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A representação da mulher no Portugal provinciano pós-Salazarista (*)

Maria Fernández Zas

Até há bem pouco tempo, as obras publicadas por autores homens construíram quase
exclusivamente o cânone literário português, deixando de fora a literatura escrita por mulheres, as
quais eram relegadas para um segundo plano e, por conseguinte, mantidas na sombra. Neste
sentido, face à opressão, a submissão e o silenciamento que sofreu tanto a mulher como a sua
criação literária ao longo dos séculos, a Revolução dos Cravos de 1974 representou um ponto de
viragem no que diz respeito à equidade de géneros, como demonstrado pelo surgimento de vozes
femininas muito engajadas que reivindicam o direito à igualdade de oportunidades dentro e fora
dos lares. Em pleno século XXI, mesmo a termos em conta os grandes progressos registados
recentemente, os estereótipos sexistas e os preconceitos em relação às mulheres ainda não
desapareceram completamente do campo da literatura, pois as suas obras continuam a ser menos
lidas, menos resenhadas e menos premiadas. É relativamente a este aspeto que os trabalhos de
Agustina Bessa-Luís (Amarante, Vila Meã, 1922) se tornam tão importantes, uma vez que
contribuem para a mudança da representação cultural e social da mulher, ao passo que
questionam a supremacia masculina. Excelente exemplo disto é o romance Vale Abraão, que,
para além de se referir expressamente às transformações sociais que afetaram Portugal nas
últimas décadas no século XX, fornece um valioso retrato do espaço ocupado pelas mulheres na
mentalidade do Douro provinciano e vinhateiro após o 25 de abril.
Com efeito, Bessa-Luís, uma das autoras mais conhecidas da cultura portuguesa devido a
contributos tão emblemáticos como A Sibila (1954), Fanny Owen (1979) ou Vale Abraão (1991),
afasta-se consideravelmente do perfil da mulher escritora que imperava no século passado, tanto
no que diz respeito à cronologia da sua produção literária, que principia em 1948 com a saída do
prelo de Mundo Fechado, como relativamente ao seu reconhecimento por parte da crítica e do
público. Autora de trinta e oito romances, nove ensaios, cinco peças de teatro, quatro biografias e
vários livros infantis e juvenis, a escritora amarantina recebeu múltiplas distinções ao longo da
sua vida profissional, que incluem nomeadamente o Grande Prémio de Romance e Novela
APE/IPLB (1983), o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários (1992) e
o Prémio Camões (2004).
Vale Abraão é a história de Ema Cardeano, uma mulher de incrível e singular beleza. Órfã
de mãe desde que tinha seis anos, Ema cresceu no Romesal rodeada pela sua tia Augusta e o seu
pai, Paulino Cardeano, bem como pelas criadas, que a admiravam e satisfaziam todos os seus
desejos e caprichos. Ainda muito jovem, a relutante rapariga casou-se sem amor com o viúvo
Carlos Paiva, um médico medíocre e proprietário do Vale Abraão que, por mais estranho que
pareça, pensava que a formosura de Ema justificava qualquer sacrifício que devesse fazer.

(*) Bessa-Luís, Agustina (1991). Vale Abraão. Lisboa: Guimarães.

