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Socialismo e democracia: elementos para uma reflexão


por Vinícius dos Santos1

Resumo: O objetivo é trazer alguns elementos para a reflexão acerca das


possibilidades de retomada do ideal socialista neste século XXI. Num primeiro momento,
delinearemos nossa compreensão do socialismo, bem como o meio através do qual cremos ser
possível retomá-lo num horizonte próximo: uma revolução democrática que, radicalizando a
democracia para além dos parâmetros liberais, permita a constituição de uma hegemonia
socialista no interior da sociedade civil e do Estado. Ao final, indicaremos alguns aspectos do
papel que, a nosso ver, o PT, enquanto maior partido de esquerda da América Latina, deve
desempenhar neste processo.
Palavras-chave: Democracia; Socialismo; PT.

Passado, ao que tudo indica, o boom do pensamento econômico neoliberal, que teve
início com a crise do Estado de bem-estar social nos anos 1970 (embora políticas de cunho
neoliberal continuem sendo executadas pelo mundo, como recentemente, no caso da Reforma
da Previdência francesa); e com o mundo capitalista mergulhado nos efeitos de mais uma
crise econômica (a pior desde 1929), que, combinada a uma crise ambiental sem precedentes,
ameaça concretamente a própria existência humana; parece mais do que urgente retomar a
ideia de construção de uma sociedade pós-capitalista. Se o tema nunca esteve fora de pauta
para aqueles que, desde sempre, lutam contra a exploração e a opressão, por um mundo mais
justo e solidário, é inegável, contudo, que a ideia de uma revolução na ordem social, após a
ruína do sistema soviético e de seus satélites, teve, como um de suas consequências mais
devastadoras, a perda substancial da atração que os ideais libertários do socialismo exerceram
em grande parte da população mundial ao longo dos séculos XIX e XX. Nesse sentido, é
particularmente alentador (re)encontrar, nas universidades, e dentro de grandes partidos
políticos como o PT, intelectuais e dirigentes preocupados em retomar, no cenário do século
XXI, a pauta do socialismo.
Sem pretender fazer um balanço exaustivo das experiências socialistas do século XX,
o que fica claro para toda a esquerda, ao final da primeira década deste século, é que, se
quisermos construir o socialismo como modo de produção e organização da vida social

1
Bacharel em Ciências Sociais e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos/SP. Atualmente,
é Doutorando em Filosofia nessa mesma instituição e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP). E-mail: vsantos1985@gmail.com.
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alternativo e efetivamente superior ao capitalismo (não apenas na esfera da produção, mas em


todos os setores da sociedade), sem, com isso, abrir mão das conquistas que a humanidade já
obteve (inclusive sob o domínio do capital), torna-se imprescindível colocarmos no centro do
debate a questão da democracia como elemento político básico do socialismo: é preciso, com
efeito, recuperar a utopia socialista para o século XXI, lançando as bases de um socialismo
radicalmente democrático. E é com o intuito de contribuir um pouco com este importante
debate, que escrevemos o texto a seguir. Talvez nada haja aí de propriamente novo ou
original. Mas, se uma das tarefas mais importantes do filósofo é convidar à reflexão,
sobretudo daquilo que nos escapa frequentemente por conta das amarras do cotidiano, as
próximas páginas então parecem plenamente justificadas.

É fato que um crítico poderia argumentar que a História, de pronto, dissiparia nossa
pretensão: socialismo e democracia seriam termos contraditórios entre si, como as
experiências do mal denominado “socialismo real” do século XX teriam provado. Com efeito,
o exame histórico, em tese, demonstraria a incompatibilidade da socialização dos meios de
produção, palavra-de-ordem básica do socialismo, com a democracia e a liberdade individual,
estes últimos os alicerces do capitalismo e da política liberal. Assim sendo, não haveria
alternativa possível: ou se optaria por uma sociedade socialista, que em nome da igualdade
social, esmagaria a liberdade do indivíduo; ou se optaria pelo capitalismo, a democracia e a
liberdade, ainda que as injustiças sociais inevitavelmente continuassem a existir. Nesse
sentido, seria preciso ainda reconhecer que a opção já teria sido feita, global e historicamente,
a favor do capitalismo e do liberalismo.
Este argumento, embora aparentemente construído com base na experiência histórica,
é, na verdade, uma grande falácia. Ele parte de premissas falsas, ou incompletas, com o
intuito de atingir um resultado igualmente falso, mas política e ideologicamente convincente,
porque se sustentaria pela própria verdade histórica. O núcleo enganoso do argumento
compõe-se de dois eixos complementares: a) afirmar que o socialismo naturalmente tenderia
ao despotismo, porquanto a exigência de “socializar os meios de produção”, significaria, na
prática, acabar com a liberdade individual. Não havendo mercado, todos os indivíduos ver-se-
iam obrigados a submeter suas vontades, desejos e anseios particulares ao comando de um
Estado centralizador, responsável por controlar todos os domínios da vida social; b) e, para
que isso fosse possível, no plano político, o socialismo demandaria a ditadura de um partido
3

único, que enquanto “expressão consciente das massas”, segundo a clássica fórmula de Lênin,
não poderia admitir pensamento alternativo, nem em seus quadros internos, tampouco na
sociedade civil, porquanto o dissenso colocaria em risco todo o processo revolucionário.
Ora, é fato que o socialismo que triunfou no século XX tendeu, ora mais abertamente,
ora menos, para o quadro esboçado acima. O que, porém, não é possível afirmar, é que o
socialismo soviético – que, por circunstâncias históricas, tornou-se o modelo de todas as
revoluções socialistas subsequentes – sobretudo no período de sua degeneração stalinista, é o
único (ou privilegiado) padrão possível de concebermos uma sociedade socialista. Na
verdade, é o contrário, como veremos.

