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III Congresso Nordestino de Ciências da Religião e Teologia - 8 a 10 de setembro 2016 - Universidade Católica de Pernambuco

Corpos, Espiritualidades e Formação:


uma nova agenda por um novo tempo

Matheus da Cruz e Zica1

Sobre os pressupostos teóricos das Ciências das Religiões

Antes de começarmos qualquer diálogo, gostaria inicialmente de esclarecer


nossa posição diante de um debate importante de nossa área a respeito dos pressupostos
teóricos que embasam o campo de investigação das Ciências das Religiões. Mircea
Eliade tem sido apontado frequentemente por ampla bibliografia como sendo o grande
representante, o grande consolidador da disciplina no cenário acadêmico internacional.
Por isso é sempre bom recuperar o pensamento desse autor para se discutir os
pressupostos das pesquisas da área. Em “O Sagrado e o Profano: a essência das
religiões”, fica bem claro o ponto de partida de suas interrogações:

Contudo, entre os caçadores nômades e os agricultores sedentários, há


uma similitude de comportamento que nos parece infinitamente mais
importante do que suas diferenças: tanto uns como outros vivem num
Cosmos sacralizado; uns como os outros participam de uma
sacralidade cósmica, que se manifesta tanto no mundo animal como
no mundo vegetal. Basta comparar suas situações existenciais às de
um homem das sociedades modernas, vivendo num Cosmos
dessacralizado, para imediatamente nos darmos conta de tudo o que
separa este último dos outros. Do mesmo modo, damo-nos conta da
validade das comparações entre fatos religiosos pertencentes a
diferentes culturas: todos esses fatos partem de um mesmo
comportamento que é o do homo religiosus.
(Eliade, 2010 [1957], p.22-23. Ênfase adicionada)

A palavra “essência”, já presente no próprio título da obra, ganha ressonância no


conteúdo da mesma no momento em que se afirma haver “um mesmo comportamento
1
Licenciado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Pós-Doutor em Educação
pela mesma Universidade, na linha de História da Educação. Atualmente tem pesquisado a relação entre
corpo, espiritualidade e discurso em diferentes contextos culturais chineses e japoneses. É Professor do
Departamento de Ciências das Religiões do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB) e Coordenador do Xiu-Shen – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Culturas do Leste Asiático.
Também é Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões (UFPB) – atual vice-
coordenador – e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG).
em diferentes fatos e culturas”. Esse caráter homogeneizante de suas abordagens,
marcadas pelas grandes teorias em voga no contexto histórico específico daquele autor,
tem sido hoje colocada em questão por muitos pesquisadores. É o caso de Jacqueline
Hermann, por exemplo, em seu importante capítulo intitulado “História das Religiões e
Religiosidades”, na influente coletânea organizada por Ciro Flamarion Cardoso e
Ronaldo Vainfas em 1997, “Os Domínios da História”:

O representante mais consistente, e com a obra mais sólida dedicada a


este tipo de enfoque, foi certamente Mircea Eliade, cujo trabalho O
Sagrado e o profano, a essência das religiões explana bem a opção
dos que entenderam ser mais importante a análise das estruturas do
fenômeno religioso para a compreensão da essência da religião (no
singular), do que decifrar a sua história. (...)
Ao debruçar-se sobre a especificidade do sagrado, Eliade propõe-se a
construir sua morfologia, inventariando as similitudes presentes entre
os mais diferentes sistemas religiosos conhecidos pela humanidade,
sem um critério muito claro para a escolha das sociedades observadas.
A busca sistemática da essência dos fenômenos analisados confere à
sua abordagem um caráter fenomenológico, o que o leva a atribuir
significados idênticos a manifestações religiosas formalmente
análogas, mas que não necessariamente possuem o mesmo sentido
para os diferentes grupos que as vivenciam.
(Hermann, 1997, p.321)

Numa outra via, Jans-Jürgen Greschat, em “O que é Ciência da Religião”, de


1998 e traduzido para o português em 2005, ao invés de criticar o ponto de vista
Eliadiano tende por sua vez a extremar o aspecto de um suposto eixo comum de todos
os eventos religiosos:

