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Fernanda Lopes 1
Ao demarcar os espaços sociais com base bres foi de 34,7 para a população branca e 19,6
na aparência e na cor da pele, as sociedades la- para a negra; no Sudeste foi de 21,0 e 15,8; e no
tino-americanas, e a brasileira em particular, Sul, 18,8 e 15,9, respectivamente. Observe-se
resgatam a natureza sócio-histórica do concei- que, em 2000, os negros representavam 65,7%
to de raça e capturam seu potencial de identifi- da população nordestina. Em relação à popu-
car diferentes sentidos e significados no acesso lação brasileira, o grupo correspondia a 45,0%
ao poder, no acesso ao repertório de direitos e era responsável por apenas 27,0% do rendi-
efetivamente disponíveis e ao conjunto de re- mento domiciliar per capita total do país, en-
cursos socialmente desejáveis. Nesse sentido, o quanto os não-negros, 54,3% da população,
racismo enquanto fenômeno ideológico sub- detinham 73,0% do total desse rendimento 15.
mete todos sem distinção; revitaliza e mantém Em 1999, a média de renda per capita nos
sua dinâmica com a evolução da sociedade, domicílios com chefia negra correspondia a
das conjunturas históricas e dos interesses dos 42,0% dos valores observados naqueles com
grupos dominantes. chefia branca 16. Em 2001, vivia-se com R$
Os perversos efeitos dessa programação so- 205,40 nos domicílios negros e pouco mais que
cial sobre a população negra são inúmeros (di- o dobro nos domicílios brancos. Embora a mé-
versos e assimétricos nas várias fases do ciclo dia de renda per capita domiciliar persista bai-
de vida) e podem ser evidenciados, direta ou xa para o conjunto da população (R$ 482,10),
indiretamente, a partir da análise de alguns as- detecta-se queda na proporção de pobres: em
pectos das relações interpessoais e das rela- 1992, estes eram 40,7%; em 2001 passaram a
ções que o grupo estabelece com as institui- 33,6% 6. Ao desagregar os dados por raça/cor,
ções; da análise de sua situação sócio-econô- também foi possível observar redução, contu-
mica, condições de vida e de desenvolvimento do, a proporção de negros pobres manteve-se
humano, participação no mercado de trabalho, duas vezes à observada para brancos pobres:
acesso aos bens e equipamentos sociais e de sua 55,3% versus 28,9% em 1992 e 46,8% versus
morbimortalidade, como observam Cavalleiro 22,4% em 2001 6.
2 , Martins 3 , Hasenbalg 4 , Cunha 5 , Jaccoud & É nítida a dimensão espaço-regional na con-
Beghin 6, Paixão 7, Batista et al. 8, Martins & Ta- centração de riqueza e na distribuição dos po-
naka 9, Wood & Carvalho 10, dentre outros. bres e inegável sua relação com raça/cor e gê-
nero – as mulheres negras encontram-se nos
mais baixos patamares de renda –, reiterando a
Algumas evidências das desigualdades literatura nacional e internacional 17,18,19,20,21.
sócio-raciais no Brasil Embora a sociedade brasileira não conviva
com o ódio racial, com a segregação legal ou
Concentração de riqueza e pobreza explícita, a atribuição de um significado social
negativo a determinados padrões fenotípicos
No Brasil, o grau de pobreza é mais elevado do de diversidades justifica o tratamento desigual,
que o encontrado em outros países com renda impõe e intercala barreiras que impedem ou
per capita similar. Embora cerca de 64,0% dos dificultam a mobilidade social negra 22. A so-
países tenham renda inferior à brasileira, aqui bre-representação do negro na pobreza, com
o grau de desigualdades é um dos mais eleva- especial destaque para a situação da mulher
dos do mundo 11. negra, restringe suas possibilidades de consu-
Ao estudar os ricos brasileiros, Medeiros 12 mo, de acesso aos bens sociais potencialmente
afirma que a dimensão espaço-regional é essen- disponíveis e, por conseqüência, suas liberda-
cial para a compreensão e redução das desi- des individuais. Como afirmou Santos 23, aos
gualdades sociais. Segundo o autor, são expres- pobres é oferecida uma cidadania abstrata, que
sivas as diferenças nos níveis de renda per ca- não cabe em qualquer tempo e lugar e que, na
pita entre regiões, sendo maior a concentração maioria das vezes, não pode ser sequer recla-
de rendimentos nas áreas mais pobres. Em ter- mada.
mos de renda média, nível e crescimento de ren-
da, as regiões Sul e Sudeste são evidentemente Condições de moradia e habitação
mais ricas, Norte e Nordeste mais pobres 12,13.
