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INTRODUÇÃO

Vivemos tempos de múltiplos paradigmas1 para a arte, podemos ser clássicos, modernos, contemporâneos, e
todos vivemos sob o mesmo céu e cabemos no mesmo espaço. Nós, artistas, somos treinados e educados no
caos de referências do século XXI, não há uma prática, uma forma, um modo ou um valor que definam a
obra de arte ou o artista. Por entre a desmultiplicação de objectos, textos e obras, devemos encontrar o
nosso caminho, sabendo de antemão que deambulamos no território onde tudo é permitido, mas tudo é
permitido apenas ao artista. Ainda artistas não somos e já nos perdemos num mundo onde o infinito e a
desrregulação iludem e escondem como biombos a possibilidade de um caminho. Mas com a persistência
em punho e gritando certezas encontramos um caminho, agora é o próprio caminho que parece estar
assente num território sem fundações que constantemente se move, e essa deslocação aumenta na proporção
directa de caminho percorrido. Fazemos o caminho na certeza de que é a coisa certa a fazer, quando na
verdade o que importa é definir o território sobre o qual essa estrada está assente.
É a paisagem que se vê do caminho que importa criar, até finalmente emprestarmos ordem a um universo
desprovido de estruturas e hierarquias, ordem essa exclusiva e da nossa autoria. Esta é a obra, este é o
trabalho – criar a paisagem para o nosso caminho (e construir miradouros para os que nos seguem).
Os textos que se seguem devem ser miradouros ( melhor definição que pontos de vista ) para o meu
trabalho. Tal como a vista de um miradouro são lugares específ icos de observação de um mundo que se
pretende infinito, e prolongando a comparação, implicam a acção/deslocação dos que a eles querem aceder.
Importa agora iniciar o lançamento de palavras que confio serem certeiras, embora desconheça os alvos,
para que a paisagem se cumpra, e a minha obra possa iniciar o seu caminho.

1 Entre o classicismo mimético, o progresso modernista e a fractalidade da arte contemporânea vão se comtaminando e
intercruzando palavras: pós-moderno; pós-contemporâneo; alter-moderno; neo-formalismo; pós-pictórico; etc.
Usamos as palavras e preguiçamos na sua definição, construimos um texto como quem constroí uma prateleira que
deve ser grandiosa pois o que ela vai suportar assim o merece, mas colocamos o frasco com a etiqueta no seu topo e
desconhecemos que coisas cabem no seu interior.
NOTAS SOBRE ARTE

Não podemos desligar a Arte de um gesto inaugural de sepultura, esse momento ancestral de nascimento do
Homem em que aconteceu a necessidade de criar - para um corpo - um lugar, uma construção, uma marca
que ocupasse o lugar de um homem, que preservasse uma memória, que celebrasse um indivíduo, um
conjunto de pedras que espelham uma memória dos vivos. É essa a qualidade que transforma as rochas em
pessoas, que permite amar, matar e morrer por um terreno, falar com estrelas, ou chorar árvores. É esse
ganho de sentido que a arte continua a operar, uma alteração de categoria, uma criação.
Hoje a ausência de uma ligação ao transcendente separou a Arte da Religião, a Arte adquiriu novas
aparências, novos meios, técnicas, tecnologias, matérias, mas continua a romper os dias ordinários com uma
vertigem de relíquia sem sagrado, a fazer-nos olhar para um lugar no qual nada nos olha de volta que não
nós próprios, constroí um espelho discriminante e aponta ou nomeia como se não houvesse ainda homens
na terra, cada vez que acontece é um mundo que se inaugura, e um novo infinito que aparece.
Arte com um Deus ausente portanto, mas na qual sobra um homem, um homem que é aqui o resto de
Deus, a areia da praia que restou da erosão ocidental da montanha, podemos advinhar a montanha que
existia mas também a força que a destruiu, olhamos a areia e comprendemos o poder tectónico que a
formou, o tamanho da montanha, a força do vento, e com os pés assentes na areia quente agradecemos a
areia.
É a Arte que nos pode devolver a vertigem de ser Homem, não acreditamos já em Deus, não acreditamos
nos homens, nem no proletariado, na burguesia ou nos cristão, mas resta ainda o Homem que faz, que
constroí novas montanhas para destruir.
Não podemos já ser canais de algo superior, no entanto todo o que já experimentou um acto de criação sabe
que há um momento onde estamos longe da espuma dos dias, separados do plasma viscoso que abraça o
quotidiano, estamos simultaneamente afastados de nós próprios e comungamos de um momento de
lucidez, sentimos que fazemos algo que apenas nós o podemos fazer e encontramo-nos suspensos sem fé
nem medo.
NOTAS SOBRE A FOTOGRAFIA.

