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expediente | 04
editorial | 05
Textos |
Às vezes fazer algo poético pode vir a ser político, e às vezes fazer algo político pode vir a ser poético | Ariel Ferreira 07
O complexo de Sansão: como demolir um templo sem danifcar suas paredes | Lucas Delfino 12
Cosmococas e Objetos Relacionais: a participação na encruzilhada entre o público e o privado | Lais Myrrha 18
Três antinomias e uma tautologia: comentário e reflexão a partir do texto Antinomies in Art History de Hall Foster | Adolfo Cifuentes 38
Coletivos de arte: Kaza Vazia, entre sacada e dispensa | Melissa Rocha e Tales Bedeschi Faria 41
Arte, arquitetura e filosofia no contexto das práticas artísticas contemporâneas que invadem o espaço cotidiano | Rachel Falcão Costa 49
caderno de imagens | 54
Lindonéia e Ramona: um amor impossível A saga de Ramona está narrada pelo artista numa multidão de
pinturas, colagens, gravuras e objetos. Ramona nasce no subúrbio e, cheia
No avesso do espelho de esperanças, chega ao centro. Para sobreviver e porque deseja uma vida
Mas desaparecida melhor, passa, ao longo do tempo, pelas mãos de distintos “protetores”: um
Ela aparece na fotografia
marinho, um militar, um amigo espiritual, um conde, um bispo, um embaixador
Caetano Veloso
e, finalmente, vence na vida. Com os olhos vazios e o coração doce, entra na
Os desaparecidos reaparecidos mitologia urbana, encarnando de uma vez e para sempre todas as heroínas
no triste instante de glória de
uma foto no jornal; as manchetes do tango — las milonguitas — seduzidas pelas luzes da cidade.
com o suor e o sangue de todos
os que, de repente e brevemente
ganham nome na ‘geléia geral’...
Roberto Pontual ****************************************************************************
Um dia qualquer do ano 2000, paseando pelas livrarias de Buenos Desde a primeira vez que vi Lindonéia, a Gioconda do Subúrbio, 1966,
Aires, vi, entre as publicações, um display de acrílico que anunciava Ramona, de Rubens Gerchman, fixou-se na minha memória. Não sei se foi por causa
revista de arte, e que continha simples folhas dobradas ao meio. Era gratuita e da moldura de espelho que se plantava insolentemente no meio do quadro,
se pedia uma colaboração aos interessados. O aspecto austero da revista me pelo rosto triste, ou pela frase trágica: Um amor impossível - A bela Lindonéia
surpreendeu — uma revista de arte sem imagens nem cores — e a continuo de 18 anos morreu instantaneamente.
lendo até hoje, quando ostenta, ainda sem imagens nem cores, quase 100 Lindonéia é um quadro pequeno, uma montagem de papelão em
páginas de papel couché. As artes visuais argentinas reverberam em Ramona, cujo centro está fixada a moldura de um espelho bisotado. No espelho,
cujo objetivo foi, desde o primeiro instante, devolver a palavra aos artistas. ou onde estaria o espelho, impresso sobre o cartão, aparece um rosto de
Imediatamente supus que Ramona homenageava Ramona Montiel, um mulher; a reprodução ampliada e reticulada de uma foto 3 x 4 em branco
personagem criado por Antonio Berni. Nunca confirmei a suspeita; mas ainda & preto. Por cima da moldura, contornando-a, lê-se: UM AMOR IMPOSSÍVEL
acredito nela. Ramona Montiel é uma alegoria da historia da Argentina, dizem e, na parte inferior do suporte: A BELA LINDONÉIA - DE 18 ANOS MORREU
alguns, uma mina de arrabal, disse Berni. INSTANTANEAMENTE.
O título deste artigo é também sua epígrafe. É o nome de uma Os trabalhos de Alÿs Francis Alÿs. Estudo para The last Clown, 2003.
exposição do artista Francis Alÿs na galeria David Zwirner1 em Manhattan, sempre parecem governados animação e desenho.
em 2007. A sentença parece ser traduzir uma atitude próxima ao Paradoxo da pela ambiguidade, à míngua de
práxis, onde confirmamos que às vezes fazer algo não leva a nada, enquanto dramatização de suas personagens,
não fazer nada às vezes leva a algo. Este artista é escorregadio ante quase de rostos imparciais e neutros,
todas as vontades de classificação, ou melhor, as classificações da crítica de cristalizadas num momento da
arte nem sempre dão conta da tarefa de delimitar seus trabalhos. Gostaria narrativa, que nos conta algo por um
de sugerir neste breve artigo que essa questão, além de pertinente à obra de fragmento, como um frame de um
Francis Alÿs, é um bom prisma para entender a arte mais ambiciosa 2 feita nos longo filme sem título, cujo o roteiro
dias de hoje. seria suposto mas não conhecido.
