriedade quena propriedade camponesa não
da nação representada pelas aldeias e tinha futuro, que este pertencia à
comunas e apenas o uso das mesmas grande empresa agrícola mecanizada.
Eles achavam que o desenvolvimento
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capitalista, por si só levaria a tal con- Esta "especificidade chinesa" – cujas


centração da propriedade e para as consequências são da maior importân-
formas mais eficazes de sua explora- cia – nos impede de caracterizar a Chi-
ção. A história provou que eles esta- na contemporânea (mesmo em 2013)
vam errados. A agricultura camponesa como "capitalista", porque a via capita-
deu lugar à agricultura familiar capita- lista se baseia na transformação da ter-
lista em um duplo sentido; aquele que ra em mercadoria.
produz para o mercado (consumo de
fazenda que se tornou insignificante) e Presente e futuro da pequena
que faz uso de modernos equipamen- produção
tos, insumos industriais e de crédito
bancário. No entanto, uma vez que esse princí-
pio seja aceito, as formas de usar esse
Mao extraiu as lições dessa história e bem comum (a terra das comunidades
desenvolveu uma linha de ação políti- rurais) pode ser bastante diversificada.
ca completamente diferente. No prin- Para entender isso, devemos ser capa-
cípio da década de 1930, na China me- zes de distinguir pequena produção de
ridional, durante a longa guerra civil pequena propriedade.
de libertação, Mao fundamentou-se na
crescente presença do Partido Comu- A pequena produção – camponesa e
nista e numa sólida aliança com os po- artesanal – dominou a produção em
bres e os camponeses sem terra (a mai- todas as sociedades no passado. Ela
oria), manteve relações amigáveis com manteve um lugar importante no capi-
os camponeses médios e isolou os talismo moderno, agora ligada à pe-
camponeses ricos de todos os estágios quena propriedade, na agricultura,
da guerra, sem necessariamente hosti- serviços e até mesmo certos segmentos
lizá-los. O sucesso desta linha prepa- da indústria. Certamente está retroce-
rou a grande maioria dos habitantes dendo na tríade dominante do mundo
das zonas rurais para considerar e acei- contemporâneo (Estados Unidos, Eu-
tar uma solução para os seus proble- ropa e Japão). Um exemplo disso é o
mas, que não exigisse a propriedade desaparecimento de pequenas empre-
privada das terras distribuídas. Eu a- sas e sua substituição por grandes ope-
cho que as ideias de Mao e sua imple- rações comerciais. No entanto, isso não
mentação bem sucedida têm suas raí- quer dizer que essa mudança é "pro-
zes históricas na Revolução de Taiping gresso", mesmo em termos de eficiên-
no século XIX. Mao, portanto, teve êxi- cia, e tanto mais se as dimensões soci-
to onde o Partido bolchevique falhou: ais, culturais e civilizacionais são leva-
na consagração de uma sólida aliança das em conta. Na verdade, este é um
com a maioria rural. exemplo da distorção produzida pela
dominação de rent-seeking, monopó-
lios generalizados. Por isso, talvez, em

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um socialismo futuro a pequena pro- economia de Estado que manteve o


dução será chamada para retomar o monopólio sobre as compras dos pro-
seu lugar e a sua importância. dutos destinados ao mercado e sobre a
oferta de crédito e insumos, todos com
Na China contemporânea, em qual- base em preços planejados (decididos
quer caso, a pequena produção – que pelo centro).
não é necessariamente ligada à peque-
na propriedade – mantém um lugar A experiência das comunas após a cri-
importante na produção nacional, não ação das cooperativas de produção,
só na agricultura, mas também em nos anos de 1970, está cheia de lições.
grandes segmentos da vida urbana. A A questão não era necessariamente
China tem experimentado diversas e passar da pequena produção para
até contrastantes formas de uso da ter- grandes fazendas, mesmo que a ideia
ra como um bem comum. Precisamos da superioridade destas tenha inspira-
discutir, por um lado, a eficiência (vo- do alguns de seus partidários. O essen-
lume de produção de um hectare por cial desta iniciativa teve origem na as-
trabalhador/ano) e, por outro, a dinâ- piração de construção socialista des-
mica das transformações postas em centralizada. As comunas não só ti-
movimento. Estes formulários podem nham a responsabilidade de gerir a
fortalecer as tendências para o desen- produção agrícola de uma grande al-
volvimento capitalista, que acabaria deia ou um coletivo de vilas e aldeias
por pôr em causa o estatuto de não (essa organização, ela própria era uma
mercadoria da terra, ou pode ser parte mistura de formas de pequena produ-
do desenvolvimento em uma direção ção familiar e produção especializada
socialista. Estas perguntas podem ser mais ambiciosa), elas também forneci-
respondidas apenas através de uma am uma estrutura maior: (1) criando
análise concreta das formas em ques- atividades industriais que emprega-
tão, uma vez que foram implementa- vam camponeses disponíveis em de-
das em momentos sucessivos do de- terminadas épocas do ano, (2) articu-
senvolvimento chinês, de 1950 até o lando atividades produtivas econômi-
presente. cas, juntamente com a gestão dos ser-
viços sociais (educação, saúde, habita-
No início, em 1950, a forma adotada foi ção), e (3) começando a descentraliza-
a pequena produção familiar combi- ção da administração política da socie-
nada com formas simples de coopera- dade.
ção para a gestão de irrigação, trabalho
que requer coordenação, bem como a Sem dúvida, as comunas nem sempre
utilização de certos tipos de equipa- funcionaram sem problemas em mui-
mento. Isto foi associado à inserção tos aspectos. No entanto, os resultados
dessa pequena produção familiar na registrados estão longe de terem sido

