Nina Kervel / Julie Depardieu / Stefano Accorsi Contexto: França (após Maio de 68), Chile (Salvador Allende – golpe de Augusto Pinochet) e Espanha (Franquismo) dos anos 70. Movimentos de contracultura francesa.
O filme acompanha o mundo de Anna, uma garota parisiense de 9 anos,
habituada com uma instrução conservadora, católica e burguesa – advinda, à rigor, por seus avós maternos – e que começa a ruir com a presença inesperada da prima Pilar e da tia Marga, exiladas durante a ditadura franquista espanhola. Esse é o primeiro choque de realidade com o qual a garota deve lidar, sem ser capaz de assimilar os motivos que levam seus pais a hospedarem Pilar e Marga, muito menos o porquê delas não voltarem para a Espanha. Em seguida, a babá de Anna explica que elas são ligadas à comunistas, caracterizando-os como “os barbudos, vermelhos e sujos”, culpados pela empregada ter deixado Cuba, perdido sua propriedade, e, inclusive, por iniciar a guerra nuclear. Assim, grande é a surpresa de Anna quando encontra seu próprio pai com a barba crescida, além de topar com constantes visitas de homens barbudos à casa e mulheres com um visual entendido pela menina como de “ciganas”. A partir desse momento, Anna é confrontada com um cenário em contínua mudança, ao qual já não compreende, enquanto se esforça para manter o seu antigo quotidiano, adquirindo um comportamento revoltado. Os pais da garota, recém engajados com a luta política de esquerda e o movimento feminista – após a aparição de Pilar e Marga -, colaboram ainda mais para a mediante confusão ao não explicar propriamente aos filhos o que passa a ocorrer: as viagens para o Chile, a mudança para uma casa menor, a substituição frequente da babá e, acima de tudo, a proibição de Anna em comparecer as aulas de catolicismo. Nesse aspecto, é perceptível um despreparo dos pais de Anna na educação dela e de seu irmão menor, pois respondem a desavença e rebeldia de Anna com certa intolerância e desleixo. Assim, frequentemente esquecem de conceder-lhe a atenção de que necessita, além de expor os filhos em situações perigosas. Contudo, no decorrer da trama, Anna recebe uma resposta do que são os comunistas pelos próprios comunistas, os amigos barbudos de seus pais. Estes pedem que a menina imagine que toda a riqueza do mundo está contida dentro de uma laranja e explicam que alguns querem a laranja inteiramente para si, já que a descascaram, enquanto outros – os comunistas – querem dividi-la em partes iguais e partilhar. Numa cena seguinte, porém, a criança mostra como o consumismo e o capitalismo já se inserem na sua formação, quando ensina aos barbudos um jogo explicitamente baseado no ato de comprar e vender. Adiante, percebe-se que Anna também começa a mudar, tentando assumir o espírito de solidariedade que é ensinado por seu pai. Enquanto isso, a questão do aborto e liberdade são apresentadas na narrativa de forma relativamente leve, bem como episódios de ordem histórica e política como o Maio de 68, a vitória de Salvador Allende no Chile e o posterior golpe de estado Augusto Pinochet, desencadeando um desfecho melancólico após este último evento. Por fim, Anna revela-se um tanto mais “madura” ou compreensiva, entretanto o filme reforça que a personagem ainda é uma criança, em toda sua inocência. Na última cena, ela brinca no pátio de uma nova escola, absorta com a diferença entre esta e a rígida escola católica, despreocupada com as questões adultas que a abalaram anteriormente. Consequentemente, assim como Anna vive entre dois polos conflitantes – a educação conservadora e reacionária dos avós maternos e da escola versus os preceitos socialistas de seus pais –, tentando compreender esse ambiente a partir da sua ingenuidade, esse longa pode apresentar um valor único no quadro das discussões políticas atuais (2019), bem como para promover um debate sobre como tais assuntos são refletidos nas crianças. Dessa forma, podemos ainda pensar se há efeitos nocivos numa ruptura repentina na educação destas, assim como se há idade adequada ou não para se tratar de certos assuntos. Nesse último aspecto, devemos ponderar que embora a introdução precoce de Anna nesse contexto de disputa entre capitalismo e comunismo cause certa perturbação na personagem, ressalta-se positivamente a apreensão de conceitos como solidariedade e liberdade pela menina, como valores que realmente devem ser ensinados desde a primeira infância. Ademais, a diretora Julie Gravas e, em especial, a jovem atriz Nina Kervel-Bey devem ser aclamadas e reconhecidas pela excelente película.