Representantes da Ciência Sistemática da Religião enxergam alguma


coisa além do que os outros vêem. Compreendem algo que foge a da
atenção, tanto dos seguidores de uma religião, quanto dos
historiadores que pesquisam sobre ela. Os representantes da Ciência
Sistemática da Religião descobrem algo geral naquilo que é
específico. Perguntam: O que está por trás disso? Ou melhor: qual é a
essência, o elemento subjacente? Procuram algo invariável, tanto no
tempo quanto no espaço. Quem reconhecer esse “invariável” terá
achado um instrumental, uma fórmula, um método com o qual seria
possível para a humanidade explicar o passado, prever o futuro e
moldar o presente. (...) É preciso admitir que, nesse sentido, os
cientistas da religião estão muito atrás dos de outras disciplinas, por
exemplo da química ou da cirurgia.
(Greschat, 2005 [1998] p.107-108. Ênfase adicionada)

A partir do excerto podemos destacar duas questões importantes no discurso do


autor. Primeiro: que ele reforça a preocupação com o invariável, com a essência, tópica
característica da tradição Eliadiana. Segundo: fica evidenciada sua preocupação em
seguir o exemplo de disciplinas de áreas estranhas às Ciências Humanas, como química
e cirurgia. É preciso lembrar que essa síndrome de inferioridade das Humanas em
relação às chamadas Ciências “Duras” foi contundentemente solapada e enfraquecida a
partir da década de 1950, quando após o fim da 2ª Guerra Mundial (1945), o ponto de
vista relativo em relação às comunidades humanas passou a obter grande valor em
detrimento de discursos homogeneizantes e comparativistas.
Isso se deveu ao fato de que conceitos como: essência de um povo, de uma raça,
de desenvolvidos, de inferiores ou de primitivos; foram largamente utilizados pelos
nazistas em sua implacável rotulação de grupos humanos na representação
hierarquizada e estratificada que construíram do mundo. A certeza das grandes
narrativas homogeneizantes sobre qualquer aspecto humano se mostrou como construto
teórico perigoso e nefasto nas mãos de projetos autoritários e imperialistas.
Foi nesse âmbito que o principio da incerteza acabou se tornando algo
fundamental como pressuposto de qualquer pesquisa dos domínios do saber que
tivessem os seres humanos como objeto principal de estudo. No cenário atual do campo
de Ciências das Religiões, um dos representantes mais elevados dessa postura de
abertura à diversidade que deve caracterizar qualquer trato com o humano tem sido o
Professor Dr. Marcelo Camurça, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Ao invés de discursos unitaristas e de
pretensões megalomaníacas em relação ao poder do conhecimento, Camurça segue na
defesa de uma postura bem distinta:

Diante dessas tendências contemporâneas – a partir da preeminência


do indivíduo e tribos (pós-) modernas, e a consequente “multipla
pertença religiosa”, fragmentação e “desregulação” das instituições e
doutrinas (grandes narrativas) – o próprio campo clássico dos
“Estudos Comparados de Relgião”, com sua base filológica, parece ter
sido atingido por transformações (...).
(Camurça, 2008, p.54)

E prossegue em sua argumentação:

Desta forma, postulo, então, outra perspectiva para as Ciências da


Religião, o em que as disciplinas das Ciências Humanas que as
compõem seriam resguardadas no exercício pleno de sua autonomia
teórico-metodológica, em torno de uma área (inter)disciplinar na qual
o interesse comum dessas ciências seria a religião como tema.
Defendo a formulação (...) de um “campo disciplinar” enquanto uma
“estrutura aberta e dinâmica” que não constitua as Ciências da
Religião como uma disciplina própria dentro das Ciências Humanas,
passível de um método único, mas de caráter pluridisciplinar, de
diversidade metodológica.
(Camurça, 2008, p.61)

Bem como nosso colega supracitado também me preocupo muito com a questão
de nós, das Ciências das Religiões, estarmos antenados com as discussões mais
avançadas em outras áreas das Ciências Humanas e Sociais. Penso que juntamente com
a História, a Antropologia, a Filosofia, a Sociologia e a Teoria Literária fazemos parte
de um esforço coletivo maior no sentido de proporcionar o avanço de abordagens que
levem em conta, cada vez mais, a devida complexidade que está na base de todos os
nossos objetos de análise que envolvem os humanos e suas atividades. É nessa direção
de abertura à diversidade que segue a argumentação de Camurça:

Quanto a nós, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião


de Juiz de Fora, e creio que os demais Programas de Ciência(s) da
Religião no País, em maior ou menor grau, seguimos uma trajetória
que teve como ponto de partida um departamento de clérigos (mesmo
em universidade pública) e uniconfessional, para, em seguida, passar
por um processo de desclericalização e descatolicização e alcançar
atualmente a fase da desmasculinização. Se as duas primeiras fases
ensejaram transformações salutares no sentido de um perfil
acadêmico-científico “aberto e dinâmico”, o que levou um dos
Programas no País a assumir, na sua própria denominação, a palavra
“ecumênico”, o momento atual traz para o campo epistemológico
da(s) Ciência(s) da Religião a questão de gênero, que introduz
métodos subjacentes a ponto de vista peculiar, o das mulheres!
(...)
Atualmente, se pensarmos o paradigma da Modenidade e religião
como Zeitgeist que encompassa e articula o campo acadêmico da(s)
Ciência(s) da Religião, vemos que outros objetos, problemas e
abordagens surgem ao lado do gênero, como ecologia, corpo, mídia,
mercado, ciência e política, enquanto mobilizadores e organizadores
da(s) Ciências da Religião, o que nos aproxima das Ciências Humanas
e da reflexão filosófica contemporânea.
(Camurça, 2008, p.56. Ênfase adicionada)

Ou seja, ao invés dos velhos temas – Sagrado, Rito, Exegese... – muitos outros
surgiram no horizonte das pesquisas em Ciências das Religiões quando estas assumem a
positividade do diálogo com as demais Ciências Humanas e Sociais, notadamente as
questões de gênero conforme já foi destacado, e através daí o Corpo. Eis que surge,
portanto, resgatado que foi após período de longevo triunfo dos textos enquanto
instância principal de entendimento das religiões e espiritualidades.

Da história do corpo à história da espiritualidade

A principal evidencia de que o Corpo ganha papel cada vez mais destacado na
agenda das Ciências Humanas e Sociais, e por isso agora felizmente também nas
Ciências das Religiões, é a publicação da primeira edição em 2006 da coletânea
“História do Corpo”, em três grossos volumes organizados pelos franceses Alain
Corbin, Jean-Jacques Courtine, e George Vigarello, professores da Sorbonne e da
Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Na introdução do último volume,
inteiramente dedicado ao Século XX, Courtine nos apresenta um quadro geral
interessante do itinerário teórico que o Corpo seguiu ao longo daquele breve século,
para relembrar aqui “A Era dos Extremos”, de Eric Hobsbawm:

O século XX é que inventou teoricamente o corpo. Essa invenção


surgiu em primeiro lugar da psicanálise, a partir do momento em que
Freud, observando a exibição dos corpos que Charcot mostrava na
Salpetrière, decifrou a histeria de conversão e compreendeu o que iria
constituir o enunciado essencial de muitas interrogações posteriores: o
inconsciente fala através do corpo. Este primeiro passo foi decisivo,
dado que abriu a questão das somatizações, e fez que se levasse em
conta a imagem do corpo na formação do sujeito, daquilo que viria a
ser o “eu-pele”. Seguiu-se a este um segundo passo, que talvez se
possa atribuir à idéia que Edmund Husserl fazia do corpo humano o
“berço original” de toda significação. Sua influência foi
profundamente sentida na França e conduziu, da fenomenologia ao
existencialismo, à concepção elaborada por Maurice Merleau-Ponty
do corpo como “encarnação da consciência”, seu desdobramento no
tempo e no espaço, como “pivô do mundo”.
(Courtine, 2008 [2006], p.8)

Mas para além dessa atenção teórica que foi sendo cada vez mais dispensada ao
corpo, sobretudo por intelectuais do sexo masculino, outros protagonismos estavam
reservados a ele naquele mesmo Século:

Faltava-lhe [ao corpo] um derradeiro obstáculo a transpor: a obsessão


linguística do estruturalismo. Esta, desde o pós-guerra até a década de
1960, ia, com efeito, enterrar a questão do corpo com a do sujeito e
suas “ilusões”. Mas as coisas começaram a mudar pelo fim da década
de 1960: isto se deveu provavelmente menos, ao contrário do que
muitas vezes se pensa, à iniciativa dos pensadores do momento que ao
fato de que o corpo se pôs a desempenhar os primeiros papéis nos
movimentos individualistas e igualitaristas de protesto contra o peso
das hierarquias culturais, políticas e sociais, herdadas do passado.
“Nosso corpo nos pertence!” – gritavam no começo dos anos 1970 as
mulheres que protestavam contras as leis que proibiam o aborto,
pouco tempo antes que os movimentos homossexuais retomassem o
mesmo slogan.
(Courtine, 2008 [2006], p.8-9)