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desastrosos, como a direita nos quer mos de eficiência econômica, embora a


fazer crer. A Comuna na região de Pe- população urbana crescesse de 20 para
quim, que resistiu à ordem para dis- 50 % da população total, a China con-
solver o sistema, continua a registrar seguiu aumentar a produção agrícola
excelentes resultados econômicos rela- para manter o ritmo das necessidades
cionados com a persistência de debates gigantescas de urbanização. Ela pre-
políticos de alta qualidade, que desa- servou e fortaleceu sua soberania ali-
pareceram em outros lugares. Os pro- mentar: sua agricultura alimenta 22%
jetos atuais de "reconstrução rural", da população do mundo razoavelmen-
implementado por comunidades rurais te bem posto que ela tenha apenas 6%
em várias regiões da China, parecem das terras aráveis do mundo. Além
estar inspirados na experiência das disso, em termos da forma (e nível) de
Comunas. vida das populações rurais, as aldeias
chinesas não têm mais nada em co-
A decisão tomada por Deng Xiaoping mum com o que ainda é dominante em
de dissolver as comunas em 1980 forta- outras partes do terceiro mundo capi-
leceu a pequena produção familiar, talista. Estruturas permanentes bem
que permaneceu como a forma domi- equipadas e confortáveis formam um
nante durante as três décadas seguin- contraste marcante, não só com a anti-
tes à esta decisão. No entanto, a varie- ga China da fome e da pobreza extre-
dade de direitos dos usuários (por ma, mas também com as formas ex-
Comunas das aldeias e unidades fami- tremas de pobreza que ainda dominam
liares) ampliou-se consideravelmente. a paisagem da Índia ou da África.
Tornou-se possível aos titulares, caso
fossem residir fora, o "aluguel" (mas Os princípios e as políticas implemen-
nunca a "venda") de seus direitos do tadas (terrenos mantidos em comum, o
uso da terra, seja para outros pequenos apoio à pequena produção sem peque-
produtores ou às empresas que orga- na propriedade) são responsáveis por
nizam uma fazenda muito maior e estes resultados inigualáveis. Eles tor-
modernizada (nunca um latifúndio, naram possível uma migração rural-
que não existe na China, mas, no en- urbana relativamente controlada.
tanto, consideravelmente maior do que Compare isso com a via capitalista no
a agricultura familiar). Brasil, por exemplo. A propriedade
privada da terra agrícola esvaziou o
Em minha opinião, “aprovar” ou “re- interior do Brasil, hoje com apenas 11%
jeitar” essa diversidade de formas de da população do país. Mas, pelo menos
exploração das terras, à priori, não faz 50% dos residentes urbanos vivem em
sentido. O fato é que essa inventiva favelas e sobrevivem apenas graças à
diversidade de formas de uso comu- "economia informal" (inclusive o crime
mente realizada levou a resultados fe- organizado). Não há nada semelhante
nomenais. Em primeiro lugar, em ter- na China, onde a população urbana

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como um todo está adequadamente que afirma querer seguir em frente no


empregada e alojada, mesmo em com- caminho para o socialismo. No entan-
paração com muitos "países desenvol- to, o estabelecimento de um regime
vidos", mesmo sem mencionar aqueles capitalista de Estado é inevitável e
em que o PIB per capita está no nível permanecerá assim em todos os luga-
do chinês. res. Os próprios países capitalistas de-
senvolvidos não serão capazes de en-
A transferência da população da den- trar em um caminho socialista (que
samente povoada zona rural chinesa não está visível na agenda hoje em di-
(somente o Vietnã, Bangladesh e o Egi- a), sem passar por esta primeira etapa.
to são semelhantes) foi essencial. Me- É a fase preliminar no compromisso
lhorou as condições para a pequena potencial de qualquer sociedade de
produção rural, tornando mais terras libertar-se do capitalismo histórico no
disponíveis. Esta transferência, embora longo caminho para o socialis-
relativamente controlada, é, talvez, mo/comunismo. Socialização e reorga-
uma ameaça caso torne-se demasia- nização do sistema econômico em to-
damente rápida. Isso está sendo discu- dos os níveis, da empresa (a unidade
tido na China. elementar) para a nação e para o mun-
do, necessitam de uma prolongada luta
O capitalismo de Estado Chinês durante um período de tempo históri-
co que não pode ser encurtado.
O primeiro rótulo que vem à mente
para descrever a realidade chinesa é o O capitalismo de Estado foi construído
capitalismo de Estado. Muito bem, mas na China para atingir três objetivos: a)
este rótulo permanece vago e superfi- construir um sistema industrial mo-
cial enquanto seu conteúdo específico derno, integrado e soberano; b) gerir a
não é analisado. relação desse sistema com pequena
produção rural, e; c) controlar a inte-
É de fato capitalismo no sentido de que gração da China no sistema mundial,
a relação a que os trabalhadores são dominado por monopólios generaliza-
submetidos pelas autoridades que or- dos da tríade imperialista (Estados U-
ganizam a produção é semelhante ao nidos, Europa, Japão). A busca desses
que caracteriza o capitalismo: o traba- três objetivos prioritários é inevitável.
lho submisso e alienado, a extração do Como resultado, ela permite um possí-
trabalho excedente. Existem na China vel avanço no longo caminho para o
formas brutais de extrema exploração socialismo, mas, ao mesmo tempo em
dos trabalhadores, por exemplo, nas que reforça a tendência a abandonar
minas de carvão ou no ritmo alucinan- essa possibilidade em favor de perse-
te das oficinas que empregam mulhe- guir o desenvolvimento capitalista pu-
res. Isso é escandaloso para um país ro e simples. Deve-se aceitar que este

