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A DIVERSIDADE CULTURAL NO TEMPO DE AGORA: A LEITURA DA UNESCO1

Gabriel Medeiros Chati2


INTRODUÇÃO AO TEMA

O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre o conceito de diversidade cultural a
partir da leitura crítica de documentos elaborados pela Organização Mundial das Nações Unidas
para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO). Órgão de referência desse temário em esfera
global, a UNESCO de maneira perene vêm produzindo através de seminários, convenções e eventos
correlatos em escala mundial, um discurso para a importante reflexão sobre a diversidade cultural e
seu papel estratégico para o estabelecimento de políticas culturais locais e supranacionais.

A fim de explanar e identificar a visão institucional acerca do assunto, os seguintes


documentos portadores desse discurso serão analisados: Declaração Universal sobre a Diversidade
Cultural (UNESCO, 2001), a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das
Expressões Culturais (UNESCO, 2005) e o Relatório Mundial da UNESCO (2009). A metodologia
utilizada para a realização da análise se concentrará na leitura investigativa relativa ao assunto
presente nos documentos supracitados. Foi respeitada sua ordem cronológica de produção e
publicação com a intenção de verificar o processo de construção conceitual sobre a diversidade
cultural e sua trajetória recente dentro da lógica desta Organização. No entanto, a exposição do
tema e seus desdobramentos, foram agrupados por uma questão de clareza argumentativa.

Proposição recorrente e atual, a diversidade cultural, tem-se demonstrado transversal e


detentora de elementos contribuintes para a coesão social local e potencialmente – como defendido
pela própria UNESCO – da paz mundial. É importante ressaltar que o conteúdo que resulta dessas
discussões servem de base para o estabelecimento de planos, estratégias e políticas culturais dos
mais diversos órgãos governamentais e não-governamentais por todo o globo terrestre. Busca-se
através desta reflexão discorrer sobre o atual tratamento internacionalmente aceito e promovido
acerca da diversidade cultural, demonstrando ainda que, uma vez superada a etapa de
conceitualismo do termo, deve-se objetivar entender seus efeitos e comportamentos atuais a fim de
criar ou manter as condições para que a diversidade cultural cristalize-se como direito.

ORIENTAÇÕES À LEITURA E REFLEXÕES ACERCA DA ESTRUTURA DOS


DOCUMENTOS

Entendida como elemento agregador, a diversidade cultural está na pauta de discussão de


estâncias decisórias de estado e normativas de órgãos reguladores ao redor do globo. Por conta de
esse tema ser emergencial e igualmente complexo, o presente trabalho teve como objetivo discorrer
sobre o conceito de diversidade cultural a partir da leitura crítica de documentos elaborados pela
Organização Mundial das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO). O
referido órgão estabelece com propriedade espaços de discussão qualificados e produz documentos
importantes sobre e para a reflexão acerca da diversidade cultural e seu papel estratégico no
estabelecimento de políticas culturais locais e supranacionais.

Fica evidente o interesse, recorrência e atualidade do tema diversidade cultural para este
Órgão pelo destaque dado em seu relatório recente. Investir na diversidade e no diálogo
intercultural (2009), bem como pela contínua reflexão encontrada em outros documentos de
referência como a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2001) e a Convenção sobre a
Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais (2005). Tendo como base da análise,
levando-se ainda em conta a cronologia da produção desta reflexão pela Unesco, o documento
sintético da Declaração foi o ponto inicial desta investigação. Entretanto, antes da abordagem direta
à Declaração, entende-se ser importante discorrer sobre o conceito de documento aqui utilizado.

Nessa matéria torna-se oportuna a leitura de Ulpiano de Meneses sobre a função e operação
dos documentos enquanto portadores de significado. Para o referido autor, antes de mais nada o
“documento é um suporte de informação”3. Sua leitura avança para além das características
conceituais primeiras e observa que “o documento pode fornecer informações jamais previstas em
sua programação”. É a partir desse prisma que se pauta a reflexão hora proposta, uma vez que se
entende que a análise do processo de construção conceitual dos documentos aqui avaliados é tão
importante quanto as teses por eles defendidas.