Francis Alÿs. Paradoxo da Tal ambiguidade é descrita por Cuauhtémoc Medina pela palavra “quase”:
praxis 1, 1997. “'Quase' descreveria com perfeição o processo imperfeito da triangulação
Documentação de uma
ação. (vídeo 5’) do sentido em que cada descrição possível (palavra, objeto, imagem) 'quase'
corresponde ao significado da experiência” 3. Quase belga, quase mexicano;
quase arte, quase vida; quase uma revolução e quase que não acontece. À
primeira vista, as imagens nos surpreendem com um impacto típico do non-
sense. Com tempo, nos demoramos frente a elas, corremos a vista na legenda,
e vamos desvelando sugestões e interrogações, relacionando-as aos outros
trabalhos do artista. Mas dificilmente encontramos uma resposta última; a
busca de sentido está sempre aberta, sem apaziguamento, sem nomeação
estanque. Seguir alguém que enquanto caminha não está fazendo, não está
8
É claro, que “as artes nunca emprestam à manobras de dominação ou emancipação mais
do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas:
posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E
a autonomia de que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousam sobre a
mesma base.” In.: RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: Estética e Política. São Paulo: EXO
experimental org.; Ed. 34, 2005. p. 26
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É claro que o trabalho de Long problematiza outras questões: mas havia uma outra direção
importante para esse trabalho. Os materiais de um lugar específico podiam ser removidos e
expostos na galeria. Aqui a questão não é tanto“a obra real está na paisagem ou na galeria?”quanto
“que contribuição a paisagem dá para efetividade específica da obra na galeria, dado que a
origem dos materiais faz a diferença? Desde o início, Long foi descrito como continuador de
uma tradição especificamente britânica de artistas da paisagem”De qualquer forma, gostaria
de sublinhar que as paisagens de R. Long serão discutidas em torno da questão institucional da
arte, da contribuição destas questões dirigidas à história da escultura como categoria artística.
“Mas também traz a mente a observação de André de que a paisagem inglesa é a maior “arte
da terra” do mundo” In. : ARCHER, Michael. Arte contemporânea. Trad. Alexandre Krug e Valter
Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 95. Conscientemente capcioso, pergunto:
A paisagem da Inglaterra se estende pelo globo como um império virtual que não poupa o
território do Peru? Richard Long cumpre o papel de colonizador, no caso?
10
Em Cuando la fe mueve montañas nunca poderíamos nos descuidar que a localização da
paisagem não pertence apenas a uma realidade natural, dada às especulações românticas sobre
o sublime, mas ela está entretecida a uma paisagem política (no sentido de polys). Uma relação
mais direta entre F. Alÿs e R. Long pode ser verificada em 1999, uma ação que se chama: PARA
R. L. Um varredor de rua, com uma vassoura “elabora uma linha com detritos (de fato, guimbas
de cigarro) em um espaço cuja carga política absorve qualquer intento de atividade estética ou
formal” In.: MEDINA, Cuautémoc: Diez cuadras alredor del estúdio, Talleres de Offset Rebosán,
Cidade do México, 2006, p. 77.
11
CAMNITZER, Luis, Arte Contemporânea Colonial, In.: Escritos de Artistas, Anos 60/70. Orgs.:
Glória Ferreira e Cecília Cotrim. Ed. Jorge Zahar,2006. p.273
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BENJAMIN, Walter, Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura.
Trad: Sérgio Paulo Rouanet. Editora Brasiliense. SP., 1994, p. 196
I. Em certo momento do documentário Vingue Tudo Mas Deixe Um De O suicídio heróico de Sansão – e a morte dos 960 zelotes
Meus Olhos (2005), do cinegrafista israelense Avi Mograbi, somos conduzidos entrincheirados na fortaleza de Masada – é esmiuçado no documentário
para o interior de uma gruta debilmente iluminada pelo fogo de velas através de cenas que escancaram seu culto e a disseminação de sua história
alojadas por entre as fendas da rocha. Diante da parede da caverna está um tanto nos sítios arqueológicos como nas salas de aulas, mostrando a relação
judeu ortodoxo que conduz o fogo por cada uma das velas, proclamando: da população atual de Israel com seus mitos bélicos, escancarando um
projeto ideológico que visa propagar a glória das façanhas de Sansão e dos
Essa é a gruta de Sansão o Herói, que como está escrito foi zelotes como exemplo de transcendente abnegação e incondicional recusa
poderosamente imbuído do espírito do Senhor. Ele foi um à rendição ante os povos inimigos. O extermínio dos inimigos é primordial,
homem de valor que salvou da extinção o povo judeu. Lutou
sozinho. Quando esteve em Gaza, o leão quis matar Sansão o ainda que enviesado por ações autodestrutivas.
Herói, mas foi executado por suas mãos nuas. (...) Sansão era Essas narrativas ganham ares controversos quando são entremeadas
como uma serpente na grama. Tinha pernas curtas e voou por
às cenas da habitual humilhação a que são submetidas às populações
sobre um burro através do vento de sua respiração. Nele havia
um poder espiritual. Cada soco de seu punho era capaz de palestinas nas fronteiras do país, criando um díspare paradoxo que
derrubar 10.000 homens. parece justificar igualmente os ímpetos terroristas do radicalismo árabe,
escancarando a dificuldade israelense de projetar e igualar a injustiça que
Ao longo do documentário nos é mostrado como a narrativa bíblica
moveu seus mártires do passado ao programa de sujeição e sitiamento dos
de Sansão está para Israel como um mito fundador de resistência, um herói
povos da Cisjordânia.
