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1. Introdução
O caso da implantação da televisão digital terrestre (TVD), no Brasil, é paradigmático
para o estudo das políticas de comunicação no país. Tendo em vista o atraso histórico do
mercado midiático nacional, marcado pela concentração, privilégios político-partidários, falta
de controle público dos processos de publicização e ausência de um sistema não-comercial
paralelo com força junto ao público, estes problemas deveriam ser atacados justamente neste
momento, de transição tecnológica. Como um conjunto de tópicos essenciais ao
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Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “<Economia Política e Políticas de Comunicação>”, do XVI
Encontro da Compós, na UTP, em Curitiba, PR, em junho de 2007.
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Professor no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e no
Departamento de Economia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: <bolano@ufs.br>.
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Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS). E-mail: <val.bri@terra.com.br>.
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funcionamento televisivo, envolvendo concessões, equipamento e conteúdos, terá que ser re-
regulamentado, na passagem para o digital, há um motivo claramente provocador da
rediscussão da TV brasileira. No entanto, até o momento isto não aconteceu, apesar do Brasil
ser governado por um partido historicamente identificado com o espectro de esquerda, o PT.
Esta timidez política, contudo, não significa que o Governo Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2006) venha repetindo integralmente a postura do Governo Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002), quanto à televisão digital, que consistiu numa hesitação, própria de seu
partido, o PSDB, sem avançar para um investimento na tecnologia nacional, em acordo com
outros países emergentes. O Governo do PT chegou a propor alguns avanços na área,
consubstanciados no Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), que mobilizou o
conhecimento científico nacional, recebendo mais de R$ 4 milhões de recursos públicos. No
entanto, tem faltado ao atual Governo força para, independentemente da pressão empresarial,
especialmente na área de mídia, levar adiante seus projetos. Assim é que o SBTVD foi
esvaziado, em prol da adoção do padrão japonês, assim como a Lei do Audiovisual e o
Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) não foram levados adiante pelas críticas recebidas.
Centradas na televisão digital terrestre e na TV pela internet, as novas tecnologias
audiovisuais não conduzem a uma superação do atual período histórico do mercado televisivo
brasileiro. Esses movimentos articulam-se com a ampliação quantitativa de opções ao
receptor, viabilizada, em parte, pela alteração tecnológica, que redunda, por outro lado, em
acirramento da luta competitiva. Desencadeiam-se, assim, movimentos estruturantes que
afetam a televisão e os demais meios de comunicação. As respostas estratégicas das empresas
brasileiras do setor têm redundado numa crise de endividamento (cujo ápice já passou), a
qual, naturalmente, as fragiliza economicamente no momento em que altos investimentos
serão necessários para a digitalização da TV. Contudo, os operadores televisivos têm
renovado sua força política, fazendo valer suas posições na arena de negociações com o
Estado, sendo o modelo digital definido pelo país o da preferência dos radiodifusores.
2. Capitalismo e Estado
Os fenômenos contemporâneos sintetizados em ascensão do papel da informação-
comunicação no processo produtivo, reestruturação das relações de trabalho e aceleração da
inovação tecnológica são traços do novo arranjo capitalista delineado a partir da década de
1970, em substituição ao que prevalecia desde o final da Segunda Guerra Mundial,
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Com seu poder reduzido diante dos capitais, que se globalizam mais intensamente, com
a liberdade permitida neoliberalismo, o Estado não se torna imparcial: ao contrário,
aproxima-se ainda mais dos interesses dominantes, reforçando o caráter de barreira à entrada
exercido pela regulamentação e contribuindo para a oligopolização dos mercados. A
exacerbação da globalização não elimina, portanto, as funções do Estado, que permanece
uma entidade viva, capaz de contemplar interesses e produzir sentidos, indispensável para a
acumulação de capital e mesmo proposições em rumo diverso. Mas agora são impostos
deslocamentos ao ente estatal, o qual mais diretamente relaciona-se com (e é influenciado
por) organismos e objetivos externos à realidade nacional, que necessariamente devem ser
considerados no processo de tomada de decisões, por todos os atores sociais.