Ulpiano destaca ainda que o documento histórico “não tem em si sua própria identidade”, e
de maneira conclusiva, defende acerca do processo de análise dos mesmos do ponto de vista do
historiador, o seguinte:

É, pois, a questão de conhecimento que cria o sistema documental. O historiador


não faz o documento falar: é o historiador quem fala e a explicitação de seus
critérios e procedimentos é fundamental para definir o alcance de sua fala. Toda
operação com documentos, portanto, é de natureza retórica. (2005, p. 28)

Partindo desses pressupostos, antes mesmo de discorrer sobre a construção conceitual sobre
o temário central que é a diversidade cultural, valemo-nos da análise estrutural de cada documento a
fim de esclarecer parcialmente seu compromisso, função e alcance. Quando da leitura da
Declaração, pode-se perceber que, até mesmo por sua relação etimológica intrínseca de revelação,
apresenta-se como espécie de conclamação global à reflexão sobre o assunto. Documento sintético e
de estrutura relativamente simples – tópica, composto basicamente por artigos claros e diretos – o
primeiro objeto de análise parece espécie de chamado por mobilização mundial pela diversidade
cultural. Apesar de enxuto, sua abrangência, como se pode presumir quando o Órgão o qualifica
como universal, é de fato significativa e se aproxima da árdua e quiçá inalcançável tarefa de
considerar os direitos culturais de todos os povos da Terra.

O segundo objeto analisado, posto que se passaram quatro anos da publicação do primeiro,
é nitidamente mais complexo. A Convenção tem uma preocupação em conceituar os termos que
serão utilizados ao longo de sua construção de maneira pontual e com certa rigidez. Novamente
recorre-se à análise sobre a construção etimológica e semântica para a qualificação deste
documento; convenção, para o Dicionário Houaiss, (2001, p. 826), é definida de maneira
esclarecedora como “acordo sobre determinada atividade, assunto etc., que obedece a
entendimentos prévios e normas baseadas na experiência recíproca”.

Para finalizar essa etapa descritiva da estrutura dos documentos, constata-se que o
Relatório, entre outras características e como o título sugere, é conclusivo. Para ilustrar essa
estrutura destacamos um treco de sua introdução: “o Relatório Mundial propõe-se a fazer uma
resenha das novas perspectivas abertas pela análise dos desafios da diversidade cultural e, ao fazê-
lo, traçar novas modalidades para acompanhar e orientar as transformações em curso” (2009, p. 2).
O tempo de produção relativo aos demais é de nove anos, e por conta disso, já chega a determinadas
assunções, estabelecendo inclusive vetores orientadores à ação no campo da diversidade como
veremos adiante.

REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE CULTURA

Por questões metodológicas e com o intuito de construir paulatinamente a abordagem ao


conceito de diversidade cultural, em primeira estância, entendeu-se ser importante analisar o
conceito de cultura propriamente. No preâmbulo da Declaração discorre-se necessariamente sobre a
visão da Organização em relação à cultura, tida como o “conjunto dos traços distintivos espirituais e
materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange,
além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as
tradições e as crenças” (2001, p. 1).

Vale ressaltar que se atualmente essa leitura é tida como universalmente aceita, levando-se
também em conta a contribuição de diversas escolas do pensamento como as ciências sociais e a
antropologia, o documento contribuiu de maneira significativa para a consolidação deste prisma de
análise. Considerar a cultura como conjunto complexo da produção subjetiva e material humanas,
suas espacialidades e inter-relações, bem como sua distinção em relação à arte, constituiu-se em
enorme avanço para o entendimento de como opera a cultura.

Essa leitura consolida-se e permeia a Convenção. Em termos de conceito, é esse


posicionamento que constrói o corpo do referido documento. Ademais, vê-se que a Organização
não discorre em demasia sobre o que seria cultura propriamente, mas destaca seu papel em campo
quando defende ser necessário: “incorporar a cultura como elemento estratégico das políticas de
desenvolvimento nacionais e internacionais (...) com sua ênfase na erradicação da pobreza”. (2005,
p. 2). Afora essa colocação acerca do potencial da cultura para a composição das estratégias de
gestão, reitera seu caráter dinâmico ao afirmar que “a cultura assume diversas formas através do
tempo e do espaço”. (2005, p. 2).