e um juiz, que subjugou os inimigos dos israelitas até mesmo no momento
de sua morte, quando, escravizado e humilhado pelos filisteus, na cerimônia
II. Ao final de algumas vias sinuosas, margeadas por palmeiras e sob
pagã que comemorava seu aprisionamento, instalou-se por entre os pilares
o sol escaldante que provê a elas o seu lento e extravagante crescimento,
de sustentação do templo, e num abrir de braços, dotado de força divina, pôs
chegamos à Galeria Lago no Centro de Arte Contemporânea de Inhotim,
o prédio abaixo ceifando sua vida e a de todos os milhares de presentes.
onde, ao passar por uma frondosa mangueira cravejada de bromélias e
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Esse comentário do próprio Chris Burden está inserido no contexto da obra Mini Vídeo Circus
de 1994, projeto que o artista desenvolveu para uma mostra na França que incluía entre as
suas muitas instâncias a projeção incessante em monitores de vídeos de cenas de desastres
californianos – incêndios, terremotos, violência.
“(...) a maioria criou um academicismo dessa relação de 1990 e que crê ser distinta da arte participativa dos anos de 1960, já está
ou da idéia de participação do espectador, a ponto
plenamente desenvolvida e madura nas obras de Lygia e Hélio; arrisco-me
de me deixar em dúvida sobre a própria idéia.”
Hélio Oiticica a dizer que de forma ainda mais radical e anárquica do que ele (Bourriaud)
conseguiu conceber no seu Estética Relacional. Nesse livro o autor cria uma
série de falsas oposições e “novidades” que só podem ser aceitas à custa de
Sei do risco de recair em possível redundância ao escrever mais se aceitar um reducionismo eurocêntrico que coloca todas as experiências
algumas páginas sobre esse ou aquele aspecto das obras de Lygia Clark e artísticas, européias e norte-americanas, dos anos 1960 e 70 no mesmo bojo
Hélio Oiticica. Entretanto arvoro-me a fazê-lo. Menos com o propósito de e, ao mesmo tempo, em que desconhece aquelas realizadas no hemisfério
constituir uma “nova” concepção, do que para organizar algumas das minhas sul.
impressões e reflexões sobre as noções relativas à participação, à interação, à Grosso modo, o que ele diz ser a principal diferença entre a arte
convivência e ao relacional nos trabalhos desses artistas. (participativa) produzida nos anos de 1960 e da arte (relacional) dos anos
Tomando como ponto de partida “o fim” de suas respectivas trajetórias de 1990 é que a primeira estava comprometida em definir, ampliar, testar
(os Objetos Relacionais de Lygia e as Cosmoscocas de Hélio e Neville D’Almeida), e tencionar os limites da arte, ou seja, convidava a uma subversão pela
minha hipótese geral é de que ambos os artistas transformam profundamente linguagem 2 ; enquanto a segunda, a arte relacional dos anos 1990, privilegiava
as noções de espectador/participador/público — e assim daquilo que as relações externas de uma cultura eclética, na qual a obra de arte resiste ao
é chamado de objeto da arte ou arte — ao negarem, de certa forma, suas rolo compressor da “sociedade do espetáculo” 3 e estaria voltada sobretudo à
invenções (para utilizar um termo de Oiticica) à esfera pública. Talvez, fosse criação de novos modelos de sociabilidade.
melhor dizer que ambos recolheram suas invenções à esfera privada e creio Aqui vale a pena mencionar que meu objetivo não é refutar os
que por motivos distintos e até em prol da esfera pública. argumentos de Bourriaud e sua estética relacional (embora esteja tentada
A noção de arte ou estética relacional que Nicolas Bourriaud atribui a fazê-lo). Entretanto como este livro tem sido amplamente utilizado como
a uma fatia (para ele a mais importante) da produção artística da década referência teórica tanto por curadores e quanto por artistas aqui no Brasil,
É justo essa relação nela mesma que vai gerar a radicalidade, tanto
das Cosmococas quanto dos Objetos Relacionais. A relação nela mesma, o
acontecimento, o imponderável e imaterial da obra é que pode estender-se
pelo mundo e modificá-lo, mesmo que em pequena parcela. É dessa parte
imaterial, daquilo que não está lá, é que nascem os relatos, que se dá a criação
do outro sobre qualquer proposição artística. Não basta o factual: isso e aquilo;
as palavras e a escolha dos termos e a construção (como num poema) é que dão
a dimensão ao relato da coisa10 é o que recria, modifica ou destrói a coisa.
Mas, à Hélio, incomodava a emergência de uma cultura da participação, ou
melhor, que um maneirismo participativo deixasse a descoberta/invenção do
artista ser reduzida às mesquinharias idiossincráticas do espectador que não
existe mais. Quem vive o que você (Lygia) propõe e dá ou vive ou não vive, mas
nunca fica na posição de “assistir” como de fora! Voyeurs da arte! 11
Esse espectador foi eliminado definitivamente da obra de Lygia que o
transformou em cliente ou em nada/ninguém, no qual-quer; naquele a quem
desafiou com sua prova do real. Com um seixo colocado entre a sua mão e a
do outro construiu uma ponte , a única na qual ainda acreditava que pudesse
caminhar.