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Escusado será dizer que, apesar de o casal ter duas filhas, Lolota e Luisona, a sua união nunca foi
feliz, senão uma nova condenação para Ema. A sua insatisfação e indiferença em relação ao
casamento e à maternidade levaram-na a se refugiar nos braços de vários amantes que, com o
conhecimento de Carlos, quem, não obstante os seus ciúmes, preferia olhar para outro lado para
não a perder, satisfaziam os seus apetites carnais, mas não conseguiam preencher o vazio que ela
sentia no mais profundo do seu ser. Com certeza, ela “estava a servir-se [deles] para resolver a
sua angústia de querer possuir, querer ser, querer valer” (p. 140). Porém, nem o consumismo,
nem as frequentes viagens ao Vesúvio, nem todos os amantes que pudesse atrair eram capazes de
saciarem por muito tempo o anseio da protagonista. Por fim, numa cena envolvida em mistério,
Ema falece afogada nas águas que rodeiam o Vesúvio, já cansada de procurar a felicidade que
durante tantos anos lhe foi negada. Carlos morre pouco tempo depois do mesmo modo em que
viveu, isto é, passando desapercebido e sem se fazer notar.
Ora bem, por trás do enredo do romance, que tem evidentes semelhanças com o clássico
do realismo francês Madame Bovary de Gustave Flaubert, há uma severa crítica do papel das
mulheres na sociedade portuguesa. Neste sentido, ao longo dos dez capítulos que enformam Vale
Abraão, Agustina Bessa-Luís analisa as consequências da ditadura salazarista no que diz respeito
à função da mulher dentro do sistema patriarcal. Como é sabido, durante o Estado Novo, e
também após o 25 de abril, a maternidade e o casamento eram considerados as máximas
aspirações na vida de todas as mulheres. No entanto, a Ema de Bessa-Luís revolta-se contra a
injustiça de umas tradições que a condenam a uma existência insatisfatória e sempre dependente
das decisões dos homens que fazem parte da sua vida. Por esta razão, ela tenta reafirmar a sua
própria identidade fora da esfera doméstica, o que se traduz na rejeição do seu papel de esposa e
mãe e, consequentemente, do ideal feminino sugerido por Salazar. De facto, não é exagero dizer
que Ema nunca quis casar e muito menos ter filhos, pois, do seu ponto de vista, eram “um
acidente de trabalho” (p. 165) e “a maior das vulgaridades” (p. 99).
Por seu turno, dentro da sua crítica da hipocrisia do patriarcado, que sempre determinou a
sociedade portuguesa, é muito significativo o facto de Bessa-Luís escolher o nome de Abraão
para se referir ao vale em que mora Ema, já que se trata do primeiro patriarca, pelo menos
segundo diz a Bíblia. Igualmente dignos de atenção são os nomes das duas filhas do casal, Lolota
e Luisona, nomeadamente se tivermos em conta que os sufixos -ona e -lota têm conotações
negativas no português. Com base no exposto, fica claro que tanto o casamento como a
maternidade impedem que Ema se sinta realizada como mulher e mesmo como ser humano.
Porém, embora seja verdade que ela luta contra os mitos associados à mulher, usando o seu
próprio corpo como arma contra a opressão masculina, ela apenas consegue libertar-se do sistema
patriarcal no momento da sua morte por suicídio, que poderia ser considerada o seu último ato de
rebeldia. Por fim, convêm salientarmos a função do narrador no decorrer do romance, pois,
embora complemente grandemente o discurso direto ao esclarecer as dúvidas que pudessem

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existir, este narrador heterodiegético e omnisciente é caracterizado pelas suas constantes
digressões, tornando difícil às leitoras e aos leitores acharem, às vezes, o fio condutor da história.
Em definitivo, tal como é ilustrado neste romance de Agustina Bessa-Luís, mesmo após a
abolição do Salazarismo em 1974, as mulheres ainda não podem atuar livremente e continuam
sujeitas, em parte, às ideias retrógradas que têm pautado as suas vidas desde há milénios. Assim,
Vale Abraão demonstra que as relações desiguais de poder entre homens e mulheres no Portugal
das décadas de 1980 e 1990 não diferem significativamente daquelas que narrava Flaubert a
meados do século XIX, e muito menos daqueloutras que estabelecia o Estado Novo há bem
pouco tempo. Infelizmente, enquanto houver sociedades baseadas na desigualdade de
oportunidades e de direitos por razões de género, mulheres como Ema continuarão a existir e a
ser vítimas de um tratamento injusto. É por isso que romances como Vale Abraão passarão à
história, pois dão voz a realidades sociais que todas e todos conhecemos, mas que poucas pessoas
são capazes de porem no papel de forma tão precisa e brilhante.

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