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canções
e inventando
moda
Ilustrações da apostila de Adelia Carvalho e Francisco Daniel, feitas para o Caderno Popular do Curso de Verão 2007
***
Antes de responder mais diretamente a essa questão, talvez a gente precise
recuar um pouco para tentar entender o como acontece em nós o processo
criativo.
É através dos sentidos que o mundo chega até nós. Mais: é através dos
sentidos que o mundo toma forma dentro de nós.
“Antes mundo era pequeno”,
Mundo não é o conjunto das coisas e canta Gilberto Gil,
pessoas fora de nós. Coisas e pessoas exis- “porque Terra era grande. Hoje
tem, quer a gente queira ou não. Quando mundo é muito grande porque
a gente entra de algum modo em contato Terra é pequena, do tamanho
com eles, lembranças, idéias se formam, se da antena parabolicamará”.
organizam de uma maneira muito particu-
lar: eles passam a existir pra nós. Mundo, então, é o conjunto de tudo o que
existe pra cada um de nós, em oposição a universo (ou a Terra da canção
de Gil), que é o conjunto de tudo o que existe (conhecido ou não).
Pra cada um de nós, ver e ouvir e tocar e sentir o cheiro e o sabor,
tudo é tão comum que nem nos damos conta da importância disso.
Você sabe dizer o que é branco? Aqui, nesse nosso pedaço de chão,
branco é tudo igual: o algodão é branco, uma folha de papel pode ser branca,
bem como uma roupa ou um caroço de laranja e um copo descartável. Tudo
é branco, até a luz de uma lâmpada fluorescente. Mas não pra um esquimó,
nas terras geladas do Ártico... Não! Pra ele não é tudo branco. Há muitas
palavras pra diferenciar um branco do outro. Questão de vida ou morte. Ele
Curso de Verão 2008 / CESEP • • Tecendo Canções e Inventando Moda
teve de aprender a diferenciar, naquele mundo coberto de neve, a aproximação
de um urso polar (perigo) ou a presença de uma lebre (alimento).
Língua e cultura são formas muito localizadas de se apropriar do mundo.
Cristalizam formas de experimentar a realidade, que é pelo menos um pouco
diferente em cada lugar do planeta.
Pra gente, não faz falta diferenciar branco de branco. Pro esquimó faz. Por
isso nossa língua não tem outra palavra para dizer esta experiência. Por outro
lado, não há nenhuma outra língua no mundo que traduza adequadamente
a palavra portuguesa saudade. Um sentimento enraizado no coração do na-
vegador português, que cruzou os mares mas deixou o coração plantado na
aldeia em que nasceu e cresceu.
Tem um ditado que diz que “o tradutor é um traidor”. Só pra quem acha
que traduzir é passar – literalmente – uma palavra ou uma frase de uma língua
para outra. Para conhecer uma outra língua de verdade é necessário aprender
a experimentar a vida como o outro a experimenta. Significa que você precisa
se aproximar do mundo do outro, saber como certas coisas se relacionam
nesse mundo, começar a entendê-lo (mesmo que você não concorde com ele).
Aprender uma outra língua é, então, aprender a ler o mundo.
Aprender a ver, aprender a ouvir, aprender a sentir, aprender a perceber é
aprender a ler o mundo. Percepção é fundamental. Você não vai conseguir
ser um cara criativo se não tiver os ouvidos e os olhos bem abertos.
“Daquilo que eu sei”,
A vida nos vem toda, inclusive com canta Ivan Lins, “nem tudo me
suas contradições, por meio de nossos deu clareza, nem tudo me deu
sentidos. certeza, nem tudo foi permitido,
nem tudo me foi possível”.
***
Ei, ei! Será que dá pra começar agora? – acredito que você deve estar me
perguntando isso.
Vamos partir, então, de duas canções pra ver se dá pra gente traçar um
roteiro de viagem.
Feche os olhos e imagine. Fim-de-semana. Não tem nada melhor do que
bater uma bola com a rapaziada. A partida termina e o rapaz convida os
amigos pra almoçar (as mulheres que me desculpem, mas “futebol é coisa
pra homem!”...). Pra juntar a galera num almoço, ou feijoada ou churrasco.
O rapaz chega pra mulher dele e avisa, em cima da hora, que convidou todo
mundo pro almoço. E agora, fazer o quê?
