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IMPORTÂNCIA E FUNDAMENTOS DA AVALIAÇÃO PRÉ-OPERATÓRIA

PARA PACIENTES SUBMETIDOS A CIRURGIA NÃO-CARDÍACA: QUEM


DEVE SER AVALIADO E QUEM DEVE AVALIAR

DANIEL LAGES DIAS, LUIZ ANTÔNIO K. BITTENCOURT, JOSÉ RENATO CAVICCHIO, MÁRCIO JANSEN FIGUEIREDO,
ANA MARIA SIMÕES

Clinicordis
Endereço para correspondência: Rua Visconde de Taunay, 421 — conj. 71 — CEP 13023-200 — Campinas — SP

O encaminhamento de pacientes visando à avali- lizar um dos vários índices de risco disponíveis na li-
ação pré-operatória do cardiologista é prática comum teratura. O encaminhamento ao especialista ou a so-
em nosso meio. Entretanto, uma série de distorções licitação de exames complexos são muitas vezes des-
ocorre nessa prática. O médico avaliador é um con- necessários, embora alguns grupos especiais de paci-
sultor, que irá avaliar o estado clínico do paciente, entes requeiram maior atenção.
com ênfase em sua classe funcional, assim como o risco Descritores: cuidados pré-operatórios, risco cirúr-
envolvido na cirurgia proposta, podendo o médico uti- gico, cirurgia não-cardíaca, avaliação pré-operatória.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:259-67)
RSCESP (72594)-976

INTRODUÇÃO tos (que, por serem assintomáticos, na avaliação pré-


operatória seriam então descobertos), criando uma at-
A consulta médica pré-operatória realizada pelo mosfera de tranqüilidade para o paciente.
cardiologista está se tornando uma espécie de neces- A tentativa de o cirurgião diluir a responsabilidade
sidade distorcida em nosso meio médico. Não infre- na eventualidade de ocorrência de resultados desfavo-
qüentemente, recebemos para avaliação pacientes que ráveis ou de complicações é outro aspecto envolvido
nos são encaminhados para que “seja dada permissão na avaliação pré-operatória: uma vez que o paciente
para a cirurgia”. Muitas vezes esses casos referem-se tenha sido avaliado por mais de um especialista, as
a pacientes com doenças cirúrgicas simples, com atos complicações que ocorreriam só poderiam ser decor-
anestésicos de curta duração e, até mesmo, de situa- rentes de questões que, pelo seu caráter imponderável,
ções que envolvem anestesias locais. A solicitação feita não seriam detectáveis anteriormente. Há também ci-
pelo cirurgião (inclusive cirurgião-dentista) tem, mui- rurgiões que solicitam avaliação mais por hábito que
tas vezes, o propósito de tranqüilizar o paciente, pois por boas razões técnicas: seria uma forma de demons-
o cardiologista poderia discriminar os pacientes que trar ao paciente o quanto ele é cuidadoso e preocupa-
poderiam vir a ter complicações (seja lá o que isso do com o bom andamento das soluções propostas. Em
possa significar e quase sempre significa toda e qual- certo sentido, o exame pré-operatório teria a caracte-
quer complicação) daqueles que estariam livres de pro- rística de funcionar como uma espécie de “vacina con-
blemas. O paciente sempre demonstra, durante a con- tra as complicações pós-operatórias”. Para complicar
sulta de avaliação, muito mais ansiedade e medo em o cenário, é comum que o cardiologista receba poucas
relação ao ato anestésico que ao ato cirúrgico em si. informações sobre o que o cirurgião pretende fazer (téc-
Existe um conceito popular de que a anestesia poderia nica a ser empregada, tempo provável de duração da
lesar o coração (causaria “ataque cardíaco”), e ao car- cirurgia, uso de drogas anestésicas, grau de risco en-
diologista caberia dizer o quanto a anestesia poderia volvido na técnica cirúrgica, etc.). Também os
ser inócua na gênese de complicações ou no agrava- anestesistas têm adotado a sistemática de usar a avali-
mento de pequenos problemas cardíacos até então ocul- ação feita pelo cardiologista como pressuposto de ga-