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conflito é inevitável e está sempre pre- em seguida, dos modelos ocidentais)


sente. A questão então é: as escolhas através do desenvolvimento de sua
concretas da China favorecem qual dos própria capacidade para produzir in-
dois caminhos? venções tecnológicas. No entanto, ele
não tem (ainda?) iniciado a reorganiza-
Em sua primeira fase (1954-1980), o ção do trabalho a partir da perspectiva
capitalismo de Estado chinês requereu da socialização da gestão econômica. A
a nacionalização de todas as empresas, Planificação – e não a "abertura" –
grandes e pequenas, (combinada com a manteve-se como meio central para
nacionalização das terras agrícolas). implementar essa construção sistemá-
Seguiu-se uma abertura para a iniciati- tica.
va privada, nacional e/ou estrangeira e
liberalização da pequena produção No período maoista, o Plano permane-
rural e urbana (pequenas empresas, ceu imperativo em todos os detalhes: a
comércio, serviços). No entanto, as natureza e a localização dos novos es-
grandes indústrias de base e do siste- tabelecimentos, os objetivos de produ-
ma de crédito constituídas durante o ção e os preços. Nesse estágio, nenhu-
período maoista não foram desnacio- ma alternativa razoável era possível.
nalizadas, mesmo que as formas de Vou citar aqui o interessante debate
organização da sua integração em uma sobre a natureza da lei do valor que
economia de "mercado" foram modifi- sustentou o planejamento neste perío-
cadas. Esta escolha foi em conjunto do. O próprio sucesso, e não o fracasso,
com o estabelecimento de meios de desta primeira fase exigiu uma altera-
controle sobre a iniciativa privada e ção dos vias para a continuidade desse
potencial parceria com o capital es- projeto de desenvolvimento acelerado.
trangeiro. Ele continua até o ponto que A "abertura" para a iniciativa privada,
estes meios são vistos de modo a cum- iniciada em 1980, mas, acima de tudo,
prir suas funções ou, pelo contrário, de 1990 – era necessária a fim de evitar
eles se tornariam cascas vazias, conspi- a estagnação que foi fatal para a URSS.
rando com o capital privado (através Apesar do fato de que esta abertura
de "corrupção" da administração). coincidiu com o triunfo globalizado do
Ainda assim, o que o capitalismo de neoliberalismo, com todos os efeitos
Estado chinês tem obtido entre 1950 e negativos dessa coincidência – em mi-
2012 é simplesmente incrível. Ele cons- nha opinião, a escolha de um "socia-
truiu, de fato, um sistema produtivo lismo de mercado", ou melhor, um "so-
moderno, soberano e integrado à esca- cialismo com o mercado", é em grande
la de um país gigante, que só pode ser parte justificada como fundamental
comparada com a dos Estados Unidos. para esta segunda fase de desenvolvi-
Ele conseguiu deixar para trás a estrei- mento acelerado.
ta dependência tecnológica de suas
origens (importação dos soviéticos e,

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Os resultados desta escolha são, mais vados a sério e os recursos político-


