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CRÍTICA

POR UMA SOCIOLOGIA POLÍTICA análises clássicas a respeito da criação do Dasp, do


DA BUROCRACIA papel da administração paralela no período JK e,
mais recentemente, do modelo burocrático instituí-
Sistema estatal e política econômica no Brasil pós- do pelos governos militares. Em linhas gerais, esta
64, de Adriano Nervo Codato. São Paulo: Hucitec/ literatura mostra a importância da burocracia — ou
Anpocs, 1997, 368 pp. de parte dela — para a definição dos rumos do
Estado nacional-desenvolvimentista. O livro de Adri-
Fernando Luiz Abrucio ano Codato vem se juntar a esse conjunto de
trabalhos optando por uma abordagem metodológi-
Os estudos sobre a burocracia já têm uma ca que vem perdendo terreno entre nossos pesqui-
tradição na ciência política brasileira, contando com sadores: o enfoque da sociologia política, que alia o

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estudo das instituições com o das formas pelas quais institucional para aumentar a capacidade governa-
os grupos sociais tentam fazer valer seus interesses mental de formular e controlar as políticas públi-
no âmbito estatal. A esta instigante opção metodoló- cas, especialmente as vinculadas ao desenvolvi-
gica soma-se uma pesquisa empírica original e de mento econômico.
alta qualidade, que com certeza tornou justa a O poder adquirido pelo CDE e sua importância
entrega do prêmio Anpocs de melhor dissertação de para o projeto de desenvolvimento formulado por
mestrado (versão 1996) ao texto de Codato. Geisel têm levado vários autores a compará-lo ao
O objeto escolhido foi uma das agências mais Conselho Monetário Nacional (CMN), fortíssimo no
importantes do regime militar: o todo-poderoso período do "milagre econômico". De forma bastan-
Conselho de Desenvolvimento Econômico (CDE), te convincente, Codato rebate estas análises de-
criado pelo presidente Ernesto Geisel para melhorar monstrando que o CDE foi um arranjo institucional
a coordenação burocrática e contribuir decisiva- com características bem distintas do CMN. Primeiro
mente para completar o ciclo industrial de substitui- porque se tratava de substituir o informalismo e o
ção de importações, tal como expresso nos objeti- poder concentrado na figura do czar econômico da
vos do II PND. Esta estrutura burocrática concen- época e comandante da estrutura do CMN, o minis-
trou poderes na Presidência da República e, desse tro Delfim Netto, por uma estrutura formal e que
modo, propiciou ao Estado brasileiro chegar a um centralizasse o poder na Presidência da República.
alto grau de autonomia e mais próximo de um Nas palavras do autor, "o CDE foi o resultado
projeto prussiano de desenvolvimento econômico. explícito de um projeto das cúpulas da burocracia
Parodoxalmente, porém, esse êxito semeou seu do Estado e do seu desejo de encontrar, a todo
fracasso futuro: quanto mais avançava em suas custo, um mecanismo mais 'racional' (e, portanto,
metas, mais o governo Geisel sofria resistências das 'técnico') e menos 'informal' (isto é, 'político') de
frações econômicas hegemônicas, que primeiro atu- decisão, justamente o oposto do que havia prevale-
aram numa rebelião contra a "crescente estatização cido entre 1967 e 1974" (p. 88).
da economia" e depois engajaram-se na campanha Uma segunda diferença importante está no raio
da redemocratização. Por que, após anos de apoio de ação do CDE. Embora a área econômica fosse
aos militares, o empresariado se voltou contra o uma de suas prioridades, o fato é que ele se tornara,
regime autoritário? pela amplitude dos temas lá debatidos, o verdadeiro
Codato responde a esta pergunta utilizando a "conselho de governo". Esta posição estratégica do
sociologia política de forma precisa, tendo como CDE cumpria uma função mais geral, muito bem
pano de fundo a relação entre o Estado e a socieda- detectada pelo viés sociológico do autor: cabia a
de no Brasil, mas ressaltando a extrema relevância este órgão modificar a relação do Estado com os
da análise institucional para o entendimento desta grupos econômicos empresariais hegemônicos no
questão. Em torno deste eixo explicativo, a análise tocante ao modelo de desenvolvimento. É verdade
do livro tem três grandes méritos. que a tríplice aliança Estado/capital privado/multi-
O primeiro está no enfoque bem dosado nas nacionais permaneceria, mas a correlação de forças
instituições, sem cair no formalismo reinante nos se transformaria, com o vértice das empresas esta-
trabalhos da área de administração pública. Neste tais ganhando maior relevância.
sentido, a força política do CDE não pode ser Geisel tentou realizar um verdadeiro projeto
meramente explicada, como fazem alguns autores, prussiano de desenvolvimento, buscando cortar a
pelas características pessoais do presidente Geisel, "relação altamente simbiótica, porém mercantil e
com seu estilo "neobismarckiano". Na verdade, foi pouco solidária, entre o empresariado e o Estado",
criado um novo desenho institucional, baseado em como bem aponta Fiori1. O CDE entra neste projeto,
"um centro decisório único, situado na cúpula do segundo Codato, como a "tecnologia organizativa"
sistema estatal e bastante fechado às pressões e que, por meio da centralização do poder na Seplan
influências 'externas'" (p. 141). Assim, criava-se e na Presidência da República, evitaria a balcaniza-
um mecanismo contra a fragmentação e a compe-
tição crescentes, típicas do modelo burocrático
brasileiro e que tinham sido ampliadas com o (1) Fiori, José Luís. Em busca do dissenso perdido: Ensaios sobre
a festejada crise do Estado. Rio de Janeiro: Insight Editorial,
Decreto-lei nº 200. O CDE constituía-se na solução 1995, pp. 71-72.

