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RUMO AO DESPERTAR

A SI MESMO
Jean Vaysse

Uma abordagem do ensinamento


deixado por G. I. Gurdjieff

1) Preparação para uma busca real de si (02)

2) Observação de si (05)

3) Visão de conjunto da estrutura do homem (07)

4) Condições de uma real observação de si (16)

5) Os estados de presença (24)

6) Funcionamento da máquina humana (28)

7) Despertar de si mesmo (43)

8) Obstáculos ao despertar (45)


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PREPARAÇÃO PARA
UMA BUSCA REAL DE SI
Se quisermos realmente viver a nossa vida, talvez sintamos a
necessidade de aprofundar a compreensão que temos dela e dar a ela um
sentido e significação que, com toda a honestidade, ainda não tenhamos
encontrado, ou, em todo caso, encontrado de forma demasiado incompleta.
Quase tudo o que fizemos até agora foi voltado para o exterior e a
vida exterior absorveu a quase totalidade de nossas vidas.
Durante a nossa instrução, os nossos estudos e as nossas atividades da
vida, quase tudo esteve voltado para o exterior. Aprendemos muito pouco a
nos voltar para o interior de nós mesmos; só em determinados momentos e
de maneira episódica.
Se, no entanto, quisermos ir mais a frente na busca de uma presença
forte, lúcida, estável, capaz, temos que voltar para nós mesmos. Temos
necessidade, antes de tudo, de ser plenamente nós mesmos diante da vida e
através dela. Se quisermos chegar a algo realmente válido, é necessário
empreender um trabalho de outra ordem: um trabalho muito mais estruturado.
Temos que adquirir uma experiência e compreensão melhores do que somos e
desenvolver em nós qualidades que ainda nos faltam. Assim como aprendemos
a agir em relação ao nosso trabalho exterior, vamos ter que aprender o que é
um trabalho interior e que espécie de ação ou atividade ele comporta.
O homem deve chegar a uma visão da sua situação, a um conhecimento
do que é e a um trabalho interior de desenvolvimento de si. Deve ver que a sua
personalidade, sustentada pelo seu amor-próprio, usurpa um poder soberano
abusivo e dispõe, para o seu serviço, de um domínio total das funções. Deve
reconhecer que a sua essência, a parte autêntica de si mesmo, permaneceu não
desenvolvida. Deve empreender o restabelecimento do justo equilíbrio em si.
O primeiro trabalho será restabelecer o equilíbrio perdido entre a
essência e a personalidade. Isso requer o enfraquecimento da personalidade,
até que ela seja trazida à sua justa medida. E isso exige, ao mesmo tempo, o
desenvolvimento do ser, tanto através da ação de choques que o despertem,
como por meio de um trabalho de ampliação da compreensão à custa de
experiências conscientemente vividas.
Aprofundar o conhecimento de nós mesmos é um trabalho imenso,
e talvez maior que a aprendizagem de nossa vida exterior.
Trata-se também de um caminho longo, fastidioso, muitas vezes até
desencorajador. Vemos que precisamos de um trabalho muito mais intenso e
de maior fôlego do que jamais o foram todas as nossas tentativas nesse
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sentido. Isso certamente não poderá ocorrer enquanto a vida exterior nos
arrastar a todo instante.
Poderíamos começar o nosso trabalho por um dos três níveis: afetivo ou
intelectual ou instintivo/motor. O nível orgânico, o nosso corpo parece ser o
mais indicado, pois é através dele que se fazem todos os intercâmbios da
vida e nos chegam todas as energias de que necessitamos; é o instrumento
através do qual percebemos, por meio do qual agimos. Além disso, nosso
corpo é sólido, concreto, com uma forma aparentemente estável, com o qual,
em todo o caso, podemos, numa certa medida, contar. Ele fica de bom grado
em repouso e nos é possível observá-lo. É relativamente obediente e, numa
certa medida, temos algum poder sobre ele.
Se quisermos estudar o nosso corpo, ou pelo menos, a sua parte
motora, o movimento, precisaremos estar ligados a ele.
O que nos liga ao nosso corpo é a “sensação” que temos dele: a
percepção interior do nosso eu físico, a sensação física de si. Mas a
sensação tem uma importância ainda maior, pois, se o nosso propósito for
desenvolver em nós mesmos uma presença estável, a sensação do nosso eu
físico será parte inerente dela. A sensação é a parte mais concreta e
facilmente controlável dela.
Para nos conhecermos e nos observarmos, para estudarmos o nosso
corpo e, mais tarde, para sustentarmos o nosso trabalho, precisamos dispor
dessa sensação. Isso exige que estabeleça em nós uma nova relação, uma
nova situação: eu (consciente da) minha sensação. Precisamos nos tornar
capazes de uma consciência mais estável, mais durável do nosso corpo e da
sua situação.
Haverá sempre duas linhas no nosso trabalho: por um lado, o trabalho
interior em condições apropriadas ao desenvolvimento de determinadas
possibilidades; por outro, a prova da vida, numa medida apropriada ao
desenvolvimento interior realizado. Ou seja, ir para a vida para aí manifestar
plenamente o que tivermos reconhecido ser e para ali realizar o que depende
de nós.
Quanto à sensação de si, precisamos, antes de poder acompanhá-la,
em suas variações durante os nossos movimentos e a nossa vida, conhecê-la
num estado de base, onde possamos sempre reencontrá-la imediatamente,
igual a si mesma, cada vez que, para o nosso trabalho interior, ela nos seja
necessária. Assim como é preciso um zero ou uma norma para toda medição,
precisamos, do mesmo modo, para a apreciação de nós mesmos, de uma
base de referência, a medida de uma situação sempre igual. E, em relação à
sensação de si, só podemos encontrar essa base num relaxamento completo.
Devemos, portanto, nos colocar em condições em que esse relaxamento
seja possível. Uma vez que reconhecemos ser necessária essa tentativa,
assumimos conosco o compromisso de tentá-la todos os dias, na justa medida
das possibilidades, ao menos uma vez, senão duas, e talvez mais.
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• Colocar-se em condições na qual não será perturbado.


• Adotar uma postura favorável a um trabalho dessa espécie. Uma postura
favorável ao trabalho mais profundo sobre si deve ser equilibrada e se
manter naturalmente por si mesma.
• Restabelecer a calma e se desligar aos poucos de todas as preocupações
exteriores da vida corrente: as tensões, as coisas que nos monopolizam e
a sua repercussão interior, a agitação que elas determinam em nós.
• Lembrar-se da razão pela qual empreendemos essa tentativa. Encontrar
em nós aquilo que tem necessidade de que ela seja empreendida e à linha
de interesse à qual ela se liga.
Um exercício desse tipo só tem sentido se está ligado, em nós, à
necessidade que temos de nos tornarmos cada vez um pouco de nós
mesmos. Esse trabalho, na maioria das vezes, terá como ponto de apoio o
relaxamento e a sensação de si, e mais tarde a lembrança de si, segundo
modalidades precisas e sob a vigilância do que acontece.

OBSERVAÇÃO DE SI
A observação de si é a primeira etapa de um estudo de si, e deve estar
ligada primeiro à nossa busca e ao nosso desejo de ser plenamente nós
mesmos. A observação de si é, em si mesmo, um instrumento de despertar
para um outro nível de vida e, por conseguinte, é um meio de transformação.
Mas a simples observação de si não é possível sem a “lembrança de si”.
E, enquanto um homem não chegar, de maneira bastante global, a uma
“presença a si mesmo” real, pela lembrança de si, com o conhecimento
relativo de si que nela encontra, as coisas se fazem nele ou através dele, mas
não se fazem em presença dele mesmo, não segundo ele. Só a máquina
funciona, ele próprio não está ai.
É só começando a “lembrar-se de si” que o homem inicia realmente o
acordar, tentando encontrar, reunir, viver por traz dos seus personagens,
aquilo que sentiu ser mais verdadeiramente ele mesmo. Tal tentativa dá uma
“impressão de si” que tem um “sabor” específico e se reconhece sem erro:
nesse momento, o homem que a conheceu começa a não deixar mais que o
seu personagem abuse dele. Na verdade, o que tal tentativa implica não pode
ser descrito em palavras: trata-se de uma experiência individual que , como
toda experiência de consciência, só tem sentido quando vivida, no próprio
momento em que é vivida, e somente para o indivíduo que a vive. Só
começando a “lembrar-se de si” é que o homem pode despertar realmente.
A observação de si exclusivamente não é, suficiente para o despertar. É
apenas uma etapa preliminar que precisa de certo despertar, mas este
permanece, de algum modo, passivo: o homem, nesse ponto, mal emerge do
sono e imediatamente torna a cair nele. Só com o despertar real e bastante
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durável um homem se torna presente a si mesmo. E só com a “presença a si


mesmo” um homem começa a viver como tal.
Para ver-se a si mesmo nos traços, defeitos e falhas dos outros e não
apenas os seus próprios traços e faltas, é preciso ser capaz de uma atitude
interior especial, de uma vigilância e de uma atenção de direção e qualidades
particulares, para o que é necessária uma honestidade muito grande, e mais
que tudo, uma sinceridade consigo mesmo, livre de convenções e de regras
aprendidas, que lhe permita ver, com toda a objetividade, segundo à sua
própria consciência, o que ele é e o que é o mundo à sua volta.
A observação de si deve ser preparada pelo estudo das quatro funções
(intelectual, afetiva, motor e instintiva) que garantem a nossa vida diária. Em
seguida pelo estudo dos diferentes estados (estados de sono, vigília,
consciência de si e consciência objetiva) nos quais a vida transcorre. E
finalmente, pelo estudo das relações entre a qualidade dessas funções e a
desses diversos estados.

HÁ DOIS MÉTODOS DE OBSERVAÇÃO DE SI:


1) ANÁLISE DE SI OU INTROSPECÇÃO
Cada fato observado é considerado em si mesmo e serve de base a
uma análise intelectual sob a forma de perguntas sobre as causas, as
relações e as conseqüências do fato observado. É o fato observado que é o
centro de gravidade da pesquisa, e os outros elementos são agrupados em
relação a ele e não em relação ao conjunto do homem. Este passa para o
segundo plano, quando não é perdido de vista.
Além disso, o homem que se observa assim busca respostas para
aquilo que constata, interessa-se em seguida pelas respostas e por suas
conseqüências e logo perde de vista que estava ai, em primeiro lugar, para a
observação de si e não para interpretações para as quais não dispõe ainda da
soma de material necessário. Desenvolve, assim, todo um funcionamento
intelectual a propósito de uma observação que fica relegada ao segundo plano,
até mesmo esquecida. O homem que se analisa dessa maneira não só não
progride mais no conhecimento de si, como ainda faz progredir em si idéias
ou imaginações sobre si, algumas das quais se tornarão os piores obstáculos
a esse conhecimento.
2) CONSTATAÇÃO
No início só o método das constatações tem valor real para o
conhecimento de si. Para que se possa começar as constatações, certo
número de informações deve ser dado primeiramente sob a forma de uma
bagagem inevitavelmente intelectual. Neste estágio o trabalho será verificar
essas informações pela sua própria experiência, e não admitir como real nada
que não tenha certificado por si mesmo.
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Enquanto se faz o trabalho preliminar de verificação das informações,


inicia-se o estudo de si, observando-se a si mesmo por simples constatação,
sem julgar nem mudar nada, tentando apenas determinar a que centro ou
grupo de centros pertencem os fenômenos que observamos, a que funções
estão ligados e a que nível dessas funções. No decorrer das constatações
não se deve, em nenhum momento, perder de vista o conjunto. Só ele conta e
nele deve permanecer o centro de gravidade.

A OBSERVAÇÃO DAS FUNÇÕES


Por meio da observação repetida das quatro funções (intelectual,
emocional, motora e instintiva), com que geralmente vivemos tomamos pouco
a pouco consciência dos traços que caracterizam cada uma delas na sua
origem, no momento em que nasce do centro, com o seu impulso inicial,
e assim poderemos chegar ao conhecimento desses centros, isto é, ao
conhecimento da nossa própria essência, sem o que não há conhecimento de
si. Tal observação compreende duas etapas, dois níveis:
• As funções devem primeiro ser observadas e reconhecidas em todas as
suas manifestações exteriores.
• Em seguida podem ser observadas em si mesmo, esforçando-nos por
reconhecer e compreender as tendências interiores fundamentais que dão
a elas a forma exterior sob a qual nós aparecemos.

VISÃO DE CONJUNTO
DA ESTRUTURA DO HOMEM
Uma observação valida só é efetivamente possível se, antes, nos forem
dadas certas informações sobre o que somos e as perspectivas inerentes à
vida humana. Tais informações só adquirem um valor real para nós, se
podemos, em seguida, verificá-las passo a passo por nós mesmos e chegar a
uma visão de conjunto e uma experiência prática suficientemente
comprovada. Essas informações se referem à própria estrutura do ser
humano, ao seu modo de funcionamento e às mais imediatas de suas
transformações possíveis.

