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DEVEM OS CRENTES BUSCAR O DOM DE

PROFECIA HOJE?
UMA ANÁLISE DE 1 CORÍNTIOS 14.1

Por Rev. Alan Rennê Alexandrino Lima*

“Segui o amor e procurai, com zelo, os dons espirituais, mas


principalmente que profetizeis” (1 Coríntios 14.1).

Introdução

A Confissão de Fé de Westminster, um dos símbolos de fé da Igreja


Presbiteriana do Brasil, no capítulo intitulado Da Escritura Sagrada
afirma o seguinte:

Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da


providência manifestam de tal modo a bondade, a
sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam
inescusáveis, todavia não são suficientes para dar aquele
conhecimento de Deus e de sua vontade, necessário à
salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos
tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua
Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor
preservação e propagação da verdade, para o mais seguro
estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção
da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente
servido fazê-la escrever toda. Isso torna a Escritura
Sagrada indispensável, tendo cessado aqueles antigos
modos de Deus revelar a sua vontade ao seu povo.1

A afirmação em negrito claramente é cessacionista, ou seja, a CFW,


indubitavelmente, afirma que a revelação através de sonhos, visões e
profecias cessou com a completude do cânon e o fim da era apostólica.
Archibald Alexander Hodge afirma que, “aprouve a Deus,
subsequentemente, entregar essa revelação para ser escrita, a qual se
encontra agora, exclusivamente, circunscrita nas Sagradas
Escrituras”.2

Frequentemente esforços são envidados na tentativa fútil de


descaracterizar a afirmação confessional. Uma dessas tentativas é feita

*
O autor é ministro presbiteriano, membro da Igreja Presbiteriana do Brasil, e pastor-efetivo da
Igreja Presbiteriana Filadélfia, em Marabá-PA. É Bacharel em Teologia pelo Seminário
Teológico do Nordeste, em Teresina-PI (2005), Bacharel em Teologia pela Escola Superior de
Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo (2010), e atualmente cursa o
mestrado em Sacrae Theologiae Magister (S.T.M.), concentração em estudos históricos e
teológicos e linha de pesquisa em Teologia Sistemática, no Centro Presbiteriano de Pós-
Graduação Andrew Jumper, em São Paulo.
por aqueles que asseveram que a CFW não é um documento
confessional cessacionista, pois, de acordo com estudiosos como David
Hill3, David Aune4 e Wayne Grudem5, muitos dos divines eram
continuacionistas. Grudem, por exemplo, lista algumas “profecias”
feitas por homens como John Knox, os puritanos Samuel Rutherford,
George Gillespie, William Bridge, Richard Baxter e o batista Charles
Spurgeon.6 Todavia, as afirmações de Grudem têm encontrado pouca
recepção no meio teológico, principalmente depois que Garnet Howard
Milne provou que, apesar de existirem alguns poucos continuacionistas
dentre os divines de Westminster, a ampla maioria era constituída de
cessacionistas.7 No que tange à afirmação confessional, Milne afirma
que: “Em anos recentes tem existido considerável discussão sobre essa
cláusula. „Continuistas‟ têm disputado se, de fato, é uma clara, exata
afirmação „cessacionista‟ relegar à antiguidade toda a revelação
sobrenatural, incluindo a profecia do Novo testamento e os dons
revelacionais miraculosos relatados”.8

No Brasil, tem se tornado comum a ordenação de pessoas ao Sagrado


Ministério que, no momento dos exames e de responder às perguntas
constitucionais têm, no mínimo, agido com reserva mental, prometendo
subscrever a Confissão de Fé de Westminster, o Catecismo Maior e o
Breve Catecismo de Westminster, mas praticando outra coisa no
decorrer dos anos. São oficiais que têm publicado textos contrários à
afirmação confessional supramencionada, inclusive, acusando os
cessacionistas de promoverem a ignorância e divisão no Corpo de
Cristo, e exortando-os ao arrependimento.

