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Fascinado pelo Outro: algumas considerações

acerca da história da antropologia*

Maria Johanna Schouten


Doutorada em Antropologia pela Universidade Livre de Amesterdão
Professora da Universidade da Beira Interior

*Artigo publicado em Domus I: 135-145. Bragança, 1998.


“Outros povos” e “outras culturas” têm constituído tradicionalmente a área de
estudo privilegiada da Antropologia. Mas o que é que leva a que pessoas e povos sejam
considerados “Outros” e qual o juízo que se tem sobre essa Alteridade? Esta questão,
basicamente de interpretação e relacionada com as condições do confronto, tem
recebido, recentemente, grande atenção na Antropologia. Isso tem-se reflectido, entre
outros, no surto de publicações sobre o trabalho de campo, dando destaque à
comunicação (na maior parte das vezes das falhas de comunicação) entre o antropólogo
e os “Outros”, objectos do seu estudo. A Alteridade e sua interpretação estão na moda,
também em outras Ciências Sociais. Um sintoma disso é a cadeia de reacções e contra-
reacções que a obra de Edward Said sobre o contexto e os objectivos do orientalismo tem
provocado desde a sua primeira edição, em 1978, até hoje1.
Nas páginas seguintes vão ser examinadas várias opiniões sobre o “Outro”
existentes no Ocidente até ao século XIX inclusive, e influenciadas pelas opiniões sobre a
relação do Outro com a natureza. Depois, serão apresentadas, como exemplo, algumas
visões sobre os habitantes de Minahasa, uma região do Sudeste Asiático. Dados
etnográficos sobre esta sociedade tiveram um papel importante no desenvolvimento da
antropologia académica na Holanda, fundamentalmente na obra de G.A. Wilken.
Que ser considerado o “Outro” é um fenómeno recíproco foi bem expresso pelo
naturalista Alfred Russel Wallace, que viajou pelo arquipélago Malaio em meados do
século XIX. Na ilha de Aru, onde inúmeros visitantes curiosos visitavam a sua casa, ele
comentava: “Alguns anos antes eu fui um dos observadores dos Zulus e dos Aztecas em
Londres. Agora a situação inverteu-se, porque para estes povos eu fui uma nova e
estranha variedade do Homem” 2.
Wallace referia-se aqui à grande exposição mundial de 1851 no Crystal Palace em
Londres. Esta exposição deu oportunidade aos Europeus de contemplarem amostras de
povos exóticos. A maior função do evento era assinalar os grandes progressos
tecnológicos da primeira metade do século XIX. Estas inovações, conquistas à natureza,

1 Ver Said, "Afterword to the 1995 printing", pp. 329-354 na edição de 1995. Ver também, por exemplo, O'Hanlon e Washbrook 1992; Turner 1994.
2 Wallace 1962: 348-349.
realçavam a distinção entre a civilização ocidental e os modos de vida dos “Outros”. O
colonialismo reforçado daquele século não estava alheio ao referido desenvolvimento. O
século XIX foi também o período no qual a Antropologia se desenvolveu e se afirmou
como uma disciplina seguindo linhas científicas, utilizando teorias e dados empíricos.
Razões suficientes para dar um destaque especial a essa época neste ensaio.

O selvagem e o civilizado

Na história do pensamento europeu, a atitude respeitante ao “Outro” - termo que


clarificarei de seguida - tem sido ambivalente. A tendência etnocêntrica (“nós somos
melhores”) esteve sempre presente mas coexistindo, paradoxalmente, com a opinião de
que o “Outro” é melhor.
Os critérios para distinguir entre “Nós” e os “Outros” podiam ser os mesmos, mas
consoante a valorização destes critérios o juízo acerca dos “Outros” era positivo ou
negativo. Muitas vezes fazia-se a distinção em termos de “selvajaria” versus
“civilização”, utilizando como critério o tipo de relação que cada sociedade tinha com a
“Natureza” e, em particular, o grau de controlo exercido. Na Antiguidade esta distinção
baseava-se em primeiro lugar no habitat e na linguagem.
O termo português “selvagem”, tal como por exemplo o francês sauvage e o inglês
savage, deriva do latim silva ou “floresta”. Este habitat é o oposto daquele do civis, o
indivíduo que reside na cidade e às vezes até não precisa de estar em contacto directo
com a Natureza para subsistir: a comida é em grande parte proporcionada por pessoas
que, lavrando o solo ou criando gado, transformam a Natureza3.
A palavra barbaròi, com a qual os gregos designavam os povos que não pertenciam
ao mundo civilizado (por exemplo os Citas4), também se relacionava com um aspecto da
Natureza, neste caso da biologia humana. Os Barbaròi eram considerados incapazes de