CENTROS E FUNÇÕES
A máquina humana completa compõe de sete formações, cada qual com a
sua função. Quatro delas garantem o funcionamento corrente, a nossa participação
elementar na vida. As outras três, além dessa participação, representam, mais
especificamente, o suporte da individualidade propriamente dita.
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1) A INTELECTUALIDADE
O pensamento é a função do centro intelectual. Todos os processos
mentais estão compreendidos nele: recepções dos dados intelectuais,
análise, comparação, elaboração de idéias, de raciocínios, de imaginações e
registro na memória intelectual. É essa função, em geral, que nos permite
comparar, julgar, coordenar, classificar e prever.
2) A AFETIVIDADE

O sentimento é a função do centro afetivo. Todos os processos


emocionais incluem-se nele: a alegria, o desgosto, a tristeza, o temor, a
surpresa, etc. É essa função, em geral, que nos permite apreciar e avaliar
tudo em relação ao que percebemos e conhecemos de nós.
3) A MOTRICIDADE

O movimento é a função do centro motor. Compreende todos os


movimentos exteriores, tais como andar, escrever, falar, comer, etc. A função
do centro motor é o movimento ou o repouso, a ação ou a inação, e o
relaxamento mais ou menos profundo. É essa função, em geral, que nos
permite ter a sensação do nosso corpo e lhe permite cumprir as tarefas que
lhe são exigidas.
4) A INSTINTIVIDADE
A função do centro instintivo é o controle da vida interna do organismo,
cujas percepções se expressam pela satisfação ou pela necessidade. Ele é o
centro das atrações e repulsões “instintivas”, o centro das impressões
orgânicas de “bom” ou “mal”, que regem a vida da máquina e cuja soma total
resulta no bem-estar ou mal-estar orgânicos, até mesmo na dor. É essa
função, em geral, que nos permite ter o instinto das necessidades.
5) O CENTRO (E FUNÇÃO) SEXUAL
Quanto à função sexual, devido a estrutura do centro sexual, é a que
utiliza a energia mais fina e que realiza a função mais elevada: a participação
na obra da criação, no nível que lhe corresponde. Seria possível dizer que o
centro sexual é o centro do dom de si. Apóia-se e participa das outras
funções, delas emana e, no entanto, as supera, para ser o suporte do aspecto
criador do ser humano em todos os seus níveis. Um estudo da função sexual
exclusivamente ao nível da vida orgânica proporciona somente uma visão
parcial e insuficiente. O centro sexual participa, por um lado, da nossa vida
comum e, por outro lado, da elaboração da individualidade verdadeira. Ele dá
o colorido de uma polaridade própria, masculina ou feminina, ao conjunto da
vida de cada um de nós. Segundo essa polaridade, a força vital se dá ou é
dada. É evidente que o centro sexual, quando entra em jogo, graças à finura
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da energia que utiliza, dá maior sutileza, acuidade e rapidez às percepções


sensoriais, às impressões e às funções.
6) O CENTRO (E FUNÇÃO) EMOCIONAL SUPERIOR

Está ligado ao estado de presença de si. Com a presença de um eu


superior permanente, formando uma individualidade estável dotada das
faculdades correspondentes de consciência de si, de atenção e de vontade,
aparecem os sentimento reais: um sentimento de si verdadeiro e os
sentimentos de ordem superior ligados a ele.
7) O CENTRO (E FUNÇÃO) INTELECTUAL SUPERIOR

É traduzido pelo pensamento objetivo. Ele está ligado ao estado de


presença relativo ao ser, universal, dotado de consciência objetiva e de
sentimentos relativos ao ser de que o homem comum não a tem a mínima idéia.

CONSCIÊNCIA MORAL E INTUIÇÃO INTELECTUAL


Há também, enterrada no fundo de nós, e geralmente sufocada pelo
desenvolvimento da personalidade, uma aproximação intuitiva do que
poderiam ser esses dois últimos estados, sob a forma de impulsos de
“consciência moral”, para o primeiro desses estados, e o que poderia chamar
“intuição intelectual” para o segundo.

FACULDADES FUNDAMENTAIS
As três faculdades fundamentais do homem se encontram, sob diversos
aspectos, em toda forma de vida individual. O seu conjunto permite a
individualidade relativamente autônoma. A sua qualidade testemunha o nível
de vida, o estado de presença, o grau do ser e caracteriza cada estado de
presença, permitindo assim reconhecê-lo e situá-lo. Essas três faculdades
são a “atenção” a “consciência” e a “vontade”.

ESSÊNCIA E PERSONALIDADE
Um dos pontos mais importante no estudo de si é, entre as nossas
motivações e funcionamento, a distinção entre o que nos pertence de fato,
provém de nós, faz parte de nossa própria natureza, e o é proveniente do
meio ambiente e não representando em nós mais que um empréstimo. Deste
ponto de vista, estamos divididos em duas partes: a essência e a
personalidade. Essas duas partes, no homem comum, estão quase sempre
tão mescladas, que são imperceptíveis. Tanto uma como a outra são
necessárias à vida e, se o homem quiser se conhecer, conhecer “a sua vida”,
deverá, em primeiro lugar, ser capaz de distingui-las em si mesmo.
1) ESSÊNCIA (ENCERRA O GERME DE NOSSAS QUALIDADES)
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A essência é o que é inato, isto é, os dons e marcas particulares a cada


um. É o seu bem próprio, o bem hereditário, portador de seus traços
particulares. Constitui o seu ser interior, núcleo da sua individualidade. São as
suas formas, tendências, características fundamentais, suas capacidades e
incapacidades. Uma pessoa tem o dom musical, outra não; uma tem o dom
das línguas, outras não; uma tem o gosto de viagens e da evasão, outra é
sedentária e reservada; uma é franca e sincera, outra é astuta e susceptível;
uma simplifica tudo, outra complica tudo.
A essência contém um potencial ainda não realizado e lhe foi dado para
fazer frutificar. O único crescimento real de um homem é o crescimento de
sua essência. A essência pode ser perdida e não pode ser modificada sem o
consentimento pelo menos tácito do sujeito. Num ser fraco, que se “deixa
levar” pelo ambiente no qual está preso, a essência pode ser sufocada e até
extinta quase sem que ele se dê conta disso, ou, ao contrário, pode ser
liberada e reequilibrada. Mas não pode ser desenvolvida e modificada sem
uma participação consciente e perseverante do sujeito.
2) PERSONALIDADE (TUDO QUE VEIO DO MEIO AMBIENTE)
A personalidade é tudo que o homem aprendeu desde o nascimento em
conseqüência dos acontecimentos, da educação, da moral, do meio social e
da religião. É todo o nosso saber e a maioria das nossas atrações e
comportamentos: os movimentos, as palavras, a linguagem, todos os
vestígios de impressões exteriores registradas nas memórias dos seus
diferentes centros, as sensações, os sentimentos aprendidos, as idéias que
adquiriu por imitação ou sugestão. Todos esses elementos são trazidos ou
impostos do exterior.
A personalidade se desenvolve sob a ação das circunstâncias exteriores
(o lugar, a época, o meio) de que depende quase completamente. Embora os
condicionamentos que a constituem sejam muito sólidos, ela pode ser
modificada mais ou menos profundamente pela mudança dessas
circunstâncias. Pode ser mudada quase inteiramente e por vezes de maneira
rápida; pode ser perdida, deteriorada ou reforçada.
Os primeiros elementos dessa personalidade, gravados num
terreno ainda virgem, logo no início da infância, estão ancorados tão
profundamente no homem, que são até difíceis de serem distinguidos da sua
essência e formam como se fosse uma segunda natureza.

FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE

No início da vida, o ser humano é corpo e essência. A personalidade é


ainda virtual e não está constituída. Uma criança se comporta tal qual é. Os
seus desejos, os seus gostos, aquilo de que gosta, aquilo de que não gosta,
exprimem o seu ser tal qual ele é.
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A personalidade se forma, em parte, sob a ação de influências


exteriores intencionais (o que chamamos educação), em parte devido à
imitação involuntária dos adultos pela própria criança, em parte também sob a
ação da “resistência” dela ao meio ambiente e pelos esforços para proteger (e
se necessário, dissimular) o que sente ser ela e ser dela: o que é “real” nela, a
sua essência.
De um modo em geral, “consciente” ou “inconscientemente”, quer queira
quer não, o ser humano adquiri aos poucos muitos gostos, sentimentos idéias e
juízos que lhe são artificiais, isto é, sem relação com aqueles que lhe seriam
naturais e que traduziriam a sua essência própria. Todos esses traços adquiridos
por educação, por imitação, por oposição e imaginação ocupam um lugar cada
vez maior e, à medida que essa personalidade artificial cresce, a essência se
manifesta cada vez mais raramente, cada vez mais indireta e debilmente.
Se um homem procura se conhecer, é muito importante para ele
regressar o máximo possível para suas lembranças de infância e reencontrar,
se possível, gostos e sentimentos através dos quais transparecem as
características de sua essência. Na maioria dos homens, a essência dá apenas
um matiz geral (um estilo de vida ou uma tendência geral) que faz com que toda a
personalidade se construa com essa coloração particular e a maneira de viver
esteja impregnada dela. O homem adulto habitualmente responde à vida de
acordo com essa personalidade de superfície e sem que a sua essência tenha
que intervir em tais respostas.
A personalidade pode ocupar todo o espaço e, na vida corrente,
responder sozinha a todas as exigências, substituindo por completo a
essência. Essa substituição é a causa principal do estado mecânico do
homem e a razão pela qual ele não pode se libertar dela. Ela é também a
evolução natural segundo a lei do menor esforço, lei que rege tudo que vive
na corrente involuntiva. Essa substituição se opera inconscientemente
durante o crescimento em conseqüência da inércia natural do homem e de
uma ausência de sinceridade consigo mesmo, uma complacência que a
educação habitual vem continuamente reforçar.
As funções devem responder constantemente à vida, mas é mais fácil
responder como o exige o mundo exterior do que fazer a sua própria
experiência e responder “em sua alma e consciência”. Também é mais fácil
recomeçar a responder como já aprendemos do que questionar cada vez e
readaptar cada vez a nossa resposta ao que interiormente sentimos ser justo,
todas às vezes como se fosse a primeira. A força dos hábitos trás essa
solução de facilidade.
Assim, “pela força das coisas” constroem-se em nós diversos
personagens habituados a enfrentar cada uma das situações diárias em que
nos encontramos colocados. Como é mais fácil imaginar do que agir e mais
fácil crer do que verificar, esses personagens se enchem aos poucos de
ilusões que limitam, penosamente, contatos com o real cada vez mais remoto.
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O CORPO ORGÂNICO
A essência e a personalidade têm por suporte um terceiro elemento
constitutivo do homem: o seu corpo orgânico. O centro de gravidade do corpo
é o centro motor; o da essência, o cento afetivo; o da personalidade, o centro
intelectual. Na ordem natural da vida do homem, essas três partes têm um
desenvolvimento independente. Só acidentalmente interfere uma na outra e
têm apenas ligações ocasionais. Entre elas não se estabelece nenhuma
ligação real. O estabelecimento de ligações reais só pode ser o resultado de
um trabalho, especialmente dirigido, do homem sobre si mesmo. Em
conseqüência da natural independência das suas três partes, a
individualidade não é dada ao homem ao nascer. Ela só pode ser o resultado
de um longo trabalho sobre si. O conhecimento do corpo, da essência e da
personalidade é necessário a esse trabalho.

INSTALAÇÃO DE HÁBITOS
Durante a aprendizagem das respostas às exigências da vida aparece a
instalação dos hábitos. A repetição dos mesmos comportamentos em
situações análogas, cria, no indivíduo, uma associação sempre igual das suas
diversas funções. Disso resulta a instalação nele de uma rede particular de
relações, um “modo de aparecer” que se repete automaticamente cada vez
que circunstâncias análogas se repetem. Em pouco tempo, cada um desses
aspectos ou maneira de aparecer constitui um personagem em si, um
pequeno “eu” particular. Desse modo forma-se um “eu” para cada uma das
circunstâncias habituais da vida.
Como esses “eus” se constituem independentemente uns dos outros, eles
não mantêm relação entre si. São tanto concordantes como contraditórios e
cada qual não é mais que um aspecto correspondente de uma determinada
situação. Assim, o homem aparece diferentemente, conforme as circunstâncias,
sob as máscaras de diversos personagens, de pequenos “eus” múltiplos, que
lhe dão uma aparência aprendida, alheia ao seu verdadeiro eu. O conjunto
forma sua personalidade. E, assim, o homem deixa de aparecer, na vida, como
uma ”individualidade”, em que as funções se expressam harmoniosamente, em
todas as circunstâncias, o que ele é profundamente em sua essência.

