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Feira em Torre de Vale de Todos, em busca do tempo passado

Partimos ao fim da manhã a 21 de Setembro e cerca de 180 km depois estavamos em


Santiago da Guarda onde decorria um pequeno mercado e seguindo as orientações de
que fomos perguntando, entramos na estrada que já conhecia de uma visita anterior,
vindo nessa altura de Ansião. De Santiago ao cruzamento com esta estrada, existe uma
ocupação contínua de casas, umas que parecem de ocupação recente, outras antiga e
outras ainda, poucas, em estado de degradação. É um percurso ao longo de um pequeno
vale ou Várzea, como é conhecido.
A partir do cruzamento a paisagem enruga, o vale torna-se mais apertado, as casas
desaparecem e a floresta de pinheiros, carvalhos e oliveiras torna-se dominante.
Subimos para a Torre e aqui as casas degradadas passam a ser uma constante. No
centro, onde conseguimos estacionar, a rampa de acesso ao ponto alto da igreja e onde
está montada a feira, está vedada. A pé, subimos e contornando a Igreja passamos por
entre a meia dúzia de barracas de feirantes e por um Palco onde se vão exibir três
ranchos durante a tarde. Na base do Palco, uma lápide agradece em Agosto de 1963 ao
Senhor Joaquim Freire de Oliveira que “foi o iniciador desta obra”. É preciso explicar
aqui que nos guia a procura de referências locais sobre uma família Freire da Silva que
aqui existiu, pelo menos o rezam registos, daí o nosso interesse pelo Freire.

Descobrimos uma entrada lateral para a igreja já que a principal estava fechada e só iria
ser aberta mais tarde para a missa com que se iria iniciar a festa. Entramos e enquanto
procuravamos a famosa imagem da N.a Sra da Graça que terá sido encomendada a João
de Ruão pelo povo do lugar no sec. XVII, a jovem que toma conta da igreja apareceu e
acendeu as luzes para que vissemos à vontade o interior, explicando-nos as obras e os
melhoramentos recentes que teve, incluindo a recuperação da pintura do tecto.

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A igreja é um exemplo do que os povos que ainda vão ficando pelos lugares e as suas
administrações, juntas e paroquias, têm conseguido fazer nas casas que são no fundo os
seus salões de festas, da representação dos actos mais importantes da vida colectiva,
quer tenham expressão religiosa quer a igreja lhes dê acolhimento pelo seu caracter
simbólico, social e cultural.

Foi esta mesma jovem que nos pôs ao corrente do programa das festas para a tarde e nos
deu indicações de onde poderíamos encontrar almoço.
Mais abaixo, um conjunto da casas de apoio à igreja inclui instalações sanitárias
públicas esmeradamente limpas e em boas condições de utilização, à disposição de
quem sofra de uma necessidade súbita e não possa socorrer-se de outros sítios. Em
suma, à disposição do visitante.
À saída resolvemos entrar no café que parece ser também junta de freguesia, onde o sr.
Jorge Lopes, presidente duma associação local ligada à organização das festas me
acolheu e me informou do programa que incluía o tradicional almoço aos idosos da terra
bem como o almoço aos participantes no torneio de BTT na antiga escola primária, já
desactivada. Aproveitei para me informar da existência local de famílias com o nome
Freire da Silva e apenas consegui a indicação do Freire presidente da Junta – que será
em princípio reeleito este ano – e de quem eu já conhecia a existência pelo noticiário
regional.
Seguimos para Santiago da Guarda onde demos com o “Serranito”, um restaurante com
umas instalações novas onde um simpático casal nos serviu uma refeição bem
cozinhada de bacalhau assado com broa.

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À saída, fomos ver o “castelo”1, referência para os viajantes e onde uma jovem nos
proporcionou uma visita guiada muito interessante, com a descoberta da villa tardo
romana sob as ruinas da casa que foi dos Condes da Castelo Melhor quando em 2.000
começaram as escavações para a sua recuperação. Sob os pavimentos envidraçados do
que teria sido essa casa e ao longo dos seus vários compartimentos reconstituídos2,
podem ver-se, em níveis de 1 a 2 metros abaixo do actual, grandes bocados de
mosaicos romanos com as suas formas e motivos geométricos a adivinhar a antiga
compartimentação e usos, numa evocação de épocas de ocupação do século IV e V,
época de transição para os povos visigóticos que foram chegando à Península.