O Outro excluído de certas instâncias de saber e poder exerce um sobre a produção contemporânea, identificando o crescente interesse pelo
apelo considerável sobre a arte contemporânea, e também sobre a literatura Outro como uma virada etnográfica na arte e na teoria, em torno dos anos 80.
e o cinema. As Paredes pintura de Mônica Nador (desde 1996), o Veículo do Mas para Foster o que distingue este interesse daquele expresso em “O autor
sem-teto de Wodiczko (1988 – 1ª versão), bem como seu trabalho Tijuana como produtor” é que o Outro que interessa à produção contemporânea não
Projection (2001), o Canal Motoboy, de Antoni Abadi (2007) e os inúmeros é definido em termos socioeconômicos, mas culturais ou étnicos. Em ambos
projetos da dupla MauWau, que envolvem a participação de grupos sociais os modelos o lugar do Outro é visto como o lugar da transformação, o espaço
específicos, são apenas alguns exemplos. em que a cultura dominante será subvertida.
Diana Irenge Klinger1 cita vários filmes e romances latino-americanos Embora o texto de Foster esteja mais próximo temporalmente, o
nos quais as “outridades” socioculturais ocupam um lugar central, como os de Benjamin atrai uma atenção especial, na medida em que a relação entre
filmes Mundo Grúa, de Pablo Trapero, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles qualidade estética e relevância política é um de seus motores. Benjamin está
e Carandiru, de Hector Babenco; romances sobre índios, como Nove noites preocupado em discutir estética e política, instigando o artista a ser mais
(2001), de Bernardo Carvalho e O enteado (1983), de Juan José Saer; ou sobre do que simplesmente solidário com o proletário em seus temas ou em suas
a marginalidade social, como Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, ou Inferno atitudes políticas, propondo que este se coloque a serviço da luta de classes,
(2000), de Patrícia Melo. Embora reunidos sob um mínimo denominador mas a partir de uma reflexão sobre sua posição no processo produtivo; a
comum, isto é, um certo movimento de empatia em relação ao Outro, esses partir de sua compreensão como produtor.
trabalhos apresentam procedimentos, intenções e processos distintos. O modelo de Benjamin estimula o artista político a alterar o aparato
Como ler esse conjunto de esforços em se solidarizar com da cultura burguesa, intervindo na técnica. Benjamin coloca perguntas bem
determinadas minorias? Que teorização é possível aqui? Uma sugestão está pragmáticas nesse sentido: “Consegue promover a socialização dos meios de
na atualização que Hal Foster propõe para o trabalho seminal de Benjamin: produção intelectual? Vislumbra caminhos para organizar os trabalhadores
“O autor como produtor”2. No texto “O artista como etnógrafo”[nota 3], no próprio processo produtivo? Tem propostas para a refuncionalização do
Foster discute a proeminência que a antropologia como discurso exerce romance, do drama, da poesia?” 3 O artista político que compreendesse sua
Muito diferente é a abordagem de Sierra, que não trata de celebrar reservados à arte, como museus e galerias, embora Salgado sublinhe que
o trabalho como definidor do ser humano; suas figuras são antes aquelas suas imagens circulam em diferentes instâncias e que a primeira delas é
submetidas ao esforço de um labor que não dignifica, que é antes tratado o jornal, depois as organizações humanitárias e somente num momento
como castigo. Empurrar cubos de cimento de um lado a outro da galeria, posterior os espaços institucionais da arte. De qualquer forma, soa paradoxal
sustentar pesados paralelepípedos nos ombros ou elevá-los a uma altura sua recusa em definir seu trabalho como arte, ao mesmo tempo em que
mínima são ações que visam sublinhar o esforço físico bem como o fato de aceita o acolhimento dos lugares da arte para suas fotografias. Aurora Garcia
que desde que seu tempo seja remunerado, o trabalhador submete-se a reconhece em Sierra uma contradição também. Em palestra pronunciada no
qualquer tarefa. Seminário Internacional Museu Vale 2008, Garcia manifesta seu incômodo
com a obra de Sierra pelo modo como as ações são transformadas em
e até gíria. Mas o que significa, para o artista, trabalhar com arquivo? No dia
a dia, a variedade do senso comum não é incapacitante. A secretária não terá
dúvidas ao arquivar as pastas; o tempo fará seus arranjos para tornar um
arquivo morto; a consciência do mandante não ficará pesada com a “queima
de arquivo”; o burocrata não terá escrúpulos ao “engavetar” um projeto; o
tecnófilo desligará o computador sem receio de “perder o arquivo”; o jovem
entenderá o “arquiva aí, hein!”. Por mais que essas noções sejam interessantes
para o artista, não são, claro, utilizadas por ele de forma literal. Os trabalhos de
Rosângela Rennó, por exemplo, não se relacionam com arquivos porque ela
usa gavetas e fichas. O interesse geralmente é o arquivo como instrumento
de memória, por um lado, e como aparelho de esquecer, por outro. Esses
dois aspectos, entretanto, não são suficientes para definir a relação entre arte
Captura de tela dos resultados do Google Images para ‘sierra tattooed line’ e arquivo. Eles não dão conta de que, implicitamente, todo artista trabalha
com arquivos. Nossa intenção aqui é perseguir a possibilidade de se definir
“Arquivo” é uma palavra muito utilizada na arte contemporânea. Muito a arte contemporânea, sobretudo, como uma arte que se relaciona de um
empregada, mas raramente definida em termos realmente aplicáveis aos modo novo com seu arquivo.