MECANICIDADE
Uma observação atenta mostra que as cinco funções que garantem a
nossa vida comum estão continuamente em atividade, mas em graus
diferentes. Vemos geralmente uma delas mais ativa predominar e arrastar as
outras, mas tal predominância muda com freqüência sob a ação dos
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acontecimentos exteriores e interiores. Há, entretanto, a predominância


habitual de uma delas, sempre a mesma, conforme o tipo do individuo.
O jogo de associações entre as cinco funções se produz no homem sem
parar, quase à sua revelia, sob a forma de reações automáticas às situações
diante das quais a vida o coloca. A rede que daí resulta, tecida de hábitos e
semelhante a si mesma cada vez que circunstâncias iguais se repetem, forma
essas “maneiras de ser” definidas, esses personagens que nos caracterizam.
O homem está prisioneiro dos seus personagens e hábitos, E uma
mecanicidade muito grande preside a totalidade de sua vida.
Mecanicidade é uma soma de hábitos, reações automáticas e
condicionamentos estabelecidos por repetição durante a vida, que se sustenta
por si mesmo e logo se encerra em limitações em que não sai mais. Para
destruir os seus hábitos e associações automáticas, o homem pode
desenvolver em si mesmo outro nível, o do observador, da testemunha. Pode
aprender a descobrir os seus personagens e os seus hábitos, conhecê-los e
se servir deles. Pode desenvolver em si mesmo, um nível diferente de
presença e estabelecer uma ordem diferente de relações interiores, sem a
qual nenhuma liberação lhe será possível.

O HOMEM QUE SE DESPERTA


O homem que empreendeu um trabalho real sobre si começa, por ocasião
de momentos de presença, a apreciar-se “objetivamente” e a apreciar os
acontecimentos em relação a si mesmo e não mais em relação ao uso que os
seus personagens fazem deles. O caráter ilusório das suas emoções habituais,
positivas ou negativas, se mostra aos poucos a ele, ao mesmo tempo em que o
caráter contingente dos seus personagens surge diante dos seus olhos.
Por outro lado, uma apreciação diferente das suas impressões se torna
possível a ele em relação ao Eu que desperta. Ao lado das suas emoções,
pode distinguir sofrimentos morais verdadeiros, pertencentes ao centro
emocional e ligados à sua vida, assim como os sofrimentos físicos: a doença
a dor e a morte.
Despertar significa, inicialmente, para um homem, escapar ao
poder da imaginação e ver as coisas e a si mesmo tais quais são.
O homem tem muitas tristezas, temores, apreensões que não podem
ser evitados; e, sobretudo, com relação à visão de si mesmo que ele se torna
capaz de ter, as insuficiências e carências que constata, fazem se levantar
nele não mais os pesares e as resoluções ou veleidades de “corrigir-se”, mas
o sentimento “subjetivo” real do remorso de consciência.
Por todas essas razões, o despertar e a evolução do homem, se contém
em si - em conseqüência do despertar de um verdadeiro sentimento de si e
da consciência moral interior - impressões de alegria e satisfação reais, são
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sempre acompanhados também de sofrimentos e remorsos igualmente reais,


enquanto a sua evolução não está acabada.
A esperança de uma mudança autêntica não pode ser obtida
a não ser com a realização de uma presença estável, unificada, onde esteja
colocado permanentemente o centro de gravidade da vida. Esta, na verdade,
se realiza em torno do centro emocional superior e é acompanhado dos
verdadeiros sentimentos inerentes a esse centro, que não tem negatividade.
CONDIÇÕES, MEIOS E SENTIDO
DE UMA REAL OBSERVAÇÃO DE
SI
A visão de si e tampouco o movimento interior que a torna possível não
nos são dados espontaneamente. Continuamente nos sentimos tomados pela
desordem e agitação exterior e prisioneiros das dúvidas, dos conflitos e
imaginações que impedem uma visão imparcial do que somos.
Enquanto um homem preferir permanecer tal qual é e se não
experimentar a necessidade de mudar, nenhuma evolução será possível
para ele.
Essa necessidade de que algo mude em nós é, de fato, a primeira
observação de si que os acidentes da vida nos propõe, ora de maneira súbita
ou brutal, ora mais progressivamente sob a ação de uma necessidade, de
uma cobrança, uma exigência interior. Desde que reconhece haver nele algo
de errado ou insuficiente e alguma coisa deve ser mudada, pode o homem
empreender um trabalho sobre si com vistas à sua evolução.
A história da libertação do homem é a história de uma luta
incessante contra a sua mecanicidade cada vez mais sutil. Tem início na luta
contra os hábitos, que pode servir à observação inicial de si. Mais tarde,
outra luta, a luta de si consigo mesmo (a luta dos dois aspectos do homem)
será necessária para servir de base ao aparecimento de uma ”presença”. E
mais tarde ainda, a luta do sim e do não (as duas naturezas do homem),
necessária à sua espiritualização.

Para que a observação de si se torne possível, é preciso que,


entre as duas partes de si, se estabeleça certa distância. Essa separação traz
um começo de consciência, um olhar sob o qual “eu” começo a me perguntar
o que eu mesmo sou realmente, o que é “sincero” e o que não é. E esse
questionamento sincero, incessante, à luz de uma consciência de si que se
amplia, é o fermento mesmo que permitirá todas as mudanças posteriores.
À medida que se observa e aumenta o conhecimento de si, o homem se
dá conta, pouco a pouco, da total mecanicidade de sua vida corrente e da sua
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completa impotência diante dessa mecanicidade, de modo que nenhuma


mudança direta lhe é possível. Uma transformação, só lhe é possível advir de
uma superação desses processos comuns: o desenvolvimento, para além
deles, de um ser interior que seja verdadeiramente ele mesmo.
Desde esse momento, surge uma questão diferente e o trabalho adquire
novo sentido: alimentar esse crescimento do outro ser dentro dele. Não basta
mais se ver, como o tentava antes. Com o esboço de um conhecimento de si
que substitui, pouco a pouco, a simples observação de si, ao mero despertar
da lembrança de si, sucede o esboço de uma presença de si mesmo. A visão
distante se torna uma observação de si por si mesmo.
COMO EMPREENDER UM TRABALHO QUE NOS DÊ UMA VISÃO REAL
DO QUE SOMOS?

A personalidade formada pelo meio em que vivemos se interpõe


continuamente e impede o nosso ser de se expressar. As funções de que o
nosso corpo é o suporte estão a serviço dos nossos personagens aprendidos
e não do nosso ser interior, que é realmente nós mesmos, mas não consegue
mais se fazer ouvir.
Nada é mais tenaz do que a imagem falaciosa que temos de nós, e é
preciso um longo tempo, muitas decepções em relação a si, muitas
observações honestas, para que um homem comece a compreendê-lo e ver-
se como tal.
É necessário ter primeiro a visão da verdade sobre si mesmo e
resolver as dúvidas e conflitos dentro de si.
Quando tal visão aparece, o homem compreende que nele tudo tem que
ser invertido. O homem compreende o primeiro sentido de um autêntico
trabalho sobre si e entrevê o que é a primeira etapa da sua evolução
possível. O estudo começa por nós mesmos. Somos nós mesmos que
estamos em questão. Somos nós mesmos que necessitamos dessa busca. É
de nós que se trata, do nosso interior, do nosso lugar, dos nossos conflitos,
da nossa evolução e, desde agora, da nossa vida. Temos que aprender a nos
voltar para nós mesmos e a olhar dentro de nós mesmos. A observação de si
deve ser conduzida com vistas ao conhecimento de si e à participação no
Grande Conhecimento.

QUE OBSTÁCULOS NOS IMPEDEM DE EMPREENDER O TRABALHO


INTERIOR?

A) A CRENÇA ERRÔNEA DE QUE NOS CONHECEMOS

Para nos vermos melhor, é necessário primeiro que nos observemos


imparcialmente, com toda a honestidade, sem nada mudar. Precisamos nos
ver tais quais somos, em vez da imagem que temos de nós. Por esta razão,
15

todo trabalho nesse sentido começa pela observação de si. Se


compreendermos essa situação, começaremos a nos interrogar sobre nós
mesmos e compreender que necessitamos aprender a nos voltar para nós
mesmos, para a nossa vida interior.
B) A INCAPACIDADE DE FAZER DURAR A OBSERVAÇÃO
Desde que tentamos nos observar e a permanecer, ao mesmo tempo,
atentos a nós mesmos e a um aspecto bem definido de nós, percebemos que
tal observação é fugaz e salvo circunstâncias excepcionais, dura, no máximo,
alguns instantes.
C) A OBSERVAÇÃO DE SI, COM O TEMPO, É FASTIDIOSA
Após certo entusiasmo inicial, talvez o interesse caia e todas as
escapatórias possíveis sejam logo aproveitadas. É preciso estar ligados à
nossa busca e ao nosso desejo de ser mais plenamente nós mesmos. Ao
mesmo tempo, vemos que o nosso interesse pessoal por nossa tentativa se
esgota, e que a atenção necessária para ver, se desgasta.
D) O ESQUECIMENTO - E, EM ESPECIAL, O ESQUECIMENTO DE SI
Vivemos esquecidos de nós mesmos e tudo se passa sem deixar
vestígio algum. A vida se vive, mas se vive sem nenhum “fruto” para o sujeito.
Esquecemos que empreendemos esse trabalho para responder às nossas
mais profundas aspirações e que ele é uma etapa inevitável nesse sentido.
Nosso interesse, preso às atrações sempre cambiantes e renovadas da vida,
deixa-se constantemente desviar. Vivemos na dispersão, sem consciência do
conjunto que somos. Em nós as coisas se fazem: falar, rir, sentir, agir; mas se
fazem automaticamente, sem que nós estejamos presentes.

QUE FATORES SÃO NECESSÁRIOS A UMA CORRETA OBSERVAÇÃO DE


SI?

Uma observação de si correta, que conduza a constatações validas para


a nossa busca, necessita da participação de três fatores. Esses
compreendem, frente a frente, eu que observo e o que eu observo em mim. Mas
nada se passará se, além disso, não houver entre eles um terceiro fator: uma
atenção que os ligue. Essa observação só se torna possível a nós, se os três
fatores ativos que a possibilitam surgem ao mesmo tempo, num momento que
os reúne: um “Eu” que observa, o campo de observação de um momento
completo da vida e a dupla atenção que estabeleça a relação.

A) A ATENÇÃO
A atenção que temos é comumente uma atenção de sentido único,
dirigida para o que observamos e só leva em conta o que observamos. Com
uma atenção desse tipo e com a atitude que ela acarreta, a observação
16

aplicada a si torna possível uma análise elementar (a da psicologia clássica),


mas não as constatações integradas ao conjunto de que somos, tal como as
buscamos.
A atenção de que necessitamos é uma atenção de outro nível que,
enquanto a observação prossegue, leva em conta tudo o que somos. É uma
atenção de duplo sentido, uma atenção desdobrada, que tem como
conseqüência uma atitude muito diferente da habitual. É uma atenção que
observa os dois outros fatores: eu que observo e o que eu observo em mim.
B) EU QUE OBSERVO
Uma real observação de si só tem início se tentarmos ao mesmo tempo
um esforço de lembrança de si (eu observo). Uma observação de si completa
e verdadeira necessita da presença global de um eu estável e real.
O estado de presença de si mesmo não é natural, mas pode ser
desenvolvido e uma vez desenvolvido por um trabalho de estudo de si, e,
cada vez que é produzido em nós, somos advertidos disso por uma
consciência interior particular, um sentido interior de si especial, que não nos
deixará dúvida alguma, quando tiver sido experimentado por nós.
Uma presença relativa, certa coesão de tudo que pode encontrar em si
mesmo, é, desde agora, possível ao homem a qualquer momento, mediante
um esforço de lembrança de si.

C) O QUE OBSERVO EM MIM MESMO


Este fator é o objeto e o apoio da nossa observação, e esta não é
igualmente possível se esse apoio se revela continuamente efêmero. O modo
como as coisas se fazem em nós (o jogo das nossas funções, a maneira
como se associam para determinar os nossos personagens e as nossas
respostas) faz-se na sombra, sem o sabermos.
Um sentido interior muito vivo e uma determinação que nada
desencoraja são indispensáveis para seguir o caminho que é seu.

A LUTA CONTRA OS HÁBITOS


A observação com vista ao conhecimento de si começa, no nível mais
simples, pela luta contra os encadeamentos usuais (isto é, os hábitos), que nos
fazem aparecer tais como parecemos ser. A luta contra os hábitos se torna,
simultaneamente, o meio evidente de se ver tal qual é. É uma luta fastidiosa,
difícil e desencorajante devido à sua inutilidade imediata, à impotência - e o
erro - em mudar seja o que for e à constância e energia que requer.
Para que no começo, luta contra os hábitos seja possível e proveitosa à
observação de si, devemos escolher hábitos simples que tenham relação
direta com funções já claramente reconhecidas.
17

HÁBITOS MOTORES
A observação da motricidade pode ser empreendida eficazmente
contrariando uns após outros os diversos hábitos motores que formam o
substrato de toda a nossa atividade (o andar, o escrever, os gestos à mesa,
os gestos profissionais, as atitudes, etc). Cada uma dessas atividades é
constituída de múltiplos pequenos hábitos, cuja mudança provocada pode
servir de apoio a observação de si. O comprimento dos passos, a cadência do
andar, o modo de segurar a caneta, a mudança de mão para os gestos, são
exemplos que podem ser multiplicados.