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ção do Estado, quer pelo enfraquecimento dos autor, os empresários não criticavam o regime
arranjos corporativos de representação empresarial, autoritário tendo como suposto uma adesão à libe-
quer pela diminuição da autonomia das agências ral-democracia. As falas do empresariado expostas
públicas, nas quais eram estabelecidos os "anéis no livro demonstram que, em sua maioria, os
burocráticos", mecanismo informal que privilegiava agentes das frações econômicas dominantes tinham
o acesso de determinados grupos econômicos às uma visão instrumental da democracia. O objetivo
decisões e aos recursos estatais. Mais uma vez fica era aumentar a participação empresarial nas deci-
nítida a diferença com o CMN: este instrumento sões estatais, reabrindo os canais corporativos fe-
burocrático era extremamente permeável à influên- chados pela "tecnologia organizativa" na qual tinha
cia das frações dominantes da burguesia, sobretudo papel central o CDE. Quanto ao aprofundamento da
a paulista, principal base de sustentação do ministro democracia, os empresários se mostravam "mais
Delfim Netto. O CDE, por sua vez, significou um tímidos" e, em última análise, tinham como valor
fechamento do aparelho estatal para grande parcela último a "manutenção da ordem social", seguindo o
do empresariado. mesmo raciocínio por eles adotado no momento do
E neste ponto encontra-se o segundo grande golpe de 1964.
mérito do livro: a análise do impacto da mudança na Isso posto, Codato conclui que a atuação dos
administração pública, efetuada com a criação do empresários teve uma relação mais direta e contí-
CDE, sobre o conflito entre os empresários e o nua com a reabertura dos canais corporativos de
governo Geisel. Como bem ressalta Codato, não foi representação empresarial dentro do governo João
uma mera alteração de organograma. As campanhas Figueiredo do que com a redemocratização em
pela "desestatização" e pela redemocratização vão seu aspecto global. Mais um mérito pode então ser
ser analisadas como produtos do fechamento dos observado em seu trabalho: o de analisar as diver-
canais corporativos e dos anéis burocráticos ao sas demandas pela democratização como diferen-
grande empresariado. A centralização de poder no tes entre si. É como se o resultado destas lutas
CDE aguçou o conflito entre as frações econômicas sociais se constituísse num mosaico, formado por
dominantes e o projeto de desenvolvimento elabo- interesses e concepções de democracia muitas ve-
rado por Geisel. Seu projeto prussiano contido no II zes divergentes.
PND foi em grande medida realizado, mas ao custo Obviamente o autor não afirma que o papel do
de criar uma rebelião em um dos principais suportes empresariado foi nulo no processo de transição
à ditadura militar. democrática, nem este foi o propósito de seu estu-
No desenrolar deste aspecto da análise, Adria- do. O que ele tentou comprovar foi que o motor da
no Codato mostra como a "rebelião empresarial" atuação empresarial em suas campanhas "cívicas"
não estava umbilicalmente ligada à crise econômica do final da década de 70 esteve vinculado, basica-
nem a um pretenso liberalismo dessas elites. No que mente, ao descontentamento com o fechamento
se refere ao problema econômico, é bom lembrar dos canais de participação da burguesia dentro do
que o II PND representou uma saída desenvolvi- aparelho burocrático, tal como ocorria tradicional-
mentista à crise, contendo ingredientes que agrada- mente no corporativismo varguista e com mais vigor
vam mais aos empresários do que a realização de com o fortalecimento dos anéis burocráticos duran-
um forte ajuste econômico. Aqui não havia uma te o "milagre econômico".
contradição entre o projeto geiseliano e os interes- Na soma destes méritos, percebe-se que Coda-
ses das frações dominantes; ao contrário, a política to está muito preocupado em construir um conheci-
econômica ao estilo stop and go constituiu-se em mento essencialmente histórico, o que está em
um denominador comum às aspirações de ambos consonância com a influência de determinados
os grupos. É importante marcar que a centralização autores marxistas em seu texto. Este é um efeito
das decisões no CDE, desenhado de maneira a benéfico que o marxismo traz ao seu texto, mas em
tornar o presidente o grande árbitro das políticas certos momentos faltou-lhe "historicizar" seu arca-
governamentais, facilitou a adoção deste rumo. bouço marxista, uma vez que há algumas peculiari-
A campanha empresarial contra a estatização dades da formação social brasileira que não são
também não teve uma relação contínua com a luta apreendidas pelos conceitos utilizados, no mais das
pela redemocratização. Até porque, como mostra o vezes elaborados para explicar outras realidades.