Sobre a qualidade indiciária da Fotografia não será necessário muitas mais referências, ela permite à
Fotografia funcionar como lista infinita de um mundo físico e real, como cotas de livros de uma qualquer
biblioteca, com a diferença de que as próprias cotas alteram o livro que se vai ler. Enquanto objecto
qualquer fotorafia estabelece uma relação seminal com uma parcela da realidade. Ao faze-lo ela rompe as
barreiras de possibilidade ou probabilidade para se declarar realidade, ela torna-se mais do que indiciária,
torna-se testemunho. A diferença essencial entre as duas é na relação estabelecida com a verdade; por
testemunho entendemos um objecto (relato, rasto, indício, etc.) que reporta algo que se passou de uma
forma objectiva.
Agora uma vez que a Fotografia é apenas uma parcela dessa realidade e apresenta-se como defecitária da
percepção, constantemente nos equivóca, não porque seja mentirosa, mas porque ao se apresentar de uma
forma tão semelhante ao real que observamos, transforma-se em real ela própria e, incapazes de
compreender o jogo fotográfico, utilizamos as regras e ferramentas de avaliação do quotidiano.
A Fotografia é demasiado parecida, demasiado semelhante, demasiado ligada ao real, que nos impede de
olhá-la como uma construção. O absoluto minimalismo do gesto que lhe dá origem (carregar no botão), a
banalidade contemporânea desse gesto2, afasta a Fotografia da razão e coloca-a ao lado do empírico,
confundimos a Fotografia com a fome, o frio, ou a dor física, e esta categoria não permite olhá-la como
construção3.
Estas qualidades deslocam o espectador da fotografia do acto de criação (construção) para o lugar do
fotografado. Mesmo em imagens de autores que utilizam produções megalómanas como Jeff Wall ou
Gregorie Crewdson numca nos distanciamos totalmente de questões relacionadas com as pessoas que
representam ou os cenários retratados.

2 E o seu carácter transversal e transcendental que nivela todos os Homens e coloca-os ao lado de um Deus ausente, esse
gesto que serve para ligar a televisão ou lançar uma bomba, atirar uma bala ou acender uma luz, e que todos podemos
realizar com igual competência.
3 Mas enganamo-nos. Enquanto disciplina a Fotografia exige competências refinadas, quer da ordem técnica, quer da
ordem da criação, não é de todo uma disciplima simples ou simplista, apenas se disfarça de elementar.
SOBRE A FOTOGRAFIA QUE DOCUMENTA

Para um fotógrafo, encarar o sujeito de uma fotografia como algo que importa documentar signif ica que a
fotografia será ditada pelo objecto perante si, serão as qualidades que tornam esse objecto nele próprio que
devem ficar registadas, a fotografia-documento resolve-se na compreensão do fotógrafo de um objecto, na
sua capacidade de encontrar as suas qualidades e especif icidades escolhendo o ponto de vista,
enquadramento, foco, que determinarão a justiça do documento.

