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Traduzido por: Fadoa Glauss, Guilherme Ihara, Jonathan Cândido, Raylander Frois e Sérgio Junior
Questões de Neutralidade
Entretanto, o uso de motos de neve não se restringiu apenas aos centros turísticos da
América do Norte. Na Suécia, Groenlândia e no Ártico Canadense, motos de neve se
tornaram parte dos equipamentos essenciais para a subsistência de várias comunidades. Na
Lapônia Sueca elas foram usadas para o pastoreio de renas. Na Ilha Banks, localizada no
Canadá, as motos permitiram os caçadores esquimós continuarem a aumentar sua renda
familiar com a tradicional colheita de inverno de peles de raposas.
Tal uso das motos de neve por pessoas de diferentes culturas servem para ilustrar um
argumento amplamente divulgado em discussões de problemas associados à tecnologia.
Esse argumento diz que a tecnologia é cultural, moral e politicamente neutra – capaz de
prover ferramentas que são independentes dos valores sociais e podem ser usadas
imparcialmente para manter diferentes tipos de estilo de vida.
A moto de neve parece ser a ilustração perfeita desse argumento. Seja usada para o
pastoreio de renas ou para recreação, para um esporte ecologicamente destrutivo ou para a
subsistência, o instrumento é o mesmo. Os princípios envolvidos em sua operação são
válidos universalmente, sejam os seus usuários os lapões, esquimós, caçadores Dene,
atletas de Wisconsin, turistas quebequenses ou garimpeiros de companhias multinacionais
de petróleo. E considerando que as motos de neve certamente tiveram um impacto social,
alterando a organização de comunidades lapãs, por exemplo, isso não significa que elas
necessariamente influenciaram valores culturais básicos. A tecnologia das motos de neve
aparenta ser bastante independente dos estilos de vida dos lapões, esquimós ou
americanos.
Uma olhada nas motos de neve modernas, com sua falsa eficiência e cores
chamativas, sugere um diferente ponto de vista. Surgem comerciais trazendo jovens homens
no auge da virilidade, pilotando a máquina com suas companheiras sexys, geralmente loiras
e no assento do passageiro. Os esquimós que usam as motos para longas expedições no
Ártico logo percebem significantes discrepâncias. Com seu tradicional meio de transporte,
um trenó puxado por uma matilha de cães, ele poderia reabastecer enquanto caçava comida
para seus cães. Com a moto de neve, ele teria que levar bastante combustível e peças
sobressalentes, teria que ser qualificado para fazer reparos e ainda assim, teria que levar
alguns cães com ele para o caso da moto quebrar. Um veículo designado para viagens entre
centros turísticos bem equipados apresenta um panorama completamente diferente quando
usado por um trabalhador em áreas remotas. Um esquimó “deixou sua moto na tenda
esquentando antes de ligá-la pela manhã, e ainda assim falhas mecânicas ocorreram”.
Existem histórias de outros esquimós, cujas aptidões mecânicas são bem conhecidas,
modificando suas motos para adaptá-las melhor ao local de uso.
Uma vez que essa distinção está estabelecida, fica claro que apesar do significado de
medicina prática diferir de um país para outro, medicina científica consiste em conhecimentos
e técnicas comuns em muitos países. É verdade que a medicina científica no ocidente é
influenciada pelo fato de que a maior parte das pesquisas se concentram em grades
hospitais. Apesar disso, a maior parte do conhecimento básico é amplamente aplicável e
relativamente independente de culturas locais. Da mesma forma, o design das motos de
neve reflete a forma como a tecnologia é aplicada em um país industrializado – máquinas
padronizadas que ignoram algumas das necessidades especiais de esquimós e lapões. Mas
ainda pode-se apontar para uma parte do conhecimento, da técnica e de um princípio
fundamental na engenharia da máquina que possui validade universal, podendo ser aplicada
em qualquer lugar do mundo.
Usar medicina prática como exemplo para outras tecnologias pode parecer estranho,
distorcido por estar ligado ao status elevado de um médico enquanto especialista. Mas o que
impressiona qualquer um mais acostumado com a engenharia é que a medicina pelo menos
possui conceitos e um vocabulário próprio que permite a ocorrência de vigorosas discussões
sobre diferentes maneiras de se ajudar uma comunidade. Por exemplo, existem frases como
“cuidados prioritários de saúde” e “medicina comunitária” que às vezes são enfatizadas como
o tipo de medicina prática que deve ser encorajada onde quer que a medicina hospitalar
tenha ido longe demais. Também há interessantes adaptações da linguagem de práticas
médicas. Em partes da Ásia, paramédicos são agora paralelos aos agricultores, e tradicionais
médicos chineses de pés descalços inspiraram a sugestão de que suas técnicas poderiam
ser utilizadas em problemas emergenciais de suprimento de água nas vilas. Mas apesar
desses empréstimos ocasionais, discussões sobre prática na maior parte dos ramos da
tecnologia não fizeram muito progresso.