Prevalece, então, uma espiral de desregulamentação, que se espraia entre quase todos
os mercados e atende aos objetivos maiores de desmantelamento do serviço público. Sem
embargo, isso não representa a supressão de toda a intervenção pública, mas a adoção de
novas modalidades de regulação, nas quais a posição do Estado, de supremacia, tende a ser
assumida pelos agentes privados. Isto não corresponde, necessariamente, à diminuição do
número de regras. Nos EUA, a “tarefa da FCC [Federal Communications Commission] de
predizer sua missão regulatória através da análise econômica tornou-se mais complexa em
uma época de rápida mudança tecnológica” (CORN-REVERE, 1993, p. 88). Até pela entrada
de novas tecnologias, o mercado audiovisual tem sido muito regulamentado, se bem que
muitas vezes primeiro é criado o precedente no caso concreto e só depois é editado o diploma
legal, como aconteceu no início dos sistemas televisivos pagos no Brasil, nos anos 1980.
Mas o debate acerca de políticas de comunicação permanece relevante, requerendo a
inclusão também dos tópicos cultura e educação, para que sejam criados vínculos com
referentes nacionais, locais e alternativos, construindo pontes para uma sociedade mais justa
e solidária e abrindo a possibilidade de projetos verdadeiramente não-hegemônicos, que
atinjam o imaginário dos cidadãos. Nesse sentido, Zallo (2003, p. 38, 39) reflete que uma
política cultural deve levar em consideração, dentre outros pontos: impulso à criatividade dos
atores sociais, sustentação da autonomia e proteção dos criadores e comunicadores, limitação
da concentração de capital, correção dos desajustes produzidos pelos mercados, promoção da
auto-organização dos usuários da cultura e da comunicação, redefinição dos sistemas de
apoio cultural, formulação de regras deontológicas e apoio às produções e valores culturais
de mérito não mercadológico. Tais medidas justificam-se porque a concepção de políticas de
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3. Tecnologia e hegemonia
As tecnologias da informação e da comunicação (TICs) têm um papel fundamental no
processamento das lógicas capitalistas da atualidade, permitindo troca ágil de dados, maior
eficiência empresarial, funcionamento sincronizado de mercados, produção diversificada e
novas formas de consumo. Desta forma, são fundamentais na dinamicidade do sistema,
estando no bojo do funcionamento da Economia do Conhecimento, cuja questão central é a
passagem do conhecimento tácito ao codificado (FORAY, 2000) e onde o mito da
independência científica é finalmente superado. O lançamento constante de recursos
tecnológicos avançados, desencadeado no decênio de 70 do século XX e viabilizado pelo
avanço da microeletrônica, imbrica-se com as próprias alterações no interior do capitalismo,
em que a técnica está ligada à globalização (compreendida como o cume de uma trajetória do
próprio sistema, envolvendo mudanças estruturais modificadoras da totalidade social, tanto
quantitativa, quanto qualitativamente) e à adoção de políticas de liberalização e privatização.
A reflexão acerca da tecnologia e sua vinculação econômica e social deve ser embasada
não somente a partir do financiamento, concepção e desenvolvimento da pesquisa que conduz
à inovação. Devem ser considerados todo o processo de regulação e sua adoção num contexto
histórico marcado pela existência de agentes com diferentes capacidades de ação, em
conformidade com a racionalidade empresarial, mas sujeitos a pressões não hegemônicas.
Igualmente o consumo deve ser articulado nas avaliações acerca da formatação tecnológica,
na medida em que a inovação desenvolve-se também a partir de novas utilizações para um
mesmo bem ou o direcionamento para uma determinada potencialidade não explorada de um
produto já existente, num movimento em que o uso, pelos consumidores, é muito importante,
sendo por isso incitado e monitorado. Como é no domínio da interação entre usuário e
tecnologia que se pode modificar, substituir e inovar; cresce o papel dos departamentos de
atendimento ao consumidor das empresas e renova-se a função das pesquisas de mercado.