Diante disso, faz-se necessário um exame criterioso de algumas


passagens utilizadas por aqueles que, nesse sentido, negaram seus
votos de ordenação, disseminando confusão e dúvida no seio da igreja
quanto ao que as Escrituras ensinam e a igreja confessa em seu
sistema expositivo de doutrina e prática. O objetivo do presente
trabalho não é discutir a cessação ou a continuidade dos dons
revelacionais da era apostólica, mas, sim, verificar a genuinidade da
interpretação continuísta de 1 Coríntios 14.1 Porém, antes da
consideração dessa passagem usada para apregoar a
contemporaneidade dos dons revelacionais, o dever de os cristãos os
buscarem e convocar os cessacionistas ao arrependimento, é
imprescindível que o método interpretativo-hermenêutico dos não-
cessacionistas seja considerado, ainda que de forma breve, visto que, o
modo como eles interpretam algumas passagens neotestamentárias é a
verdadeira causa da confusão existente no seio da igrejas protestantes
históricas.
A questão hermenêutica

Robert L. Thomas, professor de Novo Testamento no The Master‟s


Seminary, afirma que “nas últimas duas ou três décadas, o
evangelicalismo tem experimentado algumas mudanças dramáticas que
não são noticiadas com frequência”.9 De acordo com ele, “juntamente
com as mudanças no evangelicalismo, mudanças também aconteceram
na hermenêutica bíblica do evangelicalismo”.10 De forma específica, a
mudança na hermenêutica evangelical diz respeito ao fato de que, “nos
dias primitivos, os carismáticos defendiam o seu alegado uso de dons
como línguas e profecia puramente sobre a base da experiência, porém,
hoje, sua defesa, em muitos casos, tem se deslocado para reivindicações
de interpretação bíblica como a base para o seu exercício de tais
dons”.11 Tal alteração, de certo modo, é louvável, visto que o
experiencialismo não se constitui, em hipótese alguma, em padrão
daquilo que deve ser crido e praticado pela igreja contemporânea. O
ponto é: As reivindicações de interpretação bíblica são válidas? É
exatamente essa alteração que pode ser percebida na apresentação de
alguns argumentos por parte dos continuístas, em defesa da
continuidade dos dons extraordinários, como o de profecia.

A grande questão é: quais os pressupostos que guiam a hermenêutica


continuísta? Em quê consiste essa hermenêutica empregada pelos
defensores da contemporaneidade dos dons revelacionais? Mais uma
vez, Robert L. Thomas afirma que, os não-cessacionistas e outros
subgrupos evangélicos empregam “um subjetivismo hermenêutico para
apresentar, pela primeira vez, uma defesa bíblica do que acreditam”.12
Tal subjetivismo se expressa através da “incorporação de um novo
primeiro passo no processo interpretativo, um passo chamado pré-
entendimento”.13 Isso significa que a interpretação de uma passagem
bíblica deixou de ser um exercício objetivo e passou a ser um exercício
subjetivo, no qual o intérprete atribui ao texto o significado para o qual
ele é inclinado. A consequência disso, conforme Thomas, é que “o texto
deixa de falar por si só”.14

Como exemplo dessa interpretação a partir de um “pré-entendimento”


do texto, ele cita o já mencionado scholar Wayne Grudem:

Wayne Grudem, que não é um pentecostal vitalício,


reflete o mesmo pré-entendimento em sua aproximação
do texto bíblico. Discutindo o dom de profecia no Novo
Testamento, após aludir às posições carismáticas e não-
carismáticas, ele escreve: „Pode um novo exame do Novo
Testamento nos dar uma resolução dessas visões? Pode o
próprio texto da Escritura indicar um meio-termo ou uma
terceira posição que preserve o que é realmente
importante em ambos os lados e ainda seja fiel ao
ensinamento do Novo Testamento? Penso que a resposta
a essa pergunta é sim‟”.15

Grudem procurou apresentar um conceito de profecia que não é tão


restritivo (i.e., autoritativo) de modo a excluir pessoas inclinadas
carismaticamente ou tão frouxo (i.e., não-revelatório) para repelir a
posição não-carismática. Ele trabalha com a hipótese de dois dons de
profecia – um dom apostólico-profético e um dom de profecia exercido
pelos profetas das igrejas locais, sendo que este último é sujeito ao erro
por parte do profeta e continuará em exercício até à segunda vinda de
Jesus Cristo.16 Tudo isso, fruto de um pré-entendimento a respeito de
passagens como Efésios 2.20.

Creio que é exatamente essa imposição de significado aos textos bíblicos


que predomina nos argumentos daqueles que afirmam que as igrejas
históricas pecam por não buscarem os dons extraordinários – mais
especificamente os revelacionais -, e que os cessacionistas são rebeldes
que necessitam de arrependimento.