Marx definia basicamente esse sistema no já mencionado conceito de “socialização


dos meios de produção”, que ele opunha à apropriação privada capitalista. Na ótica marxiana,
o capitalismo, ao separar o trabalhador dos instrumentos de seu trabalho, por meio da
propriedade privada dos meios de produção (fábricas, máquinas, terras, etc.), afasta, por
conseguinte, o homem dos frutos de seu próprio trabalho. Com isso, o trabalhador
paradoxalmente deixa de se reconhecer naquilo que ele mesmo produziu (o que configura o
modo essencial da alienação capitalista) 2. De fato, sem alternativas, ele se vê obrigado a
vender o único bem que possui – sua mão-de-obra – ao proprietário dos meios de produção,
em troca de um salário que, segundo a lógica de reprodução do capital, deve ser
necessariamente menor do que a riqueza que ele ajudou a produzir. O homem, assim, torna-se
mais uma mercadoria, passível, como todas as outras, de ser comprada e vendida no mercado.
Há uma passagem dos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx, em um capítulo brilhante
3
intitulado “Trabalho estranhado” que esclarece definitivamente o núcleo do trabalho no
modo de produção vigente. Diz o filósofo:

“O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais
a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma
mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do
mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos
homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao

2
É interessante notar que, para Marx, a partir dessa primeira forma de alienação, segue-se que o homem deixa de
se ver, também nas demais esferas de sua vida, como agente criador de sua história e da sociedade em que vive.
Economia, política, legislação, moral, religião, cultura: tudo aparece diante de seus olhos como algo estranho,
independente, eterno e imutável, dotado de uma força própria e inexplicável. Em outros termos, o homem se vê
como se não fosse, ele próprio, o responsável por criar e preservar essas atividades exclusivamente humanas.
3
Algumas traduções optam por “trabalho alienado”.
4

trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato,


mercadorias em geral” 4.

Com efeito, o socialismo, desde sua vertente “utópica”, anterior a Marx (Owen,
Fourier etc.), definiu-se, em linhas gerais, como um modo de produção e distribuição
igualitária da riqueza socialmente produzida, e que seria capaz de emancipar o homem da
alienação capitalista, revolucionando todos os setores da vida social e privada que, sob o
domínio do capital, organizam-se de modo cada vez mais mercantil. Para tanto, seria
necessário repassar ao conjunto da sociedade a propriedade dos meios de produção. Seria
preciso, portanto, socializá-los, de tal forma que os produtos do trabalho pudessem ser
repartidos de maneira mais equânime entre todos. Nas revoluções do século XX, essa
exigência foi traduzida pelo conceito de “estatização dos meios de produção”, o que,
conforme veremos, é bem diferente. A lógica da fórmula estatizante, como se sabe, era a
seguinte: uma vez que o poder do Estado está nas mãos dos trabalhadores, e posto que todas
as empresas sejam estatais, elas, por consequência, tornam-se propriedades dos trabalhadores,
ficando sob seu amplo controle. Desnecessário dizer o quanto esse pensamento, a princípio
bastante coerente, se mostrou, na prática, completamente equivocado. Como explica Paul
Singer, afirmar que, porquanto os meios de produção sejam estatais (mesmo no caso de um
estado operário, como na antiga URSS), os trabalhadores serão consequentemente seus
proprietários, “não passa de uma ficção jurídica” 5. Na prática, quem controlava a economia
era a cúpula do partido, que se confundia, aliás, com a cúpula do próprio Estado. O triste fato
a se constatar é que, embora com novos “patrões”, a subordinação econômica basicamente
permaneceu, ainda que com outra roupagem. Não havendo distinção entre Partido e Estado,
homogeneizando monoliticamente a sociedade civil (que, de fato, deixou de existir), nem
mesmo a democracia direta dos soviets foi capaz de modificar a situação, uma vez que
inclusive estes órgãos legítimos de exercício democrático foram paulatinamente controlados
por quem monopolizava o poder estatal e o econômico. Substituiu-se, na prática, uma forma
de ditadura por outra.
No entanto, como já advertimos, não é isso o socialismo que defendemos, embora seja
imperativo reconhecer, nas experiências socialistas do século XX, ganhos importantes
(sobretudo no campo social e no da produção econômica) para seus respectivos povos, e
lições práticas que nos servem ainda hoje. Mas, então, o que definiríamos como socialismo?
4
MARX, 2004, p. 80.
5
SINGER et al., 2001, p. 77.
5

Para abrir o debate, ficamos provisoriamente (porquanto não há uma definição completa do
que seja o socialismo) com a concepção de Tarso Genro, extraída de um estimulante ensaio,
cujo título provocativo é justamente: “É possível combinar democracia e socialismo?”. Diz o
autor:

“[O socialismo é um] certo tipo de organização da sociedade cujos mecanismos de


funcionamento de sua economia, do seu sistema financeiro, dos seus processos de
trabalho e de lazer, das suas instituições de enlace entre os diversos fatores da
produção tenham como finalidade eliminar a carência, reduzir crescentemente as
desigualdades sociais, culturais, interregionais. Uma sociedade de tal modo
organizada que expanda as possibilidades de os indivíduos decidirem sobre a
própria vida privada, sobre as formas e os meios através dos quais eles vão cumprir
as suas obrigações coletivas para colaborar para uma boa vida da coletividade,
medida ‘pela qualidade de vida dos seus membros mais fracos’ 6” 7.

Nesse cenário, a exigência de socializar os meios de produção não poderia mais ser
confundida com a pura e simples passagem daqueles às mãos do Estado (por conseguinte, da
burocracia estatal). Na verdade, como observa Paul Singer, socializar deve significar, antes de
tudo, “descentralizar o poder, ou seja, o controle dos meios de produção tem que ser exercido
diretamente pelos trabalhadores sobre cada unidade produtiva”. Isso, de fato, vai além da
simples prática de expropriação dos grandes meios de produção – que, no entanto, continua
sendo necessária. Ademais, não pode se tratar de um movimento restrito à esfera diretamente
produtiva: “é [igualmente] preciso que os consumidores também participem desse controle,
sobretudo se quisermos abrir mão dos mercados” 8. O primeiro passo nessa direção é pensar
uma nova regulação da economia, imposta e pautada pelo interesse público (numa palavra:
trata-se de subordinar crescentemente a economia à política) 9, e que, em médio prazo, dê