No caso dos sistemas de televisão, tudo expressa uma outra situação: surgimento de
novas possibilidades de transmissão televisiva, expansão das práticas mercadológicas na
produção e distribuição de conteúdos culturais, privatização de empresas estatais do setor,
ingresso de conglomerados financeiros e de outros ramos industriais na área, consolidação da
relação (de aprendizagem) do receptor com os meios, mudança nos padrões de
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paulatinamente, inclusive porque a lógica de inclusão própria das tecnologias que marcaram
o período anterior do capitalismo não se faz presente na atualidade. Por mais que se reduzam
os preços do conversor, qualquer inversão a mais, neste momento, no Brasil, mais do que
nunca, se mostra difícil, para uma população historicamente marcada pela pobreza, acentuada
pelo desemprego. Além do mais, o uso do conversor prevê a continuidade do mesmo receptor
analógico, o que não permite o aproveitamento de todo o potencial da digitalização.
Concomitantemente, chamar de inclusão a possibilidade do público de adquirir um aparelho e
dispor de sua funcionalidade é uma redução, não havendo definição de formas de
financiamento da produção alternativa, garantia de conteúdos que contemplem a diversidade
cultural ou a determinação de criação de conselhos sociais de controle das concessões.
O modelo alternativo – até agora não viabilizado – não pode partir dos imperativos da
valorização e da concorrência, mas da necessidade de satisfazer as tão amplas carências das
vastas populações dos países do Terceiro Mundo. Isso implica o reconhecimento da
existência de uma pluralidade de interesses, relativos a consumidores, emissoras e outros
setores da indústria brasileira, o quais, para serem atendidos, devem implicar num cenário
formatado com lógica social distinta da do velho modelo da TV de aberta, oposto, sobretudo,
ao horizonte hegemônico de exclusão pelos preços e de controle oligopólico dos mercados
culturais. Depende de opções históricas, portanto, aproximar a digitalização da televisão de
um mecanismo de aceleração das diferenças sociais e da exclusão sociais ou de um projeto
gerador da maior rede de banda larga digital popular e gratuita, com capacidade de recepção
de informação multimídia, agregando valor econômico e social à TV e tornando realidade a
convergência com outras mídias. A segunda opção significa inclusão digital e agregação de
novas aplicações domésticas, não tendo sido incorporado no modelo brasileiro, até agora.
Para que a TVD se traduzisse em efetiva inclusão digital, um novo padrão de
desenvolvimento que tome a inclusão digital como parte e como estratégia para a inclusão
social em geral deveria ter precedido a preocupação com o modelo de negócio. Melhor
dizendo, a definição do padrão de tecnologia digital a ser adotado no país deveria ter sido
norteada pela idéia de um modelo de serviço (BRITTOS; BOLAÑO, 2005, p. 52). Por isso,
os movimentos sociais insistiram na imperiosidade de que a pauta fosse invertida, inclusive
com o estabelecimento (político) primeiro de que públicos atingir, quais serviços implantar
prioritariamente e como financiar. Depois disso é que deveriam ter sido feitos os testes mais
definitivos com os padrões, a partir de uma agenda de tarefas que os sistemas deveriam
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desenvolver com qualidade próxima da excelência. Ante isso, não há como projetar, em curto
prazo, a subversão da situação característica das comunicações no Brasil, caracterizada
precipuamente pelo predomínio dos interesses privados sobre os públicos.
4. Concentração e inclusão
A falta de debate público e priorização dos interesses empresariais, onde o modelo de
negócios predominou sobre o modelo de serviços, conduziu à adoção pelo Brasil, em 29 de
junho de 2006, do padrão TV digital ISDB (Integrated Services Digital Broadcasting), de
origem e propriedade japonesa. No sentido amplo do termo, o debate não se realizou. As
brechas apresentaram limitam-se às audiências e consultas públicas e aos novos lugares
criados, como o Conselho de Comunicação Social, do Congresso Nacional, sendo conhecidas
as limitações de todas essas possibilidades, por sua própria natureza e pela condição
econômica e cultural de acesso do brasileiro médio. Ao lado disso, as emissoras televisivas
atuaram de forma totalmente irresponsável, resumindo a questão entre manter a televisão
aberta como gratuita ao telespectador ou não, quando o problema é mais amplo e, na base,
estava a possibilidade de ampliar o número de agentes participantes desse mercado. Além do
mais, é sabido que, mesmo quando não há pagamento direto pelo consumidor, este paga o
anúncio publicitário, cujo custo é embutido no preço dos produtos em geral.