A Ordem Apostólica de 1 Coríntios 14.1

Uma das passagens na qual a hermenêutica subjetivista dos


continuístas pode ser percebida é 1 Coríntios 14.1: “Segui o amor e
procurai, com zelo, os dons espirituais, mas principalmente que
profetizeis”. No caso, a igreja contemporânea teria o solene dever de
seguir o amor, buscar com diligência os dons espirituais, sendo que o
dom que deve ser mais buscado é o de profecia. Dizem os não-
cessacionistas que essa passagem deve ser interpretada e aplicada às
igrejas protestantes históricas na íntegra. Consequentemente, não fazer
isso se constitui em sério pecado. Além de 1 Coríntios 14.1, outras
passagens da mesma epístola são citadas com o propósito de
fundamentar a ideia de que não buscar os dons revelacionais é pecado,
rebeldia e desobediência17: “Entretanto, procurai com zelo os melhores
dons” (1 Coríntios 12.31a); “Portanto, meus irmãos, procurai com zelo o
dom de profetizar e não o proibais o falar em outras línguas” (1 Coríntios
14.39).

Estaria o apóstolo Paulo estabelecendo uma ordem que exigiria


cumprimento perpétuo? Interessantemente, alguns defensores
continuístas, ao usarem as passagens de 1 Corítnios como dicta
probantia do seu ponto de vista, não apresentam nenhuma análise das
passagens, ainda que perfuntória. Na verdade, contentam-se apenas em
reproduzir as conclusões do carismático Wayne Grudem, que faz a
seguinte pergunta retórica: “Se este estudo sobre o dom de profecia for
convincente para alguns e se existe consenso de que suas conclusões
são realmente o que a própria Bíblia ensina sobre o dom de profecia,
então naturalmente surge a pergunta: que fazer com isso?”18 Ele crê
que deva existir consenso acerca de a sua pesquisa sobre o dom de
profecia ser inquestionável.

O que Grudem afirma em seu livro é exatamente a mesma coisa


afirmada por seus sequazes não-cessacionistas. Eis um exemplo dos
argumentos grudenianos que, são repetidos sem nenhuma base
exegética:

Contudo, outros versículos nas cartas de Paulo mostram


que ele esperava que os coríntios assumissem a postura
positiva de buscar o dom de profecia para si mesmos. “...
busquem com dedicação os melhores dons” (1Co 12.31).
“... busquem com dedicação os dons espirituais,
principalmente o dom de profecia” (1Co 14.1). “...
busquem com dedicação o profetizar” (1Co 14.39).
Aparentemente, Paulo achava que os coríntios saberiam
como fazer isso, apesar de ele nunca haver explicado o
que essa busca envolveria. Todavia, existem várias
indicações no texto de que Paulo esperava que pelo
menos alguns passos os coríntios dessem.19

Grudem também não se preocupa em examinar a passagem aludida,


reservando para si o direito de, meramente, citar a passagem buscando
apoio para sua posição. Um típico exemplo da hermenêutica
subjetivista contemporânea. Deve ser salientado que, em todos os
lugares da sua obra O Dom de Profecia do Novo Testamento aos Dias
Atuais, onde a passagem de 1 Coríntios 14.1 é mencionada, não há
sequer uma única análise da mesma.20 Simplesmente, assume-se um
significado a seu respeito. Ademais, pode-se perceber certa confusão na
sua argumentação, visto que, em determinada parte do livro Grudem
afirma algo contrário à sua suposição: “Nesse contexto Paulo está
argumentando que, ao procurar os dons espirituais, os coríntios
deveriam buscar especificamente o dom de profetizar (14.1)”.21 Ora,
Paulo está ordenando que os coríntios busquem os dons, especialmente
o dom de profecia, ou está dizendo que ao buscarem os dons, que dêem
preferência à profecia? E, mais importante, será que há qualquer ordem
no sentido de se buscar os dons revelacionais? Antes das respostas a
esses questionamentos, é necessário entender o contexto maior da
passagem: 1 Coríntios 12-14.

Isto posto, quando observado o contexto da passagem, de imediato


pode-se perceber que o imperativo apostólico, em 1 Coríntios 14.1, era,
antes de tudo, situacional, ou seja, visava remediar dificuldades
existentes no seio daquela igreja local. A igreja de Corinto enfrentava
problemas em diversas áreas: divisionismo, pecadores impenitentes,
irmãos arrastando outros irmãos às barras dos tribunais, dúvidas
quanto ao casamento, dúvidas em relação à participação em banquetes
pagãos, a autoridade apostólica de Paulo, questões relacionadas à
submissão feminina no culto e o uso do véu, embriaguez durante a Ceia
do Senhor, e, finalmente, sérios problemas quanto ao exercício dos dons
espirituais. Paulo trata desse último problema do capítulo 12 ao 14 de 1
Coríntios. A intenção do apóstolo Paulo era sanar as dificuldades
existentes, normatizando o exercício dos dons espirituais em operação
na igreja de Corinto.