Partindo dessa situação relativamente corriqueira, de olho nas relações
humanas que existem (e até – por que não? – dando uma alfinetada nessas
relações nos primeiros e nos últimos versos), Chico Buarque constrói Feijoa
da completa:
A música é para o ritmo, assim como o céu é para as estrelas, o sol para
as nossas vidas na terra e o ar para nossa respiração...
Não há um só lugar no mundo sem som, sem ritmo.
O ritmo nos acompanha em todos os momentos.
Nos nossos passos, na nossa fala, bater de pestanas, nas batidas do nosso
coração, etc. Até ao morrer, ritmicamente vamos aos poucos nos apagando
lentamente. Não sabemos qual o compasso.
Nas Escrituras, nos Salmos, estão es- “A música nos meus ouvidos,
critos em todos os tempos, os seres vivos Excita minhas retinas,
da Terra viveram ouvindo músicas, sons. Renova o cérebro e a alma.
Terapeutas, médicos e professores, desco- É o gosto que sinto em minha língua”
briram curas através da música, dos sons.
Todos cantamos!
Nós, os humanos, através da letra, da poesia, do poema, instrumentos
diversos, peças, etc.
Os animais através de suas vozes: coaxam, berros, rinchos, assobios...
As plantas, através de seus ruídos, estalos (onomatopéia).
A música é uma linguagem universal. Imprescindível à nossa vida.
Música
“Senhor, fazei-me um
A música instrumental instrumento de Vossa paz”. Amém!
Aí ele dá uma dica fantástica pra gente que quer escrever canções: metá-
foras. Metáfora é uma das tantas coisas que o pessoal chama de figuras de
linguagem, ou seja, como é que a gente pode juntar as palavras para expres-
sar uma idéia. Todas essas figuras de linguagem – a maioria tem nomes tão
estranhos que talvez não valha a pena citá-los – podem ser utilizadas para se
construir a poesia da canção (que a gente costuma chamar de “letra”).
A metáfora, por exemplo, é uma comparação (só que sem o usar a palavra
“como”). Veja Cio da terra de Chico Buarque e Milton Nascimento:
Debulhar o trigo
recolher cada bago de trigo
forjar do trigo o milagre do pão
e se fartar de pão
Curso de Verão 2008 / CESEP • 12 • Tecendo Canções e Inventando Moda
A canção começa descrevendo a atividade de quem colhe o trigo. Usa pa-
lavras exatas para falar disso: debulhar, recolher cada bago. De repente vem
“forjar do trigo o milagre do pão”. Forjar não tem nada a ver com a atividade
de quem colhe e nem com a atividade de quem cozinha. Forjar é uma palavra
que fala do trabalho do ferreiro, que molda o ferro com o auxílio do calor
da fornalha e de golpes de martelo. É uma palavra muito forte e que acabou
servindo para expressar também a idéia de fabricar e de inventar.
Talvez você esteja se perguntando – já que essa é a coisa que parece a mais
comum de todas – porque eu não comecei falando que poesia tem de ter rima.
Sabe o que é rima, não sabe? É a repetição de um determinado som no final das
frases: incontível/inatingível, fazer/caber e por aí afora. Em primeiro lugar, isso
não é tão obrigatório assim. Veja a canção Por enquanto, do Renato Russo:
Mudaram as estações
Nada mudou
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Tá tudo assim
Tão diferente
Se lembra quando a gente
Chegou um dia a acreditar
Que tudo era pra sempre
Sem saber
Que o pra sempre, sempre acaba
Mas nada vai
Conseguir mudar
O que ficou
Quando penso em alguém só penso em você
E aí então estamos bem
Mesmo com tantos motivos
Pra deixar tudo como está
Nem desistir
Nem tentar
Agora
Tanto faz
Estamos indo
De volta pra casa
Perceba que a canção está estruturada em dois blocos. Cada bloco é cons-
truído por 4 (quatro) frases e cada frase começa com um pronome: “Eu” no
primeiro bloco e “Aquele” no segundo bloco. É que o primeiro bloco fala da
fé do autor na capacidade da juventude de construir um outro mundo; já o
segundo se ocupa em descrever essa juventude. Essa brincadeira de 4 frases
num bloco e 4 no outro bloco é o que chamamos de paralelismo.