6
A expressão, conforme explica o autor, é de Zygmunt Bauman. Não entraremos em detalhes a respeito, mas
fica claro que, nessa concepção, não há ideia de uma igualdade absoluta – logo, artificial – entre todos os
indivíduos.
7
GENRO. In: GENRO et al., 2008, p. 27.
8
Ambos: SINGER et al., op. cit., p. 78.
9
Ainda nos valendo de Paul Singer: “Parece claro que a economia socialista precisa encontrar um modo
diferente de regular a economia, que seja democrático e participativo e pelo qual toda a sociedade possa
manifestar suas preferências. Isso leva a crer que esse novo modo de regulação terá de ser explicitamente
político, reconhecendo de partida que os cidadãos têm interesses, percepções e preferências diferentes e que o
modo de regulação deve permitir o confronto e a negociação dessas diferenças com o fim explícito de produzir
ou um consenso ou, se este for impossível, uma posição majoritária” (SINGER et al., op. cit., p. 38).
6

origem a uma nova tipologia da empresa10, que nos permita vislumbrar, paulatinamente, a
extinção do mercado capitalista.
Destarte, não é nenhum absurdo pensar que numa sociedade socialista, ao menos num
primeiro momento (o único de fato possível de ser delineado atualmente), possam conviver
formas diversas de propriedades (estatal, pública não-estatal, cooperativas e mesmo
propriedades privadas de pequeno e médio porte), desde que a produção econômica e a
distribuição dos bens e da riqueza estejam sempre pautadas pelo interesse coletivo. Vê-se,
nessa concepção de uma economia socialista, que ela tem como contrapartida necessária um
regime democrático, capaz de exercer o controle e impor prioridades na esfera da produção.
Claro que, neste caso, não se trata mais de uma democracia formal, nos parâmetros liberais,
mas de uma democracia substantiva, “que não acabe na porta da empresa”, como ocorre com
frequência no capitalismo. É justamente aí que, a nosso ver, adentramos no terreno comum e
dialético entre o socialismo como modo de produção e organização econômica e democracia
como modo de produção dos processos políticos.
Com efeito, para que a organização da economia seja capaz de superar a anarquia do
mercado capitalista, sem ao mesmo tempo cair no “estatolatria” do planejamento centralizado
soviético11, é preciso uma transformação constante de todas as esferas públicas, capaz de
lançar as bases de uma sociedade “conscientemente planejada”, para nos valermos,
novamente, da feliz expressão de Tarso Genro. Essa se dará, com efeito, por intermédio de
uma revolução política permanente, capaz de ensejar o avanço da participação popular nos
processos decisórios, sempre a partir das condições dadas, ampliando a democracia em
direção a todos os setores da vida social, até o ponto em que possam confluir propositalmente
para o mesmo fim: a emancipação do homem da alienação capitalista, e o estabelecimento de
uma sociedade justa, mais igualitária e fraterna.

II

10
“Quanto à tipologia das empresas, numa nova visão socialista, já não seria demais configurar, técnica e
politicamente, fundamentos de uma nova teoria da empresa – a partir da importância que elas têm no avanço da
produção e da sociabilidade humana no desenvolvimento da modernidade – pensando em instituições produtivas
e de serviços, tais como empresas públicas não-estatais, empresas estatais sob controle do usuário, empresas
privadas de interesse público estratégico, instituições privadas de serviços para recuperação do capital natural,
com regimes fiscais e trabalhistas próprios, além de instituições públicas não-estatais para o cumprimento de
funções de interesse do Estado, além daquelas já existentes e das instituições cooperadas, estas muito
importantes em países altamente desenvolvidos, como a Espanha e a Itália” (GENRO. In: GENRO, op. cit., pp.
28-9).
11
Para uma crítica pela esquerda da economia soviética, ver: SINGER et. al., op.cit., pp. 11-48.
7

Contudo, parece quase impossível (e, aliás, muito pouco desejável), nas condições
atuais, pensarmos uma revolução que imporia essa nova sociedade, digamos assim, “por
decreto”, isto é, de cima para baixo. Décadas antes da completa derrocada do sistema
soviético, filósofos como Sartre e Merleau-Ponty já alertavam, com a sagacidade que lhes era
peculiar, para a dificuldade inerente a toda revolução pensada no sentido clássico do termo: a
diferença radical entre o momento revolucionário propriamente dito, e a inevitável inércia
desmobilizadora que se segue após a tomada do poder12. É justamente porque não é possível
conservar a força revolucionária presente no momento instituinte da revolução para o período
ulterior, no qual as novas forças dominantes já estão consolidadas, que, inevitavelmente, toda
ruptura brusca tende a se degenerar no cotidiano seguinte à insurreição (e mesmo a
transformar-se em força contra-revolucionária) 13.
Diante disso, vale notar que ainda no século XIX, Engels havia percebido uma
mudança panorâmica que demandaria novas táticas para o movimento socialista. Na famosa
introdução que faz em 1895 ao livro As lutas de classe na França (1848-1850), de Marx,
Engels diagnostica uma mudança nas condições de luta do movimento operário após a
Primavera dos Povos de 1848 (ano-chave na história do capitalismo). Nesse texto, o pensador
constatava que “a rebelião de estilo antigo, o combate nas barricadas, (...) estava
14
consideravelmente ultrapassado” . É fato que Engels escreveu essas linhas, motivado pelo
crescente e eficaz uso do sufrágio universal empreendido pelo proletariado alemão, que dava
ao Partido Social-Democrata (na época, um partido abertamente marxista) vitórias eleitorais
cada vez mais expressivas. Engels percebia aí um silogismo simples: com o inevitável
crescimento do proletariado industrial nos países desenvolvidos, fruto do processo de
industrialização permanente promovido pelo capitalismo, os operários, cada vez mais
numerosos, poderiam chegar ao poder nos marcos da “democracia burguesa”, isto é, pelo voto