Pode-se analisar a posição do Relatório em relação à cultura como conceito amplo e


complexo. Em destaque o aspecto indissociável da cultura e relação à criatividade humana:

“Cultura” tem dois significados diferentes e, não obstante, absolutamente


complementares. Em primeiro lugar, é a diversidade criativa plasmada nas
“culturas” específicas, com as suas tradições e expressões tangíveis e intangíveis
únicas. Em segundo lugar, a cultura (agora no singular) alude ao instinto
criativo que se encontra na origem da diversidade de culturas. (2009, p. 8)

Quanto ao posicionamento do Relatório sobre o conceito de cultura em sua dimensão


dinâmica, novamente o destaque fica por conta de como ela opera, bem como para o balanço da
mudança parcial no foco desta Organização ao lidar com este elemento:

A cultura é entendida mais como processo: as sociedades vão-se modificando de


acordo com os caminhos que lhes são próprios. Se, durante muito tempo, a
preocupação da Organização se centrou na salvaguarda de locais, práticas e
expressões culturais sob risco de desaparecer, agora deve aprender-se também a
acompanhar a mudança cultural de modo a ajudar os indivíduos e os grupos a
gerir mais eficazmente a diversidade. (2009, p. 4)

Feito o exercício de análise do conceito de cultura contido nos três documentos base, pode-
se continuar a reflexão agora com o foco na construção do conceito de diversidade cultural que os
permeia.

REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE DIVERSIDADE CULTURAL

Avançando na análise destes documentos, como sugerido anteriormente, preocupa-se a esta


altura a compor a definição de diversidade cultural. Foi curioso perceber que na Declaração, com
seu caráter predominantemente conclamatório, concentra-se em associar a diversidade cultural aos
direitos da humanidade, e não em conceituá-la. Em seu artigo quarto, a Declaração aborda a
preservação da diversidade cultural como dever e direito humano e relaciona-o ao exercício da
liberdade: “A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à
dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades
fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos
autóctones” (2001, p. 3). No artigo quinto reitera o direito à cultura como direito humano universal
que alimenta e contribui diretamente na manutenção da diversidade quando defende que “Os
direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e
interdependentes” (2001, p.3).

O documento é um momento de reforço e defesa da existência da diversidade para a


Organização, mas não tem em si um teor subjetivo tão denso sobre o assunto, visto que
primariamente objetiva consolidar as interfaces da diversidade cultural com outras áreas do
desenvolvimento humano e seu caráter universal. O grau de comprometimento da Unesco e sua
linha de ação ficam claros quando destaca o seu papel de “promover a incorporação dos princípios
enunciados na presente Declaração nas estratégias de desenvolvimento elaboradas no seio das
diversas entidades intergovernamentais”. (2001, p. 4).

Continuando, em ordem cronológica a análise dos documentos publicados pela Unesco


nessa última década, chegamos à Convenção. Deste documento de estrutura mais complexa, com
peso de compromisso entre as partes que o firmam, para a reflexão ora proposta extrai-se
basicamente a definição de diversidade cultural nele exposto:

Refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e


sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e
dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas
nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o
patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões
culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção,
difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os
meios e tecnologias empregados. (2005, p. 4).

Nessa definição, bastante ampla e em alguns aspectos generalista, além de qualificar


conceitualmente o termo, tem-se uma atenção especial para a maneira que a diversidade se dá. Em
termos de agentes, quando se fala de grupos e sociedades, podemos entender que a definição é
alusiva a todos os povos da Terra. No que tange o objeto, também se pode afirmar que o documento
não se preocupa muito em restringi-lo ao descrevê-lo como expressão cultural, ao contrário,
expande sua possibilidade de significação. Destaca-se ainda a associação da diversidade como
constituinte, transmissora e mantenedora do patrimônio cultural da humanidade.

Quanto à abordagem do Relatório, pode-se destacar seu caráter esclarecedor e


intencionalmente alarmante ao expor o tema:

A diversidade cultural é, antes de mais nada, um fato: existe uma grande


variedade de culturas que é possível distinguir rapidamente a partir de
observações etnográficas, mesmo se os contornos que delimitam uma
determinada cultura se revelem mais difíceis de identificar do que, à primeira
vista, poderia parecer. A consciência dessa diversidade parece até estar sendo
banalizada, graças à globalização dos intercâmbios e à maior receptividade
mútua das sociedades. Apesar dessa maior tomada de consciência não garantir
de modo algum a preservação da diversidade cultural, contribuiu para que o
tema obtivesse maior notoriedade. (2009, p. 3).
Em um panorama global, numa economia que caminha em direção às trocas planetárias de
bens, serviços e experiências praticamente irrestritas, o documento é enfático e maduro ao
estabelecer a diversidade cultural como processo deflagrado, tratando-o como fato. É evidente que
essa maior troca promove um maior conhecimento recíproco entre culturas, transforma-as por
adição e hibridização, no entanto, o documento é conciso e direto ao alertar para o princípio de
banalização da diversidade associado à intensificação e aumento exponencial da circulação de bens
culturais com identidade cultural diversificada.