Dados de 2001 do Instituto de Pesquisa Nos anos de 1990 melhoraram as condições
Econômica Aplicada (IPEA), destacados por habitacionais de toda a população. Entretanto,
Sant’Anna 14, comprovam a estrutura racial de em 2001, a proporção de negros que vivia em
distribuição de riqueza: no Nordeste, a razão aglomerados subnormais (favelas, mocambos,
entre a renda apropriada pelos 20,0% mais ri- palafitas e similares) ainda era quase o dobro
cos e aquela apropriada pelos 20,0% mais po- da proporção de brancos. Todavia a definição
são dos brancos, obtidas com o aumento do ní- até o presente momento, reiteram as evidên-
vel de escolaridade, são potencializadas com cias descritas anteriormente no Atlas de Desen-
auxílio de sua rede social; para os negros, no volvimento Humano 33.
entanto, o leque de oportunidades apresenta-
se mais restrito, uma vez que as novas gerações Causas externas de morte:
(geralmente mais escolarizadas) ainda não es- uma perda superlativa de vidas negras
tabeleceram uma rede social que lhes ofereça o
suporte necessário para mudança de status. Desde os anos de 1980, as causas externas re-
Segundo Soares 29, se não houvesse discri- presentam a segunda causa de morte no Brasil,
minação racial e de gênero, as mulheres negras fato que tem atraído a atenção de inúmeros
ganhariam, em média, cerca de 60,0% mais; as pesquisadores interessados no assunto; e tam-
brancas receberiam em torno de 40,0% e os ho- bém, do ponto de vista das políticas públicas,
mens negros, entre 10,0% e 25,0% mais (depen- promovido crescente demanda dos serviços de
dendo do lugar ocupado na distribuição de ren- saúde.
da). As disparidades de renda observadas entre No triênio 1998/2000, um quarto dos óbitos
os grupos de raça/cor e sexo não derivam da declarados de homens negros foi atribuído às
heterogeneidade da distribuição racial da po- causas externas contra 16,0% para os brancos.
pulação ou ainda da heterogeneidade dos ní- Quase metade das mortes de negros foi oriun-
veis de educação formal no território brasileiro, da de homicídios; para os brancos, a proporção
mas sim do próprio mercado de trabalho, que foi de 34,4%. Também foram mais freqüentes
gera segmentação ocupacional e discriminação entre negros os óbitos determinados por ata-
salarial baseadas em raça/cor e sexo 3,29,30,31. que com arma de fogo (32,0% versus 21,9%) 32.
Ainda que a violência figure entre os princi-
pais problemas de saúde pública da atualida-
Outras marcas visíveis e mensuráveis de, poucos estudiosos têm se dedicado a verifi-
car as interseções estabelecidas entre o evento
Desesperança de vida ao nascer (morte, traumas, lesões, incapacidades) e local
de moradia, gênero, faixa etária, educação for-
No Brasil, a esperança de vida ao nascer, em mal, condições gerais de vida, ocupação, uso
2000, era de 70,4 anos. A dinâmica de gênero ou tráfico de drogas, orientação sexual, raça ou
imputada ao indicador de longevidade, dife- etnia. Nesse sentido, a ampliação do leque de
rentemente do comportamento apresentado pesquisas sobre as causas externas de morbi-
para os demais indicadores ou demais variá- mortalidade e a incorporação de novas perspec-
veis, ocorre em detrimento dos homens, com tivas de análise e interpretação dos dados se-
as mulheres vivendo, em média, 7,45 anos a rão instrumentos úteis para a atuação no cam-
mais que eles. Ao serem considerados os gru- po das políticas públicas, tanto do ponto de
pos de raça/cor, tal esperança era maior para vista administrativo (planejamento de serviços
os amarelos (75,75 anos), seguida daquela e alocação de recursos), da avaliação e acom-
apresentada para os brancos (73,99 anos). Di- panhamento da qualidade e efetividade da as-
ferenças relevantes também foram observadas sistência médica prestada, como da educação
entre os demais grupos: para os pardos foi esti- permanente (envolvimento dos profissionais
mada uma expectativa de vida de 67,87 anos; que prestam atendimento direto às vítimas na
para os pretos, de 67,64; e, para os indígenas, discussão sobre as várias dimensões do tema).
