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FÓRUM FORUM 1595

Para além da barreira dos números:


desigualdades raciais e saúde

Beyond the numbers barrier:


racial inequalities and health

Fernanda Lopes 1

Abstract Ao reconhecer a saúde como o conjunto de con-


dições integrais e coletivas de existência, in-
1 Programa de Combate The point of departure for this article was the fluenciado pelo contexto político, sócio-econô-
ao Racismo Institucional,
concept of health as a set of comprehensive and mico, cultural e ambiental, a comunidade aca-
Ministério Britânico
para o Desenvolvimento collective living conditions, influenced by the dêmica reitera a necessidade e importância
Internacional – Escritório political, socioeconomic, cultural, and environ- dos estudos sobre o impacto das desigualdades
Brasil, Brasília, Brasil.
mental context. The work thus shows that stud- sociais nas condições de saúde, seja do ponto
Correspondência ies on health inequalities, disparities, or iniqui- de vista individual ou coletivo.
F. Lopes ties should extend beyond statistical data, since No entanto, excetuando-se poucas expe-
Programa de Combate
racism is not always explicit and measurable in riências, alguns fatores constitutivos dos pro-
ao Racismo Institucional,
Ministério Britânico social interactions. It is necessary to analyze the cessos de organização e hierarquização social
para o Desenvolvimento various life experiences of blacks and non-blacks são, continuamente, desconsiderados em estu-
Internacional – Escritório
Brasil. Edifício Centro
in a given social condition, considering gender, dos e pesquisas sobre desigualdades, dispari-
Empresarial VARIG, SCN age, place of residence, schooling, family origin, dades ou iniqüidades em saúde. O sexismo, o
Quadra 4, Bloco B, Torre occupation, income, sexual orientation, reli- racismo, o etnocentrismo e outros integram a
Oeste, Sala 202, Brasília, DF
70714-900, Brasil.
gious affiliation, capacities and incapacities, so- lista de fatores descartados ou descartáveis.
f-lopes@dfid.gov.uk cial network, and possibilities for accessing so- No Brasil e em outras sociedades moder-
lopesf@usp.br cial goods and services. Finally, the article lists nas, as hierarquias sociais são justificadas e ra-
guidelines that can assist in the major challenge cionalizadas de diferentes modos, e todos eles,
of drafting public policies to combat and eradi- sem exceção, apelam à ordem “natural” de sua
cate the immense inequalities between whites existência e apresentam-se como um traço
and blacks. constitutivo das relações sociais. Segundo Gui-
marães 1, o sistema de hierarquização brasilei-
Prejudice; Health Inequity; Equity ro, e mesmo o latino-americano, interliga cor da
pele, classe (ocupação e renda) e status social
(sexo, origem familiar, educação formal, condi-
ções de moradia e habitação), sem, contudo,
deixar de ser sustentado pela dicotomia racial
branco versus preto que alicerçou a ordem es-
cravocrata por três séculos e que, na atualida-
de, resiste à urbanização, à industrialização, às
mudanças de sistema e regimes políticos.