O capítulo 12 coloca a ênfase na ação soberana do Espírito Santo


quanto à distribuição dos carismas:

A respeito dos dons espirituais, não quero, irmãos, que


sejais ignorantes. Sabeis que, outrora, quando éreis
gentios, deixáveis conduzir-vos aos ídolos mudos,
segundo éreis guiados. Por isso, vos faço compreender
que ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma:
Anátema, Jesus! Por outro lado, ninguém pode dizer:
Senhor Jesus!, senão pelo Espírito Santo. Ora, os dons
são diversos, mas o Espírito é o mesmo. E também há
diversidade nos serviços, mas o Senhor é o mesmo. E há
diversidade nas realizações, mas o mesmo Deus é quem
opera tudo em todos. A manifestação do Espírito é
concedida a cada um visando a um fim proveitoso.
Porque a um é dada, mediante o Espírito, a palavra da
sabedoria; e a outro, segundo o mesmo Espírito, a
palavra do conhecimento; a outro, no mesmo Espírito, a
fé; e a outro, no mesmo Espírito, dons de curar; a outro,
operações de milagres; a outro, profecia; a outro,
discernimento de espíritos; a um, variedade de línguas; e
a outro, capacidade para interpretá-las. Mas um só e o
mesmo Espírito realiza todas estas coisas, distribuindo-
as, como lhe apraz, a cada um, individualmente (vv. 1-
11).

Simon Kistemaker afirma que: “O primeiro segmento desse capítulo


revela mais sobre a operação do Espírito Santo do que qualquer outra
passagem em 1 Coríntios”.22 No trecho que vai do verso 1 ao verso 8, o
termo grego pneu/ma aparece doze vezes. O Espírito Santo exerce um
papel preponderante ao soberanamente dotar os crentes com dons para
o bom funcionamento do corpo.

Geralmente é dito por parte dos não-cessacionistas, que o apóstolo


Paulo condena aqui a ignorância quanto à existência e função dos dons,
inclusive os revelacionais, no Corpo. Entende-se por “ignorância” a
mesma coisa que “desconhecimento prático”. Diz-se que, as igrejas
históricas não ensinam sobre os dons por causa da ignorância sobre o
assunto. Afinal de contas, como ensinar e estimular algo que nunca
fora vivenciado? A exigência da experiência para assegurar o ensino a
respeito dos dons é um sofisma, afinal de contas, para que alguém
possa ensinar sobre determinado assunto nas Escrituras,
obrigatoriamente, deve tê-lo experimentado

Além disso, o que Paulo quer dizer, exatamente, quando diz aos
coríntios que não deseja que eles sejam ignorantes a respeito dos dons?
O vocábulo avgnoei/n, traduzido como “ignorantes” não tem o sentido de
“ignorância prática”, como se os coríntios soubessem da existência dos
dons e, mesmo assim, não os “buscassem”. Ao utilizar o vocábulo
avgnoei/n o apóstolo Paulo “deseja que os coríntios entendam a origem, a
natureza, e o propósito das manifestações extraordinárias do poder
divino, e que possam distingui-los”.23 No que diz respeito à prática, o
termo “se refere não apenas ao fato de „não saber‟, como também pode
se empregar num sentido geral para a „ignorância‟ ou „falta de
educação‟”.24 Nesse sentido, o comentário de Simon Kistemaker é
interessante: “Paulo não quer que os coríntios desconheçam o uso
apropriado dos dons espirituais. Em vez de usá-los em benefício de
irmãos da igreja, alguns coríntios exibiam esses dons como distintivos
de superioridade”.25 “Paulo emprega o negativo duplo implícito para
ressaltar que deseja pôr fim à falta de conhecimento dos seus leitores,
fazendo com que participassem do conhecimento dele”.26 O sentido é o
de alguém que não está informado a respeito de algo. Trata-se de um
sofisma afirmar que muitas pessoas pecam por saberem da existência
dos dons miraculosos e revelacionais e, ainda assim, não os buscarem.
É arbitrário e desonesto dizer que Paulo aqui condena a “ignorância
prática”.

Nos versículos de 8 a 10, Paulo esboça alguns dons do Espírito, como


por exemplo: palavra de sabedoria, palavra de conhecimento, fé, dons
de curas, operações de milagres, profecia, discernimento de espíritos,
variedade de línguas, e capacidade de interpretar as línguas.