FUNCIONAMENTO INTELECTUAL
O homem que procura ver o funcionamento intelectual percebe que tem,
de fato, certo poder de dirigir o pensamento no começo. Às vezes é possível
mantê-lo ainda durante algum tempo no sentido que escolhemos. Em
seguida, cedo ou tarde, freqüentemente com muita rapidez, ele lhe escapa. O
homem está distraído. O seu mental trabalha continuamente e as idéias estão
sempre presentes, mas aparecem automaticamente, em função dos estímulos
externos e internos, sem que o homem possa fazer alguma coisa. São as
reações automáticas do intelecto, em quaisquer circunstâncias, que se
encadeiam umas às outras associativamente.

A) A LUTA CONTRA OS HÁBITOS DE PENSAR

Dar-se conta de que cada uma das suas maneiras de pensar não é
única; questionar as maneiras de pensar e esforçar-se por partilhar de outras
maneiras, aprofundá-las, compreendê-las e compreender em que elas não
são suas. Como resultado, fará, assim, valiosas descobertas sobre si e o seu
modo de pensar.
B) A OBSERVAÇÃO DA NOSSA DISTRAÇÃO
A distração é um sinal evidente das insuficiências de nosso centro
intelectual. Começamos a ler, a falar, a ouvir e, de repente, nos distraímos.
Uma observação atenta e difícil (pois o processo é sutil) nos revela que são
duas as causas principais: a imaginação e o devaneio.
A imaginação e o devaneio estão entre os principais obstáculos ao ato de
observar e ver-se tal qual é. Ambos são exemplos do mau funcionamento do
centro intelectual e da sua preguiça. São o contrário de uma atividade mental
útil, isto é, ligada a um objetivo determinado. Para observar e conhecer a
imaginação e o devaneio, o homem deve começar a lutar contra eles,
submetendo-se a tarefas precisas, concretas e definidas.
A imaginação é uma faculdade destrutiva, que o homem nunca pode
controlar, que o arrasta para direções imprevisíveis, sem relação com suas
metas conscientes. Traz impressões de vida inúteis e sem finalidade, criadas
18

para a satisfação funcional pura e não para uma efetiva realização no domínio
da realidade.
O devaneio tem duas origens. Por um lado, a preguiça do centro
intelectual, que encontra, graças a ela, a sua satisfação funcional, evitando
para si todo o esforço de um trabalho definido. Por outro, a satisfação que ele
traz aos centros emocional e motor, oferecendo-lhes a imagem
aparentemente viva de experiências já vividas ou imaginadas, cujas
impressões reencontram ou repetem para reproduzir a sensação de vida -
agradável ou desagradável - que haviam conhecido nela. O devaneio não
passa de um sonho inútil, compreensível, na pior das hipóteses, quando
produz sensações agradáveis, mas mórbido e autodestrutivo, quando se
apóia em associações negativas e depressivas, das quais a mais habitual é a
pena de si.
C) A OBSERVAÇÃO DO NOSSO HÁBITO DE FALAR POR FALAR
A linguagem falada é um material intelectual que a sociedade fornece e
é registrado no centro motor. É uma ferramenta que esse centro põe a serviço
de todos os outros, para que se expressem e comuniquem por meio dela.
É necessário falar e expressar-se, a vida é um intercâmbio. No entanto,
ao lado dessa necessidade, falar torna-se um hábito. Torna-se um hábito
desde a primeira infância, quando ensinamos as crianças a falar por falar e
não para expressar.
Lutar contra o hábito de falar é um meio excelente de observação de si
de que permanentemente dispomos. Lutar contra o hábito de falar e contra
todo o discurso inútil nos obriga a ver o que se levanta em nós para utilizar a
linguagem e, por esse meio, podemos recolher muitas informações
importantes.

FUNCIONAMENTO EMOCIONAL
O estudo da emotividade, mesmo indiretamente, através dos nossos
hábitos emocionais, é mais difícil ainda do que o do centro intelectual, pois,
desde que tentamos observá-la, devemos reconhecer que não temos nenhum
controle sobre ela. Não podemos mudar nada em nossas emoções.
Embora as emoções estejam sempre presentes, só as vemos quando
ultrapassam a medida habitual. Damos a elas então o nome de “sentimento”.
Mas, no entanto, vivemos apenas com reações afetivas automáticas,
emoções que se sucedem a cada instante de nossa vida e fazem com que,
em cada circunstância, alguma coisa nos agrade ou nos desagrade, nos
atraia ou nos repila.
Não sabemos em nome de que se criam as nossas emoções e
repulsões, aceitações e recusas. Elas ocorrem automaticamente em nós.
Uma observação correta da nossa afetividade habitual põe em questão tudo o
19

que somos, obrigando-nos a ver o que representam os valores a que nos


apegamos e em nome dos quais vivemos. Altera até as próprias
possibilidades de evolução do homem.
Um domínio para travar a luta contra os hábitos emotivos é a não
expressão das emocões desagradáveis.
Em relação ao que o homem vê em si mesmo, mas também ao que
observa fora de si, ele tem um “sentimento” pessoal: isto, para mim, é
indiferente, ou me agrada, ou me desagrada. Mas, enquanto pode facilmente
não mostrar a sua aprovação ou indiferença, é quase impossível não
manifestar, de uma maneira qualquer, a sua desaprovação. Adquiri facilmente
o hábito e muitas vezes até isso é tido como um sinal de sinceridade.
A impressão negativa assim recebida se expressa sob a forma de
violência, oposição ou depressão: cólera, indiferença, inveja, crítica,
aborrecimento, medo, pena de si, etc. Todos esses modos de expressão
põem a expressão da negatividade pessoal no lugar da simples expressão
que resulta da pura constatação dos fatos tais quais são. Representam a
prova da impossibilidade de o homem os guardar para seus agravos pessoais
e da sua tendência a fazê-los recair sobre os que o cercam, a fim de não “se
sentir só”, de fazê-los compartilhar e tentar, assim, livrar-se deles. Há nisso, a
um só tempo, um indício de sua fraqueza, a marca da sua incapacidade de
aceitar as coisas e a si mesmo tais como são e um enorme esbanjamento de
energia em pura perda, que ele impõe à sua volta e faz entrar numa reação
em cadeia que multiplica essa negatividade.
Apoiando-se na não expressão das emoções negativas - pois é sua
expressão exterior que se trata de suprimir e não as próprias emoções - essa
luta não traz nenhuma modificação do equilíbrio interior. Representa apenas a
economia de importante quantidade de energia, que teria sido gasta
exteriormente para nada e, sendo assim poupada, torna-se utilizável para
outros fins. Ao mesmo tempo, essa luta permite a quem se observa descobrir
todo um lado do processo emocional em que vive.

OS ESTADOS DE PRESENÇA
Para um homem completamente evoluído, há quatro estados de
presença possíveis: os estados de sono, de vigília, de consciência de si e de
consciência objetiva. Mas o homem comum vive apenas em dois estados, os
mais baixos, com clarões do terceiro. Ele pode ter informações teóricas sobre
o quarto estado, mas, na verdade, os dois estados superiores lhe são
inacessíveis.
1) ESTADO DO SONO
20

É um estado passivo e puramente subjetivo, no qual o homem, quase


inteiramente cortado do mundo exterior, está mergulhado num mundo interior
de que não tem consciência. Está rodeado de sonhos. As suas funções
psíquicas trabalham sem direção, independente umas das outras. O homem
passa neste estado um terço de seu tempo, onde reconstitui as forças
necessárias que garantem a sua existência.
O que caracteriza o sono é a desconexão dos centros uns dos outros.
Os centros manifestam-se automaticamente e nos escapam quase por
completo. No máximo, podemos tirar deles informações fragmentárias sobre
nós mesmos. Em todo caso, é impossível para nós sevirmos deles para fins
úteis. No homem comum, porém, tais desconexões ficam, na maioria dos
casos, incompletas. O que geralmente ocorre é um estado intermediário, no
qual uma ou várias conexões se rompem, mas não todas.
O sono começa, em geral pela desconexão do intelecto, e é o que
normalmente se chama adormecer. O centro que se desconecta a seguir ou
ao mesmo tempo que a mente é o centro motor. Depois os outros centros se
desconectam. O centro instintivo é o último a se desconectar. Aliás, ele jamais
se desconecta sem um trabalho especial e somente em alguns dos seus
níveis, pois a sua desconexão total e definitiva acarreta a morte orgânica.
2) ESTADO DE VIGÍLIA
É um estado de consciência relativa em que se estabelece uma relação
mais ou menos coerente entre a mente e cada uma das outras funções. Já
temos certo poder sobre elas, o seu funcionamento pode ser vigiado, seus
resultados podem ser comparados, verificados, retificados com certa
aproximação e, embora ainda possam nos criar inúmeras ilusões, elas
podem, em certa medida, servir à nossa orientação.
Nesse estado o homem se considera ativo e passa dois terços de sua
vida. Surge por si mesmo quando o homem sai do sono, e é o estado em que
ele passa a parte atuante da vida, na qual trabalha, age, pensa e imagina.
Nesse estado, o homem dispõe de uma consciência “desperta” ou
“consciência lúcida” e atribui a si muitas qualidades novas. Mas, o menor
estudo imparcial mostra, de imediato que, nele, o homem não dispõe de
nenhuma lucidez, está, no máximo, num estado de consciência relativa.
Na verdade, a única diferença entre o sono e o estado de vigília comum
é a religação do mental, isto é, da parte mecânica, automaticamente reativa e
associativa da função intelectual. O estado de vigília é apenas um nível
superior de sono, em que ocorre a religação do mental, e cada um dos
centros se religa ao mental, que voltou a ser ativo. Mas os centros superiores
continuam desconectados e o sono do Eu continua.
No estado de vigília, a presença do homem é aparentemente ativa, em
todo caso, atuante. As funções têm uma incessante atividade, que torna
possível a vida. Essa atividade, contudo, não passa, na verdade, de uma
21

reação automática do mental em função das informações recebidas, do saber


registrado e dos hábitos adquiridos sob a influência do mundo que o cerca.

Essa vida é inteiramente reativa e associativa. Pode permanecer


puramente funcional ou se realizar sob o efeito dominante de um dos centros
(que, aliás, pode mudar), porém não necessita, de nenhum modo, da
participação conjunta deles. E o Eu verdadeiro permanece desconectado disso,
nada recebe, não participa de nada, permanece no sono, não vive, não cresce.
Assim, no estado de vigília, o homem vive, de fato, no sono. Não vê o
seu sono nem o seu esquecimento. Não os vê nem mesmo quando os fatos
da vida os mostram, porque nada sabe sobre o que poderia ser “ele próprio”.
Não se conhece e se contenta mais ou menos com o seu estado atual. Não
sabe que dorme e não vê que age de maneira completamente reativa, sob a
influência dos sonhos e das forças exteriores que construíram o seu mental.
As suas ações permanecem assim completamente reativas e as três
grandes faculdades mentais fundamentais (atenção, consciência e vontade),
que lhe poderiam dar um sentido à vida, só existem nela ainda no estado de
reflexo: uma consciência fragmentária (a de um centro ou dominada por um
único centro), variando conforme os momentos; uma atenção dispersa, móvel,
ou, ao contrário, fixada em algum aspecto “apaixonante”; uma vontade sempre
fraquejante, ou veleidades sem continuidade.
O homem possui poucas informações válidas sobre si próprio, e os
sonhos e imaginações sobre o que é ele mesmo e a vida as substituem. O
poder da imaginação o mantém num estado de verdadeira hipnose, em que as
idéias falaciosas que forja sobre si e o amor-próprio que ele põe em defendê-
las lhe tiram toda a chance de alguma vez se ver tal qual é.
A construção aberrante que são ele próprio e a sua vida e o mecanismo
automático das desculpas e dos amortecedores lhe fornecem de imediato,
sob a forma de compensações e explicações, o meio de não questionar nada
em relação a si próprio, mas somente em relação aos outros ou às
circunstâncias que não dependem dele.

Nesse estado em que se esquece continuamente de si, o homem não


sabe o que é. Deixa-se prender ao jogo de circunstâncias transitórias. Se lhe
convém, assim que se encontra nelas, identifica-se com elas e elas o
arrastam. Se o desagradam, se opõe a elas e fica preso a essa oposição.