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Ao demarcar os espaços sociais com base bres foi de 34,7 para a população branca e 19,6
na aparência e na cor da pele, as sociedades la- para a negra; no Sudeste foi de 21,0 e 15,8; e no
tino-americanas, e a brasileira em particular, Sul, 18,8 e 15,9, respectivamente. Observe-se
resgatam a natureza sócio-histórica do concei- que, em 2000, os negros representavam 65,7%
to de raça e capturam seu potencial de identifi- da população nordestina. Em relação à popu-
car diferentes sentidos e significados no acesso lação brasileira, o grupo correspondia a 45,0%
ao poder, no acesso ao repertório de direitos e era responsável por apenas 27,0% do rendi-
efetivamente disponíveis e ao conjunto de re- mento domiciliar per capita total do país, en-
cursos socialmente desejáveis. Nesse sentido, o quanto os não-negros, 54,3% da população,
racismo enquanto fenômeno ideológico sub- detinham 73,0% do total desse rendimento 15.
mete todos sem distinção; revitaliza e mantém Em 1999, a média de renda per capita nos
sua dinâmica com a evolução da sociedade, domicílios com chefia negra correspondia a
das conjunturas históricas e dos interesses dos 42,0% dos valores observados naqueles com
grupos dominantes. chefia branca 16. Em 2001, vivia-se com R$
Os perversos efeitos dessa programação so- 205,40 nos domicílios negros e pouco mais que
cial sobre a população negra são inúmeros (di- o dobro nos domicílios brancos. Embora a mé-
versos e assimétricos nas várias fases do ciclo dia de renda per capita domiciliar persista bai-
de vida) e podem ser evidenciados, direta ou xa para o conjunto da população (R$ 482,10),
indiretamente, a partir da análise de alguns as- detecta-se queda na proporção de pobres: em
pectos das relações interpessoais e das rela- 1992, estes eram 40,7%; em 2001 passaram a
ções que o grupo estabelece com as institui- 33,6% 6. Ao desagregar os dados por raça/cor,
ções; da análise de sua situação sócio-econô- também foi possível observar redução, contu-
mica, condições de vida e de desenvolvimento do, a proporção de negros pobres manteve-se
humano, participação no mercado de trabalho, duas vezes à observada para brancos pobres:
acesso aos bens e equipamentos sociais e de sua 55,3% versus 28,9% em 1992 e 46,8% versus
morbimortalidade, como observam Cavalleiro 22,4% em 2001 6.
2 , Martins 3 , Hasenbalg 4 , Cunha 5 , Jaccoud & É nítida a dimensão espaço-regional na con-
Beghin 6, Paixão 7, Batista et al. 8, Martins & Ta- centração de riqueza e na distribuição dos po-
naka 9, Wood & Carvalho 10, dentre outros. bres e inegável sua relação com raça/cor e gê-
nero – as mulheres negras encontram-se nos
mais baixos patamares de renda –, reiterando a
Algumas evidências das desigualdades literatura nacional e internacional 17,18,19,20,21.
sócio-raciais no Brasil Embora a sociedade brasileira não conviva
com o ódio racial, com a segregação legal ou
Concentração de riqueza e pobreza explícita, a atribuição de um significado social
negativo a determinados padrões fenotípicos
No Brasil, o grau de pobreza é mais elevado do de diversidades justifica o tratamento desigual,
que o encontrado em outros países com renda impõe e intercala barreiras que impedem ou
per capita similar. Embora cerca de 64,0% dos dificultam a mobilidade social negra 22. A so-
países tenham renda inferior à brasileira, aqui bre-representação do negro na pobreza, com
o grau de desigualdades é um dos mais eleva- especial destaque para a situação da mulher
dos do mundo 11. negra, restringe suas possibilidades de consu-
Ao estudar os ricos brasileiros, Medeiros 12 mo, de acesso aos bens sociais potencialmente
afirma que a dimensão espaço-regional é essen- disponíveis e, por conseqüência, suas liberda-
cial para a compreensão e redução das desi- des individuais. Como afirmou Santos 23, aos
gualdades sociais. Segundo o autor, são expres- pobres é oferecida uma cidadania abstrata, que
sivas as diferenças nos níveis de renda per ca- não cabe em qualquer tempo e lugar e que, na
pita entre regiões, sendo maior a concentração maioria das vezes, não pode ser sequer recla-
de rendimentos nas áreas mais pobres. Em ter- mada.
mos de renda média, nível e crescimento de ren-
da, as regiões Sul e Sudeste são evidentemente Condições de moradia e habitação
mais ricas, Norte e Nordeste mais pobres 12,13.
Dados de 2001 do Instituto de Pesquisa Nos anos de 1990 melhoraram as condições
Econômica Aplicada (IPEA), destacados por habitacionais de toda a população. Entretanto,
Sant’Anna 14, comprovam a estrutura racial de em 2001, a proporção de negros que vivia em
distribuição de riqueza: no Nordeste, a razão aglomerados subnormais (favelas, mocambos,
entre a renda apropriada pelos 20,0% mais ri- palafitas e similares) ainda era quase o dobro
cos e aquela apropriada pelos 20,0% mais po- da proporção de brancos. Todavia a definição

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do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Em qualquer sociedade, o sistema educa-