Problemas de Definição
Trazer tudo isso para um estudo da pratica tecnológica pode dar a impressão de torná-
lo incrivelmente abrangente. Entretanto, ao lembrar o modo como a medicina prática possui
técnicas e éticas, bem como um elemento organizacional, podemos obter uma visão mais
ordenada do que a prática tecnológica implica. Para muitas pessoas de pensamento político,
o aspecto organizacional aparenta ser o mais crucial. Ele representa as diversas faces da
administração e políticas públicas; se relaciona com as atividades de designers,
engenheiros, tecnólogos e trabalhadores braçais, e também diz respeito aos usuários e
consumidores do que quer que esteja sendo produzido. Muitos outros, entretanto, identificam
a tecnologia através de seus aspectos técnicos, devido ao fato de se relacionarem com
máquinas, técnicas, conhecimentos e as atividades essenciais para fazer as coisas
funcionarem.
Além disso, existem valores que influenciam a criatividade dos designers e inventores.
Esses, juntamente as várias crenças e hábitos de pensamento que são características da
atividade técnica e científica, podem ser indicados ao se falar sobre um aspecto ideológico
ou cultural da prática tecnológica. Existem alguns riscos de ambiguidade aqui, porque
estritamente falando, ideologia, organização, técnica e ferramentas são todos os aspectos
da cultura de uma sociedade. Mas no discurso comum, a cultura se refere a valores, ideias
e atividades criativas, e é conveniente usar o termo com esse significado. É neste sentido
que o título deste livro se refere ao aspecto cultural da prática tecnológica.
Todas essas ideias são resumidas na Figura 1, na qual todo o triângulo representa o
conceito de prática tecnológica e os cantos representam seus aspectos organizacionais,
técnicos e culturais. Este diagrama também pretende ilustrar como a palavra tecnologia às
vezes é usada por pessoas em um sentido restrito, e algumas vezes com um significado
mais geral. Quando a tecnologia é discutida da maneira mais restrita, os valores culturais e
os fatores organizacionais são considerados como externos a ela. A tecnologia é então
inteiramente identificada com seus aspectos técnicos, e as palavras “técnicas” ou
simplesmente “técnica” podem muitas vezes ser mais apropriadamente usadas. O
significado mais geral da palavra, no entanto, pode ser equiparado à prática tecnológica, que
claramente não é livre de valores e politicamente neutra, como algumas pessoas dizem que
deve ser.
Algumas definições formais da tecnologia pairam incertas entre o uso geral e o uso
restrito. Assim, J. K. Galbraith define a tecnologia como "a aplicação sistemática do
conhecimento científico ou outro conhecimento organizado a tarefas práticas”. Isto soa como
uma definição bastante estreita, mas na leitura adicional encontra-se que Gallbraith pensa
que a tecnologia é como uma atividade que envolve organizações e sistemas de valor
complexos. Em vista disso, outros autores têm estendido o texto de Galbraith.
ASPECTO ASPECTO
CULTURAL ORGANIZACIONAL
Metas, valores e Atividade econômica e
códigos éticos, industrial, atividade
crença no progresso, profissional, usuários e
consciência e consumidores, sindicatos
criatividade
Sentido geral
de "tecnologia"
ASPECTO TÉCNICO
conhecimento, habilidade
e técnica; Ferramentas, Sentido restrito
máquinas, produtos químicos, de “Tecnologia”
liveware¹; recursos, produtos e
resíduos
Para eles, uma definição que torna explícito o papel de pessoas e organizações, bem
como de hardwares, é aquela que descreve a tecnologia como "a aplicação do conhecimento
científico e de outros organizados a tarefas práticas por ... sistemas ordenados que envolvem
pessoas e máquinas". Na maioria dos aspectos, isso resume muito bem a prática
tecnológica. Mas alguns ramos da tecnologia lidam com processos dependentes de
organismos vivos. Muitas pessoas também incluem aspectos da agricultura, nutrição e
medicina no seu conceito de tecnologia. Assim, a nossa definição precisa ser ampliada ainda
mais para incluir "liveware" (gíria que significa "gente", "pessoa". Termo usado em
contraposição a hardware, software e firmware, também chamado de wetware), bem como
hardware; prática tecnológica é, portanto, a aplicação do conhecimento científico e de outros
para tarefas práticas por sistemas ordenados que envolvem pessoas e organizações, seres
vivos e máquinas.