uma vez, simplesmente incríveis. Em econômicos necessários para a sua rea-
poucas décadas, a China construiu lização são especificados. No conjunto,
uma urbanização produtiva e industri- os resultados não são muito diferentes
al que reúne 600 milhões de seres hu- das previsões "planejadas".
manos (quase igual à população da
Europa!), dois terços dos quais foram O capitalismo de Estado chinês tem
urbanizados ao longo das duas últimas integrado no seu projeto de desenvol-
décadas. Isto é devido à Planificação e vimento dimensões sociais (não estou a
não ao mercado. A China tem agora dizer "socialista") visíveis. Estes objeti-
um sistema produtivo verdadeiramen- vos já estavam presentes na era maois-
te soberano. Nenhum outro país no Sul ta: erradicação do analfabetismo, cui-
(com exceção de Coréia e Taiwan) con- dados básicos de saúde para todos, etc.
seguiu fazer isso. Na Índia e no Brasil Na primeira parte da fase pós-maoista
há apenas alguns elementos díspares (década de 1990), a tendência foi, sem
de um projeto soberano do mesmo ti- dúvida, negligenciar a busca destes
po, nada mais. esforços. No entanto, deve-se notar que
a dimensão social do projeto, desde
A Planificação continua a ser imperati- então, ganhou de volta o seu lugar e,
va para os grandes investimentos de em resposta a movimentos sociais ati-
infraestrutura necessários para o proje- vos e poderosos, deve apresentar mais
to: para abrigar 400 milhões de novos progressos. A nova urbanização não
habitantes urbanos em condições ade- tem paralelo em qualquer outro país
quadas e para construir uma rede in- do Sul. Há certamente bairros "chi-
comparável de autoestradas, estradas, ques" e outros que não são de todo o-
ferrovias, barragens e usinas de ener- pulentos, mas não há favelas, que con-
gia elétrica, para abrir todo ou quase tinuaram a expandir-se nas cidades do
todo o interior da China, e de transferir terceiro mundo.
o centro de gravidade do desenvolvi-
mento das regiões costeiras para o oes- A integração da China na
te continental. O Plano também per- globalização capitalista
manece imperativo, pelo menos em
parte, para os objetivos e os recursos A China entrou na globalização nos
financeiros das empresas públicas (es- anos 1990 através do desenvolvimento
tatais, provinciais, municipais). Quanto acelerado das exportações de manufa-
ao resto, ele aponta para possíveis e turados possíveis para seu sistema
prováveis objetivos para a expansão da produtivo, com prioridade às exporta-
pequena produção mercantil urbana, ções cujas taxas de crescimento supera-
bem como atividades privadas indus- ram as do crescimento do PIB. O triun-
triais e outros. Estes objetivos são le- fo do neoliberalismo favoreceu o su-

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cesso desta escolha por quinze anos em outro lugar, mesmo na Índia ou no
(de 1990 a 2005). A insistência nesta Brasil, a fortiori, na Tailândia, Malásia,
escolha é questionável, não só por cau- África do Sul e outros lugares.
sa de seus efeitos políticos e sociais, Além disso, a integração da China na
mas também porque ela é ameaçada globalização tem-se mantido parcial e
pela implosão do capitalismo globali- controlada (ou pelo menos controlá-
zado neoliberal, que começou em 2007. vel). A China manteve-se fora da glo-
O governo chinês parece estar ciente balização financeira. O sistema bancá-
disso e começou a tentar uma correção, rio é totalmente nacional e focado no
dando maior importância para o mer- mercado de crédito interno do país. A
cado interno e para o desenvolvimento gestão do Yuan ainda é uma questão
do oeste da China. de soberania e de decisão da China. O
Yuan não está sujeito aos caprichos das
Dizer, como se ouve ad nauseam, que bolsas flexíveis que a globalização fi-
o sucesso da China deve ser atribuído nanceira impõe. Pequim pode dizer a
ao abandono do maoismo (cujo "fra- Washington “o Yuan é o nosso dinhei-
casso" era óbvio), à abertura para o ro e seu problema", assim como Wa-
exterior, bem como à entrada de capi- shington disse aos europeus em 1971,
tal estrangeiro é simplesmente uma “o dólar é nosso dinheiro e seu pro-
idiotice. A construção maoista pôs em blema". Além disso, a China mantém
prática as bases sem as quais a abertu- uma grande reserva para colocação em
ra não teria obtido o sucesso conheci- seu sistema público de crédito. A dívi-
do. Uma comparação com a Índia, que da pública é insignificante em compa-
não fez uma revolução comparável, ração com as taxas de endividamento
demonstra isso. Para dizer que o su- (considerado intolerável) nos Estados
cesso da China é principalmente (ou Unidos, Europa, Japão e muitos dos
até "completamente") atribuível às ini- países do Sul. A China pode, assim,
ciativas de capital estrangeiro não é aumentar a expansão de seus gastos
menos idiota. Não é o capital multina- públicos, sem grave perigo de inflação.
cional que erigiu o sistema industrial
chinês e atingiu os objetivos de urbani- O sucesso de seu projeto não foi devi-
zação e construção de infraestrutura. O do à atração de capital estrangeiro para
sucesso é atribuível ao projeto chinês a China, a partir do qual se beneficiou.
soberano em 90%. Certamente, a aber- Pelo contrário, é o sucesso do seu pro-
tura ao capital estrangeiro tem cum- jeto que tem feito os investimentos na
prido funções úteis: aumentou a im- China serem atraentes para as multi-
portação de tecnologias modernas. No nacionais ocidentais. Os países do Sul,
entanto, devido aos seus métodos de que abriram suas portas de maneira
parceria, a China absorveu essas tecno- muito mais ampla do que a China, a-
logias e agora domina o seu desenvol- ceitando incondicionalmente sua sub-
vimento. Não há nada de semelhante missão à globalização financeira, não