trabalhos que a utilizam. Não existe uma noção teórica estável e partilhada Dentre as diversas acepções de arquivo, cumpre estocar
do conceito de arquivo que possa ser aplicada sem hesitação à criação e antecipadamente: os arquivos do nosso título são e não são as salas
crítica artísticas. E mesmo o senso comum guarda inúmeras variantes: móvel empoeiradas abarrotadas de áridos documentos do conhecimento
de escritório; sala fechada; arquivo morto; “queima de arquivo”; a gaveta que acadêmico. “São e não são”, uma adulteração da primeira frase1 do texto
“engaveta”; um conjunto definido de endereços na memória do computador; Archives of Modern Art, de Hall Foster, que usaremos aqui como guia para
5 13
“É uma máquina abstrata [...] quase muda e cega, embora seja ela que faça ver e falar” (Deleuze, “Em última instância, os métodos de reprodução mecânica constituem uma técnica de
1988: 44). miniaturização e ajudam o homem a assegurar sobre as obras um grau de domínio sem o qual
elas não mais poderiam ser utilizadas” (Benjamin, 1993: 104).
6
“As instituições não são fontes ou essências, e não têm essência nem interioridade. São práticas,
14
mecanismos operatórios que não explicam o poder, já que supõem as relações e se contentam “De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que estou
em ‘fixá-las’ sob uma função reprodutora e não produtora” (Deleuze, 1988: 83). aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como
os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo
7
Foster, 2002: 65. da coisa fotografada” (Barthes, 1984: 121).
15
8
Como se sabe, Derrida (2001) analisa o conceito freudiano de arquivo e a psicanálise como Malraux (2000) chama atenção para essa “criação pela fotografia”, principalmente quando
arquivo. O mote principal é a notícia arquivada da circuncisão de Freud (uma dedicatória do ocorre sobre “artes menores”: “O álbum isola, ora para metamorfosear, por ampliação, ora
pai em uma bíblia). O suporte primeiro é o corpo onde se inscreve a instituição e a tradição para descobrir ou comparar, ora para demonstrar. E pelo fragmento, o fotógrafo reintroduz
da lei; é dele que derivam os demais. “Neste caso, ler é trabalhar nas escavações geológicas instintivamente essas obras no nosso universo privilegiado, como as obras do museu de outrora
ou arqueológicas sobre suportes ou superfícies de peles, novas ou velhas, as epidermes ali eram introduzidas pela sua parte de italianismo” (102).
hipermnésicas ou hipomnésicas de livros ou de pênis [...]” (35). E a marca que se inscreve no
16
corpo põe em reserva antes uma aliança e depois um desastre. A última parte do nosso texto A artista peruana cria pinturas a partir de catálogos e muitas vezes as intitula com o número
retoma esse tema, que é a tatuagem. da página original. P. 179 (2006, óleo sobre tela, 195 x 162 cm), por exemplo, baseia-se no
trabalho de Vik Muniz com chocolate a partir de uma das famosas fotografias de Pollock por
9
“Habitam este lugar particular, este lugar de escolha onde a lei e a singularidade se cruzam Namuth. O trabalho faz parte da série Aquisições Brasileiras, que encontra contexto crítico no
no privilégio. No cruzamento do topológico e do nomológico, do lugar e da lei, do suporte e da projeto Museo de Arte Contemporáneo de Lima (Li-MAC), um museu definido pela carência,
autoridade, uma cena de domiciliação torna-se, ao mesmo tempo, visível e invisível” (Derrida, que existe na internet (cf. http://www.li-mac.org/) e dentro de outros museus: “O LiMac se
2001: 13). define assim [um museu de projetos e um projeto de museu] a partir de suas carências. Em um
país onde as instituições culturais são escassas e onde as galerias e salas de arte substituem o
10 trabalho do museu, é necessária uma máscara que agrupe todos estes esforços e, ao mesmo
O tema central da dissertação de mestrado Pintura para catálogos: notas sobre o arquivamento
tempo, os projetos que não se realizam, os textos que não são publicados, as críticas que não
da arte, a ser defendida na EBA-UFMG.
são impressas. Este museu pretende preencher o vazio institucional criado pelo trabalho que
11
se realiza efetivamente em Lima. Não trabalha com a ausência do próprio museu, mas, pelo
Não é necessariamente um exagero. A fragilidade das instituições que expõem obras de contrário, essa ausência mesmo é o que o impulsiona a existir e a se realizar livremente. Este
arte em periferias artísticas – como Belo Horizonte, por exemplo – e a deificação daquelas que tipo de museu não busca propor uma nova classe de museu, não quer ser nem um espaço
19 30
Convém aproveitar e circunscrever o conceito inicial de Derrida (notas 9 e 18) com sua revisão Fragmentação do sujeito no arquivo e dos corpos, em geral.
posterior, na mesma obra: “E, certamente, a palavra e a noção do arquivo parecem, numa
primeira abordagem, apontar para o passado, remeter aos índices da memória consignada, 31
“Enquanto para cada ponto da imagem ótica corresponde um ponto do objeto real, nenhum
lembrar a fidelidade da tradição. Ora, se tentamos sublinhar este passado desde as primeiras ponto de qualquer objeto real preexistente corresponde ao pixel. O pixel é a expressão visual,
palavras destas questões é também para indicar outra problemática. Ao mesmo tempo, mais materializada na tela, de um cálculo efetuado pelo computador, conforme as instruções de
que uma coisa do passado, antes dela, o arquivo deveria pôr em questão a chegada do futuro.” um programa. Se alguma coisa preexiste ao pixel e à imagem é o programa, isto é, linguagem
(Derrida, 2001: 48). e números, e não mais o real. Eis porque a imagem numérica não representa mais o mundo
real, ela o simula. Ela reconstrói, fragmento por fragmento, propondo dele uma visualização
20
Na edição original, 1949, compunha a primeira parte de Pyschologie de l’Art. Aqui usamos numérica que não mantém mais nenhuma relação direta com o real, nem física, nem energética”
tradução recente em separata, já citada: Malraux (2000). (Couchot, 2001, p. 42).