12
Para Sartre, a força revolucionária original só poderia ser reposta, ao menos parcialmente, pelo “terror”, isto é,
pela instauração e disseminação do medo de um perigo externo, embora de fato inexistente, que, por
conseguinte, reafirmaria os laços de fraternidade do grupo ou da sociedade revolucionária. Essa estratégia,
porém, teria uma eficácia limitada. Sem a concretização do perigo anunciado, a inércia e o isolamento dos
indivíduos em sua cotidianidade voltariam a reinar. Cf. SARTRE, 1960.
13
Merleau-Ponty é preciso a esse respeito: “não é um acaso que todas as revoluções conhecidas se degenerem: é
que elas jamais podem, como regime instituído, ser aquilo que eram como movimento, e que, justamente porque
venceu e chegou à instituição, o movimento histórico não é mais ele mesmo, ele se ‘trai’ e se ‘desfigura’ ao se
fazer. As revoluções são verdadeiras como movimento e falsas como regimes. Desde então, a questão que se
coloca é a de saber se não há mais porvir em um regime que não pretende refazer a história pela base, mas
apenas mudá-la, e se não é esse o regime que seria preciso procurar, em vez de entrar uma vez mais no círculo da
revolução” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 167).
14
ENGELS, 1981, p. 218.
8

consciente, instaurando, a partir daí, as mudanças econômicas e políticas necessárias para a


implantação do regime socialista.
Sabe-se, porém, que a previsão de Engels (que, diga-se de passagem, era de Marx
também) não se cumpriu exatamente: se é verdade que o número de assalariados foi
largamente ampliado ao longo do século XX, as crescentes modificações do mundo do
trabalho, com a incorporação decisiva da ciência à esfera da produção (já prevista, aliás, pelos
fundadores do socialismo moderno), deram origem a transformações definitivas no desenho
das classes sociais, que nos desautorizam a conceber, hoje, uma sociedade dividida
fundamentalmente entre um grande proletariado industrial e a burguesia, como previa, por
exemplo, o esquema histórico do Manifesto do Partido Comunista, de 1848. Do mesmo
modo, parece menos sustentável afirmar, atualmente, que toda reivindicação progressista –
por novos direitos, contra toda sorte de discriminação e opressão etc. – tenha um caráter
necessariamente, ou mesmo essencialmente classista. Com efeito, não se pode, a partir de
uma análise sociológica atenta, crer no proletariado ainda existente como “classe universal”,
isto é, como a classe exclusiva que carregaria, no bojo dos seus interesses, os interesses de
todos os setores oprimidos15. Se isso, por si só, não invalida a intuição de Engels sobre o uso
correto do sufrágio, tampouco o papel que deve desempenhar o proletariado nos processos de
transformação social, e menos ainda a verdade da luta de classes, o novo desenho das classes
sociais coloca algumas dificuldades reais, não apenas quanto à análise sociológica, mas,
sobretudo no que diz respeito à prática política cotidiana (isto é, a pauta dos partidos de
esquerda, dos movimentos sociais, e mesmo das ações de governo) e à possibilidade de
encontrar um discurso capaz de unificar as diversas classes não-proprietárias, quer dizer, os
trabalhadores em geral, bem como todos os setores oprimidos pelo capitalismo, no sentido de
constituir um bloco social-popular capaz de agenciar novas condições de transição para uma
sociedade socialista.
Não se trata, aqui, de delinear o discurso unificador que orientaria a formação desse
bloco. Cumpre apenas alertar para o fato de que ele claramente não está pronto. Com efeito,
se os socialistas quiserem ter êxito nessa empreitada, não devem esperar respostas caídas do
céu: é preciso saber ouvir, dialogar, agregar, – sempre conscientes de seu ideal – com todos os
setores que, de uma forma ou de outra, desejam uma grande e necessária mudança na ordem
social. Sendo assim, é forçoso reconhecer que o socialismo, para triunfar, deverá ser
democraticamente construído. Mas, como?
15
Sobre as transformações atuais na estrutura da sociedade de classes capitalista, sugerimos, de início, os
ensaios: Trabalhos e classes sociais e Em defesa do socialismo. In: HADDAD, 2004.
9

A economista Maria da Conceição Tavares diz o seguinte a esse respeito:

“A nação, a ordem democrática ou o socialismo só podem ser construídos pelo


acúmulo das experiências adquiridas na luta pela ampliação e pela participação das
representações populares na administração do poder político e social em todos os
níveis. Sem isso não haverá reformas sociais e econômicas duradouras” 16.

O que Tavares indica, afinal, é que se pode haver socialismo, ele tem como pré-requisito a
radicalização da democracia. Indo pelo mesmo caminho, Marilena Chauí atesta que, numa
visão progressista, a democracia de forma alguma pode ser reduzida a um regime político de
escolhas de líderes por meio do sufrágio universal, tal como a entendia, por exemplo, o
economista Joseph Schumpeter, e tal como é, em geral, a visão liberal a esse respeito. Pelo
contrário, a democracia é um modo mais amplo e perene de organização social. Na concepção
de democracia da esquerda, “a ênfase recai sobre a ideia e a prática da participação, ora
entendida como intervenção direta nas ações políticas, ora como interlocução social que
determina, orienta e controla a ação dos representantes” 17. A democracia, portanto, deixa de
ser definida pelos parâmetros liberais e passa a ser concebida como democracia social.
Marilena lista seis eixos de uma democracia que extrapole os limites de um regime político e
que se estenda a todos os setores da vida social (e, porque não, também das relações
interpessoais). Abrindo mão de uma citação demasiado longa, podemos afirmar que, para a
filósofa, o traço basilar de uma sociedade de viés democrático é sua capacidade de instituir
direitos socialmente criados pela luta política, luta essa que se viabiliza como uma forma de
“contrapoder social que determina, dirige, controla, limita e modifica a ação estatal e o poder
dos governantes” 18.
Uma sociedade democrática não se restringe, portanto, ao mero exercício do voto, mas
trabalha no sentido de eliminar o autoritarismo, o preconceito e o despotismo em todas as
esferas da vida e das relações sociais, ao mesmo tempo em que garante a livre participação
dos seus membros, direta ou indiretamente, no conjunto da vida em comum. Dito de outro
modo, a democracia exige uma organização estatal que radicalize a intervenção pública nos

16
TAVARES et al., 2001, p. 25.
17
CHAUÍ, 2007, p. 350.
18
CHAUÍ, op. cit., p. 352.
10

processos decisórios, dentro de marcos estabelecidos coletivamente, possibilitando, assim, o


exercício da luta política, a criação e a conservação de direitos19.