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se tornaram atraentes na mesma medi- queles que propagam essa ideia co-
da. O capital transnacional não é atraí- mum e vaga não têm interesse em con-
do para a China para saquear os recur- siderar se a China vai emergir para
sos naturais do país, nem para terceiri- unir-se aos princípios gerais do capita-
zar e se favorecer de baixos salários lismo (que eles acham que é prova-
pagos ao trabalho, nem para aprovei- velmente necessário) ou se vai levar a
tar-se dos benefícios do treinamento e sério o seu projeto de "socialismo com
da integração de unidades deslocaliza- características chinesas". Da minha
das, não relacionadas sistemas produ- parte, defendo que, se a China é de
tivos nacionais inexistentes (como no fato uma potência emergente, é preci-
Marrocos e Tunísia); sem nenhuma samente porque não escolheu o cami-
transferência de tecnologia; e nem nho de desenvolvimento capitalista
mesmo para realizar um ataque finan- puro e simples, e que, como conse-
ceiro e permitir que os bancos imperia- quência, se ela decidisse seguir essa via
listas desapropriem as economias na- capitalista, o projeto e sua própria e-
cionais como no México, Argentina e mergência estariam em grave perigo
no Sudeste Asiático. Na China, por de fracassar.
outro lado, os investimentos estrangei-
ros podem certamente aproveitar-se de A tese que eu apoio implica em rejeitar
baixos salários e obter bons lucros, com a ideia de que os povos não podem
a condição de que seus planos se en- saltar a sequência de etapas necessárias
caixem na China e permitam a transfe- e consideradas à questão de um possí-
rência de tecnologia. Em suma, estes vel futuro socialista, e que a China de-
são os lucros "normais", mas muito ve passar, previamente, por um desen-
mais pode ser obtido se conspirarem volvimento capitalista. O debate sobre
com a permissão das autoridades chi- este tema entre as diferentes correntes
nesas. do marxismo histórico nunca foi con-
cluído. Marx permaneceu hesitante
China: Potência Emergente sobre esta questão. Sabemos que logo
após os primeiros ataques europeus (as
Não há dúvidas de que a China é uma Guerras do Ópio), ele escreveu: da
potência emergente. Uma ideia atual é próxima vez que você enviar seus e-
que a China está tentando recuperar xércitos à China será recebido com
apenas o lugar que tinha ocupado du- uma faixa, "Atenção, você está nas
rante séculos e o perdeu no século XIX. fronteiras da República burguesa da
No entanto, esta ideia – certamente China". Esta é uma magnífica intuição
correta, e lisonjeira – não nos auxilia e mostra confiança na capacidade do
muito a compreender a natureza dessa povo chinês para responder ao desafio,
emergência e suas perspectivas reais mas ao mesmo tempo um erro porque,
no mundo contemporâneo. Aliás, a- de fato, a faixa dizia: "Você está nas

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fronteiras da República Popular da (que eu considero ser a origem distante


China". No entanto, sabemos que, em do maoismo), a revolução de 1911 na
relação à Rússia, Marx não rejeitou a China e outras revoluções no Sul, no
ideia de pular a fase capitalista (ver início do século XX. E também nos de-
sua correspondência com Vera Zasuli- bates no início do período de Bandung
ch). Hoje, pode-se acreditar que o pri- e na análise dos impasses em que os
meiro Marx estava certo e que a China chamados países emergentes do Sul
está de fato na rota do desenvolvimen- comprometidos com o caminho capita-
to capitalista. lista estão emperrados. Todas estas
considerações são corolários da minha
Mao compreendeu – melhor que Lênin tese central sobre a polarização (ou
– que o caminho capitalista levaria a seja, a construção do contraste cen-
nada e que a ressurreição da China só tro/periferia) imanente ao desenvolvi-
poderia ser obra de comunistas. Os mento mundial do capitalismo históri-
imperadores Qing, no final do século co. Esta polarização elimina a possibi-
XIX, seguido por Sun Yat Sen e o Ku- lidade de um país da periferia "acom-
omintang, já tinham planejado uma panhar" a conjuntura do capitalismo.
ressurreição chinesa em resposta ao Assim, temos que chegar à conclusão
desafio do Ocidente. No entanto, eles de que: se "recuperar o atraso" com os
imaginavam que havia outro caminho países opulentos é impossível, algo
que não o capitalismo, mas não tinham deve ser feito, ele é chamado a seguir o
os meios intelectuais para entender o caminho socialista.
que o capitalismo realmente é, e por
que este caminho foi fechado à China, A China não tem seguido um caminho
e para todas as periferias do sistema específico apenas a partir de 1980, mas
capitalista mundial. Mao, um espírito desde 1950, embora este caminho pas-
marxista independente, apreendeu sasse por fases que são diferentes em
isso. Mais do que isso, Mao entendia muitos aspectos. A China tem desen-
que esta batalha não foi vencida ante- volvido um projeto coerente, soberano
cipadamente – da vitória em 1949 – e que é apropriado para suas próprias
que o conflito entre o comprometimen- necessidades. Isto certamente não é o
to com o longo caminho para o socia- capitalismo, cuja lógica exige que as
lismo, condição para o renascimento terras agrícolas sejam tratadas como
da China, e o retorno ao redil capitalis- uma mercadoria. Este projeto continua
ta iria ocupar a totalidade do futuro soberano na medida em que a China
real. permanece fora da globalização finan-
ceira contemporânea.
Pessoalmente, eu sempre compartilhei
da análise de Mao e eu voltarei a este O fato de que o projeto chinês não é
tópico em alguns dos meus pensamen- capitalista, não significa que ele "é"
tos sobre o papel da Revolução Taiping socialista, apenas que torna possível