A batalha das operadoras de TV foi, em síntese, pela preservação do uso total e do
controle das redes de distribuição do espaço de 6 MHz do espectro eletromagnético, que
detinham a partir das concessões analógicas. A questão é que, com a digitalização, há uma
multiplicação da capacidade desse espaço, que no sistema analógico, tanto VHF4, quanto
UHF,5 permite colocar no ar apenas uma programação. No modelo digital, os 6 MHz podem
transportar uma programação em alta definição, quatro programações na definição standard e
dados ou soluções mistas, que reúnam conteúdos televisivos e dados em geral. As grandes
redes pressionaram e conseguiram que o modelo brasileiro consagrasse que cada canal faça a
gestão de sua própria distribuição, detendo as antenas e demais equipamentos necessários e,
evidentemente, arcando com os custos da passagem da transmissão analógica para o digital
(embora pleiteiem financiamento público para isto). A solução é de difícil operacionalização
para as pequenas emissoras, tendo em vista o alto custo que isso significa.
A insistência pela manutenção do controle total sobre a distribuição dos 6 MHz levou a
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Very High Frequency (VHF), freqüência muito alta, que vai dos tradicionais canais 2 a 13.
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Ultra High Frequency (UHF), freqüência ultra-alta, compreendendo os canais situados de 14 a 69.
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6. Considerações finais
A TV digital amplia o conceito de televisão, mas a oportunidade deveria representar
também um uma ampliação qualitativa, trazendo lógicas não comerciais e novos conteúdos,
inclusive alguns não tradicionais do sistema televisivo, no modelo da internet, com
possibilidades de uso para tele-educação e tele-governo. Contudo, o grau de abertura para
soluções não-mercadológicas deve ser muito baixo, como tem sido até agora projetado, não
obstante o processo de regulamentação continue em curso e a formatação da televisão digital
dependendo de outros fatores, como incorporação por parte dos diversos agentes envolvidos,
o que pode estimular a ação estratégica da sociedade. De qualquer forma, já é sabido que, na
sua estréia, em 2007, a televisão digital não contará com canal de retorno definido, nem o
middleware que permita a interatividade, o que, desde já, limita seu uso. Tal quadro deve
mudar ao longo do tempo, com a agregação de outros equipamentos e possibilidades.
No que tange ao Governo Lula, o desafio de seu segundo mandato é restabelecer a
unidade das telecomunicações, editando uma legislação que democratize o setor. A dispersão
regulatória no âmbito comunicacional em geral prejudica a integração dos diferentes pontos
da cadeia de valor. É fundamental equacionar a questão, visando à desconcentração e o
desenvolvimento do potencial criativo do brasileiro, que pode ser estimulado através de
legislação que incentive a produção externa (quando a própria emissora contrata uma
produtora e financia o projeto), associada (conjunta entre realizadores nacionais e a TV) e
alheia (aquisição dos direitos de exibição de um produto previamente realizado). Só não é o
caso de alterar a Constituição Federal, porque o pouco que traz de avanço tem sido
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Referências
BOLAÑO, César Ricardo Siqueira; BRITTOS, Valério Cruz. Políticas de Comunicación en el Gobierno
Lula. Diálogos de La Comunicación, Lima, n. 70, p. 38-55, 2004.
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BRITTOS, Valério Cruz; BOLAÑO, César Ricardo. TV digital, potencialidades e disputas. Revista Brasileira
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CARVETH, Rod (Eds.). Media economics: theory and practice. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum
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