3 No período do Império Romano, a denominação civis adquiriu um significado mais vasto: um indivíduo algures no território do império que pagava impostos e satisfazia
mais algumas condições tinha direito a esta designação.
4 Provavelmente os Citas não são tanto o protótipo de barbaroi como geralmente assumida. Pelo menos, Heródoto (4, 46) considerava-os uma excepção entre os povos
"atrasados" ao norte do Mar Negro.
manipular suficientemente o órgão da fala para produzir sons inteligíveis. O primitivismo
deles contrastava com a vida na polis onde não só se falava uma língua compreensível,
mas onde também existia um sistema para transcrever essa língua5. Mais tarde, na
Antropologia, “civilização” tornou-se um termo aceite, indicando um tipo de cultura
caracterizado pela existência de cidades e pela escrita6.
Certas características corporais dum outro povo também podiam servir como
critério para estabelecer a sua distância à “civilização”. Este tipo de critérios tornou-se
mais importante no período da expansão europeia. Em particular os povos com pele
escura tornaram-se no protótipo do “selvagem desprezível” (em inglês: "the wretched
savage").
No Sudeste Asiático foi esse o destino dos “Negritos”, povos que se distinguem dos
seus vizinhos pela sua estatura baixa e pele escura. Sobre alguns dos povos “Negritos”,
nas Filipinas, tem corrido o boato (que persiste até hoje e que é aproveitado pelo
turismo) que eles têm caudas - sendo deste modo colocados num nível sub-humano. A
opinião criada sobre eles era, no entanto, em grande medida influenciada pelo seu modo
de vida baseado em “foraging”: caça e recolecção - o que provava que eles não sabiam
dominar a Natureza. Um missionário afirmava em 1604 sobre os “Negritos” nas Filipinas
que “eles nem plantam nem colhem, e procuram sustentar-se só vagueando como
animais, semi-nus, pelas montanhas”7. No que diz respeito aos povos africanos, os
“hottentots” (como eram chamados, embora o nome mais correcto seja Khoi-Khoi) da
África Austral tornaram-se os protótipos de selvajaria. Eram, alegadamente, “destituídos
de todos os sinais de civilidade, decência e humanidade, sem língua humana,
conhecimento de cozinhar, habitação, religião e instituições políticas”8.
Em paralelo com esta perspectiva do selvagem como miserável e sub-humano tem
existido, igualmente, uma visão mais positiva, segundo a qual o selvagem era “bom” ou

5 Durante o Império Romano também se admitia a derivação do termo barbarus do Latim barba (“barba”) - portanto, também a partir de uma intervenção sobre a
Natureza (neste caso, o corpo [rosto] humano).
6 Outras características às vezes mencionadas são: hierarquia política, agricultura intensiva, comércio, densidade populacional elevada. Estas são, no entanto
estreitamente, ligadas à existência de cidades e uma escrita. Convém salientar que “civilização” na antropologia - pelo menos naquela do século XX - nada tem a ver com
“superioridade”.
7 Citado por Renato Rosaldo, também em Winthrop 1991: 23.
8 Harbsmeier 1995: 29.
“nobre”, exactamente por viver tão perto da natureza. De acordo com esta abordagem,
eles viviam em harmonia íntima com o ambiente natural, que fornecia todas as
necessidades materiais e biológicas. Além disso, eram livres de opressão, no sentido de
que não conheciam restrições sociais e sexuais.
Em determinados períodos da história ocidental esta imagem positiva gozava de
certa popularidade. Apreciação de povos primitivos por regra envolvia uma crítica
implícita ou explícita à própria civilização. Esta atitude é patente nalguns filósofos da
Antiguidade9 e tornou-se evidente no Renascimento com Thomas More e Montaigne, por
exemplo. O conceito de “bom selvagem” foi popularizado em particular por autores
franceses do século XVIII, tal como Montesquieu, Diderot e, obviamente, Rousseau.
Assim, evidenciam-se neste período de racionalismo já sinais do romantismo, fruto
também de cepticismo e auto-crítica.
Dados empíricos serviam para corroborar a filosofia social. Grande influência
tinham no século XVIII os relatórios de Bougainville sobre as suas viagens pelo Pacífico
Sul, representado como o “Paraíso Terrestre”. Que os Taitianos estavam perto da
natureza e não eram “corrompidos” foi conclusão que se extraiu da aparente ausência de
vergonha em relação aos seus corpos e funções corporais.
No entanto, relatos etnográficos deste género não começaram propriamente com
Bougainville. Lembramos a carta de Pêro Vaz de Caminha sobre o primeiro encontro, em
1500, de europeus com índios do Brasil. O cronista elogia o estilo de vida, que parece ser
sem inibições, e refere-se extensivamente ao facto de que eles não usam roupa, nem
conhecem lavoura, nem habitações permanentes10. O português considerava aqueles
nativos em muitos aspectos melhores do que os europeus e só o facto de não serem
cristãos - o que então era o critério fundamental – os tornava inferiores. Pouco antes
dele, Cristóvão Colombo descreveu a vida dos primeiros indígenas das Ilhas Caraíbas que
encontrou como se fosse uma Arcádia; as pessoas, com alma pacífica, careciam de leis,
mas faziam as coisas certas “por natureza”11.