A casa, apalaçada, tem um traçado quadrado, com paralelismo das paredes e cantarias
manuelinas, serviu de residencia a D. Mariana de Lencastre, filha de Simão Gonçalves
da Câmara a qual acrescentou uma pequena capela fora do perímetro quadrangular,
onde pôs as armas da sua família e casou com o Conde de Castelo Melhor, tudo isto no
séc. XVII. Esta casa, ou Paço, representa uma ocupação a partir do sec. XV a
complementar e a integrar a torre quadrangular, mas já está construída também sobre
uma parte da antiga Villa romana encontrada nas escavações à profundidade de um a
dois metros abaixo do solo, tem a parte inferior datada possivelmente do século XI,
sendo os outros dois andares e terraço final, datados do séc. XIV, quando já não fazia
muito sentido o sistema defensivo que foi constituído na época de expansão cristã e aqui
passava a fronteira movel entre cristãos e mouros, também designada por Ladeia.

Já a simbologia dos motivos esculpidos na arcaria da residência medieval fazem pensar


neste sítio como um ponto de passagem num itinerário dos caminhos de peregrinação a
1
Residência Senhorial dos Condes de Castelo Melhor, ou Paço Senhorial dos Vasconcelos.
2
Recuperação financiada com fundos europeus (Fundo Europeu de Deenvolvimento Regional)
segundoreza o cartaz no exterior.

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Santiago pois neles é comum esta figuração da concha. E não será de estranhar que
assim seja pois certamente passaria aqui próximo a estrada romana que de Tomar iria a
Conímbriga, estrada sem dúvida antecessora, como muitas outras que ligaram vários
pontos da Península, de um itinerário que se manteve pelos tempos medievais e de que
se tem encontrado vestígios em vários pontos, nomeadamente aqui perto.3
Interessante a datação da base da Torre, anterior pois à nacionalidade, demonstrando
que, ou foi iniciada a sua construção pelos mouros, ou foi-o durante a ocupação que o
rei de Leão, ajudado por Sesisnando, conseguiu dos territórios de Coimbra, sendo
também desta ocupação a primeira construção do castelo de Penela, tudo antes do
Conde D. Henrique, pai do nosso D. Afonso Henrriques.

A este propósito, uma senhora que acompanhava a mesma visita que fizemos ao
“castelo”, sendo natural de um lugar nas proximidades e lembrando-se que sendo
menina, chegou a vir a este local quando aqui tinha lugar uma feira - e se lembrava das
figueiras aqui existentes, as mesmas que, referiu a guia, foram responsáveis pelo mau
estado dos mosaicos romanos sob a Torre, em pior estado que os dos outros
compartimentos encontrados – contou que a tradição oral, pela voz de uma sua avó,
rezava que a torre terá sido construída toda numa noite, com os mouros fazendo uma
carreirinha tipo carreira de formigas, passando as pedras de mão em mão, desde a Lagoa
Parada até ao local da torre. O interessante nesta história é a precisão da identidade
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A Quintã da Guarda, propriedade em que se integrava o paço, integrava a região conhecida, nos
séculos XII e XIII, pelo termo de Ladeia Soure, Ansião e Penela. Para além de fronteira, era atravessada
pela Estrada Coimbrã, principal corredor de circulação no sentido norte-sul só substituído, em 1798, pela
abertura da Estrada da Malaposta sendo, por isso, palco frequente de confrontos e detendo um importante
valor militar. In Complexo Monumental de S. Tiago da Guarda, Enquadramento, por Luísa Trindade,
Historiadora da Arte, Docente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
http://www.stiagodaguarda.com/index.php?action=rub_aff&rub_id=237&page_id=646#rub1523

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moura daqueles que faziam a carreirinha, mas não se sabe se a Torre era deles ou se
apenas o faziam a mando de novos senhores.
Mas não foram só as figueiras o único agente da deterioração dos mosaicos. Ao que
parece, o actual arranjo da casa do castelo, recebe por vezes a visita do sr. Melriço,
antigo proprietário da taberna que estava numa parte da casa, e que ao ver agora o que
lhe estava por debaixo, se lamenta dos muitos copos de vinha que derramou, sem o
saber, sobre aqueles mosaicos, quem sabe se contribuindo para lhes alterar a côr…
De regresso à Torre, espreitamos as festas. Os grupos folclóricos alinhavam-se próximo
da subida para a Igreja aguardando a sua vez de avançar para o palco no espaço da feira
a qual estava agora mais viva e animada, com os feirantes a fazer negócio.