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A China é capitalista ou socialista?

avançar mais no longo caminho para o os aspectos de emergência – taxas res-


socialismo. No entanto, ainda está a- peitáveis de crescimento, capacidade
meaçado por um desvio que o mova de exportar produtos manufaturados –
fora dessa estrada e acabe com uma estão sempre ligados com os processos
troca, pura e simples, ao capitalismo. de pauperização que afetam a maioria
das suas populações, o que não é o ca-
A emergência do sucesso da China é o so da China. Certamente, o crescimen-
resultado de seu projeto soberano. to da desigualdade é evidente em toda
Nesse sentido, a China é o único país parte, incluindo a China, mas esta ob-
autêntico emergente (junto com a Co- servação permanece superficial e en-
reia e Taiwan). Nenhum dos muitos ganadora. Uma coisa é a desigualdade
outros países para os quais o Banco na distribuição dos benefícios do cres-
Mundial concedeu um certificado de cimento que não exclui ninguém (e
emergência é realmente emergente, ainda é acompanhado de uma redução
porque nenhum desses países perse- nos bolsões de pobreza – este é o caso
gue persistentemente um projeto sobe- da China), outra coisa é a desigualdade
rano coerente. relacionada com um crescimento que
beneficia apenas uma minoria (de 5% a
Todos subscrevem os princípios fun- 30% da população, segundo o caso),
damentais do capitalismo puro e sim- enquanto que o destino dos outros
ples, mesmo em setores potenciais do permanece desesperador. Aqueles que
seu capitalismo de Estado. Todos acei- criticam ou denigrem a China desco-
taram a submissão à globalização con- nhecem – ou fingem desconhecer – esta
temporânea em todas as suas dimen- diferença decisiva. A desigualdade que
sões, incluindo a financeira. Rússia e resulta da existência de bairros com
Índia são exceções parciais a este últi- moradias de luxo, por um lado, e bair-
mo ponto, mas não o Brasil e a África ros com habitação confortável para as
do Sul, entre outros. Às vezes, há par- classes média e de trabalhadores, por
tes de uma "política da indústria na- outro lado, não é o mesmo que a desi-
cional", mas nada comparável com o gualdade perceptível a partir da justa-
sistemático projeto chinês de constru- posição de bairros ricos, habitação de
ção de um sistema industrial completo, classe média, e as favelas para a maio-
integrado e soberano (nomeadamente ria. Os coeficientes de Gini são valiosos
na área de especialização tecnológica). para mensurar as mudanças de um
ano para o outro em um sistema com
Por estas razões todos esses outros paí- uma estrutura fixa. No entanto, em
ses, rapidamente caracterizados como comparações internacionais entre sis-
emergentes, continuam vulneráveis em temas com diferentes estruturas, eles
graus variados, mas sempre muito perdem seu significado, como todas as
mais do que a China. Por estas razões, outras medidas de magnitudes macro-

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econômicas nas estimativas nacionais. guido através das guerras preventivas


Os países emergentes (exceto China) no Oriente Médio, e, nesse sentido,
são de fato "mercados emergentes", essas guerras são as preliminares para
abertos à entrada dos monopólios da a guerra preventiva (nuclear) contra a
tríade imperialista. Estes mercados China, a sangue-frio previsto pelo es-
permitem a estes últimos extrair, em tablishment norte-americano como
seu benefício, uma parte considerável possivelmente necessária "antes de seja
da mais-valia produzida no país em tarde demais”. E fomentar a hostilida-
questão. A China é diferente: é uma de à China é indissociável dessa estra-
nação emergente em que o sistema tégia global, que se manifesta no apoio
possibilita a retenção da maior parte demonstrado aos proprietários de es-
da mais-valia produzida ali. cravos do Tibete e Sinkiang, no reforço
da presença naval dos EUA no Mar da
Grandes sucessos, novos desafios China, e o incentivo irrestrito ao Japão
para construir as suas forças militares.
Para compreender a natureza dos de-
safios que a China de hoje enfrenta é Ao mesmo tempo, Washington se de-
essencial entender que o conflito entre dica a manipular a situação para apa-
o projeto soberano da China e o do ziguar as possíveis ambições da China
imperialismo norte-americano, e seus e dos países ditos emergentes, através
subalternos aliados europeus e japone- da criação do G-20, que se destina a
ses, vai aumentar em intensidade à dar a estes países a ilusão de que sua
medida que avança o sucesso da Chi- adesão à globalização liberal iria servir
na. Existem várias áreas de conflito: o os seus interesses. O G2 (Estados Uni-
comando das tecnologias modernas, o dos/China) é, neste sentido, uma ar-
acesso a recursos do planeta, o reforço madilha que torna a China o cúmplice
das capacidades militares da China, e a das aventuras imperialistas dos Esta-
realização da intenção de reconstruir dos Unidos, podendo causar a perda
uma política internacional em função de toda a credibilidade da política ex-
dos direitos soberanos dos povos de terna pacífica de Pequim.
escolherem a sua própria política e sis-
tema econômico. Cada um destes fins A única resposta eficaz possível a esta
entra em conflito direto com os objeti- estratégia deve proceder em dois ní-
vos estabelecidos pela tríade imperia- veis: (I) fortalecer as forças militares da
lista. China e equipá-las potencialmente pa-
ra uma resposta intimidadora, e (II)
O objetivo da estratégia política dos prosseguir tenazmente no objetivo de
EUA é o controle militar do planeta, a reconstruir um sistema político inter-
única maneira que Washington pode nacional policêntrico, que respeite to-
reter as vantagens que lhe dão hege- das as soberanias nacionais, e, para
monia. Este objetivo está sendo perse- esse efeito, agir no sentido de reabilitar