9 Por exemplo os que pertenciam à Escola Cínica (que considerava que os seres humanos - especialmente aqueles vivendo na polis - deveriam reduzir as suas
necessidades, e viver mais em harmonia com a natureza) e os da Escola Stóica (por exemplo Séneca) que se opuseram ao etnocentrismo.
10 Ver Vaz de Caminha 1987 (reedição da carta de 1500).
11 Boon 1982: 35.
O Romantismo do fim do século XVIII e princípio do século XIX colocava os povos
exóticos num pedestal. Isso foi também a época do desenvolvimento do Orientalismo,
baseado no conhecimento alargado sobre a Ásia e o Próximo Oriente, fruto da expansão
política de poderes europeus naquelas zonas12. Autores alemães como Friedrich Novalis e
Friedrich Schlegel propagavam o estudo da cultura e religião da Índia porque podia servir
para derrotar “o materialismo e mecanismo (e republicanismo) da cultura ocidental”13.
Literatura sobre explorações na selva e encontros com seres humanos exóticos
gozava de grande popularidade. Exemplo de um tal relatório, escrito no espírito do
Romantismo, foi o do naturalista de origem alemã C.L. Blume, que em 1821-1822, na
Java ocidental, travou conhecimento com os Badui, um povo isolado. Blume fazia
grandes elogios à bondade destes habitantes de montanha e à sua simbiose
aparentemente perfeita com o ambiente inóspito; receando que as influências externas
pudessem destruir a sua tradição14.
Nos anos 1838-1840, Sir George Grey, um funcionário britânico, fazia explorações
na Austrália Ocidental. Antes (e depois) de Grey, os aborígenes da Austrália eram
considerados quase sempre como o melhor exemplo de selvagens “ignobles”. Eles “... de
certo modo, tinham características humanas inversas [...] Eles andavam nus, não tinham
língua nem residência fixa”. Mesmo James Cook comparava-os com “animais selvagens
em busca de alimentos”15. Grey, apesar de chocado com alguns dos hábitos dos
aborígenes e principalmente com o baixo estatuto (?) das mulheres, teve uma impressão
geral bastante positiva. Concluiu que os aborígenes precisavam de se dedicar à caça e
recolecção só duas ou três horas por dia para obter os seus alimentos. Uma vez que eles
(pelo menos, os homens) pareciam apreciar este modo de vida, Grey disse compreender
a resistência a uma “vida civilizada”16.

12 Ver Said 1995.


13 Said 1995: 114-115.
14 Blume 1993: 24-25. De facto, ainda hoje, finais do século XX, alguns milhares de Badui continuam uma vida isolada, resistindo inovações e intrusões de fora (ver Bakels
1988).
15 Borsboom 1988: 427; ver também Kuper 1991: 92.
16 Stocking 1987: 82-83. No início do século XX, alguns estudos antropológicos de grande influência (por exemplo, por Émile Durkheim e A.R. Radcliffe-Brown) baseavam-
se, em parte, em dados sobre os aborígenes, uma vez que estes eram considerados o povo mais “primitivo” do mundo. Sahlins, na sua reabilitação famoso/a /ou do
famoso do modo de vida caracterizado ela caça e recolecção, explicitamente faz referência a Grey por ter reconhecido a sua utilização racional de nutrientes do
ambiente natural (Sahlins 1976: 44-45).
O século XIX: Novas orientações