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rantia da não ocorrência de problemas e como parte ca. Os seguintes itens devem ser considerados num
integrante da avaliação pré-anestésica. parecer clínico(4) :
A avaliação do estado clínico no período pré-ope- — avaliação completa;
ratório pretende responder basicamente a duas ques- — resposta ao que foi solicitado;
tões: qual é o risco cirúrgico e o que pode ser feito — presteza na resposta;
para diminuí-lo. A determinação do risco cirúrgico — recomendações claras;
pode propiciar, quando devidamente considerado, — comunicação com a equipe cirúrgica;
melhor evolução per e pós-operatória, e seguramente — base científica das recomendações.
fornece elementos que ajudam na decisão de realizar A avaliação pré-operatória é muitas vezes a pri-
ou não uma cirurgia (1) . Essa decisão deve ser de res- meira consulta clínica de um indivíduo, sendo essa uma
ponsabilidade quase exclusiva do cirurgião e, em me- boa oportunidade para a estratificação de risco
nor escala, do anestesista, pois são eles que, atuando cardiovascular e subseqüente orientação, não signifi-
durante o ato operatório, sabem de seus limites e ca- cando isso aumento de custo ou realização de exames
pacidades e são os responsáveis diretos pelo paciente. desnecessários. Esse raciocínio é tão mais válido quan-
Devemos lembrar, também, que o cirurgião foi quem to mais nos lembramos que o envelhecimento natural
fez a avaliação inicial e quem diagnosticou a doença da população faz com que cada vez mais idosos, que
e, mais ainda, foi quem recomendou a terapêutica ci- são população com alta prevalência de cardiopatia,
rúrgica como sendo a mais indicada para a doença que passem por procedimentos cirúrgicos de alta comple-
aquele paciente apresenta. Tal avaliação cirúrgica, pres- xidade (ortopédicos, vasculares), com alta morbidade
supõe-se, tenha sido feita dentro dos padrões técnicos e alta mortalidade cardiovasculares.
adequados e, portanto, após criteriosa análise dos da-
dos médicos disponíveis. Seria impensável que um DETERMINAÇÃO DO RISCO CIRÚRGICO:
médico fizesse uma proposta terapêutica sem infor- FUNDAMENTOS
mação médica adequada. Portanto, a questão que se
coloca na avaliação pré-operatória por parte do A abordagem de um paciente candidato a cirurgia
cardiologista é a de ser um consultor que deve ajudar deve envolver três fatores (5) :
a responder questões claramente colocadas pelo mé- — condição clínica do paciente;
dico cirurgião ou pelo anestesista. Não deve ser aque- — particularidades do procedimento cirúrgico plane-
le que avalia todos os riscos, mas aquele que avalia jado;
determinado tipo de risco (risco cardiovascular) que o — particularidades dos recursos disponíveis no servi-
cirurgião teve dificuldade em avaliar no contexto ge- ço que realizará a cirurgia.
ral do paciente. Semelhante raciocínio deve ser feito A avaliação clínica inicia-se com anamnese, exa-
quando outros especialistas forem chamados para opi- me físico e eletrocardiograma.
nar em casos de avaliação cirúrgica pré-operatória (ris- A anamnese deve buscar identificar as principais
cos específicos para cada especialidade). A comuni- doenças cardiovasculares e, principalmente, sua severi-
cação adequada entre os médicos é vital para o estabe- dade, estabilidade e fase do tratamento em que o pacien-
lecimento da razão para o parecer clínico e da pergun- te se encontra. São ainda de grande importância a capa-
ta a ser respondida. Ela não deve se restringir a mero cidade funcional do paciente, a idade e as condições
“encaminhamento” por meio de formulário impessoal médicas associadas, como diabete, insuficiência arterial
e padronizado. A transmissão precária de informações periférica, insuficiência renal crônica, pneumopatia, etc.
pode resultar em custos excessivos para os pacientes(2). O exame físico, com ênfase no aparelho
A prática de se encaminhar, sem informação, para ou- cardiovascular, permite a avaliação de vários dos cri-
tros médicos avaliarem, quando o cirurgião não fez térios a serem empregados na classificação do risco
sua própria e detalhada avaliação, seja por falta de tem- cirúrgico. Assim, são de grande importância o estado
po ou por má prática médica, envolve riscos de geral do paciente, a palpação dos pulsos periféricos, a
“pseudo-avaliações” e “garantias inadequadas presença de 3a bulha e a presença de sopros sugestivos
fornecidas por terceiros”. Por outro lado, mesmo quan- de lesões estenóticas.
do o rito médico é adequado de ambas as partes, há Além do tipo de cirurgia planejada e todos os fato-
necessidade das recomendações do consultor serem res a ela relacionados, o consultor deverá levar em conta
precisas e específicas(3) . É importante que seja realiza- também a habilidade da equipe cirúrgica em realizar o
da avaliação ordenada e criteriosa do paciente, assim procedimento proposto, disponibilidade ou não de ser-
como comunicação permanente com a equipe cirúrgi- viço de Terapia Intensiva no hospital ou outros recur-