Mas esse paralelismo tem, nesta canção, uma outra função: auxiliar a criar
um envolvimento com o tema. Esse envolvimento é conseguido, principal-
mente, porque a cada nova frase um elemento novo é colocado, reforçando
o verso anterior: é o que se chama de “gradação”. Só pra dar um exemplo,
essa gradação é nitidamente positiva no primeiro bloco, isto é, vai mostrando
razões cada vez mais fortes para se ter “fé na moçada”: “segue em frente e
segura o rojão”; “não foge da fera e enfrenta o leão”, “não corre da raia a troco
de nada” até chegar a “não tá na saudade e constrói a manhã desejada”.
É importante destacar que tanto paralelismo quanto gradação acontecem
não apenas em termos de construção da letra, mas também na construção
da melodia. É isso que faz dela uma canção bem amarrada.
E só pra citar mais um – figura de linguagem tem aos montes na nossa
língua –, que tal falar de ironia? Mais interessante do que falar certas coisas
de forma muito direta, é dizer o contrário do que precisa ser dito, mas de um
jeito que a pessoa entenda o que você realmente quer dizer. Isso dá até um
certo toque de humor à canção. Lembra de Feijoada completa, lá no começo?
“Mulher, você vai gostar. Tô levando uns amigos pra conversar...”. Fala sério!
Você acha que alguma mulher vai gostar de ver o marido trazer um bando de
marmanjos pra casa, suados do futebol, com vontade de beber uma cerveja
(que você não tem), com muita fome (e a comida nem tá pronta ainda)?...
Agora, você acha que ficaria legal se a música falasse assim: “Mulher, não é
pra brigar, tô levando uns amigos pra conversar...”?
Curso de Verão 2008 / CESEP • 14 • Tecendo Canções e Inventando Moda
Outros textos para a reflexão
A pipoca
Rubem Alves
A culinária me fascina. De vez em quando A pipoca é um milho mirrado, subdesen-
eu até me atrevo a cozinhar. Mas o fato é que volvido.
sou mais competente com as palavras do que Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio
com as panelas. dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas
Por isso tenho mais escrito sobre comidas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de
que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto
ter o nome de “culinária literária”. Já escrevi de vista de tamanho, os milhos da pipoca não
sobre as mais variadas entidades do mundo da podem competir com os milhos normais. Não
cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de sei como isso aconteceu, mas o fato é que
carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, houve alguém que teve a idéia de debulhar as
suflês, sopas, churrascos. espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo,
Cheguei mesmo a dedicar metade de um li- esperando que assim os grãos amolecessem e
vro poético-filosófico a uma meditação sobre o pudessem ser comidos.
filme A Festa de Babette que é uma celebração Havendo fracassado a experiência com água,
da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém
das minhas limitações e competências, nunca jamais poderia ter imaginado.
escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poe- Repentinamente os grãos começaram a es-
ta, psicanalista e teólogo – porque a culinária tourar, saltavam da panela com uma enorme
estimula todas essas funções do pensamento. barulheira. Mas o extraordinário era o que
As comidas, para mim, são entidades oní- acontecia com eles: os grãos duros quebra-
ricas. dentes se transformavam em flores brancas e
Provocam a minha capacidade de sonhar. macias que até as crianças podiam comer. O
Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um estouro das pipocas se transformou, então, de
dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois uma simples operação culinária, em uma festa,
foi precisamente isso que aconteceu. brincadeira, molecagem, para os risos de todos,
A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e especialmente as crianças. É muito divertido
duros, me pareceu uma simples molecagem, ver o estouro das pipocas!
brincadeira deliciosa, sem dimensões metafí- E o que é que isso tem a ver com o Can-
sicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, domblé? É que a transformação do milho
conversando com uma paciente, ela mencio- duro em pipoca macia é símbolo da grande
nou a pipoca. E algo inesperado na minha transformação porque devem passar os homens
mente aconteceu. Minhas idéias começaram a para que eles venham a ser o que devem ser. O
estourar como pipoca. Percebi, então, a relação milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve
metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um ser aquilo que acontece depois do estouro. O
bom pensamento nasce como uma pipoca que milho da pipoca somos nós: duros, quebra-den-
estoura, de forma inesperada e imprevisível. tes, impróprios para comer, pelo poder do fogo
A pipoca se revelou a mim, então, como um podemos, repentinamente, nos transformar em
extraordinário objeto poético. Poético porque, outra coisa – voltar a ser crianças! Mas a trans-
ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento formação só acontece pelo poder do fogo.