Esquecimento de si, identificação, oposição às pessoas e


circunstâncias, imaginações falaciosas e fantásticas sobre si, defendidas por
um meticuloso amor- próprio, eis as características desse estado de vigília.
O homem não vê que, ao contrário do que crê em seu estado de vigília,
o seu interior não está realizado. Somente o seu suporte orgânico e a
personalidade adquirida com o desenvolvimento deste atingiram o pleno
22

crescimento. Para que o seu desenvolvimento prossiga, é necessário que o


homem desperte para as suas possibilidades de outra ordem: as do
desenvolvimento do seu ser interior.
3) ESTADO DE CONCIÊNCIA DE SI
Esse estado é desenvolvido graças ao despertar de si mesmo. Nele o
homem se vê tal qual é e se torna objetivo em relação a si mesmo. É o estado
da consciência subjetiva. Tal estado é o resultado de um “crescimento” - de
uma revelação progressiva - e é impossível torná-lo mais ou menos
permanente sem um longo trabalho e um treinamento especial, ligado ao
funcionamento do homem, do centro emocional superior, assim como ao
estabelecimento de relações corretas entre este centro, os centros comuns e
as funções que os manifestam.
Três qualidades lhe são próprias: a consciência permanente de si, a
atenção livre e a vontade independente. Do seu conjunto resulta uma presença
permanente de si mesmo, que confere a tal homem uma individualidade que
não possuía ate então e uma responsabilidade própria que não podia ter,
enquanto a sua individualidade não estava realizada.
No nosso estado de vigília, só podemos abordar tal estado de duas
maneiras. Em momentos de lampejos de consciência do que somos, que nos
é dado em momentos graves - quando de um perigo de vida ou a perda de
um ente querido, por exemplo - e que então nos impressionam
profundamente. Os outros são momentos de consciência interior, uma
consciência “moral” que nos é própria, que reencontramos intuitivamente
quando, sendo questionados pela vida, ela nos obriga a descer dentro de nós
mesmos para responder “em nossa alma e consciência” e não mais em nome
de uma moral aprendida e de idéias feitas. Tais momentos são a aproximação
de um estado de “consciência moral objetiva”, idêntica para todo homem que
tenha atingido o estado de consciência de si, no qual sente, de maneira
imediata e total, tudo que lhe é possível sentir.
Essa consciência moral é serenidade para o homem que realizou a
unidade interior e a ausência de contradição dentro de si mesmo. Ela é
sofrimento para o homem em quem persistem as contradições que faz
aparecer claramente e torna geradoras de “remorsos objetivos de
consciência”.
4) ESTADO DE CONCIÊNCIA OBJETIVA
Nesse estado o homem poderia entrar em contato com o mundo real
objetivo e assim poderia perceber as coisas como são. Esse estado só pode
resultar de uma transformação interior e de um longo trabalho sobre si. O
caminho para esse estado passa pelo desenvolvimento da consciência de si.
O quarto estado está ligado ao funcionamento do centro intelectual
superior e ao crescimento de um terceiro corpo - o corpo espiritual. Contém
um estado de presença universal, o conhecimento objetivo, um sentimento de
23

ser universal e faculdades de manifestação - um nível de consciência, de


atenção e de vontade criadora - inconcebível diretamente pelo homem.

FUNCIONAMENTO CORRENTE
DA MÁQUINA HUMANA
Se devemos nos estudar e conhecer a nós mesmos, devemos fazê-lo
como se estuda qualquer máquina complexa. É preciso conhecer as suas
peças, o modo como se engrenam, a energia que as anima e como essa
energia põe a máquina em movimento. É preciso também conhecer as
condições do seu trabalho correto e as causas do seu trabalho incorreto.

1) A INTELECTUALIDADE
O pensamento é de diversas espécies e qualidades, segundo o nível em
que o centro trabalha. Em todos os níveis, a função do intelecto é a afirmação
e a negação: sim e não. O intelecto recebe os dados, compara ao que
conhece, coordena, constata e prevê. No nível mais baixo, é o julgamento
crítico automático e a imaginação. Num nível mais elevado, é a confrontação
lógica e a previsão.
A) IDÉIA REATIVA E AUTOMÁTICA
As idéias que constituem o nosso modo intelectual comum são de
ordem puramente mecânica. Por seu surgimento automático diante de cada
impressão que atinge o intelecto, pelo seu fluxo incessante, suas associações
contínuas, suas comparações e respostas reativas sistemáticas, elas formam
em nós o que pode chamar de “aparelho formátorio” ou “mente”, com que
estamos habituados a responder a quase todas as situações da vida. Mesmo
o que chamamos de “reflexo”, na maioria das vezes, faz parte dele.
B) PENSAMENTOS AUTÔNOMOS
24

Para que o centro intelectual se torne capaz de um pensamento que não


seja a idéia puramente reativa e automática, é necessário, na verdade, que
funcione num outro nível: o de uma presença e de um eu estável, global,
efetivamente construído. Tornam-se então possíveis os pensamentos
autônomos, com uma elaboração, uma verdadeira reflexão e uma
prefiguração conforme a nossa individualidade de conjunto, a qual caracteriza
o real pensamento “subjetivo”.
C) PENSAMENTO OBJETIVO
Quanto a um terceiro nível de pensamento que se pressente possível e
que seria o real pensar “objetivo”, o homem não o conhece. Ele se situa num
nível mais elevado ainda e faz parte do centro intelectual superior.

2) A AFETIVIDADE
O centro emocional “sente”; toda vez que lhe chega uma impressão. Ele
gosta ou não e sente uma aprovação ou desaprovação pessoal que se
manifesta sob a forma de uma emoção. Por isso, toda vez que alguma coisa
atinge a pessoa e o seu funcionamento afetivo, esse o aproxima ou o afasta,
automaticamente, ao mesmo tempo em que se expressa uma emoção
positiva ou negativa. Ela sente essa coisa como desejável ou indesejável.
Em todos os níveis, a função do sentimento é a apreciação e a relação
pessoal; em todos os níveis, o centro afetivo sente, aprecia e consente mais
ou menos. Os sentimentos verdadeiros não são negativos, não tem
negatividade. O centro emocional superior não tem negatividade. No plano
comum, ao contrário, ao nível das emoções, o centro afetivo consente ou
repele; e as emoções com que vivemos podem ser positivas, indiferentes ou
negativas, de acordo com o impacto sobre a emocionalidade, isto é, o amor-
próprio específico que anima cada um dos nossos personagens.
A) EMOÇÃO REATIVA E AUTOMÁTICA
O trabalho do centro afetivo depende inteiramente do nível de presença.
No estado habitual, está presente no homem apenas um dos seus
personagens: por isso trata-se apenas de emoções (afeto parcial inerente a
um único aspecto de si) e não de sentimento real (afeto global inerente a
presença global de um eu realmente constituído). No seu estado normal o
homem não tem sentimentos, só tem emoções automáticas, reativas,
dependentes do personagem presente. Este varia de acordo com as
circunstâncias e os seus “sentimentos” mudam com ele. O homem, porém,
não vê essas mudanças e, em sua emotividade, mais do que em qualquer
outra parte, crê-se dotado de uma permanência e continuidade que não tem.
B) SENTIMENTO VERDADEIRO
25

O centro afetivo só se torna capaz de um sentimento verdadeiro quando


se tenha elaborado uma presença estável, relativamente independente das
circunstâncias ambientais, construída em torno de um sentimento de si que o
anime e dê à sua vida, a cada instante, um sentimento em conformidade com
o que ela é. Pode-se dizer, esquematicamente, que as emoções fazem parte
da personalidade, e os sentimentos do verdadeiro ser.
O sentimento de si, que acompanha o despertar de si mesmo, é o primeiro
sentimento real de que o homem é capaz. Tal evolução do centro afetivo
alcança, por um progressivo refinamento, o nível do centro emocional superior
até estabelecer a ligação e, depois, a fusão com ele. Só nesse nível se tornam
possíveis ao homem os grandes sentimentos de Fé, Esperança e Amor.

3) A MOTRICIDADE
Temos uma percepção da nossa forma e do grau da sua atividade pela
sensação. A sensação física de si nos permite, a todo o momento, saber o
que são a nossa atitude e a nossa atividade, e exercer, eventualmente,
controle sobre elas. Daí a sua importância na busca do conhecimento de si.

CARACTERÍSTICAS DO CENTRO MOTOR


A) PASSIVIDADE
Sozinho o centro motor não tem iniciativa e permanece inerte, mas
obedece imediatamente ao que se apresenta para pedir-lhe que o sirva.
B) TEM EXISTÊNCIA PRÓPRIA INDEPENDENTE
Não depende de nenhum outro centro em particular. Como os outros
centros ele possui o seu próprio pensar (a sua inteligência do movimento), a
sua própria emotividade, e seria capaz de uma atividade própria. Em
conseqüência, porém, da sua passividade muito grande, ele só a exerce
excepcionalmente.
C) CAPACIDADE DE IMITAÇÃO
O centro motor imita o que vê sem raciocinar. É capaz de ajustar-se por
completo a um modelo e de repetir com exatidão o seu comportamento, sem
nenhuma modificação. Tal imitação só envolve o centro motor, mesmo em si
tratando de comportamentos aparentemente complexos. Se, no entanto, a
complexidade ultrapassar certo nível, os outros centros são implicados nele,
por sua vez, pelo menos através do seu nível motor correspondente.
D) TODOS OS SEUS COMPORTAMENTOS DEVEM SER APRENDIDOS

As funções motoras do homem, assim como as dos animais devem ser


aprendidas, e o centro motor é, geralmente, dotado de uma memória notável.
Isto permite distinguir os funcionamentos motores dos funcionamentos
instintivos, que são inatos.
26

O funcionamento normal do centro motor (como o do centro instintivo e


ao contrário do funcionamento dos centros emocional e intelectual, cujo nível
depende do grau de presença) é relativamente independente. O centro motor
é capaz de assegurar por si só, na medida das suas possibilidades, o trabalho
que lhe é pedido, sem outra intervenção direta da parte que o solicita, a não
ser a sua simples educação inicial, e sem outro controle a não ser uma
“supervisão” (vigilância e adaptação) do trabalho realizado e do estudo obtido.
E o centro motor trabalha normalmente assim, tanto na vida corrente
como nos níveis de vida superiores. Contudo, na vida de cada dia, em
conseqüência do mau funcionamento dos centros, são freqüentes as
anomalias. Relações anormais, substituição de comandos e intervenções
abusivas, sem contar a preguiça natural do centro motor, vêm continuamente
desorganizar o seu trabalho, substituí-lo e desvirtuá-lo.
4) A INSTITIVIDADE
Como tal função se efetua à sombra de nós e só emerge na nossa
consciência nos momentos de excesso, ocorrem muitas confusões em
relação a ela, e costumeiramente chamam de instintivos muitos fatos que não
o são. Só se pode aplicar esse termo às funções internas do organismo: a
respiração, a circulação, a digestão, a percepção neurossensorial, a função
de movimento e todas as funções internas, tais como produção de calor, a
assimilação, a estimulação hormonal, o crescimento e manutenção das
formas, com todas as suas regulações internas, inclusive certos reflexos.
As nossas funções instintivas formam um verdadeiro mundo interior.
Sua característica, que permite reconhecê-las, é a de que são inatas. Muitas
outras ações se efetuam igualmente à sombra de nós, sem que tenhamos
consciência delas, e não são inatas, mas adquiridas: são todos os nossos
automatismos. Eles podem pertencer a todos os centros: assim, há
pensamentos automáticos (a nossa ideação), sentimentos automáticos (as
nossas emoções).

FORÇAS CRIADORAS FUNDAMENTAIS DO UNIVERSO


A consciência e as funções estão em estreita relação com os estados de
presença. As nossas diversas funções podem se manifestar a todo o
momento, e a qualidade das suas manifestações, assim como o das suas
relações recíprocas, muda de acordo com os estados ou níveis de presença
nos quais se manifestam. Bem nos extremos, as funções podem existir sem a
presença, e a presença sem as funções.
As funções são a expressão dos centros da vida, a sua manifestação. O
seu conjunto dá um caráter próprio a cada natureza humana. As funções nos
são mais facilmente acessíveis do que os centros, e o estudo de si só pode
começar por elas, que são a nossa maneira de aparecer na vida, e em
conseqüência podemos observá-las.
27

Os centros são muito mais “secretos”, situam-se no próprio fundamento


do ser, pertencem à nossa essência, e seus traços particulares caracterizam
a nossa individualidade propriamente dita. No entanto, nada é mais difícil de
ver. Na verdade, eles pertencem ao domínio do inconsciente.
No homem comum, os centros instintivo e motor estão estreitamente
unidos, e além disso, unidos no nível orgânico do centro sexual, com o qual
formam um todo equilibrado. Assim, uma aproximação suficiente torna possível,
sem desnaturar nada no homem, considerá-lo como um ser que vive segundo
três modalidades: orgânica, afetiva e intelectual - dotado de três centros de
gravidade ou cérebros que funcionam em três níveis diferentes dele mesmo.
É essa estrutura tricerebral que abre para o homem a possibilidade de
uma relação com as três forças criadoras fundamentais do universo e, por
conseguinte, a possibilidade de uma evolução autônoma.
A) PRIMEIRA FORÇA - AFIRMATIVA OU POSITIVA OU ATIVA
O cérebro que serve de suporte principal às transformações (recepção,
concentração e realização) desta primeira força é o de nível intelectual e está
situado na cabeça.
B) SEGUNDA FORÇA - NEGATIVA OU RECEPTIVA OU PASSIVA
O cérebro que serve de suporte principal às transformações desta
segunda força fundamental é o de nível orgânico e está situado na coluna
vertebral, ou, mais exatamente, no eixo cérebro-espinhal.
C) TERCEIRA FORÇA - CONCILIADORA OU NEUTRALIZANTE OU DE RELAÇÃO
O cérebro que serve de suporte principal às transformações desta
terceira força fundamental está dividido num certo número de partes,
estreitamente ligadas entre si, de modo que funcionam como um todo. As
mais importantes formam o plexo solar e o seu conjunto se aproxima do que
conhecemos com o nome de sistema neurovegetativo ou neuro-hormonal, do
qual depende o estado afetivo ou emocional do homem.