Na seção seguinte (vv. 12-31), o apóstolo Paulo introduz o assunto do


funcionamento e utilização dos diversos dons concedidos pelo Espírito
Santo. Em primeiro lugar, o apóstolo combate o egoísmo de algumas
pessoas que desprezavam aquelas que possuíam dons aparentemente
mais simples (vv. 12-27). Em seguida, no versículo 28, Paulo apresenta
outra lista de dons, que inclui alguns dos já mencionados
anteriormente: apóstolos, profetas, mestres, operadores de milagres,
dons de curas, socorros, governos, variedades de línguas e capacidade
para interpretar as línguas (v. 30).
O capítulo 13 de 1 Coríntios é considerado pelos estudiosos como um
interlúdio a respeito do amor. Paulo gasta todo um capítulo da sua
epístola para ensinar os coríntios, tão cheios de si, a respeito daquele
que é o “caminho sobremodo excelente”, o amor. Interessantemente, no
versículo 8, o apóstolo Paulo faz uma afirmação a respeito das línguas,
da profecia e da ciência: “O amor jamais acaba; mas, havendo profecias,
desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará”.
Há um enorme debate acerca desse versículo e dos subsequentes (vv. 9
e 10), no entanto, devido ao escopo do presente trabalho, a questão da
cessação e do que é o “perfeito” não será discutida aqui.

Após discorrer sobre a natureza do amor, o apóstolo Paulo, no capítulo


14, volta a discorrer sobre a profecia e o dom de línguas, visando
ensinar aos coríntios que as línguas eram um dom inferior à profecia.
Mais uma vez, os não-cessacionistas impõem sentidos estranhos à
passagem ao afirmarem que Paulo “define o que é profecia” nesse
trecho. Ele não faz isso. Ele não define a natureza da profecia. Pelo
contrário, ele pressupõe que os coríntios têm conhecimento acerca do
que é a profecia. A ignorância deles em relação aos dons dizia respeito
ao modo como usá-los. Não obstante, é possível saber o que era a
profecia no pensamento do apóstolo: “A natureza da profecia para Paulo
está claramente impregnada pela natureza da profecia expressa pelos
profetas literários de Israel”.27

1 Coríntios 14.1 diz o seguinte: “Segui o amor e procurai, com zelo, os


dons espirituais, mas principalmente que profetizeis”. Existem três
verbos na passagem em questão: Diw,kete, zhlou/te e profhteu,hte. Os dois
primeiros verbos se encontram imperativo presente. Já o último se
encontra no subjuntivo presente. Literalmente, o versículo deve ser
traduzido assim: “Segui o amor, zelai pelos dons espirituais,
preferencialmente que profetizeis”. De fato, os dois primeiros verbos
expressam uma ordem direta e o terceiro, uma ordem indireta. A grande
questão é se o tempo presente dos três verbos significa que o
mandamento para se buscar os dons, especialmente o dom de profecia,
ainda é válido para os nossos dias. Isso porque, de acordo com os
melhores gramáticos, o tempo presente expressa “a ação continuada,
que se processa na ocasião do escrever, ou falar”.28 Parte da dificuldade
em relação à interpretação de 1 Coríntios 14.1 se deve à conjectura –
em muitos casos não declarada – de que o tem presente dos três verbos
é o chamado presente gnômico, que “anuncia algo verdadeiro para
todos os tempos”29, ou seja, anuncia verdades universais e absolutas,
como por exemplo: Todo homem é mentiroso, o sol se levanta todas as
manhãs, Deus é bom e etc. O grande problema com essa conjectura é
que o presente gnômico, seguindo a linha de raciocínio continuísta,
pode ser aplicado a todos os verbos que, no Novo Testamento grego,
encontram-se no tempo presente. A questão é: Qual critério é utilizado
para dizer qual se encontra no presente gnômico?

No entanto, argumentar somente a partir do tempo verbal é insuficiente


e, pode se constituir em desonestidade intelectual. O modo imperativo é
determinante para o correto entendimento da passagem. Os verbos
Diw,kete e zhlou/te se encontram no imperativo presente, que de acordo
com William D. Mounce: “O imperativo que é formado da raiz do tempo
presente é chamado de imperativo presente, e indica uma ação
contínua”.30 A questão que surge, então, é: A ação de buscar os dons
deveria continuar até quando? Essa ação deveria atravessar os séculos
da história, chegando ao século XXI? Deve a igreja contemporânea
buscar os dons, especialmente o dom de profecia, em razão do
imperativo presente de 1 Coríntios 14.1? Mounce diz ainda que, “com o
imperativo, não existe significância temporal”31, ou seja, o imperativo
grego não tem o propósito de definir durante quanto tempo tal ordem
deve ser cumprida.