III

Nesse cenário, se naturalmente não esgota o debate, e mesmo que não subscrevamos
integralmente as posições deste autor (nem de outros aqui mencionados), a ideia de revolução
democrática, defendida por Juarez Guimarães, pode abrir uma via interessante para
definirmos uma prática política que amplie a democracia, eleve nosso patamar civilizatório e,
ao mesmo tempo, crie novas e imprescindíveis condições de possibilidade de pensarmos
estrategicamente o socialismo. Guimarães explica a revolução democrática do seguinte modo:

“Quando se fala em revolução, e não em reforma, é porque o que se tem como


meta, em termos clássicos do marxismo, é a criação de um outro Estado, com
fundamentos democráticos diversos daqueles do paradigma liberal. Quando se fala
em revolução democrática é porque se quer um caminho democrático de construção
desse novo estado que, na linguagem da soberania popular clássica, exige em
algum momento um processo de refundação constitucional. Novos princípios de
fundação dos direitos e deveres – inclusive, e de modo importante, no campo da
economia – novas instituições e novas formas de regulação” 20.

Vale alertar que não há aqui, como o crítico de uma esquerda mais radical poderia
argumentar, nenhuma intenção de recriar o “etapismo” histórico, isto é, a tese segundo a qual
a consolidação da democracia burguesa é a condição prévia de uma transição socialista21. Em

19
Vale destacar aqui, também, a definição de democracia que nos fornece Tarso Genro, que conflui com as
observações que fizemos há pouco: “[Democracia é o] regime político que é guiado por uma Constituição, que
dê sustentabilidade aos direitos sociais modernos, garanta o respeito aos direitos humanos e ofereça
previsibilidade para os sujeitos coletivos e individuais. Regime dotado de um tecido jurídico afirmativo das
liberdades políticas, do pluralismo, da liberdade de culto e de imprensa, que permita a eleição dos governantes e
parlamentares por processos livres, que contemplem a rotatividade no poder. Regime que se realize através de
um Estado dotado de instituições controláveis e reciprocamente controladas, cujo sistema de justiça e de
exercício da repressão esteja sempre abrigado na Constituição democrática. As formas que as suas instituições
adquirem na república democrática são historicamente determinadas, segundo o contrato político instituído no
processo constituinte” (GENRO. In: GENRO et al., op. cit., p. 27).
20
GUIMARÃES. In: GENRO et al., op. cit., p. 116.
21
Com efeito, a teoria do “etapismo” histórico, tão largamente defendida pelos partidos comunistas da III
Internacional, propunha que, em países periféricos, como o Brasil, no qual o capitalismo ainda não tinha
desenvolvido todas as suas potencialidades, a revolução socialista só triunfaria após um período de “democracia
burguesa”, isto é, após o estabelecimento de um governo de conciliação de classes entre o proletariado e a
burguesia nacional, ou seja, ainda nos marcos do capitalismo, sendo essa a primeira, e necessária, etapa da
revolução. Assim, apenas depois da consolidação plena do regime burguês, poderíamos pensar em uma transição
11

primeiro lugar, porque a “democracia burguesa”, de fato, não existe mais (embora a todo
instante sejam pautadas tentativas de recriá-la, na medida do aceitável atualmente). Na
verdade, o que temos é uma democracia liberal irremediavelmente adulterada, por assim
22
dizer, pela luta dos trabalhadores e pelos “implantes socialistas” feitos neste regime ao
longo dos últimos séculos. Com efeito, é preciso reconhecer que todos os avanços sociais,
políticos e econômicos, direitos e conquistas hoje comumente identificados à “democracia
burguesa” (sufrágio universal, liberdade de expressão e organização, direitos dos
trabalhadores, proteção das minorias etc.) foram conquistados apenas por ocasião dos
movimentos operários e de esquerda ao longo dos últimos séculos23. Nenhum deles constava
na cartilha liberal original – ao menos, não naquela posta em prática no alvorecer do
capitalismo. Se resta dúvida, uma rápida passagem pelos bons livros de História esclarecerá
quando cada uma dessas conquistas foi instituída (no Brasil e em outros países) e por quê.
Com efeito, basta conferir como se estabeleceu o sufrágio universal, a regulamentação da
jornada de trabalho, o direito a férias, a previdência social, a liberdade de organização política
e sindical, a imprensa livre etc., para se perceber o papel essencial desempenhado pelos
diversos movimentos de trabalhadores em conquistas que hoje são depositadas “de mão
beijada” na conta da burguesia.
Ademais, vale também lembrar que a ideia da inevitabilidade do socialismo, corolário
explícito da tese do etapismo histórico, fez água junto com o fracasso dos regimes socialistas
do século XX. Ora, não há inevitabilidade do socialismo: a história humana é profundamente
permeada pela contingência, embora, bem entendida, não seja exclusivamente contingente.
Sendo o fruto da ação dos homens sobre suas condições materiais e históricas, ela é, ao
mesmo tempo e dialeticamente, certa imposição dessas condições anteriormente sedimentadas
sobre a própria práxis humana, o que nos exige, a cada novo momento, respostas criativas e
originais, que, no entanto, nunca rompem completamente com o passado, mas alimentam-se
dele. Há aí, de fato, uma relação de imbricação, sem termo determinante. Ipso facto, o
socialismo só pode definir-se, como defendia Sartre, como um projeto humano possível, que
pode ou não ser viabilizado historicamente, pelos desdobramentos da relação dialética da
práxis coletiva sobre situação presente. Qual será a nova figura histórica que se formará sobre

para o socialismo. O exame histórico mostra, porém, o quanto de retrógrado e conservador teve essa teoria, bem
como seu inegável fracasso.
22
A expressão é de Paul Singer.
23
A esse respeito, ver o interessantíssimo livro de Paul Singer: Uma utopia militante, indicado na bibliografia,
sobretudo o capítulo “Revolução social socialista”, no qual o autor esmiúça o assunto de maneira sem
precedentes.
12

o fundo sedimentado de todo o nosso passado, de todas as nossas experiências, de toda a


imensa coleção de aventuras e desventuras que pesa sobre nossos ombros e que chamamos de
História? Naturalmente, não sabemos. Pelo contrário, é forçoso notar que não há resposta a
essa pergunta que, no fundo, não seja um exercício mais ou menos fecundo de imaginação.
Com efeito, o que defendemos é que seria um erro grosseiro supor que socialismo seja uma
imposição histórica necessária, oriunda das contradições imanentes ao próprio capitalismo.
Nesse ponto, a observação de Fernando Haddad é bastante oportuna:

“O principal defeito do movimento socialista (...) foi acreditar que, sob o


capitalismo, o desenvolvimento das forças produtivas materiais entraria
necessariamente em contradição com as relações de produção vigentes. Em outras
palavras, foi não perceber quanto são elásticas as relações de produção capitalistas,
quanto é adaptável o sistema, de modo que a dialética entre as relações sociais
capitalistas e as forças produtivas da sociedade moderna desdobra-se de uma forma
completamente diferente daquela do pré-capitalismo” 24.