ESPÉCIES DE ALIMENTO
Os centros utilizam uma energia que é trazida por diversas formas de
“alimento” ou de elementos que penetram o organismo. Tais alimentos são de
três espécies: os alimentos que conhecemos bem, atmosfera que respiramos e
as impressões que recebemos (tudo que nos aconteceu, o que vemos, ouvimos,
fazemos, aprendemos, todos os acontecimentos interiores e exteriores).
O estudo das condições nas quais os diferentes alimentos podem ser
recebidos e assimilados é, para todo homem que deseja trabalhar na sua
própria transformação, uma necessidade “vital”. Ela é uma das condições da
sua evolução.
28

Assim, sabemos que uma alimentação pesada e grosseira não favorece a


qualidade do nosso trabalho nem a agudeza das nossas percepções psíquicas.
Sabemos também que o ambiente em que vivemos e a finura, até mesmo o
requinte do meio, são importantes fatores de desenvolvimento em nós mesmos
das qualidades de compreensão correspondentes. Finalmente, as relações
humanas que estabelecemos e as influências que aceitamos ou rejeitamos
ocupam importante lugar nas possibilidades da nossa evolução interior.
Todos os acontecimentos interiores ou exteriores deixam impressões
nos centros. Tais impressões gravadas nos diferentes centros são postas em
relação, no nível da mente, pelas associações. Tais associações ocorrem em
duas circunstâncias principais: as impressões recebidas simultaneamente
num ou vários centros se inscrevem ao mesmo tempo nos centros
correspondentes; as impressões gravadas nesse mesmo centro ou em
centros diferentes têm entre si certa semelhança.
As impressões que apresentam certa semelhança interior também se
evocam mutuamente e deixam essa marca mais profunda. Esta relação se
estabelece automaticamente quando impressões se repetem num mesmo
centro. Ela está na base dos condicionamentos e hábitos que mantém a
mecanicidade comum.
Num estado de identificação, em que está absorvido pelo funcionamento
exterior, o homem não nota sequer os acontecimentos que poderiam
impressionar os seus centros ou, se os nota, os vestígios deles, fixados à sua
revelia, desaparecem antes de terem sido apreciados ou associados. Eles
não deixam, então, nenhum traço em sua memória.

OS ASPECTOS POSITIVOS E NEGATIVOS DOS CENTROS


Os quatro centros inferiores da máquina humana podem ser receptivos,
pelo lado positivo ou negativo, a qualquer impressão que chegue a eles.
Esses dois aspectos - o positivo e o negativo - de qualquer coisa são
necessários a uma justa orientação dentro da vida.
1) FUNCIONAMENTO DO CENTRO INTELECTUAL
No nível do centro intelectual que constata, analisa, compara, associa, e
coordena, a atividade da mente resulta num juízo afirmativo ou negativo: sim
ou não. Na maioria das vezes, um predomina e essa constatação serve de
base aos nossos atos. Quando, no trabalho da mente, o positivo e o negativo
se equilibram, ficamos na indecisão.

Pensamos que escolhemos e decidimos, no entanto, não há nisso mais que


uma atestação mecânica em função dos dados exteriores atuais ou registrados.
Não existe nenhuma livre escolha nem qualquer decisão que nos sejam próprias e
tomadas em função de uma instância individual superior, a de um Eu autônomo e
permanente, com uma compreensão e objetivos próprios ao longo da vida. No
29

máximo, encontram-se pequenos propósitos transitórios dependentes do


personagem do momento e das associações que a mente disponha nos centros.
2) FUNCIONAMENTO DO CENTRO INSTINTIVO
No nível do centro instintivo, as percepções positivas, boas ou más, são
todas necessárias para manter, orientar e preservar a nossa vida. Quando
não foram alteradas, as percepções positivas, boas ou agradáveis
(percepções sensoriais e percepções corporais de gosto, cheiros, tato, ar
puro, qualidades dos alimentos, temperatura) constituem sinais de condições
saudáveis à existência. As percepções contrárias denotam condições nocivas.
3) FUNCIONAMENTO DO CENTRO MOTOR
No nível do centro motor, a divisão em duas partes, positiva e negativa,
é muito simples: esse centro pode ser ativo ou inativo, pode haver nele
movimento ou relaxamento; ele pode ser indiferente: há repouso.
O centro motor é um centro de tendência passiva: age pouco por si
mesmo e contenta-se em obedecer àquilo que lhe peça que aja, seja qual for
a procedência do pedido. Essa disposição naturalmente passiva faz com que
ele seja, mais ainda do que os outros centros, inclinado à preguiça: o homem
deve muitas vezes “forçar-se” a agir. No homem comum, cujos centros e
personagens funcionam sem ligação, as solicitações podem vir a ele de
diversas origens, ora concordantes, ora contraditórias, e as suas ações se
tornam então desordenadas, a menos que, sendo a desordem excessiva, o
cento motor simplesmente se refugia na sua preguiça natural.
O centro motor é constantemente solicitado pelo personagem do
momento e sempre assume com ele a atitude correspondente. Cada um de
nós tem, desse modo, um repertório inteiro de atitudes, sempre as mesmas,
significativas do personagem que está presente e cuja observação permite
descobrir esse personagem, se necessário.
E, em conseqüência das associações automáticas recíprocas, a
reprodução artificial de determinada atitude tende a fazer surgir o personagem
correspondente. Essa “sinalização” automática de duplo sentido entre estados
interiores e aspectos exteriores é sempre utilizada em todo comportamento
social, sem que sequer tenhamos consciência disso: ela faz parte do homem-
máquina e dos seus condicionamentos.
O lado negativo do centro motor, a sua verdadeira inatividade é o
relaxamento ou desconsideração. Esta não se obtém naturalmente e requer
uma renúncia ativa e voluntária dos outros centros a qualquer solicitação do
centro motor. Há diversos graus nesse relaxamento conforme a desconexão
seja mais ou menos completa, e podem se distinguir nele três planos
principais, de maneira imediatamente útil, embora, na verdade, eles sejam
mais numerosos.
30

Somos informados de todos esses estados do nosso centro motor pela


sensação. De todas as impressões interiores que temos de nós mesmos, a
sensação física é, talvez, aquela que nos é mais imediatamente acessível, a
mais “concreta” e aquela a que menos se presta às imaginações enganosas.
O seu controle é fácil: a sensação que temos de nós mesmos existe ou não
existe segundo estejamos voltados para nós mesmos ou dirigidos para o
exterior, e, por essa razão, ela pode ser considerada um dos melhores testes
da realidade dos exercícios de tomada de consciência de si.
Vivemos a nossa vida diária, sem o saber, com uma sensação
constante que sempre nos informa das nossas posições, movimentos e
deslocamentos, mas ela só aflora à consciência quando sobrevém um
imprevisto e a perturba. Ao mesmo tempo em que nos esquecemos
continuamente de nós mesmos, perdemos também a “sensação de si”, cuja
reatualização é parte de toda tentativa de “despertar a si mesmo”.
4) FUNCIONAMENTO DO CENTRO AFETIVO
No nível do centro afetivo, a divisão em duas partes, positiva ou
negativa, talvez pareça simples à primeira vista: na verdade é muito mais
complexa. Pode parecer, de início, que temos todo um conjunto de
“sentimentos positivos” - alegria, simpatia, afeição - e sentimentos negativos -
medo, inveja, tédio, irritação.
De fato, só há emoções ligadas á expressão e conservação de cada um
dos seus personagens, que mudam sempre, e sem relação com a sua
verdadeira individualidade. No estado de vigília comum, todo sentimento real
está desligado da vida que passa e, assim como o Eu superior permanece em
estado de sono.

Conforme a impressão dos acontecimentos interiores e exteriores seja


apreciada como favorável ou desfavorável, desejável ou indesejável em
relação á um personagem presente, uma emoção agradável ou desagradável
surge. Mas se, no momento seguinte, o personagem muda, a mesma
impressão tem toda a possibilidade de ser apreciada de modo diferente.
Assim, no homem comum, o “humor” é sempre cambiante e, conforme o
personagem do momento, os mesmos impulsos emocionais convertem-se de
positivos em negativos ou vice-versa.
Todas as nossas emoções agradáveis, tais como a alegria, a simpatia, a
confiança, pode a cada instante degenerar em tristeza, repulsa, inveja,
dúvida, etc., e a expressão dessas emoções desagradáveis, que
habitualmente o homem não pode conter, só vem reforçá-las sem nenhuma
necessidade tornar a sua negatividade contagiosa à sua volta.
5) FUNCIONAMENTO DO CENTRO SEXUAL
Normalmente, não há de igual modo negatividade no centro sexual e
isso o torna análogo aos dois centros superiores com os quais as suas partes
31

superiores trabalham. As impressões sexuais propriamente ditas, assim como


os sentimentos verdadeiros, são positivas (mais ou menos positivas ou são
indiferentes). Isto é verdadeiro para o homem que desenvolveu os níveis
superiores e possui um Eu verdadeiro.No centro sexual, ou há de fato
atração, com impressão agradável, ou então não há nada, só indiferença.
No nível comum, pode parecer que é diferente; mas a observação
mostra que isso se deve às interferências - que são incessantes - dos outros
centros no nível do centro sexual. A negatividade atribuída às impressões
sexuais provém, na verdade, inteiramente das impressões negativas
pertencentes aos outros centros, mas transferidas para o centro sexual.

ESTRUTURA TRÍPLICE DOS CENTROS


Cada centro compreende um aspecto seletivo (ou inteligente), um aspecto
afetivo (ou motivador) e um aspecto mecânico (ou executante). Cada uma
dessas partes ou aspectos dos centros tem as suas próprias características, o
seu papel próprio, e funciona com um tipo de atenção que lhe é peculiar.
O aspecto mecânico de cada um dos centros é automático e reflexo,
reage por oposição ou aceitação com uma atenção reativa, automatizada, que
muda a cada instante de objeto conforme as circunstâncias.
O aspecto afetivo dos centros é pessoal e matizado. Funciona por
atração ou repulsa à atividade atual do centro (agir, amar, saber) com uma
atenção cativa, até mesmo bloqueada, que se mantém por si mesmo, quer
sob o efeito de uma identificação, de um interesse, quer sob a ação de uma
repulsa que parece então invencível.
O aspecto seletivo dos centros é “inteligente”; intervém por comparação
e escolha, dependendo de um saber que lhe permita certa provisão lógica.
Assim, ele elimina, coordena, eventualmente inova, e esse trabalho necessita
de uma atenção ativa, que não se mantém sem um determinado esforço.
Como distinguir, por exemplo, o que provém da parte emocional do
centro intelectual (como a satisfação de aprender) e o que vem da parte
intelectual do centro emocional (a apreciação de um saber)?
Para isso é necessária uma visão clara de si, na qual o primeiro passo é
encontrar em si qual é, no momento, a função diretora: eu estou...
(aprendendo ou pensando, amando ou apreciando, fazendo ou agindo): ela é
indicativa do centro em que estou colocado.
Em seguida, tentar ver o que caracteriza esse funcionamento: um modo
intelectual, emocional ou instintivo-motor; nisso, entre os diversos critérios
possíveis, o mais acessível é, sem dúvida, colocar-se do ponto de vista da
atenção.
• Sem atenção ou com uma atenção dispersa, vagueante, estamos na parte
mecânica do centro.
32

• Com uma atenção cativa, retida pelo que fazemos (o ato, a emoção, ou a
reflexão), estamos na parte emocional.
• Com uma atenção controlada e sustentada por uma escolha persistente,
estamos na parte intelectual.
Outra diferença fundamental entre os centros é a grande diferença
existente entre as suas velocidades, isto é, a velocidade respectiva das suas
funções. O centro mais lento é o intelectual. Em seguida, e já muito mais
rápido, vem o centro motor. O centro instintivo, que trabalha em estreita
relação com o centro motor, é, no entanto, mais rápido ainda. O mais rápido
de todos é o cento emocional, cujas impressões, quando ele trabalha
normalmente, nos parecem instantâneas, mas que, no estado habitual do
homem, não trabalha, na maioria das vezes, a não ser a velocidades
inferiores as dos centros instintivos e motor.