Num sítio próximo grelhavam-se frangos com a fumarada habitual. Mais abaixo,
fritavam-se barbos que a vendedora ia amontoando sobre uma mesa hirtos, esticadinhos,
doirados, no papel absorvente. Uma visitante discutia-lhe os preços que lhe pareciam
demasiado arredondados para cima. À volta de um pequeno coreto, uma das obras
mandadas fazer como doação à terra pelo omnipresente comendador Silva Dias,
vendiam-se cestas de vime.
Nos relvados cuidados, agrupavam-se sentados à sombra das árvores figurantes e
acompanhantes dos ranchos, com roupas figurativas do trajar de há duzentos anos,
conversando, dedilhando as músicas ou cantarolando-as, generalizando o ambiente de
festa, no dia agradável que também ajudou enchendo a festa de luz e sol .

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A igreja-salão tinha a porta aberta e alguns fiéis meditavam em sossego na atmosfera
propícia das suas talhas douradas e das representações da fé.

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Finalmente houve ordem aos ranchos para desfilarem rua acima, vindo um a um,
exibindo os estandartes e anunciando musicalmente a sua chegada. Um dos
participantes, trajado ao rigor que pediam as épocas evocadas, estava em todo o lado
ordenando, acenando e fazendo prosseguir os ranchos, também ele Freire, membro
activo da Junta de que é Presidente, na Torre de Vale de Todos.
Com a actuação dos ranchos, deixamos a Torre para iniciarmos os 180 km de regresso
não sem que ainda espreitassemos a Lagarteira, de onde seria natural a família de um
outro Freire da Silva agora por terras da Austrália, quem sabe se de um outro ramo
familiar, quem sabe se ao nosso ligado por passagens por França, na busca da formação
e inspiração religiosa conventual que orientou antepassados possivelmente próximos,
senão no sangue, pelo menos nas casas e lugares de origem.
Na Lagarteira, uma povoação num sítio alto, visitado um cemitério minúsculo frente à
Igreja, apenas a memória dos “Freire Bicho” ou dos “da Piedade Freire” transparece
das lápides. Em conversa com um idoso local, não colhi memória de famílias “Freire
da Silva”. Apenas a referência, após reflexão, a um João Freire que “teve uma grande
ninhada” de que há muitos Freires.
Continuando na estrada a que regressamos descendo, passados os dísticos a apontar
outras Lagarteiras, a de Cima e a de Baixo e que já não quisemos visitar for faltar o
tempo, seguimos em direcção a Ansião não sem derivar ainda para Figueiras de S. João,
por uma estrada estreita que entronca na principal e que da várzea sobe lá para o alto
outra vez.
Estava esta terra no nosso itinerário possivel pois temos notícia de um António Freire
da Silva que no princípio do séc. XIX escreveu e assinou uma relação dos “dannos e
estragos que os francezes lhe causarão“ naquele lugar que então se chamava Figueiras
Podres, Couto de Vale de Todos, Freguesia da Torre que registou a passagem daqueles

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que traziam a Liberdade, Fraternidade e Igualdade mas que tão amaldiçoada e
tragicamente deixaram assinalada a sua passagem por estes sítios.
No alto adivinha-se a povoação que se estende pela cumeeira numa rua longitudinal ao
onde estão casas de um lado e do outro, pardacentas e degradadas a maioria, em
derrocada algumas.
Um idoso que encontrei, puxou bem pela memória, soletrou alguns nomes mas não
encontrou o nome de família que venho procurando em ninguem que dali seja que não
os Freire Bicho ou Freire somente. Regressamos à estrada, deixando para trás uma
capelinha que está à entrada da terra e onde se lê uma data de 1763 e seguimos viagem,
contornando Ansião, entrando no IC8 e voltando ao nosso tempo, deixando o passado
por desvendar mais uma vez, deixando-o jogar este jogo de esconder em que disfarçado
estará, quem sabe se mesmo debaixo dos nossos olhos, numa volta dos caminhos
percorridos.
Lisboa, 21 de Setembro de 2009
José M. R. Freire da Silva

http://www.ansiaonews.web.pt/2009/news/Set/09Set23ansiaonews04.html

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