Por isso, falar em etapas históricas necessárias é completamente despropositado, tanto quanto
não compreender que apenas por um aprofundamento da democracia, entendida em sentido
amplo, será possível criar um panorama propício para o ressurgimento do socialismo como
uma alternativa plausível para nossa sociedade, mas que pode ou não se realizar.
De fato, o que está implícita nessa ideia de revolução democrática, da forma como nós
a entendemos e a aplicamos neste texto, é a tese de que o socialismo só triunfará se for
encarado como um processo, logo sujeito a desvios, regressos e progressos, sujeito à criação,
à contingência e aos imprevistos. Esse processo, longe de ser gratuito ou desorientado, visa
uma mudança crescente da organização social, e deverá, para tanto, utilizar-se de todos os
meios que estão ao seu dispor (e de outros que inevitavelmente surgirão ao longo do caminho)
para mediante uma constante “guerra de posições”, como defendia Gramsci, criar um novo
cenário no qual seja possível construir uma hegemonia socialista e democrática25 no interior

24
HADDAD, op. cit., p. 195.
25
“A hegemonia (...) é a capacidade de dirigir uma aliança de classes, sendo baseada tão somente no
consentimento dos dirigidos; num outro estágio, ela pode, se necessário, incluir a coerção, mas sem que
desapareça o consenso. O que difere a hegemonia da pura dominação é o fato de que , em qualquer fase do
processo de constituição da hegemonia de uma classe social, é a direção e o consenso que devem prevalecer. A
hegemonia não é, nem pode ser, uma ditadura, embora não elimine a hipótese do uso legitimado da violência”
(SECCO, 2006, p. 56). Numa palavra, o conceito de hegemonia, em Gramsci, diz respeito à direção moral,
política e cultural que um grupo social pode exercer, sobretudo mediante o convencimento, sobre outros grupos.
Ela tem como objetivo garantir o consentimento dos potenciais aliados para que uma determinada classe ou
grupo, com todo seu conjunto de valores, sua cultura e sua orientação política, conquiste o poder. A hegemonia
só pode ser estabelecida através de uma “guerra de posições”, travada sob a orientação de um organismo que
13

da sociedade civil (no bojo das diversas instituições sociais, nas relações cotidianas, no campo
da cultura e dos valores etc.) e no Estado, sem a qual não se pode pensar uma era pós-
capitalista duradoura26. E, para isso, a democracia tem de ser simultaneamente estendida para
todos os níveis da vida social. De fato, parece que só assim poderemos, do coração do
capitalismo, superá-lo dialeticamente, isto é, incorporando em uma nova sociedade, os traços
positivos e progressistas da anterior.

IV

Diante do que expusemos, poder-se-ia argumentar se não seria mais plausível


atualmente, dada a famosa “correlação de forças”, limitar nossos esforços no sentido de
estabelecer uma sociedade mais democrática, ainda que sob a vigência de um modo de
produção essencialmente excludente. Em outros termos, pergunta-se se não seria o caso de
servimo-nos da democracia para corrigir as distorções do capitalismo, “humanizando-o” até
onde for possível. Para os defensores dessa tese, sendo o socialismo um fim muito distante
(ou mesmo impossível), a tarefa central da esquerda democrática, neste século XXI, limitar-
se-ia a resolver ou atenuar os problemas mais urgentes da população, com ênfase nos setores
mais carentes e oprimidos, postergando ad infinitum qualquer mudança mais profunda na
ordem vigente. Trata-se, numa palavra, de tentar recriar o velho Estado de Bem-estar social
(Welfare state), conquistado pela Social-Democracia européia nos “30 anos gloriosos do
capitalismo”, como são conhecidas as três décadas posteriores ao fim da II Grande Guerra.
Embora desconsidere que o capitalismo que permitiu o surgimento do Estado de bem-estar
não existe e não pode mais existir, visto que estamos em um novo momento histórico e em
uma nova configuração deste regime, essa é a posição compartilhada, ainda que alguns

incorpore a vontade coletiva – o partido político (ou o “Príncipe moderno”, na definição gramsciana) – nos
diversos fronts de batalha política no interior da sociedade civil: meios de comunicação, instituições sociais
(escolas, universidades, igrejas.), sindicatos etc. Essa guerra, bem entendida, é a disputa política e ideológica que
deve ser levada a cabo nos diversos aparelhos da sociedade civil. No caso brasileiro, em particular, pode-se
afirmar que a guerra de posições deve ser travada também dentro do próprio Estado, uma vez que o governo,
conquanto esteja nas mãos de um partido de esquerda, é sustentado por uma coligação bastante heterogênea do
ponto de vista ideológico. Para tanto, o papel do PT é decisivo. Retomaremos o ponto na sequência da
exposição.
26
De fato, seguindo a intuição de Gramsci, parece claro que todos os espaços possíveis de luta política devem
ser ocupados pelos socialistas e, mesmo naqueles mais solidamente identificados com o capitalismo, deve-se
travar a “guerra de posições”, que confronte projetos, valores e ideias. Essa, nos parece, é a condição para que
possamos avançar na construção de um socialismo verdadeiramente democrático. Com efeito, mais do que no
sentido original, atualmente é nessa linha que, a nosso ver, deve ser interpretada a brilhante constatação de Marx
e Engels: “A burguesia produz, acima de tudo, seus próprios coveiros” (MARX & ENGELS, 2001, p. 45), isto é,
ao criar as condições de seu domínio, cria, concomitantemente, os espaços que podem minar esse domínio.
14