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sos disponíveis em caso de necessidade. congestiva ou arritmias sintomáticas, além de fatores


A condição clínica do paciente e a complexidade de risco para coronariopatias ou co-morbidades. Mo-
do procedimento proposto levarão à indicação, ou não, dificações de sintomas previamente estáveis são de
de exames laboratoriais ou exames específicos para a grande importância, assim como medicação em uso,
avaliação cardiológica, ou de novos pareceres de ou- consumo de drogas, álcool e tabaco.
tros especialistas. É de grande importância, além de determinar a pre-
Ao final de sua avaliação, o consultor estratificará sença de doença cardíaca, procurar determinar a clas-
o risco para o procedimento proposto, indicando ou se funcional na qual se encontra o paciente. O método
não algum tratamento para reduzi-lo, sugerindo pos- mais utilizado para avaliar esse parâmetro é o teste
sibilidades de monitorização per-operatória e cuida- ergométrico. Entretanto, se este não for possível de
dos para o período pós-operatório. ser realizado, seja por condições ligadas à doença ci-
rúrgica, seja por não estar disponível, existem dados
AVALIAÇÃO CLÍNICA: RISCO RELACIONADO indiretos de capacidade física em função das ativida-
AO PACIENTE des cotidianas. Entre estes lembramos o índice de
Duke(12) , que estabeleceu um questionário de ativida-
É consenso entre vários autores a divisão dos paci- des cotidianas e que mostrou boa correlação com os
entes segundo categorias de risco cardíaco baixo, mé- dados do teste ergométrico (Tab. 2).
dio ou alto, a partir de anamnese, exame clínico e A presença de co-morbidades, como doenças pul-
eletrocardiograma iniciais (6-10) . Essa estratificação ini- monares, anemias, distúrbios de coagulação, nefropatias,
cial, juntamente com a análise da cirurgia proposta, hepatopatias, vigência de infeção, etc., pode influenciar
irão nortear a necessidade ou não da realização de exa- o funcionamento do aparelho cardiovascular e modifi-
mes complementares. A Tabela 1 apresenta os car o risco cirúrgico do paciente.
preditores clínicos maiores, intermediários e menores
de possíveis complicações no per-operatório(11). O con- RISCO RELACIONADO À CIRURGIA
sultor deve avaliar sintomas de angina, infarto do
miocárdio antigo ou recente, insuficiência cardíaca A contribuição dos fatores relacionados ao ato ci-

Tabela 1. Preditores clínicos de risco cardiovascular perioperatório aumentado.

Maiores
— Infarto agudo do miocárdio recente (entre 7 e 30 dias), com evidência de isquemia residual importante
por achados clínicos ou estudos não-invasivos
— Angina instável ou severa (classes III ou IV da Canadian)
— Insuficiência cardíaca congestiva descompensada
— Bloqueio atrioventricular de alto grau
— Arritmia ventricular sintomática em paciente com cardiopatia
— Arritmia supraventricular com freqüência cardíaca não-controlada
— Valvopatia severa
Intermediários
— Angina do peito leve (classe I ou II da Canadian)
— Infarto agudo do miocárdio prévio pela história ou achados de eletrocardiograma
— Insuficiência cardíaca congestiva compensada
— Diabete melito
Menores
— Idade avançada
— Alterações no eletrocardiograma (hipertrofia do ventrículo esquerdo, bloqueio de ramo esquerdo,
alterações do segmento ST)
— Ritmo não-sinusal
— Baixa capacidade funcional
— Antecedente de acidente vascular encefálico
— Hipertensão arterial não-controlada

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Tabela 2. Requerimento de energia para várias atividades diárias.