(IBGE) para favela deva ser revista e alterada 24, cional pode se constituir em poderoso agente
não deve ser ignorado o fato de que em 2001, de inclusão social e de promoção da igualdade.
três quartos das pessoas que viviam em favelas No Brasil, porém, a negligência do ensino dian-
eram negras (autodeclaradas pretas ou pardas) 6. te das iniqüidades geradas por séculos de es-
Com o passar dos anos, as disparidades en- cravidão potencializa a manutenção e amplia-
tre negros e brancos, quanto às condições de ção das disparidades. No início do século 21,
moradia e habitação nos domicílios particula- mais da metade da população negra adulta (25
res permanentes urbanos, também foram re- anos e mais) tinha menos de quatro anos de es-
duzidas em diversos aspectos: condições físi- tudo (analfabetos funcionais); 82,0% (contra
cas e de ocupação do espaço; saneamento; menos de dois terços dos brancos) não haviam
abastecimento público de água; coleta de lixo; completado o primeiro grau (oito anos de es-
energia elétrica; e presença de banheiro de uso tudo); 90,0% (contra três quartos dos brancos)
exclusivo. Contudo, a sobre-representação dos não chegaram a terminar o ensino médio (11
negros entre os destituídos desses bens poten- anos de estudo); e apenas dois entre cem ne-
cialmente disponíveis manteve-se em patama- gros adultos concluíram quatro anos de ensino
res elevados, independentemente da região superior (contra cerca de dez brancos) 6.
geográfica considerada, com exceção do aces- É preocupante a extensão e persistência da
so à energia elétrica. exclusão da população negra do nível superior
Do ponto de vista da saúde, as condições de ensino, dado que essa situação significa um
desfavoráveis de moradia e habitação propi- virtual alijamento das ocupações de maior pres-
ciam a disseminação de doenças respiratórias, tígio e remuneração; das proposições de co-
infecciosas e parasitárias 25, e potencializam as mando e deliberação; das camadas dirigentes
situações de violência sexual, física e psicológi- dos setores público e privado; das atividades
ca 26. Para além do incremento das vulnerabili- culturais e científicas que demandam educa-
dades às patologias ou aos agravos citados, o ção formal.
estresse cotidiano e a insatisfação com o meio Embora a escolaridade não seja a variável
onde vivem (espaço físico e simbólico) também com maior poder explicativo no desencadea-
alteram a qualidade de vida auto-atribuída. mento dos processos de adoecimento ela figu-
ra como elemento de suma importância ao se
Acesso à educação tratar do acesso aos serviços, da comunicação
com o profissional de saúde – em especial, com
As políticas públicas projetadas para diminuir o médico –, da conseqüente efetividade na pre-
os índices de analfabetismo no Brasil têm re- venção, tratamento e cura de doenças, bem co-
sultados incontestáveis e uma progressão mais mo no que se refere aos processos de ressigni-
promissora para as mulheres que para os ho- ficação, por parte da população, das noções de
mens: em 1940, apenas metade da população saúde e doença.
masculina e 36,0% da feminina com dez anos e
mais era alfabetizada; após quarenta anos, essa Emprego e renda
taxa era de 76,0% para homens e 74,0% para
mulheres; e, em 2000, passou para 87,8% e Em 1999, o índice de rendimento médio na
88,0%, respectivamente 27. O caráter promissor ocupação principal de negros correspondeu a
das iniciativas universalistas na área da educa- 48,0% do índice observado para a população
ção passa a ser questionado quando são com- branca 16,28. Num estudo de 2004, Martins 3, ao
parados os perfis de escolaridade de brancos e analisar os dados sobre a renda média da ocu-
negros, especialmente nas faixas etárias de 15 pação principal (padronizada para quarenta
a 24 anos, de 45 anos e mais, e nas regiões mais horas semanais), afirma que, todavia haja pe-
desenvolvidas. Em 1992, a taxa de analfabetis- quenas variações regionais em torno da média
mo para a população de 15 anos e mais era de nacional, as disparidades de renda entre ne-
25,7% para os negros e 10,6% para os brancos; gros e brancos está presente em todas as re-
uma década depois, 18,2% dos negros conti- giões do país, independentemente do nível de
nuavam analfabetos contra 7,7% dos brancos. desenvolvimento, das condições específicas do
De acordo com os dados censitários de 2000, a mercado de trabalho (ainda que seja atribuído
população branca estudava 6,9 anos e a negra, aos dois grupos o mesmo perfil educacional e
4,7 anos. No Sudeste, onde se encontra a maior sejam mantidos os diferenciais de remunera-
média para a população geral (6,7 anos), os ne- ção observados para cada faixa de escolarida-
gros estudavam, em média, 2,1 anos menos de). Conquanto a educação formal catalise a
que os brancos 6. mobilidade social, as possibilidades de ascen-