Aqui se pode falar de fetichização do bem cultural, ou seja, produtos que carregam traços
de culturas específicas, que travestem-se em bem representativo daquela cultura. A mercantilização
de bens culturais de massa, ao contrário de fortalecer ou fazer circular em maior espectro valores de
determinada cultura, contribui para a diluição desses valores quando se configura como experiência
alegórica. São verdadeiros produtos-simulacro, travestis culturais, que prometem uma fruição do
exótico, claramente valendo-se do discurso da diversidade cultural como experiência vendável.

O CONTEXTO E AS CARACTERÍSTICAS DO TERRENO: GLOBALIZAÇÃO E MERCADO

Além da contribuição conceitual acerca da cultura e da diversidade, a Declaração promove


a reflexão sobre a conjuntura em que opera a cultura, contextualizando-a:

Considerando que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução


das novas tecnologias da informação e da comunicação, apesar de constituir um
desafio para a diversidade cultural, cria condições de um diálogo renovado entre
as culturas e as civilizações. (2001, p. 1).

É interessante constatar que a visão deste documento inclui a observação dos meios de troca
cultural, levando em conta a dinâmica global em que ela acontece. É clara a intenção de superar a
visão dicotômica entre o preservacionismo estanque e a intensificação das relações entre culturas; é
mais importante, aos auspícios da Unesco, ver o avanço tecnológico como ferramenta pela
diversidade cultural, mesmo quando este, em primeira análise, pareça desintegrador.

A UNESCO presume que a livre e irrestrita manifestação das culturas nos diferentes meios
e suportes, seja garantia da diversidade. Isso fica claro quando defende políticas e programas que
corroborem pela “livre circulação das idéias mediante a palavra e a imagem” (2001, p. 3) e conclui
que “a possibilidade, para todas as culturas, de estar presentes nos meios de expressão e de difusão,
são garantias da diversidade cultural” (2001, p. 4).

Em seu artigo sétimo, a diversidade cultural é tomada como patrimônio cultural e fonte
potencial de exercício da criatividade:

Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, porém se desenvolve
plenamente em contato com outras. Essa é a razão pela qual o patrimônio, em
todas suas formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações
futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas, a fim de
nutrir a criatividade em toda sua diversidade e estabelecer um verdadeiro diálogo
entre as culturas. (2001, p. 4).

Esse artigo destaca ainda a importância da interatividade entre as culturas e formas de


expressão culturais, que devem ser preservadas, mas potencializadas a partir da troca de
experiências. Uma tradição se reconhece dentro de um grupo, mas se fortalece na alteridade,
podendo ou não se transformar, a partir do contato com outra. A transmissão desses valores garante
a vivacidade da memória e estimula a criatividade da pessoa e seus coletivos cognatos.
O principal aspecto do seu artigo oitavo é reiterar a distinção clara e inequívoca que se deve
ter ao lidar com bens culturais e outros bens de consumo. Quando reconhece que os objetos de
cultura “são portadores de identidade, de valores e sentido”, e afirma que “não devem ser
considerados como mercadorias ou bens de consumo como os demais” (2001, p. 4). Atualmente
esse é um dos aspectos mais conflitantes nas trocas comerciais internacionais. Independentemente
dos desdobramentos que se terá das disputas mercantis em outros âmbitos como o da Organização
Mundial do Comércio, é estratégico utilizar essa posição da UNESCO quando se trata de regular a
indústria cultural.

Ainda sob esse aspecto delicado, ao longo de seus artigos décimo e décimo primeiro a
Convenção explana sobre o panorama do mercado globalizado e suas especificidades quanto à
criação, circulação e consumo de produtos culturais. A Organização reflete sobre a competitividade
internacional da produção cultural quando diz que “é necessário reforçar a cooperação e a
solidariedade internacionais destinadas a permitir que todos os países estabeleçam indústrias
culturais viáveis” (2001, p. 4). Acaba assim reconhecendo, indiretamente, que hoje há um fluxo
desigual quando se trata da produção e consumo de bens culturais no mercado internacional.
Reconhece ainda que há a necessidade de interação entre as políticas de Estado e o mercado pela
garantia de uma troca mais equilibrada, já que “As forças do mercado, por si sós, não podem
garantir a preservação e promoção da diversidade cultural, condição de um desenvolvimento
humano sustentável” (2001, p. 4).