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A China é capitalista ou socialista?

as Nações Unidas marginalizadas pela neutralizar (eu acrescento: e não elimi-


OTAN. Enfatizo a importância decisiva nar) a direita; e, 3) governar a partir do
deste último objetivo, o que implica a centro para a esquerda. Desta forma,
prioridade de reconstruir uma "frente Mao deu um conteúdo positivo para o
do Sul" (Bandung 2?) capaz de susten- conceito de democratização da socie-
tar as iniciativas independentes dos dade combinada com o progresso soci-
povos e dos Estados do Sul. Isso impli- al no longo caminho para o socialismo.
ca, por sua vez, que a China se torne Ele formulou o método para efetivar o
consciente de que ela não tem os meios seguinte: "a linha de massas" (descer
para a possibilidade absurda de se ali- para as massas, aprender suas lutas,
nhar com as práticas predatórias do voltar para as cúpulas do poder).
imperialismo (saqueando os recursos
naturais do planeta), uma vez que ca- A questão da democratização conecta-
rece de um poder militar semelhante da com o progresso social, em contra-
ao dos Estados Unidos, que em última posição à "democracia" desconectada
instância é a garantia de sucesso para do progresso social (e mesmo frequen-
projetos imperialistas. A China, ao con- temente ligada à regressão social) –
trário, tem muito a ganhar, desenvol- não diz respeito só à China, mas a to-
vendo a sua oferta de apoio à industri- dos os povos do mundo. Os métodos
alização dos países do Sul, que o clube que devem ser executados para o su-
de "doadores" imperialistas está ten- cesso não podem ser resumidos em
tando tornar impossível. uma única fórmula, válida em todos os
A linguagem utilizada pelas autorida- tempos e lugares. Em qualquer caso, a
des chinesas sobre questões interna- fórmula oferecida pela mídia ocidental
cionais, contida ao extremo (o que é – com vários partidos e eleições – deve
compreensível), faz com que seja difícil pura e simplesmente ser rejeitada. A-
saber até que ponto os líderes do país lém disso, esse tipo de "democracia" se
estão conscientes dos desafios analisa- transforma em farsa, mesmo no Oci-
dos acima. Mais seriamente, esta esco- dente, ainda mais em outro lugar. A
lha de palavras reforça ilusões ingê- "linha de massas" foi o meio para a
nuas e despolitização na opinião públi- produção de um consenso sucessivo
ca. aos objetivos estratégicos e em cons-
tante progresso. Isto é o contrário do
Então, a outra parte do desafio diz res- "consenso" obtido nos países ocidentais
peito à questão da democratização da através da manipulação da mídia e da
gestão política e social do país. Neste farsa eleitoral, que nada mais é do que
sentido, Mao formulou e implementou se alinhar às exigências do capital.
um princípio geral para a gestão políti-
ca da nova China que ele resumiu nos No entanto, como a China deveria co-
seguintes termos: 1) unir a esquerda; 2) meçar a reconstruir o equivalente a

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uma nova linha de massas em novas as em seguridade social estão sendo