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são dos brancos, obtidas com o aumento do ní- até o presente momento, reiteram as evidên-
vel de escolaridade, são potencializadas com cias descritas anteriormente no Atlas de Desen-
auxílio de sua rede social; para os negros, no volvimento Humano 33.
entanto, o leque de oportunidades apresenta-
se mais restrito, uma vez que as novas gerações Causas externas de morte:
(geralmente mais escolarizadas) ainda não es- uma perda superlativa de vidas negras
tabeleceram uma rede social que lhes ofereça o
suporte necessário para mudança de status. Desde os anos de 1980, as causas externas re-
Segundo Soares 29, se não houvesse discri- presentam a segunda causa de morte no Brasil,
minação racial e de gênero, as mulheres negras fato que tem atraído a atenção de inúmeros
ganhariam, em média, cerca de 60,0% mais; as pesquisadores interessados no assunto; e tam-
brancas receberiam em torno de 40,0% e os ho- bém, do ponto de vista das políticas públicas,
mens negros, entre 10,0% e 25,0% mais (depen- promovido crescente demanda dos serviços de
dendo do lugar ocupado na distribuição de ren- saúde.
da). As disparidades de renda observadas entre No triênio 1998/2000, um quarto dos óbitos
os grupos de raça/cor e sexo não derivam da declarados de homens negros foi atribuído às
heterogeneidade da distribuição racial da po- causas externas contra 16,0% para os brancos.
pulação ou ainda da heterogeneidade dos ní- Quase metade das mortes de negros foi oriun-
veis de educação formal no território brasileiro, da de homicídios; para os brancos, a proporção
mas sim do próprio mercado de trabalho, que foi de 34,4%. Também foram mais freqüentes
gera segmentação ocupacional e discriminação entre negros os óbitos determinados por ata-
salarial baseadas em raça/cor e sexo 3,29,30,31. que com arma de fogo (32,0% versus 21,9%) 32.
Ainda que a violência figure entre os princi-
pais problemas de saúde pública da atualida-
Outras marcas visíveis e mensuráveis de, poucos estudiosos têm se dedicado a verifi-
car as interseções estabelecidas entre o evento
Desesperança de vida ao nascer (morte, traumas, lesões, incapacidades) e local
de moradia, gênero, faixa etária, educação for-
No Brasil, a esperança de vida ao nascer, em mal, condições gerais de vida, ocupação, uso
2000, era de 70,4 anos. A dinâmica de gênero ou tráfico de drogas, orientação sexual, raça ou
imputada ao indicador de longevidade, dife- etnia. Nesse sentido, a ampliação do leque de
rentemente do comportamento apresentado pesquisas sobre as causas externas de morbi-
para os demais indicadores ou demais variá- mortalidade e a incorporação de novas perspec-
veis, ocorre em detrimento dos homens, com tivas de análise e interpretação dos dados se-
as mulheres vivendo, em média, 7,45 anos a rão instrumentos úteis para a atuação no cam-
mais que eles. Ao serem considerados os gru- po das políticas públicas, tanto do ponto de
pos de raça/cor, tal esperança era maior para vista administrativo (planejamento de serviços
os amarelos (75,75 anos), seguida daquela e alocação de recursos), da avaliação e acom-
apresentada para os brancos (73,99 anos). Di- panhamento da qualidade e efetividade da as-
ferenças relevantes também foram observadas sistência médica prestada, como da educação
entre os demais grupos: para os pardos foi esti- permanente (envolvimento dos profissionais
mada uma expectativa de vida de 67,87 anos; que prestam atendimento direto às vítimas na
para os pretos, de 67,64; e, para os indígenas, discussão sobre as várias dimensões do tema).
de 66,57 anos. Quando comparados aos bran-
cos, os pretos apresentaram uma expectativa
inferior de 6,35 anos e os pardos de 5,96 (no Considerações sobre universalidade,
seu conjunto, a expectativa de vida dos negros eqüidade e produção
foi 6,12 anos menor que a dos brancos). Cabe de conhecimento científico
assinalar que, ainda em 2000, a esperança de
vida de povos indígenas ao nascer era 7,42 Ao instituir a saúde como direito de todos(as) e
anos inferior à dos brancos, 1,3 ano inferior à dever do Estado (Artigo 196 da Constituição Fe-
dos negros e 9,18 inferior à dos amarelos 32. As deral Brasileira), o Estado brasileiro assume a
diferenças com base na pertença étnico-racial responsabilidade de garantir acesso universal e
foram mantidas no interior dos grupos de sexo, igualitário às ações e serviços de saúde, de mo-
com mulheres e homens brancos gozando de do a contemplar, da melhor forma possível, as
maior expectativa de vida quando comparados necessidades e demandas da população.
às mulheres e homens negros. Os dados apre- Embora seja um avanço inegável como di-
sentados por Paixão e colaboradores, inéditos reito do cidadão, não o é quando trata do dever