21 32
Sobre isso, somos devedores ao Prof. Edson Rosa da Silva, que discute principalmente a Virtual não se opõe a real, pois é “real em potência”. A imagem no monitor é virtualidade em
incorreta absolutização e negativização da perda da aura, ao que contrapõe o conceito de “aura atualização.
insubmissa”. Cf., Silva (2004).
33
“Da mesma forma que os enunciados são inseparáveis dos regimes, as visibilidades são
22
Foster, 2002: 78. Trad. nossa. Cf. tb. Hollier (2000: 59): “Malraux não parece ter sido sensível a inseparáveis das máquinas. Não que toda máquina seja óptica; mas é uma reunião de órgãos e
essa alternativa entre museu e cinema que é o núcleo do argumento de Benjamin”. de funções que faz ver alguma coisa e que coloca sob as luzes, em evidência (a “máquina-prisão”,
ou as máquinas de Roussel)” (Deleuze, 1988: 67).
23
Exemplo disso é Crimp (2005) que chega a propor Malraux como defensor do Estilo e de uma
34
ficção totalizante, em suas piores acepções. Mas Malraux propõe justamente o contrário: todos Adorno & Horkheimer (1994: 125).
os estilos possíveis, ficções infinitas, metamorfoses!
35
Estratégias da Arte na Era das Catástrofes, http://www.eba.ufmg.br/grupo, coordenado pela
24
Mas com a supressão stalinista da vanguarda no início dos anos 1930, essa miragem já havia Profª Drª Maria Angélica Melendi.
evaporado, e Benjamin nunca alcançou o outro lado da reificação. O que parecia iminente em
seu ‘O Autor como Produtor’ (1934) se tornou utópico apenas quatro anos depois em seu ‘Teses 36
Foster (1996).
sobre a Filosofia da História’” (Foster, 2002: 75-76. Trad. nossa).
37
Cf. http://www.santiago-sierra.com/996_1024.php. Intervenção realizada no Espacio
25
Didi-Huberman (1998). Aglutinador (La Habana, Cuba), em 1999. Ver também: http://www.santiago-sierra.
com/200014_1024.php.
26
O interesse são os sites que “uniformizam” a web, mas poderíamos estender a análise a alguns
sites temáticos, inclusive nacionais. 38
http://www.santiago-sierra.com.
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BAUDELAIRE, Charles. Salon de 1846. Charles Baudelaire: sa vie, son œuvre. Litteratura.com,
2005. Disponível em: <http://baudelaire.litteratura.com/salon_1846.php>. Acesso em: 25 abr.
2008.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 5ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras
escolhidas, 1).
COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da
figuração. In: PARENTE André (org.). Imagem-máquina: a Era das Tecnologias do Virtual. 3ed. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 2001. p. 37-48.
CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
FOSTER, Hall. Design and crime: and other diatribes. London: Verso, 2002.
GAMARRA Heshiki, Sandra. LiMAC en el Musac. LiMAC. 2007. Disponível em: <http://www.
li-mac.org/index.php?id=41>. Acesso em: 29 abr. 2008. Publicado originalmente no Catálogo
Emergencias, Museo de Arte Contemporáneo de Castilla y León, 2005.
HOLLIER, Denis. On Paper. In: DAVIDSON, Cynthia C. Anymore. New York: MIT Press, 2000.
p. 58-61.
Antinomia: Contradição entre duas leis ou princípios. Conflito Departamento de Propaganda, havia logrado grande sucesso na conquista
entre duas asserções demonstradas ou refutadas, aparentemente
do coração do povo alemão.
com igual rigor.
Tautologia: Raciocínio que consiste em repetir com outras O passeio tinha um propósito claro: estudar o exemplo de Paris
palavras o que se pretende demonstrar para fazer de Berlim a grandiosa capital que o novo império precisava. O
dicionário AURÉLIO, 2005.
arquiteto e o escultor, criadores de grandiosos projetos públicos erigidos em
homenagem à raça e à nação alemãs, eram indispensáveis ao planejamento
1ª antinomia: autonomia versus subordinação? (compromisso?)
desse novo universo simbólico que o povo vencedor estava construindo.