Dada a confusão que envolve o uso da palavra "tecnologia", não é surpreendente que
haja também confusão sobre os dois adjetivos: "técnico" e "tecnológico". Economistas tentam
fazer sua própria distinção, definindo mudança de técnica como um desenvolvimento
baseado em escolhas a partir de um extensão de métodos conhecidos, e mudança
tecnológica como algo que envolve basicamente novas descobertas ou invenções. Isso pode
levar a um uso distinto da palavra "técnica". Entretanto, utilizarei este adjetivo quando estiver
me referindo exclusivamente aos aspectos técnicos da prática, como definido pela figura 1.
Por exemplo, a aplicação do tratamento químico de água para neutralizar a corrente de
poluição é descrita aqui como "correção técnica" (não como "correção tecnológica"). Isto
representa a tentativa para resolver o problema por meios de técnica isoladas, e ignorando
a possibilidade de mudança na pratica que poderia prevenir o despejo de poluentes no rio
em primeiro lugar.
Parte do objetivo deste livro é eliminar algumas das atitudes que restringem nossa
visão da tecnologia a fim de expor esses aspectos culturais negligenciados. Com a moto de
neve, o primeiro passo foi olhar as diferentes formas em que o uso e a manutenção da
máquina é organizada em diferentes comunidades. Isso esclareceu que uma máquina
projetada em resposta aos valores de uma cultura precisava de um grande esforço para
torná-la adequada aos propósitos de outra.
Uma instância disso são os alegados riscos para a saúde associados com unidades
de exibição visual (UEV) em instalações de computador. A pesquisa cuidadosa não
conseguiu encontrar qualquer perigo real, exceto que os operadores podem sofrer de
cansaço visual e fadiga. Ainda reclamações sobre problemas mais graves continuam,
aparentemente porque eles podem ser discutidos seriamente com os empregadores,
enquanto as dúvidas sobre os sistemas globais são mais difíceis de levantar. Assim, uma
reação negativa a novos equipamentos pode ser expressa em termos de medo de “cegueira,
esterilidade, etc”, porque em nossa sociedade, isso é considerado como uma razão legítima
para rejeitá-lo. Mas tomar tais medos no valor de face será frequentemente para ignorar
aflições mais profundas não faladas, sobre '‘descamação, incapacidade de lidar com novos
procedimentos, perda de controle sobre o trabalho’'.
Aqui, então, é outro exemplo onde, sob a dificuldade técnica evidente, há questões
sobre o aspecto organizacional da tecnologia – especialmente a organização de tarefas
específicas. Estes têm conotações políticas, uma questão sobre o controle sobre o trabalho
levanta questões sobre onde o poder está no mundo da palavra, e talvez em última análise,
onde ele fica dentro da sociedade industrial. Mas além de argumentos desse tipo, há ainda
mais valores básicos sobre a criatividade no trabalho e a relação da tecnologia e da
necessidade humana.
Mesmo este nível de argumento essencialmente político pode ser desmentido para
revelar outro aspecto cultural da tecnologia. Se olharmos para o caso em favor de quase
qualquer projeto importante – por exemplo, um projeto de energia nuclear – quase sempre
há questões relativas ao poder político por trás dos argumentos explícitos sobre benefícios
e custos tangíveis. Em um projeto nuclear, estes podem relacionar-se com o poder de gestão
sobre os sindicatos nas empresas de eletricidade; Ou ao prestígio dos governos e ao poder
de seus assessores técnicos. No entanto, aqueles que operam essas alavancas de poder
são capazes de fazê-lo em parte porque podem explorar valores mais profundos
relacionados ao chamado imperativo tecnológico e à criatividade básica que torna possível
a inovação. Isso, eu argumento, é uma parte central da cultura da tecnologia, e sua análise
ocupa vários capítulos deste livro. Se esses valores subjacentes ao imperativo tecnológico
são compreendidos, podemos ser capazes de ver que aqui está um fluxo de sentimentos
que os políticos podem certamente manipular às vezes, mas que é mais forte do que seus
objetivos de curto prazo, e muitas vezes foge para além do seu controle.