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O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre o conceito de diversidade cultural a
partir da leitura crítica de documentos elaborados pela Organização Mundial das Nações Unidas
para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO). Órgão de referência desse temário em esfera
global, a UNESCO de maneira perene vêm produzindo através de seminários, convenções e eventos
correlatos em escala mundial, um discurso para a importante reflexão sobre a diversidade cultural e
seu papel estratégico para o estabelecimento de políticas culturais locais e supranacionais.
Fica evidente o interesse, recorrência e atualidade do tema diversidade cultural para este
Órgão pelo destaque dado em seu relatório recente. Investir na diversidade e no diálogo
intercultural (2009), bem como pela contínua reflexão encontrada em outros documentos de
referência como a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2001) e a Convenção sobre a
Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais (2005). Tendo como base da análise,
levando-se ainda em conta a cronologia da produção desta reflexão pela Unesco, o documento
sintético da Declaração foi o ponto inicial desta investigação. Entretanto, antes da abordagem direta
à Declaração, entende-se ser importante discorrer sobre o conceito de documento aqui utilizado.
Nessa matéria torna-se oportuna a leitura de Ulpiano de Meneses sobre a função e operação
dos documentos enquanto portadores de significado. Para o referido autor, antes de mais nada o
“documento é um suporte de informação”3. Sua leitura avança para além das características
conceituais primeiras e observa que “o documento pode fornecer informações jamais previstas em
sua programação”. É a partir desse prisma que se pauta a reflexão hora proposta, uma vez que se
entende que a análise do processo de construção conceitual dos documentos aqui avaliados é tão
importante quanto as teses por eles defendidas.
Ulpiano destaca ainda que o documento histórico “não tem em si sua própria identidade”, e
de maneira conclusiva, defende acerca do processo de análise dos mesmos do ponto de vista do
historiador, o seguinte:
Partindo desses pressupostos, antes mesmo de discorrer sobre a construção conceitual sobre
o temário central que é a diversidade cultural, valemo-nos da análise estrutural de cada documento a
fim de esclarecer parcialmente seu compromisso, função e alcance. Quando da leitura da
Declaração, pode-se perceber que, até mesmo por sua relação etimológica intrínseca de revelação,
apresenta-se como espécie de conclamação global à reflexão sobre o assunto. Documento sintético e
de estrutura relativamente simples – tópica, composto basicamente por artigos claros e diretos – o
primeiro objeto de análise parece espécie de chamado por mobilização mundial pela diversidade
cultural. Apesar de enxuto, sua abrangência, como se pode presumir quando o Órgão o qualifica
como universal, é de fato significativa e se aproxima da árdua e quiçá inalcançável tarefa de
considerar os direitos culturais de todos os povos da Terra.
O segundo objeto analisado, posto que se passaram quatro anos da publicação do primeiro,
é nitidamente mais complexo. A Convenção tem uma preocupação em conceituar os termos que
serão utilizados ao longo de sua construção de maneira pontual e com certa rigidez. Novamente
recorre-se à análise sobre a construção etimológica e semântica para a qualificação deste
documento; convenção, para o Dicionário Houaiss, (2001, p. 826), é definida de maneira
esclarecedora como “acordo sobre determinada atividade, assunto etc., que obedece a
entendimentos prévios e normas baseadas na experiência recíproca”.
Para finalizar essa etapa descritiva da estrutura dos documentos, constata-se que o
Relatório, entre outras características e como o título sugere, é conclusivo. Para ilustrar essa
estrutura destacamos um treco de sua introdução: “o Relatório Mundial propõe-se a fazer uma
resenha das novas perspectivas abertas pela análise dos desafios da diversidade cultural e, ao fazê-
lo, traçar novas modalidades para acompanhar e orientar as transformações em curso” (2009, p. 2).
O tempo de produção relativo aos demais é de nove anos, e por conta disso, já chega a determinadas
assunções, estabelecendo inclusive vetores orientadores à ação no campo da diversidade como
veremos adiante.
Vale ressaltar que se atualmente essa leitura é tida como universalmente aceita, levando-se
também em conta a contribuição de diversas escolas do pensamento como as ciências sociais e a
antropologia, o documento contribuiu de maneira significativa para a consolidação deste prisma de
análise. Considerar a cultura como conjunto complexo da produção subjetiva e material humanas,
suas espacialidades e inter-relações, bem como sua distinção em relação à arte, constituiu-se em
enorme avanço para o entendimento de como opera a cultura.
Feito o exercício de análise do conceito de cultura contido nos três documentos base, pode-
se continuar a reflexão agora com o foco na construção do conceito de diversidade cultural que os
permeia.
Aqui se pode falar de fetichização do bem cultural, ou seja, produtos que carregam traços
de culturas específicas, que travestem-se em bem representativo daquela cultura. A mercantilização
de bens culturais de massa, ao contrário de fortalecer ou fazer circular em maior espectro valores de
determinada cultura, contribui para a diluição desses valores quando se configura como experiência
alegórica. São verdadeiros produtos-simulacro, travestis culturais, que prometem uma fruição do
exótico, claramente valendo-se do discurso da diversidade cultural como experiência vendável.