relutem em declará-la publicamente (talvez por certo decoro ou dor na consciência), por
importantes intelectuais e dirigentes partidários (no Brasil, tanto no PT, quanto em outros
partidos e movimentos sociais da esquerda), que viram suas ilusões de sucesso do socialismo
desmanchadas pela queda do Muro de Berlim e pelo esfacelamento do regime soviético. Para
estes recém convertidos a uma espécie de social-liberalismo, o objetivo político mais nobre da
esquerda, no que esta aparentemente se diferenciaria da direita, seria “corrigir o capitalismo
até onde for possível”. Eles se esquecem, porém, que o melhor capitalismo possível ainda é
insuficiente para a maioria dos homens reais. Por isso, se por um lado ainda presenciamos
uma conjuntura mundial na qual o pensamento socialista é minoritário, por outro, parece-nos
indispensável que a prática política cotidiana vise não apenas atenuar os males do capitalismo,
mas, de maneira fundamental, criar condições que nos possibilitem fazer o socialismo voltar,
decisivamente, a ocupar os “corações e mentes” de uma parcela expressiva (e, se possível,
majoritária) da população. Somente assim, ele de fato poderá triunfar. Por isso, é
indispensável o esforço conjunto de se repensar o socialismo, para além dos dogmas que
marcaram o marxismo do século XX, mas sem cair nas tentações das vias fáceis do
autoritarismo vanguardista ou de um reformismo despropositado, caricatura da Social-
Democracia.

É necessário, portanto, que os ideais e os valores socialistas voltem à pauta política


cotidiana, no contexto do século XXI, recuperados e com fôlego novo. Para isso, contudo, não
bastam apenas as palavras: o socialismo deve ser o sentido consciente da prática política
cotidiana, o telos demarcador do nosso horizonte de possibilidades. Marco Aurélio Garcia,
recuperando a intuição trotskysta da “revolução permanente”, observa com razão que, no
sistema atual:

“algumas [das] reformas que são apresentadas como liberais, capitalistas, não são
‘absorvíveis’ pelo capitalismo. E, quando são aplicadas, exercem sobre o
capitalismo real um efeito desestabilizador e, portanto, criam uma dinâmica
diferente na sociedade, particularmente se há um movimento social forte” 27.

Porém, não há desestabilização do sistema ex nihilo, a partir do nada. Como já foi indicado, o
fato é que, abandonado à sua sorte, o capitalismo parece sempre capaz de se reerguer a partir
de seus próprios escombros. Garcia mesmo indica isso, quando aponta a necessidade da

27
GARCIA et al., 2005, p. 88-9.
15

participação da sociedade civil organizada neste processo. De fato, sem participação social
efetiva, qualquer avanço numa linha democrático-popular, e mesmo anti-capitalista, corre o
risco de se degenerar, e mesmo ser revertido, pela falta de uma meta clara e maior a ser
atingida futuramente, e com a qual a conquista presente se ligaria, ainda que à distância, de
modo intrínseco. Nesse ponto, a seguinte observação de Valter Pomar é assaz pertinente:

“O socialismo não será produto de um movimento espontâneo e inconsciente da


sociedade. Ou há um processo consciente de construção de uma sociedade de outro
tipo, ou não haverá socialismo. Mas isso significa dizer que o estabelecimento de
‘metas’, o estabelecimento de um ‘fim’, é parte essencial do processo” 28.

De fato, ainda que esse fim não seja tão claro como alguns marxistas mais dogmáticos
poderiam supor, isso não deve nos impedir de pautar as ações presentes pelo intuito maior de
sedimentar o solo capaz de fazer nascer uma outra ordem social – e não apenas de melhorar a
atual.

No Brasil, para que o desafio de reconstrução do ideal socialista deixe o campo das
ideias e ganhe terreno na prática do dia-a-dia, torna-se indispensável a participação efetiva do
PT. Não parece possível pensar em qualquer mudança profunda na sociedade brasileira sem o
concurso deste partido que, além de deter o poder federal, é o maior e mais importante partido
da esquerda latino-americana. Não obstante, cumpre reconhecer que o crescimento eleitoral e
administrativo do PT nos últimos anos, tem significado, por parte de grandes e importantes
setores do partido, o abandono da discussão de uma nova sociedade, geralmente em nome da
urgência das tarefas governamentais. Por isso, torna-se ainda mais imprescindível a
autonomia de pauta e de propostas políticas para o PT. Não se pode mais, como ocorreu nos
últimos tempos, confundir a dinâmica partidária com a governamental, isto é, não se pode
mais subordinar a agenda, as metas e as utopias do partido ao necessário pragmatismo de
governo. A nosso ver, as propostas e ações partidárias devem guiar-se pelo intuito estratégico
de, na linha do que já foi dito, liderar a configuração de uma nova hegemonia, socialista e
democrática, no seio da sociedade civil e do Estado (sempre em conjunto com as diversas
organizações e movimentos sociais de esquerda), inclusive pressionando o próprio governo,
quando preciso, para garantir as mudanças necessárias ao estabelecimento de condições mais
equânimes de disputa política e ideológica.

28
In: GARCIA et al., op. cit., p. 55.
16

Nesse sentido, um eixo preliminar de ações governamentais favoráveis à retomada do


ideal socialista democrático – que, no fundo, seguem a tendência de atuação do governo atual,
embora este não seja socialista –, pode ser pensado a partir da contribuição de Fernando
Haddad, que nos explica:

“A subversão da lógica do capital passa pelo mercado assim como a subversão da


lógica da democracia burguesa passa pela representação política, numa articulação
que não simplesmente faz de um o limite do outro por meio de contrapesos e
compensações, mas também por meio da qual eles se interpenetram, subvertendo-
se. As tarefas são as seguintes: no plano econômico, trata-se de reorientar a
produção e a distribuição da renda no âmbito do mercado; no plano político, trata-
se de democratizar a definição da pauta e a informação a ela pertinente no âmbito
da representação” 29.