1 MET Capacidade de cuidar de si próprio


Alimentar-se, vestir-se ou utilizar o banheiro
Caminhar em volta de sua casa
Caminhar um ou dois quarteirões no plano
Realizar atividades leves no lar, como lavar pratos
4 METs Capaz de subir um lance de escadas ou uma ladeira
Caminhar em passos acelerados no plano
Fazer corridas curtas
Fazer serviços pesados em casa, como esfregar o chão
Participar de atividades recreacionais, como boliche, dança, arremessar bola
ACIMA DE 10 METs Participar de atividades extenuantes, como nadar, jogar futebol ou basquete

rúrgico (técnicas e processos) na gênese das compli- de quantificar esse risco e de padronizar a linguagem
cações per-operatórias é menor que os fatores relacio- entre clínicos, anestesistas e cirurgiões.
nados ao paciente(13) . Entretanto estes não podem ser Os métodos mais freqüentemente utilizados para
esquecidos, uma vez que também contribuirão para a avaliar os riscos cirúrgicos são os da American Society
morbidade e a mortalidade per-operatórias. São fato- of Anesthesiologists (ASA)(14) e os de Goldman(15) . A
res importantes relacionados à cirurgia sua urgência, classificação do grau de risco clínico feita pelo méto-
o local, o tipo de anestesia, a severidade estimada de do da ASA é simples, sendo muito utilizada por man-
perda sanguínea, a probabilidade de modificações do ter boa correlação com a intensidade do risco cirúrgi-
equilíbrio hidro-eletrolítico e a necessidade de cuida- co. É baseada em parâmetros clínicos, não havendo a
dos pós-operatórios. necessidade de exames subsidiários.
Vários autores classificam as cirurgias em faixas A classificação de Goldman, mais específica para
de risco alto, médio e baixo (Tab. 3). Segundo as dire- o risco cardíaco, foi elaborada na década de 70, após
trizes do American College of Cardiology (11) , o con- análise de condições que contribuíram de forma inde-
sultor deverá pesar os fatores clínicos preditores de pendente para graves complicações cardíacas em pa-
complicação acima descritos juntamente com o tipo cientes com mais de 40 anos submetidos a grandes
de cirurgia proposto. Assim, pacientes portadores de cirurgias. A essas condições foram atribuídos pesos e
preditores clínicos maiores requerem cuidado médico assim foi estabelecido um sistema de pontos, a partir
intensivo, podendo levar ao adiamento ou até ao can- do qual se atribui o risco cirúrgico do paciente. Em
celamento da cirurgia, independentemente de sua clas- 1995, Mangano e Goldman(16) fizeram uma atualiza-
se de risco, a menos que esta seja de emergência. Aque- ção do índice, buscando corrigir condições nas quais
les pacientes que apresentam preditores clínicos inter- o risco era subestimado. Assim, fatores como a pre-
mediários deverão ter sua classe funcional bem avali- sença de coronariopatia ou grandes cirurgias envol-
ada. Caso apresentem capacidade funcional baixa, irão vendo a aorta passaram a ser considerados como de
necessitar de investigação adicional. Caso apresentem risco elevado “pré-teste”, influenciando o resultado
capacidade funcional superior a 4 METs, poderão ser obtido com o escore original de Goldman.
submetidos a cirurgias de risco médio ou baixo com bai- Diversos autores têm procurado atualizar ou pro-
xo índice de complicações. Já aqueles pacientes com por novos índices de avaliação do risco pré-operató-
preditores clínicos menores poderão submeter-se a ci- rio. Entre eles, Detsky e colaboradores (17) modifica-
rurgias de risco médio ou baixo, independentemente de ram o escore de Goldman, tornando-o mais abrangente,
sua classe funcional, devendo ser mais bem avaliados na com maior número de pontos a serem analisados. Mais
hipótese de serem candidatos a cirurgias de alto risco. recentemente, Lee e colaboradores(18) propuseram novo
índice, com seis preditores independentes de compli-
ÍNDICES DE RISCO cações:
1) cirurgia de alto risco;
Embora cada vez mais questionados, os índices 2) história de doença coronariana;
padronizados de risco continuam sendo uma maneira 3) história de insuficiência cardíaca congestiva;

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Tabela 3. Risco relacionado ao procedimento cirúrgico.