É interessante constatar que a visão deste documento inclui a observação dos meios de troca
cultural, levando em conta a dinâmica global em que ela acontece. É clara a intenção de superar a
visão dicotômica entre o preservacionismo estanque e a intensificação das relações entre culturas; é
mais importante, aos auspícios da Unesco, ver o avanço tecnológico como ferramenta pela
diversidade cultural, mesmo quando este, em primeira análise, pareça desintegrador.
A UNESCO presume que a livre e irrestrita manifestação das culturas nos diferentes meios
e suportes, seja garantia da diversidade. Isso fica claro quando defende políticas e programas que
corroborem pela “livre circulação das idéias mediante a palavra e a imagem” (2001, p. 3) e conclui
que “a possibilidade, para todas as culturas, de estar presentes nos meios de expressão e de difusão,
são garantias da diversidade cultural” (2001, p. 4).
Em seu artigo sétimo, a diversidade cultural é tomada como patrimônio cultural e fonte
potencial de exercício da criatividade:
Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, porém se desenvolve
plenamente em contato com outras. Essa é a razão pela qual o patrimônio, em
todas suas formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações
futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas, a fim de
nutrir a criatividade em toda sua diversidade e estabelecer um verdadeiro diálogo
entre as culturas. (2001, p. 4).
Ainda sob esse aspecto delicado, ao longo de seus artigos décimo e décimo primeiro a
Convenção explana sobre o panorama do mercado globalizado e suas especificidades quanto à
criação, circulação e consumo de produtos culturais. A Organização reflete sobre a competitividade
internacional da produção cultural quando diz que “é necessário reforçar a cooperação e a
solidariedade internacionais destinadas a permitir que todos os países estabeleçam indústrias
culturais viáveis” (2001, p. 4). Acaba assim reconhecendo, indiretamente, que hoje há um fluxo
desigual quando se trata da produção e consumo de bens culturais no mercado internacional.
Reconhece ainda que há a necessidade de interação entre as políticas de Estado e o mercado pela
garantia de uma troca mais equilibrada, já que “As forças do mercado, por si sós, não podem
garantir a preservação e promoção da diversidade cultural, condição de um desenvolvimento
humano sustentável” (2001, p. 4).
Como a Convenção vale-se muito do que foi defendido anteriormente pela Declaração,
mesmo tendo o status de acordo entre partes, acaba por não acrescentar muito na reflexão sobre a
globalização. Destaca, no entanto, a partir de um de seus objetivos, numa atitude auto-reflexiva, que
“a cultura encontrou um lugar de destaque na agenda política a partir da preocupação com a
necessidade de se humanizar a globalização” (2005, p. 24).
Há ao menos dois aspectos que merecem destaque nessa última afirmação. O primeiro seria
de que o exercício das liberdades de expressão cultural alimentam a dignidade e levantam a auto-
estima do agente cultural e, conseqüentemente, dos demais indivíduos envolvidos no contexto
social no qual se dá aquela prática. Um segundo aspecto, mesmo que destaque a sua função social, é
de que ela reitera o tratamento utilitarista do investimento em cultura; reforçando uma postura que
tenta justificar o investimento em cultura por um fator externo, um produto do processo, e não por
ele mesmo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atuação da UNESCO acaba promovendo uma densa reflexão que não se encerra ao
conteúdo conceitual por ela gerado. Ela vai além na medida que implica governos, organização civil
e demais operadores da cultura, no processo de desenvolvimento humano pela cultura.
Mais além – potencial resultado indireto desta reflexão – entende-se que este trabalho pode
contribuir com o avanço da discussão do campo cultural, entendendo-o como espaço de constante
disputa e que seus elementos constitutivos podem se configurar como recurso transformador
disponível aos povos da Terra.
REFERÊNCIAS
HOUAISS, Antonio e Villar, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Unesco, 2001. Disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf. Consultado em: 13/09/2010.
1
Projeto Arte e Cultura: Exposições, Curadorias e Políticas Culturais – ARCULT, Projeto Pró
Cultura CAPES/MINC – UNISUL, UNC, UNIVILLE.
2
Gabriel Medeiros Chati, Mestrando em Patrimônio Cultural e Sociedade – UNIVILLE, Bacharel
em Produção Cultural – UFF, Bolsista CAPES/MINC; Rua Ministro Calógeras, 390, apto. 102,
bairro Centro, CEP 89201-490, Joinville/SC, tel. 47 3455 0835, cel. 47 8448 2787,
gabrielchati@gmail.com
3
Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. Museus: dos gabinetes de curiosidades à museologia moderna.
Belo Horizonte, MG : Argvmentvm; Brasília, DF : CNPq, 2005.