Ou seja, é preciso sempre relembrar que foi do engajamento político atrelado a


uma práxis corporal que surgiu a pressão por uma “torção” nas discussões teóricas que
até então vinham sendo tecidas a seu respeito. Um sujeito torna-se, então, um eixo
importante no papel de condensação discursiva desses anseios:

[o corpo] ganha seu título de nobreza no trabalho de Michel Foucault,


cuja presença explícita ou implícita, reivindicada ou criticada,
atravessa muitos dos estudos que compõem esta série [coletânea de
três volumes da “História do Corpo”]. O mérito de Foucault, quer se
subscreva ou não a sua maneira de conceber os poderes exercidos
sobre a carne, consiste em a ter firmemente inscrito no horizonte
histórico da longa duração.
(Courtine, 2008 [2006], p.9-10)

Michel Foucault dispensou, de fato, muito interesse ao Corpo. Em sua “História


da Loucura”, procurou saber dos destinos que os corpos dos sujeitos considerados
loucos seguiram ao longo do tempo. “Vigiar e Punir” é um clássico sobre a história dos
mecanismos de controles destinados aos corpos no Ocidente. Depois desses clássicos, o
filósofo francês segue no rumo da maior de suas empreitadas: a escrita de uma longa
“História da Sexualidade”, que sai em três volumes, produzidos ao longo de mais de dez
anos, onde o Corpo é um personagem principal. E nesse trabalho, a escrita de Foucault
se mostra renovada em termos de visada teórica apresentada até então nas obras
anteriores.
Se em “História da Loucura” e em “Vigiar e Punir” o autor pensava nos
controles implacáveis exercidos sobre os sujeitos por instancias impessoais, a partir da
escrita de sua “História da Sexualidade”, Michel Foucault passa a considerar as
possibilidades de liberdade que estariam alojadas em cada corpo humano. Sendo a
sexualidade uma prática no limite – ou não redutível – aos discursos, através das
pesquisas que fez sobre práticas de sexualidade no mundo antigo greco-romano, o
exercício da sexualidade passa a ser entendido pelo autor como uma possível prática de
liberdade e autoconhecimento por todos os sujeitos. E não nos esqueçamos de que onde
há prática, há Corpo!
Das investigações sobre sexualidade no universo greco-romano de mais de 2.000
anos atrás, o pensador francês chega então ao grande tema do cuidado de si, que seria a
tônica do pano de fundo cultural que perpassou a experiência histórica dos sujeitos que
viveram entre o ano 500 a.C. até aproximadamente 500 d.C. Na verdade, descobrira que
o exercício da sexualidade como prática de liberdade fazia parte desse arcabouço bem
maior que significava a epiméleia heautoû (“cuidado de si”). Muitas vezes também
compreendido como cultivo de si, o cuidado de si tinha como imperativo várias práticas
de si que teriam como fim a constituição da vida como uma obra de arte.
Essas ideias de que vagamente vos falo estão belamente pormenorizadas em seu
longo livro de mais de 400 páginas, intitulado “A Hermenêutica do Sujeito”, fruto de
seu curso anual ofertado no Collège de France, precisamente em 1982. É no âmbito
dessa sua importante investigação e descoberta sobre a centralidade do cuidado de si na
cultura helênica e romana, âmbito no qual o corpo está necessariamente implicado, é
que Foucault vai chegar na espiritualidade como fator fundamental em todo esse
processo.