Atenção especial deve ser dada ao verbo traduzido como “procurai, com
zelo” (zhlou/te). Nesse caso, Paulo estaria ordenando aos coríntios que
buscassem os dons espirituais imbuídos de zelo e toda consideração
para com os mesmos. Outras versões seguem o mesmo sentido:

Almeida Revista e Corrigida: “Segui a caridade e procurai com


zelo os dons espirituais, mas principalmente o de profetizar”.
Almeida Corrigida Fiel: “Segui o amor, e procurai com zelo os
dons espirituais, mas principalmente o de profetizar”.
Nova Versão Internacional (NVI): “Sigam o caminho do amor e
busquem com dedicação os dons espirituais, principalmente o dom
de profecia”.

Outras versões tradução o verbo de uma maneira um pouco diferente:

Bíblia de Jerusalém: “Procurai a caridade. Entretanto, aspirai aos


dons do Espírito, principalmente à profecia”.
King James Version: “Follow after charity, and desire spiritual
gifts, but rather that ye may prophesy” (“Segui a caridade, e
desejai os dons espirituais, mas principalmente que profetizeis”).

O que pode ser percebido nessas traduções, é que o verbo zhlou/te é


traduzido com o sentido de “busca zelosa” e “aspiração” ou “desejo”.
Todavia, todas essas traduções são perfeitamente questionáveis. Isso
porque, o verbo grego zhlo,w aparece 11 vezes no Novo Testamento (Atos
7.9; 17.5; 1 Coríntios 12.31; 13.4; 14.1,39; 2 Coríntios 11.2; duas vezes
em Gálatas 4.17; 4.18; Tiago 4.2). Em três ocasiões ele possui a
conotação negativa de “inveja” e “ciúme”: “E os patriarcas, invejosos
(zhlw,santej) de José, venderam-no para o Egito; mas Deus estava com
ele” (Atos 7.9); “Os judeus, porém, movidos de inveja (zhlw,santej),
trazendo consigo alguns homens maus dentre a malandragem, ajuntando
a turba, alvoroçaram a cidade e, assaltando a casa de Jasom,
procuravam trazê-los para o meio do povo” (Atos 17.5); “Cobiçais e nada
tendes; matais, e invejais (zhlou/te), e nada podeis obter; viveis a lutar e a
fazer guerras. Nada tendes, porque não pedis” (Tiago 4.2). Em quatro
outras ocorrências zhlo,w tem o sentido de “ter zelo” ou “ter cuidado”:
“Porque zelo (zhlw/) por vós com zelo de Deus; visto que vos tenho
preparado para vos apresentar como virgem pura a um só esposo, que é
Cristo” (2 Coríntios 11.2); “Os que vos obsequiam (zhlou/sin) não o fazem
sinceramente, mas querem afastar-vos de mim, para que o vosso zelo
seja em favor deles (zhlou/te). É bom ser sempre zeloso (zhlou/sqai) pelo
bem e não apenas quando estou presente convosco” (Gálatas 4.17,18).

Há ainda o verbo cognato zhleu,w, que é utilizado pelo apóstolo João em


Apocalipse 3.19: “Eu repreendo e disciplino a quantos amo. Sê, pois,
zeloso (zh,leue) e arrepende-te”.32

O grande questionamento que surge, é: Por qual razão, apenas em 1


Coríntios, zhlo,w é traduzido como “busca zelosa” e “aspiração”? Por
qual razão o verbo não é traduzido por “ter zelo”, como nas outras
ocorrências em que ele assume uma conotação positiva? O mais
inquietante é que muitos léxicos seguem essas traduções,
desconsiderando o significado primário, que é o de “ter zelo”.33 Louw e
Nida apresentam uma tradução menos problemática do verbo, em 1
Coríntios 12.31: “Coloquem seus corações sobre os dons mais
importantes”.34 Ainda assim, não se trata de uma tradução exata de
zhlo,w, e permanece a dúvida acerca do porquê desse verbo ser
traduzido indevidamente. É perfeitamente possível que as traduções
disponíveis sejam, de certa forma, influenciadas pela Vulgata, que
traduz 1 Coríntios 14.135 da seguinte forma: “Segui a caridade e os dons
espirituais, mas principalmente que profetizeis”. A Vulgata aglutina os
dois verbos gregos traduzindo-os em um só: “Segui”, dando a ideia de
que os dons devem ser buscados, assim como o amor. Isso pode ser
percebido, por exemplo, no comentário do erudito D. A. Carson: “A
importância do amor não quer dizer que ele deve ser buscado ás custas
dos dons espirituais: eles também devem ser desejados com avidez”.36
Anthony Thiselton traduz o verbo como “cultivar uma postura de
avidez”37, não obstante, interpreta o versículo de uma forma correta. Diz
ele que o apóstolo Paulo está falando que os coríntios devem “estar
ansiosos por permitirem uma preocupação corporativa pelo bem-estar
da comunidade, isto é, que esses dons possam operar na igreja, que é o
horizonte da preocupação de Paulo”.38