Tratando-se da Convenção, em seu artigo catorze, Cooperação para o Desenvolvimento,


discorre sobre o papel e operação do mercado de bens culturais. Entre outros aspectos, determina o
“intercâmbio de informações, experiências e conhecimentos especializados, assim como pela
formação de recursos humanos”, bem como a “transferência de tecnologias e conhecimentos
mediante a introdução de medidas apropriadas de incentivo, especialmente no campo das indústrias
e empresas culturais (2005, p. 9). Fica clara a atenção especial que o Órgão dá à produção cultural
de massa, preocupada em diminuir as diferenças das condições de produção, aumentar a qualidade e
a circulação de bens e mercadorias.

Como a Convenção vale-se muito do que foi defendido anteriormente pela Declaração,
mesmo tendo o status de acordo entre partes, acaba por não acrescentar muito na reflexão sobre a
globalização. Destaca, no entanto, a partir de um de seus objetivos, numa atitude auto-reflexiva, que
“a cultura encontrou um lugar de destaque na agenda política a partir da preocupação com a
necessidade de se humanizar a globalização” (2005, p. 24).

O conteúdo do Relatório trata com fluidez e destaque o panorama da diversidade cultural no


âmbito da globalização, seus percalços e potencialidades. Não obstante o exercício constante e
recorrente de reflexão sobre a diversidade nesse contexto destaca-se que a leitura em formação do
Órgão é uma visão aberta e ampla. A UNESCO desvela seu olhar:

Hoje os processos de globalização contribuem para que se produzam encontros,


importações e intercâmbios culturais de modo mais sistemático. Esses novos
vínculos transculturais podem facilitar consideravelmente o diálogo intercultural.
Repensar as nossas categorias culturais, reconhecendo as múltiplas fontes da
nossa identidade, contribui para deixar de insistir nas diferenças e, em seu lugar,
prestar atenção à nossa capacidade comum de evoluir mediante a interação
mútua.

As trocas intensificam-se através de suportes e meios nunca antes imaginados, a principal


preocupação da UNESCO é de que se estabeleça sempre o diálogo nessas interfaces para a garantia
da diversidade através da inter-relação e reciprocidade. A diante, abordaremos aspectos da relação
que o Órgão faz da diversidade cultural com o desenvolvimento humano e a trajetória da visão
crítica dessa vinculação desde a Declaração até a atualidade.

DIVERSIDADE CULTURAL: FATOR DE DESENVOLVIMENTO

A Declaração de maneira objetiva entende a diversidade como fator de desenvolvimento.


“A diversidade cultural amplia as possibilidades de escolha que se oferecem a todos; é uma das
fontes do desenvolvimento, entendido não somente em termos de crescimento econômico, mas
também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória”.
(Unesco, 2001, p. 1). O documento contribui enormemente para a necessária releitura do
desenvolvimento humano para além do desenvolvimento econômico.

Considerando ainda que o avanço econômico é uma faceta constituinte do amplo


desenvolvimento, descarta-o como preponderante e, abre a possibilidade mesma de sê-lo
coadjuvante no campo cultural. Destaca ainda o potencial da diversidade cultural de promover o
acesso à dimensões essenciais e intangíveis do devir humano, como a espiritualidade, por exemplo.

A Convenção continua a associar a diversidade cultural ao desenvolvimento, destacando o


seu valor não mensurável financeiramente, e a associa ao desenvolvimento sustentável das
sociedades. “A diversidade cultural constitui grande riqueza para os indivíduos e as sociedades. A
proteção, promoção e manutenção da diversidade cultural é condição essencial para o
desenvolvimento sustentável em benefício das gerações atuais e futuras”. (2005, p. 5).