Também Richard Strauss, Leni Riefenstahl e Martin Heidegger, dentre outros,
Vale lembrar um episódio esclarecedor ocorrido durante a 2ª Guerra
haviam sucumbido à sedução da nova ideologia, de maneira semelhante
Mundial: um passeio de carro em Paris. Depois da bem sucedida campanha da
à adesão de D’Annunzio ou Marinetti (e o movimento futurista em geral) à
França, onde Hitler efetivamente testou a eficácia da sua blitzkrieg, as tropas
atração fatal do fascismo italiano.
nazistas ocuparam Paris em junho de 1940. Os detalhes daquele vergonhoso
Mas essa aliança entre arte e poder político não acontece somente
momento da história da França são aqui irrelevantes: o Marechal Pétain, a
nos regimes imediatamente identificados como totalitários. Hoje, quando
República de Vichy… Importa-nos um episódio: o passeio de carro que Hitler,
alguns arquivos da CIA já ultrapassaram o período de segredo e foram abertos
o conquistador, fez em Paris, logo depois de firmado o armistício. Paris não
ao público, sabemos que várias exposições e eventos ligados à explosão
é somente uma cidade, é um mito que, por quase um século e meio, tinha
do expressionismo americano na década de 1950 foram financiados pela
dominado a arte e a cultura europeias. O 3º Reich pretendia assentar as bases
tristemente célebre agência. O movimento era perfeito para fazer oposição ao
de um império milenar; e Hitler ia acompanhado, nesse passeio, por dois
realismo socialista soviético: era abstrato e exaltava a liberdade individual…
artistas convidados: o escultor Arno Breker e o arquiteto Albert Speer, que
Além disso, na virada de poder que estava acontecendo, os EUA precisavam
já haviam colaborado em vários projetos cruciais à transformação da nova
de uma boa vanguarda americana para estabelecer definitivamente Nova
nação alemã. Aliás, os artistas e intelectuais tinham sido decisivos: Goebbels,
Iorque como a capital mundial das artes e da cultura.
por exemplo, jornalista, escritor, amante das artes, grande orador e chefe do
Mas, se na virada midiática tudo é igualado na noção genérica de Diante das perplexidades dessas perguntas, a única conclusão possível
imagem-mercadoria (midiática), nessa outra virada epistemológica, a dos não poderia ser outra senão uma tautologia. Foster, em outro artigo3, nos
estudos culturais, tudo torna-se representação. E aí o outro termo da antinomia fala que o funeral da arte foi para um cadáver errado e nos apresenta uma
não poderia ser senão o dos estudos visuais. Não se trata aqui de questionar prova contundente: ainda se produz arte e, sobretudo, arte significativa.
nenhum dos dois campos, porque a pergunta inicial não é a de quem está Aqui podemos repetir a sua conclusão: apesar dessas antinomias insolúveis
errado, mas aquela que visa definir se sobra algum espaço para a arte, se (na antinomia, por definição, os dois lados opostos estão certos, ou então
ela ainda tem um objeto e uma especificidade ou se ela, definitivamente, estão errados), apesar da política, da antropologia, do assédio da mídia, da
se dilui nesse corpo que poderíamos chamar (nesse caso) “campo de luta economia e das ciências sociais em seus velhos ou novos paradigmas, mas
social pelas representações” (mas que nas outras antinomias chama-se também a partir deles, a arte continua encontrando sempre um espaço para
“política”, “sociedade”, “cultura”, “economia” etc.). Porque talvez sejam isso ser produzida, para questionar e assinalar essas próprias antinomias. Ou seja,
os estudos culturais e sua contraparte, os estudos visuais: a desconstrução que a arte não está morta porque está viva. Ou ainda que está viva porque
das microfísicas de poder que regulam a conformação dos campos e regimes não está morta! O seu funeral será sempre para um outro cadáver.
discursivos a partir dos quais a realidade é representada. É obvio que a arte
– como caldo primitivo (pré-simbólico?) no qual se elabora e molda a pasta
essencial com a qual damos nome e rosto à realidade – tem muito a ver com
esses jogos de poder que estão por baixo e por cima das representações. Notas
Mais uma vez, podemos reduzir a arte a isso apenas? E, por outro
1
FOSTER, Hall. Design and crime. Chapter 6. Pages 83 – 103. Verso, London, New York, 2002.
lado, porque a arte teria o direito de aspirar ser algo mais que isso? Nessa
2
virada antropológica (a arte como mais um elemento desse grande universo FOSTER, Hall. O Artista como etnógrafo. Arte & Ensaio, Rio de Janeiro, n. 12, 2005 (Revista do
Progra-ma de Pós-Graduação em Artes Visuais - PPGAV/EBA/UFRJ). Pág. 137 – 151.
chamado “cultura”), “autonomia” virou uma palavra ruim, e o seu sinônimo
3
passou a ser “autismo”, mas isso justamente porque, no fundo, o seu termo FOSTER, Hall. The Funeral is for the wrong corpse, in Design and crime. Chapter 8. Pages 123 –
143. Verso, London, New York, 2002.
oposto na antinomia é percebido como “engajamento” ou, ainda, como
“responsabilidade”. Mas, será que lutar para que a arte tenha o seu próprio
espaço seria só isolamento masturbatório, ou ainda soberba das pessoas que
pertencem ao campo das artes? Ou seriam só restos das filosofias essencialistas
e idealistas, que fazem com que ainda acreditemos nesse fantasma chamado
de “Arte”, com 'A' maiúsculo?