Conclusão

Os não-cessacionistas, como afirmado por Robert L. Thomas, não


permitem que o texto fale “por si só”. Visto que estão comprometidos
com um “pré-entendimento” de 1 Coríntios 14.1, eles simplesmente se
dão ao trabalho de citar a passagem – sem uma exegese séria da mesma
– acusar os cessacionistas de provocarem divisão, confusão e ignorância
no Corpo de Cristo, e conclamá-los ao arrependimento. Eles afirmam
que tal busca ainda deve ser empreendida porque partem do
pressuposto de que os dons revelacionais e miraculosos não cessaram
com o fim da era apostólica. Visto que eles possuem esse “pré-
entendimento” a leitura que fazem da passagem em questão acaba
sendo subjetivada. E para agravar ainda mais, tudo indica que esse
“pré-entendimento” é meramente a repetição das ideias – também
subjetivadas – de Wayne Grudem. Será esse o tipo de “análise” que fará
o cessacionismo cair por terra? A resposta é óbvia.

Através de uma análise da passagem ficou claro que, o apóstolo Paulo


ordena que os coríntios sigam o caminho sobremodo excelente do amor,
zelem, cuidem dos dons que estavam em operação na sua igreja local,
sendo que, o principal desses dons, aquele que deveria ser alvo de um
maior desvelo, era o dom de profecia. O princípio permanece válido para
a igreja de hoje. Ela deve seguir o caminho sobremodo excelente do
amor, deve zelar pelos dons espirituais em operação e, principalmente,
pela fiel exposição das Sagradas Escrituras, o aspecto profético que
permanece em nossos dias. Visto que Paulo não teve como preocupação
definir o que era a profecia, o presente trabalho também não abordará
essa questão, embora o seu autor não veja motivo plausível para
considerar a profecia neotestamentária como algo diferente da profecia
do Antigo Testamento.39

No mais, que aqueles que usam de reserva mental no momento de


responder às perguntas constitucionais e prometer subscrever a
Confissão de Fé de Westminster se arrependam dessa flagrante quebra
do nono mandamento40, bem como da divisão e confusão que,
verdadeiramente semeiam no meio das igrejas reformadas.

SOLI DEO GLORIA!