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Como referência ao argumento acima, apresen- determinadas elites políticas que definiram a veloci-
to duas questões que Codato ignora, ambas funda- dade e o ritmo das mudanças. Como isso se vinculou
mentais para o entendimento da relação do Estado com a dinâmica de atuação dos empresários? Esta é
com os grupos econômicos hegemônicos no Brasil. uma boa pergunta a que Codato não responde.
A primeira é o problema da desigualdade econômi- Tal questão torna-se mais relevante já que o
ca regional, aspecto central no II PND e na agenda corporativismo, tão bem descrito e analisado por
de decisões do CDE, como o próprio autor mostra Codato, é uma gramática política que tem grande
após extensa análise empírica (p. 228). Ora, ao intersecção com o clientelismo, como mostrou re-
procurar desconcentrar o desenvolvimento indus- centemente Edson Nunes 3 . O fato é que o autor erra
trial do país, Geisel aguçou o conflito especifica- ao localizar na "ossatura do Estado" apenas as
mente com a burguesia paulista. E em nosso caso a relações entre a burocracia e as frações dominantes
questão territorial é peça-chave para definir quais da burguesia, esquecendo-se do poder que a classe
são as frações econômicas hegemônicas e o conflito política brasileira tem nesta esfera. Provavelmente
no interior das classes dominantes. Não por acaso a os autores clássicos do marxismo não consigam
campanha pela "desestatização" teve como núcleo explicar situações como essa, e o uso de referenciais
estratégico o empresariado ligado à Fiesp. Aqui está mais vinculados às análises de cunho weberiano
um aspecto peculiar ao capitalismo brasileiro e ao pode ser a melhor saída para entender a "autonomia
de outros países, como a Itália. Este dualismo relativa dos políticos".
regional introduz uma dinâmica muito diferenciada Mas essas lacunas não apagam o brilhantismo
dos modelos típicos de modernização ocorridos na do trabalho de Adriano Codato. Seu livro vem em
Europa ocidental e nos Estados Unidos, conforme boa hora, quando as análises da ciência política
análise comparativa de Ugo Pipitone 2 . brasileira começam a ficar cada vez mais formalis-
A grande autonomia da classe política brasileira tas. A sociologia política tem de trazer um "sangue
e sua capacidade de mobilizar os recursos estatais novo" ao debate sobre as instituições. Não basta
constituem outra questão que foge à análise de mostrar como elas funcionam; é preciso mostrar
Codato. A formação do capitalismo brasileiro depen- quem se beneficia com isso e quão democráticos
deu muito de parte da elite política que detinha são os processos decisórios. Codato problematiza a
posições de mando e relações privilegiadas com os burocracia deste modo. Talvez tenha chegado o
grupos econômicos. Mesmo no período autoritário, momento de fazermos o mesmo com os demais
os tecnocratas do regime não puderam se isolar por objetos de nossa ciência política.
completo da classe política tradicional — e por isso o
Brasil teve a estranha situação de convivência do
autoritarismo com a manutenção das eleições para Fernando Luiz Abrucio é professor de Ciência Política da
vários cargos públicos. No caso da transição, foram PUC-SP e da FGV-SP e pesquisador do Cedec.

(2) Pipitone, Ugo. La salidad del atraso: Un estudio histórico


comparativo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1994. É
interessante notar que, apesar do referencial marxista, Codato
não utiliza os trabalhos de Gramsci, autor clássico do marxismo
que mostrou de forma cabal a importância da questão regional (3) Nunes, Edson. A gramática política do Brasil. Brasília:
para o desenvolvimento capitalista em sociedades duais. Enap/Jorge Zahar, 1997.

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