condições sociais? Não vai ser fácil, erodidas no opulento Ocidente, a po-
porque a liderança do Partido Comu- bre China está implementando a ex-
nista, que na sua maioria mudou para pansão da seguridade social em três
a direita, baseia a estabilidade da sua dimensões: saúde, habitação e previ-
gestão na despolitização e nas ilusões dência. A política de habitação popular
ingênuas que a acompanha. O sucesso da China, difamada pela oposição da
das políticas de desenvolvimento forta- direita e da esquerda europeia, seria
lece a tendência espontânea para essa invejada, não só na Índia ou no Brasil,
direção. Acredita-se amplamente na mas também nas áreas carentes de Pa-
China, que a estrada real para recupe- ris, Londres ou Chicago.
rar o atraso com o modo de vida nos
países opulentos está aberto, livre de O sistema de seguridade social e de
obstáculos, acredita-se que a Tríade previdência já cobrem 50% da popula-
(Estados Unidos, Europa, Japão) não se ção urbana (que tem aumentado, atin-
opõem a isto, os métodos dos EUA são gindo de 200 a 600 milhões de habitan-
admirados sem questionamento. Isto é tes!) e a Planificação (ainda realizada
particularmente verdadeiro para as na China) prevê o aumento da cobertu-
classes médias urbanas, que estão se ra para 85% população nos próximos
expandindo rapidamente e cujas con- anos. Deixe que os jornalistas que criti-
dições de vida foram incrivelmente cam, denigrem e até criminalizam a
melhoradas. A lavagem cerebral a que China nos dêem exemplos compará-
os estudantes chineses estão sujeitos veis nos "países que enveredaram pelo
nos Estados Unidos, especialmente nas caminho democrático", os quais eles
ciências sociais, aliada a uma rejeição continuam louvando. No entanto, o
ao ensino oficial sem imaginação e sem debate permanece aberto sobre os mé-
o marxismo, têm contribuído para di- todos de efetivação do regime. A es-
minuir os espaços para debates críticos querda defende o sistema francês de
radicais. distribuição baseada no princípio da
solidariedade entre estes trabalhadores
O governo da China não é insensível à e as diferentes gerações – que se prepa-
questão social, não só devido à tradi- ram para o socialismo – enquanto a
ção de um discurso fundado no mar- direita, obviamente, prefere o sistema
xismo, mas também porque o povo odioso dos EUA, dos fundos de pen-
chinês, que aprendeu a lutar e continua são, que divide os trabalhadores e
a fazê-lo, força o governo. Se, na déca- transfere o risco do capital para o tra-
da de 1990, esta dimensão social tinha balho.
diminuído frente às prioridades ime-
diatas de acelerar o crescimento, hoje a No entanto, a aquisição de benefícios
tendência é inversa. No momento em sociais é insuficiente se não for combi-
que as conquistas das socialdemocraci- nada com a democratização da gestão

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política da sociedade, com a sua re- reuniões com grupos de ativistas do


politização por métodos que fortale- movimento rural nas províncias de
çam a invenção de formas criativas Shanxi, Shaanxi, Hubei, Hunan e
para o futuro socialista/comunista. Chongqing. Dirijo a todos eles meus
Os objetivos da re-politização e a cria- agradecimentos e espero que este tra-
ção de condições favoráveis à invenção balho seja útil para as discussões em
de novas respostas só podem ser obti- curso. Ele também deve muito a minha
dos através de lutas sociais, políticas e leitura dos escritos de Wen Tiejun e
ideológicas. Isso implica o reconheci- Wang Hui.
mento preliminar da legitimidade des-
sas lutas e de uma legislação baseada Referências
nos direitos coletivos de expressão, de
organização, e de proposição de inicia- AMIN, Samir. The Paris Commune
tivas legislativas. Isso implica, por sua and the Taiping Revolution. Interna-
vez, que o próprio partido está envol- tional Critical Thought, forthcoming in
vido nessas lutas, em suma, reinventar 2013.
a fórmula maoista da linha de massas.
A re-politização não faz sentido se não AMIN, Samir. The 1911 Revolution in
for combinada com procedimentos que a world historical perspective: a com-
favoreçam a conquista gradual de res- parison with the Meiji Restoration and
ponsabilidade por parte dos trabalha- the Revolutions in Mexico, Turkey and
dores na gestão da sua sociedade em Egypt. published in Chinese in 1990.
todos os níveis da empresa, local e na-
cional. Um programa deste tipo não AMIN, Samir. Ending the crisis of
exclui o reconhecimento dos direitos Capitalism or ending Capitalism? Ox-
da pessoa individual. Pelo contrário, ford: Pambazuka Press, 2011. Chapter
supõe sua institucionalização. Sua im- 5: The agrarian question.
plementação tornaria possível reinven-
tar novos caminhos usando as eleições AMIN, Samir. A Life Looking For-
para escolha de seus líderes. ward: memoirs of an independent
Marxist. London: Zed Books, 2006.
Agradecimentos: Este trabalho deve Chapter 7: Deployment and Erosion of
muito aos debates organizados na the Bandung Project.
China (novembro-dezembro 2012) por
Lau Kin Chi (Universidade de Ling- AMIN, Samir. The law of worldwide
nan, Hong Kong), em associação com a value. Monthly Review Press, New
South West Universidade de Chong- York, 2010. Initiatives from the South,
qing (Wen Tiejun), Renmin e Xinhua, 121ff, section 4.
Universidades de Beijing (Dai Jinhua,
Wang Hui), o CASS (Huang Ping) e

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Argumentum, Vitória (ES), v. 6, n. 1, p. 283-298, jan./jun. 2014.
Samir AMIN

AMIN, Samir. The implosion of con-


temporary capitalism. Monthly Re-
view Press, New York, 2013. Chapter
2: The South: emergence and
lumpendevelopment.

AMIN, Samir. Beyond US Hegemony.


London: Zed Books, 2006. Chapters:
The Project of the American Ruling
Class; China, Market Socialism?; Rus-
sia, Out of the Tunnel?; India, A Great
Power? and Multipolarity in the 20th
Century.

AMIN, Samir. Obsolescent capitalism.


London: Zed Books, 2003. Chapter 5:
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Argumentum, Vitória (ES), v. 6, n. 1, p. 283-298, jan./jun. 2014.

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