1
A CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER. I.1. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. p. 15.
2
A. A. Hodge. Confissão de Westminster Comentada por A. A. Hodge. São Paulo: Os
Puritanos, 1999. p. 53.
3
David Hill. New Testament Prophecy. London: Marshall, Morgan and Scott, 1979.
4
David Aune. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1983.
5
Wayne Grudem. O Dom de Profecia do Novo Testamento aos Dias Atuais. São Paulo: Vida,
2004.
6
Ibid. p. 445-461.
7
Garnet Howard Milne. The Westminster Confession of Faith and the Cessation of Special
Revelation: The Majority Puritan Viewpoint on Whether Extra-Biblical Prophecy is Still Possible.
Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers, 2007.
8
Ibid. p. 7.
9
Robert L. Thomas. “The Hermeneutics of Noncessationism”, In: The Master’s Seminary
Journal. Vol. XIV, Nº 2, 2003. p. 288.
10
Ibid.
11
Ibid. p. 289.
12
Ibid.
13
Ibid.
14
Ibid.
15
Ibid. p. 306-307.
16
Ibid. p. 307.
17
Cf. Vincent Cheung. Cessacionismo e Rebelião. Brasília: Monergismo, 2009. p. 2.
18
Wayne Grudem. O Dom de Profecia do Novo Testamento aos Dias Atuais. p. 281.
19
Ibid. p. 229.
20
Conferir as páginas: 160, 229, 230, 251, 295, 417, 432 e 455.
21
Wayne Grudem. O Dom de Profecia do Novo Testamento aos Dias Atuais. p. 160. Ênfase
acrescentada.
22
Simon Kistemaker. Comentário do Novo Testamento: 1 Coríntios. São Paulo: Cultura Cristã,
2004. p. 570.
23
Moisés C. Bezerril. A Natureza Apostólica dos Dons Espirituais de 1 Coríntios 12: Uma
Abordagem Exegética aos Dons da Era Apostólica. Teresina: Berith Publicações, 2005. p. 3.
24
E. Schütz. “avgnoe,w”, In: Lothar Coenen e Colin Brown. Dicionário Internacional de Teologia
do Novo Testamento. Vol. 1. São Paulo: Vida Nova, 2007. p. 406.
25
Simon Kistemaker. Comentário do Novo Testamento: 1 Coríntios. p. 572.
26
E. Schütz. “avgnoe,w”, In: Lothar Coenen e Colin Brown. Dicionário Internacional de Teologia
do Novo Testamento. Vol. 1. p. 406.
27
C. M Robeck Jr. “Profecia, Profetizar”, In: Gerald F. Hawthorne, Ralph P. Martin e Daniel G.
Reid (Orgs.). Dicionário de Paulo e suas Cartas. São Paulo: Vida Nova/Paulus/Edições Loyola,
2008. p. 1009.
28
William Douglas Chamberlain. Gramática Exegética do Grego Neotestamentário. São Paulo:
Casa Editora Presbiteriana, 1989. p. 96.
29
Ibid. p. 97.
30
William D. Mounce. Fundamentos do Grego Bíblico. São Paulo: Vida, 2009. p. 371.
31
Ibid.
32
Há uma leitura variante em Apocalipse 3.19. Alguns poucos manuscritos trazem o verbo
zhlo,w no imperativo aoristo ativo (zh,lwson). Todavia, considerando o contexto e a necessidade
perene de zelo, a leitura correta é a que traz o verbo zhleu,w no imperativo presente ativo
(zh,leue).
33
Como por exemplo: Thayer’s Greek Lexicon, Gingrich Lexicon, LEH Lexicon, Liddell-Scott
Lexicon, UBS Lexicon e Friberg Lexicon, todos disponíveis no BIBLEWORKS 7.0. Cf. também:
Harold K. Moulton. Léxico Grego Analítico. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. p. 193; F. Wilbur
Gingrich e Frederick W. Danker. Léxico do NT Grego/Português. São Paulo: Vida Nova, 2004.
p. 92.
34
Louw-Nida Greek Lexicon in BIBLEWORKS 7.0. Minha tradução.
35
O texto, como se encontra na Vulgata, diz o seguinte: “sectamini caritatem aemulamini
spiritalia magis autem ut prophetetis”.
36
D. A. Carson. Showing the Spirit: A Theological Exposition of 1 Corinthians 12-14. Grand
Rapids, MI: Baker Academic, 1996. p. 101.
37
Anthony C. Thiselton. New International Greek Testament Commentary: The First Epistle to
the Corinthians. Grand Rapids, MI: W. B. Eerdmans Publishing Company, 2000. sem
numeração de páginas.
38
Ibid.
39
Para uma análise interessante da natureza da profecia neotestamentária, as seguintes obras
cessacionistas são de grande importância: Moisés Cavalcanti Bezerril. Os Profetas do Novo
Testamento: Um Estudo sobre a Natureza da Profecia no Novo Testamento e uma Avaliação
da Moderna Teoria dos Dois Níveis de Profecia. Recife: Berith Publicações, 1999, 91p; Richard
B. Gaffin Jr. Perspectivas sobre o Pentecostes. São Paulo: Os Puritanos, 2010, 130p; Walter J.
Chantry. Sinais dos Apóstolos: Observações sobre o Pentecostalismo Antigo e Moderno. São
Paulo: PES, 1996, 136p; Sinclair B. Ferguson. O Espírito Santo. São Paulo: Os Puritanos,
2000, 360p; O. Palmer Robertson. A Palavra Final: Resposta Bíblica à Questão das Línguas e
Profecias Hoje. São Paulo: Os Puritanos, 1999, 168p; George W. Knight III. A Profecia no Novo
Testamento. São Paulo: Os Puritanos, 1998, 36p; Victor Budgen. The Charismatics and the
Word of God. Faverdale North, Darlington: Evangelical Press, 2001, 320p.
40
Ver a exposição feita pelo CATECISMO MAIOR DE WESTMINSTER, na pergunta 145.

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