Essas propostas, ainda restritas, mas combinadas a incursões do mesmo tom em outras esferas
(elevação dos patamares educacionais e culturais da população, democratização dos meios de
comunicação, fortalecimento da pauta ambiental, contrapondo-a à lógica do lucro e da
exploração etc.), bem como de maneira simultânea ao trabalho cotidiano dos partidos de
esquerda e movimentos no interior da sociedade (a “guerra de posições” pela hegemonia de
uma cultura, de valores, e de práticas socialistas e democráticas), podem, de fato, começar a
redesenhar nossas perspectivas, porquanto se orientam por duas vertentes complementares
que, como foi destacado ao longo do texto, são fundamentais para nosso propósito: a
“politização” crescente da economia, isto é, a imposição da razão humana sobre a des-razão
do mercado, e, como sua contrapartida dialética, a ampliação da participação popular na
esfera política, isto é, a radicalização democrática, garantindo paulatinamente um maior
controle da sociedade sobre a riqueza (material, cultural etc.) por ela produzida.

Enfim, parece-nos que no momento histórico atual, apenas o correto estabelecimento


de uma relação dialética entre os “fins” socialistas e os “meios” de uma revolução
democrática, pode nos fazer trilhar um caminho que permita, num horizonte próximo,
recuperar o vigor da utopia socialista como possibilidade concreta de reorganização da

29
HADDAD, op. cit., p. 222.
17

economia e da sociedade, fundamentada em valores e práticas radicalmente democráticas. E,


sendo o partido novamente eleito para comandar o país (ainda que numa coligação ampla), é
preciso notar que, se essas questões não forem colocadas conscientemente na ordem do dia,
corremos o sério risco, que há tempos ronda ameaçadoramente o PT, de vê-lo reduzir-se,
como Tarso Genro adverte com precisão, “[a] um partido do pragmatismo de governo e
30
portador de um reformismo sem utopia” . Se confirmada, a previsão de Genro não
representaria um duro golpe apenas na possibilidade de uma profunda transformação da
realidade brasileira, para a qual o PT, desde sua fundação, foi um instrumento político
privilegiado (e, bem entendido, continua sendo, inclusive no governo): é que, se continuar
abrindo mão de pautar abertamente seu intuito estratégico de construção democrática do
socialismo (ou se renunciar de vez a ele), ficando sujeito, portanto, ao mero terreno das
comparações pragmáticas com os outros partidos, independentemente de suas matrizes
ideológicas31, todo período de acirramento político que imponha algum tipo de recuo, ainda
que tático, ao PT, forçosamente agravará, como se viu nas últimas eleições presidenciais, o
recrudescimento do pensamento liberal, conservador, e que, por vezes, flerta até mesmo com
certo fascismo grosseiro.

Naturalmente, esse texto foi apenas uma contribuição parcial a um debate


inevitavelmente mais amplo e necessário, que, como foi defendido, deve começar a ser
travado novamente em todos os setores da sociedade, inclusive, dentro do PT32. Se somos
socialistas, o que é o socialismo que queremos? Como alcançá-lo? O desafio está posto. Aqui,
pretendíamos tão somente levantar alguns elementos para discussão. Além disso, apesar de
nos atermos, neste texto, a formulações mais gerais, embora tendo sempre em mente a
realidade brasileira, há de se constatar, ainda, o fato de que não há “socialismo num só país”.
O socialismo requer o internacionalismo. Como lidar concretamente com essa dificuldade? A

30
GENRO. In: GENRO et al., op. cit., p. 43.
31
Terreno propício, aliás, para a disseminação daquela percepção, infelizmente tão comum – mas não
completamente injustificada – entre os brasileiros, de que “os partidos são todos iguais”. E, como já
mencionamos, há, no interior do PT, muitos militantes que fomentam (com ou sem intenção, não importa) essa
impressão, uma vez que reduzem a política à mera disputa de números contra um partido adversário. De fato,
contentando-se em fazer do PT um partido “melhor do que o PSDB” (isto é, melhor gestor do capitalismo),
acabam abandonando por completo a necessária e diferenciadora utopia que sempre moveu a militância de
esquerda.
32
Aliás, vale destacar que o PT rediscutirá seu estatuto em 2011 – fato que terá importância não apenas para seus
militantes, mas para toda a cena política brasileira. Do ponto de vista que nos situamos, torna-se indispensável
defender que o novo estatuto garanta, de fato, uma ampla democracia interna, que se estenda desde a discussão
de base do partido (que deve ser retomada, a partir do renascimento dos chamados “núcleos de base”) até à
escolha de seus dirigentes.
18

exemplo do caso brasileiro, parece-nos, a princípio, que a utopia socialista só poderá ser
recolocada no cenário internacional a partir do trabalho de construção de uma nova ordem
mundial, anti-imperialista, multi-polar e democrática, que respeite a soberania das nações e a
auto-determinação dos povos. E, para que essa nova ordem seja viabilizada, o Brasil tem um
papel fundamental de liderança (regional, e mesmo mundial) a cumprir – o que, diga-se de
passagem, já vem ocorrendo, e deve se aprofundar no próximo governo.
Por fim, concluímos apontando o seguinte: atualmente, diante da barbárie do mundo
capitalista (miséria, guerras, opressão, narcotráfico, destruição ambiental etc.), parece claro
que qualquer experiência limitada a “humanizar” ou simplesmente a “melhorar” o
capitalismo, dará com os “burros n’água”. Por outro lado, as experiências de instauração do
socialismo a partir de uma vanguarda política, sem a construção preliminar de uma
hegemonia de valores socialistas e democráticos no conjunto da população, que sustentariam
as transformações sociais ao longo do tempo, também mostrou seus limites intrínsecos. Por
isso, refletir concreta e coletivamente sobre uma nova sociedade, que se baseie num princípio
civilizatório alternativo ao liberalismo, ambientalmente sustentável, e portanto capaz de
superar os impasses do capital, torna-se mais do que urgente: é, afinal, o futuro nosso, das
próximas gerações e do próprio planeta, que dependem, em última análise, do êxito da luta
pelo socialismo, tanto no Brasil quanto no resto do mundo. É essa a tarefa que a história nos
deixou.

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