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do Estado, pois este não tem assegurado a to- gual, contemplando assim suas necessidades e
dos a mesma qualidade de atenção ou perfil de promovendo ou efetivando o direito à igualda-
saúde, seja do ponto de vista regional e/ou ét- de de fato.
nico-racial 34. Mulheres e homens; populações Do ponto de vista da pesquisa acadêmica, é
indígenas, negros e brancos ocupam lugares preciso considerar que o racismo nem sempre
desiguais nas redes sociais e trazem consigo se faz presente, de forma explícita e mensurá-
experiências também desiguais de nascer, vi- vel, nas interações. Desse modo, não basta que
ver, adoecer e morrer. Diante de tal constata- os estudiosos apresentem aos seus pares análi-
ção, é essencial que, no campo das políticas ses das diferenças numéricas com significância
públicas ou institucionais, o processo de defi- estatística. Seus estudos devem considerar o
nição de diretrizes e metas não restrinja o con- conjunto de fatores históricos, sócio-políticos,
ceito de igualdade ao seu aspecto formal e que econômicos e culturais que contribuem para
seja considerado o impacto de preposições e existência, manutenção ou ampliação dos di-
ações sobre grupos populacionais específicos. ferenciais no interior dos grupos ou intergru-
O combate e a erradicação das desigualda- pos. É preciso analisar as diversas experiências
des torna-se um grande desafio no campo das vivenciadas por negros e não-negros numa da-
políticas públicas, especialmente quando tais da condição social, considerando sexo, idade,
desigualdades são oriundas da expressão indi- região de moradia, educação formal, origem
reta de discriminação. Poder público e socie- familiar, ocupação, renda, orientação sexual,
dade civil precisam ser imparciais no enfrenta- denominação religiosa, capacidades e incapa-
mento de práticas, procedimentos ou leis que, cidades, rede social e comunitária, possibilida-
explicitamente, desfavorecem pessoas ou gru- des de acesso aos serviços e aos bens sociais.
pos característicos e devem ter em vista que, Nesse sentido, a ausência de relevância estatís-
para eliminar as formas indiretas de discrimi- tica na distribuição e comportamento das va-
nação, é necessário: (1) mensurar e interpretar riáveis por raça/cor não isenta o pesquisador
de forma correta a magnitude e a evolução das da responsabilidade de reiterar tanto a nature-
disparidades entre os grupos hegemônicos e za perversa do racismo, como sua capacidade
não-hegemônicos; (2) revisar as práticas insti- e aptidão em criar e/ou perpetuar diferenciais
tucionais, de modo que as novas ações, progra- nas condições gerais de vida nos grupos e in-
mas e políticas sejam orientadas pela noção de tergrupos. É de sua responsabilidade indicar
eqüidade; (3) assumir o compromisso e a res- brechas a serem exploradas por outros estudos
ponsabilidade de oferecer tratamento diferen- que adotem abordagens qualitativas ou quan-
te àqueles que estão inseridos de forma desi- tiqualitativas.

Resumo

Este artigo parte do conceito de saúde como o conjun-


to de condições integrais e coletivas de existência, in-
fluenciado pelo contexto político, sócio-econômico,
cultural e ambiental. Desse modo, mostra que os estu-
dos sobre as desigualdades, disparidades ou iniqüida-
des em saúde devem ir muito além da comparação de
dados estatísticos, uma vez que o racismo nem sempre
se apresenta de forma explícita e mensurável nas inte-
rações sociais. É preciso analisar as diversas experiên-
cias vivenciadas por negros e não-negros numa dada
condição social, considerando sexo, idade, região de
moradia, educação, origem familiar, ocupação, renda,
orientação sexual, filiação religiosa, suas capacidades
e incapacidades, sua rede social e suas possibilidades
de acesso aos serviços e bens sociais. Por fim, o artigo
enumera diretrizes que possam colaborar com o gran-
de desafio de formulação de políticas públicas que
combatam e erradiquem as imensas desigualdades
entre brancos e negros.

Preconceito; Iniqüidade na Saúde; Eqüidade

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DESIGUALDADES RACIAIS E SAÚDE 1601

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Aprovado em 03/Mai/2005

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