Na época de Grey, no entanto, uma tal posição sobre povos indígenas já era
excepcional. A ideia de “bom selvagem” estava moribunda entre os etnógrafos britânicos
do século XIX. Neste período, a diferença entre o pressuposto modo de vida dos
“selvagens” e as normas da cultura ocidental era maior que nunca. A inovação
tecnológica reforçava a sensação de superioridade dos europeus. Estes desenvolvimentos
eram acompanhados por uma exploração económica e a instalação de hegemonia política
pelos europeus em muitas zonas do mundo. Havia também a noção de que a sociedade
ocidental tinha que transmitir a sua cultura, a sua moral, àqueles outros povos.
Na Europa e principalmente na Inglaterra, a classe média, recentemente
emancipada em termos políticos e económicos, impôs as suas normas à sociedade. Nesta
fase do “processo de civilização”, tal como descrito por Norbert Elias,17 as pessoas viviam
numa distância sem precedentes em relação à Natureza, por vezes até à renúncia dela.
O corpo e os processos fisiológicos tornaram-se cada vez mais assuntos privados, não
devendo, por isso, ser expostos em público. Impulsos físicos deveriam, por regra, ser
reprimidos ou adiados, especialmente os relacionados com a sexualidade. O adiamento
do matrimónio e portanto da procriação era o que Thomas Malthus poderia ter
denominado de “preventive check of moral restraint” (“regulamento preventivo de
repressão moral”). Neste caso, mas também noutros aspectos, os instintos eram
controlados a fim de se obter a recompensa no futuro sob forma de progresso
económico.18
Os Ocidentais consideravam-se, neste aspecto, distintos dos “Outros”, aos quais
faltaria a capacidade de planear. Acreditava-se serem os “selvagens” totalmente
carentes da disciplina necessária para controlar as suas inclinações naturais19.

17 Elias 1989.
18 Pode-se comparar isto com a tese de Max Weber sobre a prática dos calvinistas, religiosamente inspirada, de adiamento ou mesmo de recusa de prazer, prática que
conduzia ao progresso económico.
19 Turner 1994: 98.
Precaução, “subduing the natural appetite of living for the present”20, julgava-se um
traço essencial da civilização ocidental e uma condição fundamental para a
prosperidade. Isso nota-se, por exemplo, nos escritos de Adam Smith: a sua economia
política tinha como premissa que o Homem é capaz de superar a natureza e o instinto.

Duas visões sobre os “Alfuros” da Minahasa

Os habitantes do Sudeste Asiático insular apresentavam, para os ocidentais, vários


níveis de (falta de) civilização. No caso da zona oriental do arquipélago empregava-se o
termo “Alfuros” para designar os grupos considerados mais “primitivos”. Assim, havia
“Alfuros” na ilha de Timor, na ilha de Seram, em zonas de Sulawesi (Celébes) e também
nas Filipinas. Embora esses grupos fossem heterogéneos em termos linguísticos, culturais
e fisiológicos, tinham em comum um habitat no interior e contactos apenas esporádicos
com povos de além-mar. A sua classificação como “Alfuro” foi atribuída por pessoas do
mundo exterior que os consideravam “atrasados”.
Classificados como “Alfuros” eram também os habitantes da Minahasa, na
península setentrional de Sulawesi (Celebes). Alguns deles tinham contactos com
marinheiros e comerciantes provenientes da Europa, mas enquanto não eram convertidos
ao Cristianismo continuavam a ser denominados “Alfuros”. De facto, os indígenas da
Minahasa eram bons exemplos de “selvagens”, com a sua roupa escassa, o seu baixo nível
de tecnologia e a sua agricultura itinerante.
Relatórios de missionários e de outros observadores do século XIX contam que
esses povos, ao contrário das normas então recentemente aceites no Ocidente, não
sabiam controlar as suas inclinações, especialmente a avidez. Seria um bom exemplo de
uma cultura “gástrica”, na terminologia de antropólogos do século XX como Julian
Steward e Marshall Sahlins21. Entre os Minahasa reinava a fome ou a fartura: a sua
incapacidade aparente de organizar a vida colocava-os, segundo os ocidentais, muito por

20: Nas palavras de Henry Maine citado em Stocking 1987: 201.