de 66,57 anos. Quando comparados aos bran-
cos, os pretos apresentaram uma expectativa
inferior de 6,35 anos e os pardos de 5,96 (no Considerações sobre universalidade,
seu conjunto, a expectativa de vida dos negros eqüidade e produção
foi 6,12 anos menor que a dos brancos). Cabe de conhecimento científico
assinalar que, ainda em 2000, a esperança de
vida de povos indígenas ao nascer era 7,42 Ao instituir a saúde como direito de todos(as) e
anos inferior à dos brancos, 1,3 ano inferior à dever do Estado (Artigo 196 da Constituição Fe-
dos negros e 9,18 inferior à dos amarelos 32. As deral Brasileira), o Estado brasileiro assume a
diferenças com base na pertença étnico-racial responsabilidade de garantir acesso universal e
foram mantidas no interior dos grupos de sexo, igualitário às ações e serviços de saúde, de mo-
com mulheres e homens brancos gozando de do a contemplar, da melhor forma possível, as
maior expectativa de vida quando comparados necessidades e demandas da população.
às mulheres e homens negros. Os dados apre- Embora seja um avanço inegável como di-
sentados por Paixão e colaboradores, inéditos reito do cidadão, não o é quando trata do dever
do Estado, pois este não tem assegurado a to- gual, contemplando assim suas necessidades e
dos a mesma qualidade de atenção ou perfil de promovendo ou efetivando o direito à igualda-
saúde, seja do ponto de vista regional e/ou ét- de de fato.
nico-racial 34. Mulheres e homens; populações Do ponto de vista da pesquisa acadêmica, é
indígenas, negros e brancos ocupam lugares preciso considerar que o racismo nem sempre
desiguais nas redes sociais e trazem consigo se faz presente, de forma explícita e mensurá-
experiências também desiguais de nascer, vi- vel, nas interações. Desse modo, não basta que
ver, adoecer e morrer. Diante de tal constata- os estudiosos apresentem aos seus pares análi-
ção, é essencial que, no campo das políticas ses das diferenças numéricas com significância
públicas ou institucionais, o processo de defi- estatística. Seus estudos devem considerar o
nição de diretrizes e metas não restrinja o con- conjunto de fatores históricos, sócio-políticos,
ceito de igualdade ao seu aspecto formal e que econômicos e culturais que contribuem para
seja considerado o impacto de preposições e existência, manutenção ou ampliação dos di-
ações sobre grupos populacionais específicos. ferenciais no interior dos grupos ou intergru-
O combate e a erradicação das desigualda- pos. É preciso analisar as diversas experiências
des torna-se um grande desafio no campo das vivenciadas por negros e não-negros numa da-
políticas públicas, especialmente quando tais da condição social, considerando sexo, idade,
desigualdades são oriundas da expressão indi- região de moradia, educação formal, origem
reta de discriminação. Poder público e socie- familiar, ocupação, renda, orientação sexual,
dade civil precisam ser imparciais no enfrenta- denominação religiosa, capacidades e incapa-
mento de práticas, procedimentos ou leis que, cidades, rede social e comunitária, possibilida-
explicitamente, desfavorecem pessoas ou gru- des de acesso aos serviços e aos bens sociais.
pos característicos e devem ter em vista que, Nesse sentido, a ausência de relevância estatís-
para eliminar as formas indiretas de discrimi- tica na distribuição e comportamento das va-
nação, é necessário: (1) mensurar e interpretar riáveis por raça/cor não isenta o pesquisador
de forma correta a magnitude e a evolução das da responsabilidade de reiterar tanto a nature-
disparidades entre os grupos hegemônicos e za perversa do racismo, como sua capacidade
não-hegemônicos; (2) revisar as práticas insti- e aptidão em criar e/ou perpetuar diferenciais
tucionais, de modo que as novas ações, progra- nas condições gerais de vida nos grupos e in-
mas e políticas sejam orientadas pela noção de tergrupos. É de sua responsabilidade indicar
eqüidade; (3) assumir o compromisso e a res- brechas a serem exploradas por outros estudos
ponsabilidade de oferecer tratamento diferen- que adotem abordagens qualitativas ou quan-
te àqueles que estão inseridos de forma desi- tiqualitativas.
Resumo
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