Será portanto um encontro: Um fotógrafo, defronte a algo, tenta desaparecer da fotografia para que nela
encontre lugar a descrição desse algo único que determina a essência de um sujeito, tornar a fotografia ainda
mais transparente do que ela naturalmente é, abandonar toda a expressão enquanto manifestação do
fotógrafo, e deixar que esse lugar seja ocupado pela impressão de uma discreta parcela de realidade que dê a
ver.

O fotógrafo que documenta é o que reconhece as particularidades que alicerçam o signif icado e constroí um
significante visual onde elas se tornam não só visíveis, mas enfáticas. Impõr ao espaço conotativo da imagem
um lugar de dedução que recuse a arbitrariedade.

Embora a fotografia aparente operar uma subtracção perceptiva da realidade4 ao não captar as dimensões
temporal e espacial, na verdade ela revela na superfície o tempo, o tempo das coisas e o tempo do fotógrafo.
O congelamento fotográfico é simultaneamente uma paragem do tempo e uma porta que se abre para um
outro tempo, as superfícies agora congeladas permitem a observação de todo o tempo que passou, algo
impossível de observar enquanto ele passa, ela subtrai o tempo a passar mas oferece ao nosso olhar a
possibilidade de analisar todo o tempo passado, o que não seria possível sem o parar. A estes tempos
podemos juntar o tempo que demora a impressionar a película com luz, o tempo necessário para tornar
visível, um tempo de construção de um objecto, de escultura através da luz no infinitamente pequeno ( mas
não imaterial ) espaço da película fotossensível.

4 FRADE, Pedro Miguel; “Figuras de Espanto-A Fotografia antes da sua cultura”; Lisboa; Edições ASA; 1992 – pag. 94 “
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA FOTOGRAFIA NAS IMAGENS DOS OBJECTOS.

As construções são de funcionamento improvável, a sua própria função apontada pelo texto do título é de
longínqua utilidade. Estando perante o objecto, e não a fotografia do objecto, o espaço de plausibilidade é
destruido, substítuido por uma função escultórica de espaço e corpo ( quase sinónimos ).
A capacidade indíciária da fotografia5 traduz o objecto em potência, e o seu congelamento vai emprestar
plausibilidade á funçionalidade, prolongando no tempo a hipótese de aqueles aparelhos funcionarem. A
fotografia abre um campo evocativo de acções, activa aqueles objectos que sem ela estariam para sempre
estáticos, é a fotografia que os faz viver, ou animar. Toda a mise-en-céne cuidadosa, a iluminação, o
enquadramento pretendido como documental, contribuem para a aparente transparência das imagens e
somam possibilidade por cima de possibilidade à existência actuante daqueles aparelhos.

Assim vistos eles vivem de uma intenção, que no seu caso substitui o funcionamento apontado. Ao roubar-
lhes a possibilidade de serem dotados de uma actividade que perdure no tempo a fotografia fá-los viver
como intenção. Toda a superfície da imagem está revestida de intenção. Que intenção é esta?
A intenção dos objectos funcionarem, claro. Mas que objectos é que devem funcionar?

1- uma “Armadilha para calhaus de quartzo”


2- um “ Calha de acelaração de rosas”
3- uma “Plataforma de ignição espontânea Assistida”
4 – um “Bloco de captura”
5- um “ Buraco para captura de água da chuva”
6- um “Aparelho de obturação central”
7- um “Anel de rotação para elevamento ao longo da montanha”

Todos eles de duvidosa utilidade, e de construção rústica, como se a vontade de os construir substituísse a
sua razão para existir: a vontade torna-se a sua razão de existir.
A fotografia impõe uma funcionalidade absurda mas plausível, ao objecto fotografado.

5 Sobre o carácter de index da fotografia podiam surgir inúmeras referâncias, eis algumas:
SONTAG, Susan; “Ensaios sobre fotografia”; Trad. José Afonso Furtado; Lisboa; Pub. Dom Quixote; 1986; pp 15-16
“...há sempre a presunção de que algo existe ou existiu, algo que é semelhante ao que vemos na imagem.”

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