É clara a intenção de que se incorpore preceito de sustentabilidade às políticas


governamentais: o desenvolvimento cultural é apresentado como um dos pilares do
desenvolvimento humano sustentável. No Relatório encontramos essa mesma postura entre seus
objetivos:

Convencer os decisores e as diferentes partes intervenientes sobre a importância


em investir na diversidade cultural como dimensão essencial do diálogo
intercultural, pois ela pode renovar a nossa percepção sobre o desenvolvimento
sustentável, garantir o exercício eficaz das liberdades e dos direitos humanos e
fortalecer a coesão social e a governança democrática. (2009, p. 3)

É novamente clara a associação estratégica entre a promoção da diversidade cultural e a


contribuição que esta pode dar ao desenvolvimento sustentável. O que fica mais claro, mesmo por
conta da atribuição da Organização em estabelecer diretrizes no campo da cultura e afins, é a
sinalização para os gestores políticos do potencial da diversidade em promover a coesão social e a
governança democrática.

Há ao menos dois aspectos que merecem destaque nessa última afirmação. O primeiro seria
de que o exercício das liberdades de expressão cultural alimentam a dignidade e levantam a auto-
estima do agente cultural e, conseqüentemente, dos demais indivíduos envolvidos no contexto
social no qual se dá aquela prática. Um segundo aspecto, mesmo que destaque a sua função social, é
de que ela reitera o tratamento utilitarista do investimento em cultura; reforçando uma postura que
tenta justificar o investimento em cultura por um fator externo, um produto do processo, e não por
ele mesmo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É oportuna e contundente a contribuição da UNESCO para o avanço contínuo da discussão


e estudo na área da cultura. Os fóruns mantidos e promovidos pela Organização produzem
documentos que pautam as ações, programas e políticas neste âmbito. Como esta análise pretendeu
expor, eles destacam o papel transversal da diversidade cultural e reforçam a necessidade de
integrá-la às demais áreas do conhecimento humano, propondo inclusive estratégias para a
incorporação de preceitos da diversidade cultural às políticas de estado em escala global.

A atuação da UNESCO acaba promovendo uma densa reflexão que não se encerra ao
conteúdo conceitual por ela gerado. Ela vai além na medida que implica governos, organização civil
e demais operadores da cultura, no processo de desenvolvimento humano pela cultura.

Promover a investigação sobre a diversidade cultural, assumindo a cultura como ferramenta


política, é entender como ela opera; identificar os diversos agentes que atuam no campo cultural, os
recursos de que dispõem, a intensidade de poder e influência recíproca, é estratégico para o
desenvolvimento humano sustentável.

A UNESCO sinaliza claramente para a necessidade de aperfeiçoarmos e aprofundarmos as


ferramentas de análise da operação no campo cultural. Não obstante o desafio de lidar com as
transformações inerentes ao universo cultural finalmente assumido como processo dinâmico e
mutagênico, seus gestores devem trabalhar no sentido de antever tais mudanças, a fim de planejar
estratégias sensíveis e eficientes.

Mais além – potencial resultado indireto desta reflexão – entende-se que este trabalho pode
contribuir com o avanço da discussão do campo cultural, entendendo-o como espaço de constante
disputa e que seus elementos constitutivos podem se configurar como recurso transformador
disponível aos povos da Terra.
REFERÊNCIAS

HOUAISS, Antonio e Villar, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A exposição museológica e o conhecimento histórico. In:


FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves, VIDAL, Diana Gonçalves, (orgs). Museus: dos gabinetes de
curiosidades à museologia moderna. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm; Brasília, DF : CNPq,
2005.

UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Unesco, 2001. Disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf. Consultado em: 13/09/2010.

UNESCO. Convenção sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais.


Unesco, 2005. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224por.pdf.
Consultado em: 13/09/2010.

UNESCO. Investir na diversidade e no diálogo intercultural. Unesco, 2009. Disponível em:


http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001847/184755POR.pdf. Consultado em: 13/09/2010.

1
Projeto Arte e Cultura: Exposições, Curadorias e Políticas Culturais – ARCULT, Projeto Pró
Cultura CAPES/MINC – UNISUL, UNC, UNIVILLE.
2
Gabriel Medeiros Chati, Mestrando em Patrimônio Cultural e Sociedade – UNIVILLE, Bacharel
em Produção Cultural – UFF, Bolsista CAPES/MINC; Rua Ministro Calógeras, 390, apto. 102,
bairro Centro, CEP 89201-490, Joinville/SC, tel. 47 3455 0835, cel. 47 8448 2787,
gabrielchati@gmail.com
3
Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. Museus: dos gabinetes de curiosidades à museologia moderna.
Belo Horizonte, MG : Argvmentvm; Brasília, DF : CNPq, 2005.

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