O MAU TRABALHO DOS CENTROS


O mau trabalho dos centros assume três aspectos que, alias, interferem
e repercutem uns nos outros. Uma diminuição, no homem comum, da
velocidade dos centros inferiores, sobretudo do centro emocional, que
trabalham abaixo da sua velocidade normal.
• As nossas funções empenham continuamente um excesso de gasto para
cada trabalho determinado que têm a realizar, e disso resulta um
desperdício importante de energia.
• Substituições contínuas dos centros uns pelos outros, resultando que
alguns não fazem o trabalho que incumbe a eles e esse trabalho é
realizado por outros.
• Substituições também nos níveis das funções: alguns centros (em
conseqüência da sua diminuição de velocidade) põem-se a utilizar a
energia de outros centros, que não é adequada a eles, com a qual realizam
mal a função que lhes cabia ou põem-se a executar um trabalho inútil, até
mesmo nocivo.
Cada centro deve fazer o seu próprio trabalho, aquele para o qual é
normalmente destinado e está qualificado para realizar melhor. Quando um
centro toma o lugar do outro, disso resultam interferências, uma inadaptação
e muitas vezes as conseqüências mais deploráveis: trapalhada, erros,
confusão, ato falho, acidente, destruição; o resultado final é imprevisível. No
homem não equilibrado, a substituição de um ou vários centros uns pelos
outros é quase contínua e provoca justamente o que se chama ”desequilíbrio”
ou “neurose”. No entanto, cada uns dos centros, quando se substitui assim,
leva, no entanto, para um domínio que não é o seu, as características
funcionais que lhes são próprias e que permitem reconhecê-lo.
A) O MAU TRABALHO DO CENTRO EMOCIONAL
33

O centro emocional, quando trabalha por outro centro, leva com ele a
sua sensibilidade, a sua rapidez, a sua intensidade, e, sobretudo, um
particularismo egocêntrico que o traí mais que qualquer outro indício. Quando
ele trabalha no lugar do centro intelectual, leva a um nervosismo, uma febre,
uma presa inútil, onde seriam precisos, pelo contrário, um juízo e uma
deliberação serena. No lugar do centro motor, ele leva a impulsividade e a
veemência, em vez do movimento correto. No lugar do centro instintivo, leva o
descomedimento e o excesso tanto para mais como para menos.
B) O MAU TRABALHO DO CENTRO INTELECTUAL
O centro intelectual, quando trabalha por outro centro, traz a discussão,
a tergiversação e a frieza. Traz, finalmente, certa rigidez. Ele é, por um lado, o
mais lento de todos os centros; por outro, não é suficientemente sutil para
discernir as particularidades e pontos delicados de uma situação e ainda
menos as das suas progressivas modificações. A sua intervenção resulta
assim em reações inadaptadas ou falsas, atitudes rígidas, demasiado gerais e
muitas vezes fixadas de uma vez por todas. É, na verdade, incapaz de
compreender os matizes e sutilezas da maioria dos acontecimentos:
situações que parecem completamente diferentes ao centro motor ou
emocional são idênticas para ele, e suas decisões não são as que esses
outros centros teriam tomado.
O pensamento não pode compreender os matizes do sentimento e, com
ele, um cálculo frio substitui a emoção vivida. Assim, quando um homem se
contenta em raciocinar sobre as emoções do outro, mesmo se tenta imaginá-
las, ele próprio não sente nada e o que o outro sente continua sendo letra
morta para ele. O mesmo se passa com o domínio instintivo: o homem
saciado não compreende o homem faminto, mas para este último a fome é
muito real, e os argumentos ou decisões do outro, isto é, do pensamento,
parecem ligeiramente incompreensíveis. O centro intelectual não pode
também substituir o centro motor nem controlar os movimentos; para ele a
sensação não existe: é coisa morta que ele substitui por representações.
C) O MAU TRABALHO DO CENTRO MOTOR
O centro motor, quando tenta se encarregar do trabalho de outro centro,
traz a sua regularidade, a sua potência, a sua submissão, a sua faculdade de
imitação, mas traz também a sua preguiça, a sua inércia e a sua tendência ao
hábito e automatismo.
Com freqüência ele faz o trabalho do centro intelectual ou, mais vezes
ainda, continua, por inércia, o trabalho que este havia começado. Com efeito,
durante o trabalho que empreendeu, o centro intelectual se deixa muitas
vezes distrair por alguma coisa que capta a sua atenção; algumas vezes por
outro trabalho útil, a maioria das vezes pelo devaneio ou a imaginação. O
centro motor empreende o trabalho no seu lugar ou continua sozinho o
trabalho que havia empreendido com ele. Isso produz, por exemplo, a leitura
34

ou a audição mecânica, em que se pode ler as palavras ou ouvir frases sem


compreender o seu sentido; o homem fica inconsciente disso e nem sequer
se lembra.
As tentativas de afetividade do centro motor são talvez menos evidente;
desempenham, entretanto, um papel importante. São elas, por exemplo, que
introduzem a mecanicidade e o hábito nas relações humanas, com todas as
suas conseqüências.
D) O MAU TRABALHO DO CENTRO SEXUAL
O centro sexual funciona com a energia mais fina que o organismo
humano elabora; tem a maior finura, intensidade e rapidez. Nas condições
normais, estabelece relações harmoniosas com todos os outros centros e os
faz contribuir para a sua atividade criadora, a mais elevada atividade
normalmente atribuída a qualquer individualidade constituída no nível ou nos
níveis em que vive. Reflete, então, em conseqüência disso, todas as suas
qualidades e deficiências.
Mas, nas condições habituais do homem, o que ocorre é totalmente
diferente por causa do mau trabalho dos centros e, sobretudo, pelo fato de a
maioria deles - principalmente o centro afetivo - só trabalha na sua parte
mecânica a uma velocidade e com uma qualidade muito inferiores ao seu
trabalho normal. Salvo em momentos excepcionais em que consegue às
vezes restabelecer, temporariamente, um ritmo e uma relação quase normais,
o centro sexual não funciona mais de maneira autônoma; ele consegue, no
máximo, estabelecer ligação com um ou outro centro e se exprime então
através da função deste.
Na maioria das vezes, fica inteiramente passivo, e os outros centros é
que se servem da sua energia em proveito próprio. Ele comunica então, ao
funcionamento deles, uma intensidade e excessividade inteiramente
inabituais, coloridas da polaridade própria do indivíduo; e a impressão da vida
intensa que resulta disso é muitas vezes buscada sob a forma de “desvios
sexuais”, como o erotismo, o romantismo, o sadomasoquismo, e todos os
seus derivados menores.
O centro sexual funciona, em geral, com o seu nível inferior, mecânico,
em estreita ligação com os três níveis dos centros instintivo e motor, e a sua
reunião forma um conjunto (no qual ele é o elemento neutralizante) bastante
equilibrado para garantir a vida corrente; por vezes, a ele se junta o nível
inferior - o emotivo - do centro afetivo. Em suma, o mau funcionamento e as
interferências habituais dos centros representam tal desperdício de energia e
tal perda de qualidade, na maioria dos homens, que geralmente é preciso
todo um trabalho preliminar de regularização, antes que se possa iniciar um
trabalho real sobre si.
Economizar energia do nosso organismo, equilibrar e regular o trabalho
dos centros cujas funções constituem a nossa vida é a primeira etapa para o
35

restabelecimento de um ritmo de trabalho correto e de um contato com os


centros. O eixo do desenvolvimento do ser humano é constituído de um
desenvolvimento de ordem afetiva, uma evolução do sentimento de si: o seu
despertar, o seu desenvolvimento e a sua superação.

DESPERTAR DE SI MESMO
CAMINHO DE COMPREENSÃO
Sem uma quantidade suficiente de informações e saber adquirido, e
“não próprio dele” um homem não pode empreender um trabalho real sobre
si, num caminho de compreensão. Do mesmo modo, sem um
desenvolvimento suficiente da essência, não é possível um trabalho real
sobre si.
O drama comum do homem é que a personalidade tomou nele o lugar
do ser. Ela forma uma carapaça que isola a essência e impede que algo ainda
chegue a ela. É a personalidade que recebe todas as solicitações, todas as
impressões, todos os choques da vida; ela responde ao seu modo e dirige
tudo, segundo as suas próprias regras, para o seu proveito. Responde em
função da sua estrutura, de um modo reflexo, superficial, imediato: a
personalidade reage. Ela vive e se nutre dessas reações, cada uma das quais
reforça a sua estrutura, confirma os seus condicionamentos, e esse conjunto
é mantido por uma aparelhagem emocional de alta sensibilidade: o seu amor-
próprio.
O ser não pode reagir. Quando uma impressão chega a ele, o ser a
confronta de imediato com a experiência já vivida, “compreende-a” e, segundo
essa compreensão, responde. O ser vive e se nutre desse processo de
compreensão e de resposta, durante o qual assimila o conteúdo da nova
experiência: desse modo, a essência cresce. Mas o processo dessa resposta
é muito mais lento do que a reação da personalidade. No estado habitual do
homem, desde que uma impressão é recebida, a personalidade reage
imediatamente e se apodera dela. Nada tem tempo de chegar até a essência,
e esta é, de certa forma, roubada, interceptada. Cada vez, pelo menos que
seja, a personalidade cresce, e a essência definha. Finalmente, a
personalidade forma uma verdadeira gangue que ocupa todo o espaço, no
centro do qual a essência dorme e se atrofia.
Dar um lugar à consciência moral interior, ter essa necessidade de
sinceridade consigo mesmo, é a primeira das qualidades necessárias a quem
quer empreender um trabalho de conhecimento de si. Há, com efeito, em todo o
homem, um lado seu mais ou menos enterrado, mais ou menos adormecido,
que se interessa pela compreensão dele próprio, da sua vida e, de maneira mais
ampla, da vida em geral. É um centro de interesse que faz parte da
personalidade, não do ser; é um interesse por si, voltado para a compreensão
36

de si. É um interesse da personalidade por essa exigência latente do ser, mas


continua sendo um interesse como os outros. Tal interesse por ele próprio, que
pertence à pessoa, é inteiramente distinto da consciência de si, que se
desenvolve num homem desperto e faz parte do ser. Contudo, o interesse por si,
conduzido adequadamente, pode levar á consciência de si.
Esse interesse se desenvolve durante o crescimento, quando a
educação não é aberrante demais. Ele se constrói na personalidade, com
partes dela - emocionais ou intelectuais - sensíveis às necessidades da
essência e também a certas influencias exteriores que convidam o homem a
“compreender”. Esse interesse não é ativo por si som apenas reage às
influências que chegam a ele. Essas influências são criadas fora da vida por
homens conscientes, para fins definidos.
Ao mesmo tempo em que um caminho correto visa libertar o homem da
prisão da sua personalidade, leva-o a libertar-se também das leis que reinam
na vida corrente. Tudo que faz parte da personalidade é, na realidade, regido
pelas mesmas leis que regem a vida comum: as da quantidade, do acaso e
do acidente. Não há “destino” nesse domínio; há apenas circunstâncias
fortuitas e encontros casuais. Para o próprio homem, a lei do acidente
domina a vida corrente e a torna, na maior parte, imprevisível. Essas leis não
são todas obrigatórias para o homem; ele pode se libertar de grande número
delas, se chegar a libertar-se da personalidade.
A personalidade encontra seu pasto na imaginação e na mentira.
Quando a mentira em que vive o homem tiver diminuído e a imaginação
enfraquecida, a personalidade não tardará a declinar e a deixar de exercer o
seu domínio. O homem pode então passar ao controle do seu “destino”.
“Destino” está ligado à essência e ao desenvolvimento desta. Em cada
homem, a parte relativa das diversas tendências possíveis, a sensibilidade
particular a cada uma das espécies de influências e o modo de evolução
próprio de cada tendência que disso resulta constituem o seu “destino”, tanto
o seu destino individual como o seu destino coletivo, ligado ao do conjunto a
que pertence. O destino do homem não se cumpre geralmente, porque o seu
ser não se desenvolve. A personalidade tomou o seu lugar e submete o
homem à lei do acidente.