“Qual pode ser o papel dos artistas no desenvolvimento de sociedades Os coletivos apresentam formas de produção que muitas vezes
em transição”?1 Esta pergunta foi feita para coletivos de diferentes partes comprometem o recolhimento sugerido pelo objeto artístico. Vão além da
do mundo, em um encontro em Jacarta, em 2002, realizado pela RAIN possibilidade de confecção de um objeto a ser exposto em espaços separados
(Rijksakademie van beeldende kunsten Amsterdam). Muito antes das respostas e limpos, a serem fruídos silenciosa e individualmente. Em suas práticas são
aludirem a um eventual papel social da arte, elas remetem à influência dos embutidas estratégias, que mergulham no caos da heterogeneidade urbana e
artistas sobre o desenvolvimento sócio-cultural do seu entorno, como sugere lançam maneiras de como lidar com o fenômeno da cidade usando o próprio
a História da Arte. “Como qualquer outro fenômeno, a arte bombardeia a corpo e a própria experiência. Experimentações que contam com um ou mais
imaginação com uma pletora de questionamentos sobre a realidade da autores e incorporam o público como agente de uma obra em aberto, tornando
existência”, escreveu o Centre Soleil, de Mali. ainda mais complexa a questão da autoria.
Como demonstram diversos depoimentos colhidos para a publicação
do Shifting Map, a variedade da experiência desses artistas em diferentes Kaza Vazia, a “galeria de arte itinerante”
contextos transita entre a imposição de uma censura por parte dos governos e
o apoio sedutor de empresas multinacionais que oferecem financiamento em Em dezembro de 2005, Belo Horizonte abriga a primeira ação de
troca de uma aliança de “amizade”. Os relatores e debatedores dessa publicação, um conjunto de artistas2 advindos da EBA/UFMG em busca de um espaço
além dos organizadores e críticos convidados, são todos integrantes de coletivos dinâmico e independente para produção e disseminação artística. Às margens
de arte. São artistas que desenvolvem, às vezes em paralelo às suas carreiras da Lagoa da Pampulha, e vizinha ao MAP (Museu de Arte da Pampulha) uma
individuais, iniciativas ligadas a formas de organização coletiva, movidos pelo casa em ruínas se converte em atelier aberto por duas semanas. Durante este
interesse em mudar algo em seu ambiente local e criar condições favoráveis à período, a casa acolheu os artistas e suas intervenções temporárias. Diante da
experimentação em arte e ao trabalho em grupos. reflexão sobre o espaço público, do embate entre os interesses da instituição
e os do artista surgem inúmeras possibilidades de desdobramento da prática
artística. O desejo pelo desate das amarras institucionais viabilizou a criação
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Deve ser dita nobre a mente que tenha o dom de tornar infinitos, Buren e Miwon Kwon); temos, ainda, artistas que propõem e realizam
pelo modo de tratamento,
intervenções arquitetônicas e urbanas (como Mônica Nador, Rirkrit Tiravanija
mesmo o objeto mais mesquinho e a mais limitada empresa.
É nobre toda forma que imprime o selo da autonomia àquilo que, e Navjot Altaf – para citar apenas três) e arquitetos que participam das mais
por natureza, apenas serve (é mero meio). importantes mostras de artes plásticas do mundo (como foi o caso de Jorge
Um espírito nobre não se basta com ser livre;
precisa pôr em liberdade todo o mais à sua volta, Mário Jáuregui, na 12ª. Documenta de Kassel).
mesmo o inerte. Neste contexto, como considerar as aproximações e indefinições
Schiller 1
no universo das práticas contemporâneas desenvolvidas por artistas e
arquitetos – sobretudo entre aquelas que envolvem interações, participações
Não é de hoje que arte e arquitetura se esbarram, atuam e colaborações?
conjuntamente e muitas vezes se fundem na mesma obra ou no mesmo autor. Se, por um lado, a arquitetura sempre foi pensada como “arte utilitária”,
Desde os renascentistas – Michelangelo (1475-1564) –, passando por figuras por outro, as artes visuais e performáticas quase sempre foram vistas como
como Gaudí (1852-1926) – com sua arquitetura plasticamente artística – e objetos e espetáculos contemplativos. E se hoje a arquitetura busca “modelos
Hundertwasser (1928-2000) – com sua arte aplicada à arquitetura (a ponto alternativos de ação no mundo”, busca tornar-se um “agregado sensível”, capaz
de tornar-se conhecido como “o médico da arquitetura”), pela proposta de redesenhar ou mesmo reinventar as relações entre sujeitos e ambientes,
de integração das artes da Bauhaus (1919-1933), pelos Penetráveis e pelas preocupando-se também com a criação de espaços imateriais para além dos
Manifestações Ambientais de Hélio Oiticica (1937-1980), pelos situacionistas – espaços físicos, a arte há muito deixou de se pautar na visualidade e no objeto,
com suas derivas, situações construídas e desvios (1957-1972), até chegarmos passando a acontecer no fluxo dos deslocamentos e nos espaços cotidianos
às práticas artísticas contemporâneas. da própria vida, adentrando definitivamente o espaço real (vide, em especial,
Além dessa constatação, atualmente temos a ideia de “arte como as propostas de community-based art). Se antes se falava em “usuário” para
projeto” (conforme colocada pela crítica Kiki Mazzucchelli)2 , as propostas a arquitetura e em “público” para a arte, agora se fala em “participante”,
site-specific ou in situ (discutidas por nomes como Clare Doherty, Daniel “colaborador” ou “coautor”, para ambas. O próprio site-specific deixou de ser