21 Sahlins 1976: 81.
baixo da civilização - e até só nas margens da Humanidade: “Eles vivem como os animais
irracionais. Quando já não há arroz disponível, eles comem milho, e quando este
também acabava, viravam-se para os legumes”, afirmava o missionário protestante K.T.
Herrmann22.
Por outro lado, as necessidades deles eram poucas - mais uma prova da sua distância
da civilização: “... não há quase nada que o nativo precise, enquanto continua não-
civilizado”, ainda nas palavras de Herrmann23. Que os nativos não estavam interessados
em bens de luxo foi lamentado pelos Europeus porque um aumento de necessidades seria
um incentivo para uma maior participação na economia de mercado, favorável à venda
de produtos europeus.
No entanto, havia autores que continuavam a apreciar o “bom selvagem”, do qual
também o habitante da Minahasa podia servir como protótipo: sensual e vivendo em
plena Natureza. Um estudioso da literatura oral dos Minahasa, J.G.F. Riedel24, afirmava
que os Minahasa, antes da intensificação dos contactos com outros povos, viviam em
condições que lhes permitia gozar todos os prazeres terrestres. “Como verdadeiros filhos
da natureza eles viviam na estação baixa, quando não se fazia guerra e quando não se
lavrava... em florestas impenetráveis. Caçavam galos selvagens e outros animais e,
25
quando as circunstâncias exigiam, ocupavam-se em campanhas de caça à cabeças” .
Riedel salienta as condições idílicas e parece mencionar a guerra e o hábito de “caçar
cabeças” só de passagem, sem se mostrar consciente sobre o facto que tais hábitos
atestam uma violência inerente. Mais adiante no texto, Riedel refere as punições cruéis
habituais nessa sociedade sem condená-las. A condenação é reservada à intrusão
externa, em particular da VOC (a Companhia das Índias Orientais, sedeada na Holanda)
que o autor acusa de ter posto fim à liberdade destes “Alfuros”26.

22 Herrmann 1839: 105.


23 Herrmann 1840: 244.
24 Riedel 1872.
25 Riedel 1872: 157.
26 Riedel 1872: 163.
Wilken e a primeira geração de antropólogos

Riedel, autor do referido artigo, era filho de um dos primeiros missionários


protestantes na Minahasa. Outro filho de um missionário naquela zona foi G.A. Wilken,
que viria a desempenhar um papel de pioneiro na antropologia académica na Holanda.
Wilken passou a infância na Minahasa tendo regressado como funcionário público, depois
de ter recebido a sua formação na Holanda.
Estas experiências na Minahasa foram de grande valor para as suas publicações, a
primeira das quais data de 1873. A obra de Wilken não consistiu meramente em
descrições etnográficas, mas antes de mais argumentações, nas quais os dados empíricos
serviam para corroborar as teorias. Estas tinham uma perspectiva comparativista e
evolucionista, em sintonia com o que se passava na antropologia na Europa. A
antropologia tinha recebido, então, um estatuto científico e institucional, atestado, por
exemplo, pela criação da Société d'Anthropologie de Paris, em 1859, e em 1863 da
Anthropological Society of London. O fundador desta última, James Hunt, definia
antropologia no sentido lato como “the science of the whole nature of man”, (“a ciência
da natureza total do Homem”), salientando a importância dos traços físicos27. A
orientação teórica adoptada foi a do evolucionismo.
Pouco tempo depois da publicação dos primeiros clássicos da antropologia na
Inglaterra, Alemanha e América28, Wilken apresentava no seu primeiro artigo dados sobre
os Minahasa a fim de formular as suas ideias acerca da evolução da família, sistemas
sociais e direitos de propriedade em todas as sociedades humanas29. Tal como Bachofen
e McLennan, Wilken sustentava a ideia de uma evolução, de promiscuidade passando
pelo matriarcado e parentesco matrilinear até ao patriarcado. Um artigo seguinte30