OBSTÁCULOS AO DESPERTAR
1) PRIMEIRO OBSTÁCULO - IGNORÂNCIA
A vida do homem comum transcorre no sono de seu Eu verdadeiro e o
homem não vê esse sono. O homem, tal qual é em geral, está praticamente
na impossibilidade de ver o seu estado real. Arrastado pela vida e pelas suas
incessantes exigências, a que ele se obriga a atender, recusa-se a ver que é
37

mecânico e que está adormecido. Não lhe sobra tempo para dar à sua
exigência interior nem ao seu desejo de ser.
2) SEGUNDO OBSTÁCULO - ILUSÃO
Um obstáculo maior aprisiona o homem nessa situação: a convicção,
solidamente enraizada nele, de que possui efetivamente, tal qual é, uma
individualidade autêntica, com as qualidades fundamentais (como presença
permanente e a liberdade ou livre escolha) que estão ligadas a ela e as
faculdades que dela resultam: um estado de consciência, a capacidade de
atenção e a possibilidade de querer ou fazer.
O que dá ao homem a ilusão de unidade ou de integridade é, por um lado,
a sensação que tem do seu corpo físico, de forma aparentemente constante;
por outro, o seu nome, pelo qual o “conhecem” e que, em geral, não muda,
apesar da sucessão de personagens diferentes, além disso, certo numero de
mecanismos e hábitos, implantados nele pela educação ou adquiridos por
imitação e, finalmente, o sistema de ”amortecedores”, que neutralizam nele
toda contradição. Na realidade, salvo essa aparência exterior, não há nada
permanente nele; tudo muda continuamente; não há um centro único de
comando nem Eu permanente, e o personagem que representa o homem na
vida não passa de uma construção artificial.
Mas, de um modo geral, o homem se sente bem tal qual é. Pensa que
suas insuficiências e o seu mal-estar provêm apenas de imperfeições
exteriores, e as mudanças a serem feitas, segundo ele, se referem somente a
modificações de equilíbrio, eliminação de certos defeitos ou reforço de certas
qualidades.
3) TERCEIRO OBSTÁCULO - ESQUECIMENTO DE SI
O homem vive num esquecimento cada vez mais profundo do seu ser,
do seu verdadeiro Eu. O seu interesse muda e se desloca continuamente;
esquece-se de como havia pensado e falado. E esses fenômenos ocorrem,
com especial freqüência, com relação a tudo que se refere a ele próprio e,
mais especificamente, a toda tentativa de trabalho sobre si.
Não tendo nenhuma base fixa em si mesmo, as suas teorias, opiniões,
comportamentos, mudam sem cessar e são desprovidos de qualquer
estabilidade e precisão. É somente uma estabilidade artificial, que ele adquiri
com ajuda de associações educadas nele, de hábitos instalados e
condicionamentos que dependem de concepções mentais, estas também
criadas artificialmente pelo meio ambiente, tais como a “honra”, a
“honestidade”, o “dever”, a “lei”, sem nenhuma relação, salvo acidental. Com
o que seria a sua verdadeira honestidade, a sua verdadeira honra, se fosse
consciente de si.
4) QUARTO OBSTÁCULO - IDENTIFICAÇÃO
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O homem é levado, sabendo-o ou não, por tudo que o cerca,


identificando-se com o que o atrai. Com a identificação, o homem se esquece
de si mesmo e se perde em todos os problemas, pequenos ou grandes, que
encontra no seu caminho.
O grau dessa identificação, isto é, a sua mobilidade ou, ao contrário, a
intensidade de sua fixação, depende diretamente do tipo de atenção -
também poderia dizer, do grau de interesse - que os acontecimentos
suscitam. Mas o resultado é sempre o mesmo: o homem está inteiramente
absorvido pelos acontecimentos exteriores, perdendo de vista o todo e, em
especial, perdendo de vista, nesse todo, a si mesmo.
A dificuldade para se libertar da identificação aumenta muito mais
devido a que, na vida corrente, ela é considerada uma excelente qualidade: a
espontaneidade, o zelo, o entusiasmo, o ideal, a inspiração, a concentração,
até mesmo a paixão.
5) QUINTO OBSTÁCULO - IMAGEM QUE FAZ DE SI MESMO
A identificação mais poderosa, a mais imediata, e a menos visível
também, é a do homem com a imagem que faz de si mesmo, dos seus
personagens e dos diferentes eus. Essa construção imaginária de si forma com
a identificação e o esquecimento de si, o tripé das aberrações nas quais ele
vive e o tripé dos maiores obstáculos que encontra aquele que quer libertar-se.
Em lugar do Eu real, que está ausente, se desenvolve um personagem
de superfície, de múltiplas facetas, mais ou menos ligadas entre si e muitas
vezes contraditórias ou voltadas para direções divergentes; são os diferentes
pequenos “eus”, cada um dos quais permite ao homem enfrentar, segundo
regras aprendidas, uma das situações-tipo da sua vida, e em dada um dos
quais, no momento, ele crê firmemente.
Esse conjunto construído artificialmente graças ao jogo da vida, à
educação, à imitação, à aquisição de hábitos e dos amortecedores, atribui a si
qualidades que são apenas aparentes e não correspondem a nada de real:
uma unidade, uma continuidade e diversos poderes, como os de saber,
prever, escolher, decidir, organizar e fazer. Em tal homem, na verdade, todos
esse poderes são ilusórios.
6) SEXTO OBSTÁCULO - FANTASIA E IMAGINAÇÃO
Em lugar de uma visão da realidade onde o homem é o elemento de um
conjunto, num lugar que é seu próprio, o homem se vê como um ser autônomo
que reina sobre tal conjunto conforme o curso da sua própria fantasia, e esta
usurpa o lugar de sua verdadeira consciência.
Cada vez que os sonhos ocupam o lugar da realidade, é o poder da
imaginação que está em ação.
Sob o seu domínio, os homens não têm mais o sentido do que são e,
como que “drogados”, não podem mais libertar-se dela. Crêem-na útil, até
39

necessária, ao seu desenvolvimento, quando, na realidade, ela o impede. A


força e a atuação da imaginação mantêm o homem num estado de hipnose e,
ao mesmo tempo, impedem que vejam o “horror da situação”. Ao mesmo
tempo, impede-os de ver a saída e que “escapem em massa”. A imaginação,
sob todas as suas formas, é um dos piores inimigos do homem, um dos
principais obstáculos ao seu despertar e à sua evolução.
A atenção de que o homem naturalmente dispõe é débil. Só lhe permite
geralmente manter no seu campo de visão apenas uma coisa de cada vez.
Ela é atraída ora pelas percepções do real, ora pelo desenrolar interpretativo,
ora pela construção imaginativa.
O homem nunca sabe com clareza em qual dos três domínios se
encontra. Isso acaba por tirar-lhe toda a chance de ver claro em si mesmo e
compreender sua situação. O homem tal qual geralmente é, confunde,
substitui ou identifica, continuamente, o real com o interpretativo e serve-se
independentemente de um ou de outro, segundo o que lhe parece mais
adequado.
Na verdade, no homem, sem que este o saiba, a percepção simples, a
interpretação e a imaginação estão sempre presentes simultaneamente. Ele
vive com as três espécies de visão juntas e nada ocorre numa das três sem
que haja uma repercussão nas outras duas.
A partir das percepções inevitavelmente relativas que tem do mundo e
das respostas mais adaptadas que ele traz, o homem constrói um filme
interpretativo mais ou menos calcado no mundo real e tenta se adaptar às
suas exigências e variações.
O filme imaginativo é feito totalmente de materiais do mundo psíquico,
recebidos ou registrados igualmente a partir de elementos da realidade, mas
sob formas mais ou menos afastadas dela. Pode estar inteiramente separada
dela e vagar a seu bel-prazer.
O esquecimento pelo homem do seu eu real, a elaboração automática,
em lugar deste, de construções imaginativas e a constante identificação do
homem com tudo o que lhe ocorre - explicam o modo habitual de vida do
homem.
Um homem não pode empreender nada enquanto não começa a ver a
coisas simplesmente como são. Pode então adquirir um conhecimento e só
depois se torna possível a ele uma “imaginação autêntica”, isto é, essa
“prefiguração” segundo as leis, que é, de fato, uma das maiores faculdades
de um homem digno desse nome.

HÁ MAIS, NO ENTANTO.
A soma das interpretações pessoais e das ilusões que constitui o
personagem ou os personagens com que o homem aparece na vida é
ciosamente defendida, tanto nas suas manifestações exteriores quanto nas
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interiores, pelo sentimento de uma integridade necessária da imagem que se


construiu e na qual o menor golpe é sentido como uma ameaça ou
amputação. Esse sentimento, que acaba por consolidar o conjunto, é o amor-
próprio.
O apego insensato a uma imagem que, no entanto, é, na maior parte,
enganosa, e em nome da qual se erguem todas as suas reações, é o próprio
fundamento do seu amor-próprio e um dos maiores obstáculos à visão do que
ele é na realidade, ao mesmo tempo em que ao despertar do seu Eu superior,
isto é, ao crescimento da sua essência.
Esse amor-próprio e a defesa da imagem de si estão também na base
das relações habituais dos homens com os seus semelhantes.
Estas relações são, em geral, regidas pelo que se poderia chamar
“consideração interna”. Nesse caso, o homem se preocupa, antes de tudo,
com o que pensam dele e com o que deve fazer para ser reconhecido e
apreciado segundo a imagem que quer dar de si. Como esta é “ideal” e um
tanto superestimada, ele julga sempre que não apreciam bastante, não lhe
dão o lugar que lhe cabe, não são bastante polidos com ele, não apreciam o
seu justo valor.
De que modo o olharam, o que pensaram dele, isso assume aos seus
olhos enorme importância. Tudo isso o atormenta, preocupa. Desperdiça
tempo e energia em conjecturas e suposições. Por menos que sinta
desprezado, torna-se cheio de suspeitas, fica desconfiado, até hostil com os
outros e desenvolve assim uma atitude negativa que só agrava a sua
situação. Tudo que o desagrada parece-lhe um ataque a ele mesmo e lhe
parece injusto, ilegítimo ou errado.
7) SÉTIMO OBSTÁCULO - OS AMORTECEDORES
Se o homem tivesse que sentir, durante a vida inteira, todas as
contradições que se encontram nele, não poderia viver nem agir tão
tranqüilamente quanto agora. Certamente nele se produziriam atritos, e suas
inquietações não lhe dariam descanso algum.
Não sabemos ver o quanto os diferentes “eus” que compõem a nossa
personalidade são contraditórios e hostis entre si. Se o homem pudesse sentir
todas essas contradições, sentiria o que realmente é. Sentiria que é louco.
Não é agradável para ninguém se sentir louco. Além disso, tal pensamento
priva o homem da sua confiança em si mesmo, enfraquece a sua energia,
tira-lhe essa consideração interior que tomou o lugar de um real “respeito por
si mesmo” e que ele considera como tal.
De uma maneira ou de outra, ele precisa dominar ou banir esse risco de
ver a verdade sobre si mesmo. Deve, ou destruir as suas contradições ou
deixar de vê-las ou senti-las. O homem não pode destruir as suas
contradições. Mas deixa de senti-las quando os “amortecedores” surgem nele.
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A partir daí, não sente mais os choques que resultam da colisão de pontos de
vista, e emoções e de palavras contraditórias.
Os “amortecedores” são dispositivos que permitem ao homem sempre
ter razão; eles o impedem de sentir a sua consciência e tranqüilizam o seu
amor-próprio. Os “amortecedores” formam-se lenta e gradativamente. A
grande maioria é criada artificialmente pela “educação”. Outros devem sua
existência à influência hipnótica de toda a vida que o rodeia. Imitando as
pessoas nas suas opiniões, ações e palavras, o homem cria, voluntariamente
em si mesmo, “amortecedores” análogos, que lhe tornam a vida mais fácil.
Mas estes impedem qualquer possibilidade de desenvolvimento interior,
porque são feitos para amortecer os choques, mas os choques, e somente
eles, podem tirar o homem do estado em que vive, isto é, despertá-lo.
Os “amortecedores” embalam o sono do homem, dando-lhe a
agradável e plácida sensação de que tudo irá bem, de que não
existem contradições e de que ele pode dormir em paz.

QUALIDADE DE VIDA

• UMA LIBERDADE INTERIOR INDESCRITÍVEL.


• DESENVOLVIMENTO DE UMA INDIVIDUALIDADE DOTADA
DE UMA PRESENÇA AUTÔNOMA.

• UMA UNIDADE HARMONIOSA.


• A PARTICIPAÇÃO NA VIDA DE UM MUNDO MELHOR.
• UMA REALIZAÇÃO ESTÁVEL, QUE TEM VIDA E
FACULDADES PRÓPRIAS.
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REALIZAÇÃO

• O HOMEM SE CONHECE TAL QUAL É.


• É CAPAZ DE VER A REALIDADE DE FRENTE E RESPONDER A ELA PLENA
E HARMONIOSAMENTE EM RELAÇÃO A SI MESMO.

• TER A SATISFAÇÃO DE TAREFA PLENAMENTE ASSUMIDA.


• TER UMA VISÃO CONSTANTE DAS COISAS COMO SÃO.
• TER UMA NOÇÃO CONSTANTE DA RELATIVIDADE DE TODAS AS COISAS.

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