se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das Milho de pipoca que não passa pelo fogo
pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me continua a ser milho de pipoca, para sempre.
do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem Assim acontece com a gente. As grandes
sentido religioso? Pois tem. transformações acontecem quando passamos
Para os cristãos, religiosos são o pão e o pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do
vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de
Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, uma mesmice e dureza assombrosa. Só que
só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho elas não percebem. Acham que o seu jeito de
devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem ser é o melhor jeito de ser.
existir juntas. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é
Lembrei-me, então, de lição que aprendi quando a vida nos lança numa situação que
com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candom- nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora:
blé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do perder um amor, perder um filho, ficar doente,
Candomblé... perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo
Sopa de pedra
Alfredo S. V. Coelho
Ainda criança, ouvi a história de um velho A pedra/inspiração, ele a encontra no meio
frade que ganhou o mundo. Ia de casa em casa, do caminho. A história não diz se a pedra era
levando uma palavra amiga, pedindo um pouco sempre a mesma, ou se a cada nova jornada
de pão e abrigo. catava uma do chão. Algumas vezes, peque-
Conta a história que o bom velhinho não nas; outras, um pouco maiores. Nem sempre
se deixava abater se recebia um “não” bem polidas; nem sempre bonitas.
redondo: “hoje não tem pão velho”. Juntava O artista/velho frade vive equilibrando
gravetos do chão e acendia uma fogueira. sua própria fome/inquietação e o desejo/fome
Tirava da bolsa uma pedra encontrada pelo atiçada dos outros. Além da pedra, só tem
caminho. Pedia emprestada aos donos da casa sua palavra, seus “causos”, piadas, pra lhe
uma panela velha e água. Lavava a pedra, co- socorrer.
locava-a na panela com água. Diante dos olhos A sopa/obra de arte, que nasce da pedra,
curiosos, dizia: “vou fazer sopa de pedra”. E se tem o sabor do que lhe chega às mãos. Se não é
punha a cozinhar. Como quem não quer nada, capaz de atiçar o desejo, a sopa não se faz: não
resmungava que a sopa ficaria melhor com um tem batata-carne-feijão/elementos da cultura
pouco de cenoura ou batata. Mais que depressa, da sua gente e de outras gentes.
o pessoal ia trazendo legumes, temperos, até Só que batata, carne e feijão não são ainda
mesmo um pedaço de carne. Um cheiro bom sopa. Muito menos a pedra. É preciso misturar
encharcava o ar... e a fome, chegando. Sopa tudo na panela, na medida certa. Aquela me-
pronta, pratos na mão, todo mundo provava dida que só a língua conhece. E cozinhar até
um bocado. tudo se transformar. Encher os olhos, invadir
A pedra? Bem... a pedra ele talvez guardasse. as narinas. Ser partilhada. Matar a fome, só um
Pra outra ocasião. pouquinho... até que chegue um novo dia.
Devaneios de esperança
(Bruno Lopes e Uelber Silva)
Enquanto a noite senhora se lança
Dama lua Mistério encanta e se espanta
Com o som dos açoites nas costas
Um tom rubro se espalha nas costas
Ao som dos gemidos, mosquete e arcabuz
O velho trem trilha e leva atua luz
Usurparam com tropas armadas
Novo mundo lembranças passadas
O Rosa nos seus olhos anis
Um sonho antigo de paz e amor
Um profeta levanta em meio a fome e miséria
Há esperança! Nos confins do sertão excluído e oprimido
Almas encontram descanso e alívio
Canudos! Velha Canudos!
Que brilha! Que brilhas! Em chamas!
Somos os filhos de Zumbi, da tribo tupi
Netos de Lampião e Maria Bonita
Eu sou dos Daomés e vim de tumbeiro
Na Pedra do Reino Encantado eu finquei meu coração
A velha locomotiva passa insana intrépida
Tragando a todos em seus corações
De fogo e de sangue foi feita história
Do ouro que mata e cria a ilusão