27 Stocking 1987: 247; Young 1995: 134-135; Winthrop 1991: 102. Esta “visão total” seria persistente até pelo menos aos anos 1930 num Portugal à procura da sua
identidade. Afirma Vítor Oliveira Jorge: “Antropologia física, antropologia cultural ou etnologia, e arqueologia pré-histórica eram três projectos articulados, que visavam
definir as características do «homem português»" (Oliveira Jorge 1997: 28). O destaque para características corporais tem sido notável nos estudos do Museu de
Antropologia em Coimbra e nas obras de Mendes Corrêa e a sua escola até os anos 1950 (Pina Cabral 1991: 30-31).
28 Na Alemanha, o advogado suíço Johann Bachofen publicou Das Mutterrecht em 1861; na Grã-Bretanha, no mesmo ano foi editado Ancient Law do jurista Henry Maine
e em 1865 Primitive marriage, escrito pelo advogado escocês John F. McLennan. Uns anos depois (1871), Edward Tylor com a obra monumental Primitive Culture e na
América Lewis Henry Morgan publicava então Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family.
29 Wilken 1873.
30 Wilken 1875b.
versava a da tecnonímia na Minahasa: o costume de denominar um indivíduo por
referência ao nome de um dos seus filhos. Segundo Wilken, esta prática acompanhava a
fase transitória do matriarcado até ao patriarcado. Seguir-se-iam muitos artigos deste
género, tomando sempre como ponto de referência um fenómeno na Minahasa ou em
outras regiões do arquipélago Malaio.
Em 1885, Wilken foi nomeado para a cátedra - criada em 1877 - de “Geografia e
Etnologia das Índias Neerlandesas” na Universidade de Leiden. Isso significava um
reconhecimento da sua obra e proporcionava também a Wilken uma posição estratégica
e de autoridade para disseminar as suas ideias e transmiti-las às gerações futuras de
antropólogos holandeses31. Estes iam abandonar o evolucionismo (consoante o
desenvolvimento em outros países) - mas a antropologia holandesa ia conquistando uma
posição de destaque no cenário internacional. Isso devia-se, entre outras coisas, à
etnografia (praticada no contexto colonial) no culturalmente riquíssimo arquipélago da
Ásia do Sudeste.

“Outros” de tantos tempos, de tantas terras

O ocidental, ele próprio, também é um “Outro” na perspectiva dos povos com os


quais é confrontado. Acerca das suas impressões, pode-se talvez tirar algumas conclusões
a partir da cultura material. As pinturas japonesas e chinesas, em que os portugueses e
mais tarde os holandeses e outros europeus são retratados, são bem conhecidas32.
Também nos objectos de arte dos africanos da costa ocidental (sobretudo do Benin) a
partir do século XVI, os portugueses são representados com “cabelos lisos, barbas
compridas e lisas, narizes aduncos, vestimenta da época, com colares, crucifixos,
espadas e cavalos”33. Na Minahasa, depois dos contactos com europeus, (os primeiros no
século XVI), os túmulos megalíticos tradicionais iam ser enfeitados com figuras de
homens ocidentais.

31 O primeiro catedrático foi P. J. Veth, nomeado em 1877. Mais informação sobre Wilken e a sua influência em Koentjaraningrat (1975: 28-42) e em Platenkamp e Prager
(1994: 710-718).
32 No Tributaries Scroll, feito na China no século XVIII, encontram-se, para além de pinturas de vários povos europeus, também descrições deles (ver Xu Xin 1995).
33 Ferronha 1994: 156-7, notas 163-164.
Sobre a Alteridade do antropólogo aos olhos dos indígenas muito se tem escrito na
“literatura confessional”, agora tanto na moda na antropologia. Mas devemos lembrar-
nos do naturalista Wallace, de quem já no princípio deste artigo citámos uma
observação. Citemos outra, agora acerca da sua estada entre os Dayak de Bornéu:
“Enquanto jantava no meio dum círculo de cerca de cem espectadores que observavam
com tensão cada movimento e criticavam cada bocado que comia, involuntariamente os
meus pensamentos desviaram-se em direcção aos leões na hora da comida”34. Muitos
antropólogos, inclusive a autora deste artigo, já passaram por experiências semelhantes.
Curiosidade e fascínio em relação a outros povos parecem ser universais. No
mundo ocidental, este espanto35 tem contribuído muito - por vias da etnografia - para o
desenvolvimento da antropologia. Indicar algumas grandes linhas deste processo foi um
dos objectivos deste artigo. Mas é certo que os antropólogos também podem aprender
muito com o espanto dos “Outros” em relação a eles próprios.

34 Wallace 1962: 52.


35 Não é por acaso que um livro de ensaios antropológicos, recentemente publicado em Portugal, tem o título Recuperar o espanto (Oliveira Jorge e Iturra 1997).
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