Durante todo esse período que chamamos Antiguidade e segundo


modalidades que foram bem diferentes, a questão filosófica do “como
se ter acesso à verdade” e a prática de espiritualidade (as
transformações necessárias no ser mesmo do sujeito que permitirão o
acesso à verdade) são duas questões, dois temas que jamais estiveram
separados. Não estiveram separados para os pitagóricos, é claro. Não
estiveram separados também para Sócrates e Platão: a epimeléia
heautoû (cuidado de si) designa precisamente o conjunto das
condições de espiritualidade, o conjunto das transformações de si que
constituem a condição necessária para que se possa ter acesso à
verdade.
(Foucault, 2011 [1982], p.17)

Podemos dizer, assim, que da forma como Michel Foucault nos apresenta a
espiritualidade ela estaria ligada quase que intrinsecamente ao ato do conhecimento.
Desvinculada, portanto, de dogmas e, sim, conectada ao universo prático de buscas e
investigações. Poderíamos dizer seguramente que se trata, aqui, da apresentação da
possibilidade de existir uma verdadeira e genuína prática laica de espiritualidade.
Esse arcabouço explicativo engendrado pelo autor em questão nos interessa de
perto na medida em que muitas atividades já bastante procuradas e disponíveis em
nosso contexto atual podem também ser entendidas como promotoras do
desenvolvimento de espiritualidades laicas. Esses não seriam os casos da Capoeira, do
Yoga, do Tai Chi Chuan, dentre outras modalidades? Os adeptos dessas práticas de si,
ao serem perguntados sobre os efeitos dessas artes sobre si mesmos são praticamente
unanimes em reconhecer que o trabalho espiritual está ali presente sim, mas também
que, nem por isso, precisam compartilhar de qualquer doutrinação ou filiação textual a
quaisquer cânones religiosos.
Cabe ainda ressaltar nesse ponto de nossa argumentação que a abordagem que
ora propomos se aproxima aqui do que os acadêmicos atuais têm detectado como uma
presença crescente em nossos dias do que chamaram muito apropriadamente de
espiritualidades não-religiosas – a esse respeito conferir um dossiê com esse título
publicado recentemente, em 2014, na prestigiada revista de nossa área, a “Horizonte”,
da PUC-MG2, organizado por ninguém menos que nosso atual representante de área na
CAPES, o Professor Dr. Flávio Augusto Senra Ribeiro.

À guisa de conclusão: crítica ao conceito de Ensino Religioso por uma nova relação
entre Educação e Religião

Outra questão importante que precisa sempre estar em nosso horizonte de


atuação, segundo minha avaliação, é a atenção aos dilemas de nosso tempo histórico.
Temos de fato pensado na relação de nossas pesquisas com os problemas que
enfrentamos enquanto nação? Enquanto latino-americanos num contexto global?
Enquanto país assolado por uma tradição golpista? O que nossas pesquisas têm a ver
com as escolas?
De minha parte acredito que um novo conceito de educação, atrelado à ideia de
trabalho de espiritualidade e autocultivo, poderia penetrar a escola a partir da influencia
direta de nossa atuação na Pós-Graduação em Ciências das Religiões, sobretudo as
alocadas em universidades públicas. Penso que a tônica desse movimento seria
precisamente a crítica ao conceito de “Ensino Religioso”. Conceito esse que claramente
foi mantido aos trancos e barrancos por católicos conservadores, durante todo o século
XX, e, em inícios do XXI, por evangélicos neopentecostais, através de arranjos políticos
contra grupos defensores de um Estado laico.
A necessária laicidade do ensino público foi uma pauta precursoramente
advogada na história da educação do Brasil pela figura de Rui Barbosa, em 1882. Nessa

2
Cf. http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/issue/view/650/showToc (acessado em
30/08/2016)
atitude o pioneiro Rui Barbosa foi seguido pelos intelectuais Anísio Teixeira, Fernando
Azevedo e Lourenço Filho no emblemático Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova, que assinaram em 1932, e em 1959, quando essas mesmas figuras reforçaram
esse posicionamento ao assinarem o manifesto intitulado Mais Uma Vez Convocados,
contra um projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que desse
margem a financiamento público de instituições católicas de ensino. Em ambas as
intervenções, podemos considerar que esse grupo de intelectuais foi vencido em suas
principais prerrogativas (Xavier, 2004; Cunha, 2013).
A história brasileira nos mostra que católicos de ontem e evangélicos de hoje
tem conseguido insistentemente fazer alianças políticas que garantem o lugar do
cristianismo no espaço público da educação brasileira, em detrimento dos movimentos
favoráveis à laicidade. Sobre esse conceito nos esclarece muito bem Luiz Antônio
Cunha:

Laico é o Estado imparcial diante das disputas do campo religioso,


que se priva de interferir nele, seja pelo apoio, seja pelo bloqueio a
alguma confissão religiosa. Em contrapartida, o poder estatal não é
empregado pelas instituições religiosas para o exercício de suas
atividades. (...)
O Estado laico difere do Estado ateu. Este é o que se opõe a toda e
qualquer religião, desqualificada como alienada ou alienante, em
termos individuais ou sociais. (...) Entender bem a diferença entre a
laicidade e o ateísmo é de grande importância, porque os partidários
da (con)fusão política-religião sempre proclamam, em tom de ameaça:
“Estado laico não é Estado ateu”. Essa é uma afirmação óbvia,
mas que traz de contrabando a ideia de que a oposição é entre o
Estado ateu, de um lado, e o Estado religioso de outro. Há quem
até diga que aceitar a laicidade do Estado, desde que ela seja
“autentica” ou “positiva”. São adjetivos que invertem o substantivo,
pois, na realidade, o que se pretende é que o Estado abra todas as
portas para as instituições religiosas – desde as escolas públicas
até os cofres do Tesouro Nacional.
Outra precisão conceitual necessária é sobre o status da laicidade: ela
não está pronta e acabada em lugar nenhum do mundo. Ela é um
processo. Ou seja: qualquer definição de Estado laico será sempre
tentativa, aproximativa, porque ele é uma construção histórica, como
aliás, o conceito correlato de democracia, que não está pronta em
lugar algum do mundo.
(Cunha, 2013, p.9-10. Ênfase adicionada)

Ou seja, a defesa da laicidade na escola pública é feita em nome da liberdade de


crença, o que inclui a não crença religiosa. Por que não falarmos, então, em: “Religiões
e Espiritualidades” ao invés de “Ensino Religioso”? Não existe o componente curricular
escolar denominado “Ciências”? Se admitimos a possibilidade da não crença religiosa,
como falar em “ensino de religião”, conforme sugere o antigo conceito de “ensino
religioso”, ao invés de pensarmos na direção de um “ensino sobre religião”? Aqui
também sugeriria a inclusão do tema “Espiritualidades”, na medida em que temos
discutido academicamente a existência crescente de “espiritualidades não-religiosas” em
nosso contexto atual, conforme já pontuamos em momento posterior desse texto.
Mais de uma vez me pronunciei a esse respeito sobre a possibilidade de
compreender a Capoeira, o Tai Chi Chuan, o Aikido, e mais recentemente o Yoga,
como possíveis práticas constituidoras de espiritualidades do corpo não obedientes a
ortodoxias e, portanto, promotoras de espiritualidades não-religiosas (Zica, 2015). Há
tempos a escola foi inflada de cargas discursivas externas às reais necessidades dos
sujeitos. Literalmente presa na grade curricular é fácil verificar que não há na escola
atual o importante espaço e tempo destinados ao vazio. Vazio útil e necessário,
principal responsável por tornar possível o brotar de um conteúdo genuíno proveniente
das subjetividades. As práticas citadas acima têm, todas elas, por grande tema: o Vazio!
O possível componente curricular “Religiões e Espiritualidades”, em
substituição ao antigo “Ensino Religioso”, abriria, da forma pela qual o compreendemos
e propomos, espaço para: a Espiritualidade, a Formação e o Autoconhecimento. No
limite, a meta última dessa proposição seria um transbordamento da escola. Ou seja, que
esse modo de entendimento da educação, claramente não restrito a apenas um recorte
geracional, atingisse adultos que não necessariamente os de classe média que já têm tido
acesso a escolas particulares de Tai Chi Chuan e Yoga, por exemplo. Que esse projeto
impulsionasse os legisladores a baixarem o tempo da jornada de trabalho em direção à
garantia de um maior tempo livre.
Com o uso do tempo livre se poderia pensar no autocultivo. Através do
autocultivo se coloca em questão o corpo como portal importante, ou como jóia rara que
merece atenção constante. A atenção ao trabalho de respiração acalmará as mentes e, a
partir daí, o desenvolvimento espiritual se efetivará. Com a atitude do autocultivo virá
também o inevitável incremento no desenvolvimento da cultura letrada, no sentido de
incentivo à escrita e à frequência a bibliotecas. E disso viria também a quebra do poder
da mídia de massa.

Bibliografia
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