Categoria Descrição Exemplos

Alto Procedimentos altamente invasivos, de Aneurisma ou tumor intracraniano,


localização intracraniana, torácica ou da ressecção hepática ou pulmonar, esofagectomia,
porção superior do abdome; potencial cirurgia de coluna, reoperação em grandes
de perda sanguínea maior que 1.000 ml, articulações, cirurgia de aorta ou de
com grandes alterações em equilíbrio grandes vasos, debridamento e excisão de
hidro-eletrolítico; grande necessidade queimaduras, grandes cirurgias abdominais, etc.
de suporte pós-operatório; potencial
de grande morbidade e mortalidade
Médio Procedimentos moderadamente Prostatectomia aberta, laminectomia,
invasivos, com alguma alteração cirurgias de cabeça e pescoço, lipoaspiração,
hidro-eletrolítica, potencial de perda osteotomia de mandíbula, biópsia pulmonar,
sanguínea de até 1.000 ml, potencial histerectomia, colecistectomia, toracoscopia,
de moderada morbidade e mortalidade cirurgia de joelho e quadril, uvulopalatoplastia,
ressecção de orofaringe, etc.
Baixo Procedimentos minimamente invasivos, Biópsia de mama, procedimentos em nervos,
associados a perda sanguínea inferior miringotomia, cistoscopia, histeroscopia,
a 200 ml broncoscopia, laqueadura, hérnia umbilical e
inguinal, tireoidectomia, artroscopia, etc.

4) história de doença cerebrovascular; conjunto foi superior ao uso dos mesmos de forma iso-
5) tratamento pré-operatório com insulina; lada.
6) creatinina sérica pré-operatória > 2,0 mg/dl. Os índices de Goldman e da ASA são particular-
As taxas de complicações com 0, 1, 2 ou 3 ou mais mente úteis por serem de aplicação simples, de baixo
desses fatores foi de 0,5%, 1,3%, 4% e 9%, respecti- custo e por determinarem grupos de pacientes de mai-
vamente. or risco, nos quais pode ser necessário adiar o proce-
Até mesmo o índice de APACHE II(19) , original- dimento cirúrgico, modificá-lo, ou indicar cuidados
mente utilizado para avaliar prognóstico em unidades per-operatórios mais intensificados. Um dos motivos
de terapia intensiva, foi proposto como preditor útil para resultados conflitantes na aplicação desses índi-
para avaliação prognóstica para grandes cirurgias. ces pode estar ligado a erros em sua aplicação, com
Todas as classificações estão sujeitas a críticas, pois índices super ou subestimados(26) .
dificilmente cobrirão toda a ampla gama de variáveis De qualquer forma, qualquer índice tem suas limi-
envolvidas nas possíveis complicações cirúrgicas, prin- tações, ligadas, inclusive, às particularidades do ser-
cipalmente no tocante às variações de respostas pró- viço em que ele é aplicado(27) . Os índices devem servir
prias de cada paciente. As duas classificações mais como referência para o consultor. O julgamento clíni-
utilizadas continuam sendo a da ASA e a de Goldman, co e a experiência do médico que acompanha o paci-
que têm sido submetidas a diversos estudos,procuran- ente serão sempre superiores e mais valiosos para a
do validá-las em diferentes populações cirúrgicas (20-25) . adequada estratificação do risco do indivíduo.
Os resultados desses estudos são muitas vezes
conflitantes, porém, de modo geral, os índices têm se QUEM DEVE AVALIAR?
mostrado bons preditores de complicações quando
aplicados em grandes populações. No maior desses Em tempos de controle de custos, essa pergunta
estudos, Prause e colaboradores(20) analisaram 16.227 adquire grande importância. A avaliação pelo
pacientes, de forma retrospectiva, segundo os índices anestesista é sempre realizada em diversas instituições,
de Goldman e ASA. Ambos foram preditores de com- no Brasil e no exterior. Acredita-se que se o paciente
plicações, e a acurácia dos dois índices utilizados em não apresenta sinais de doença significativa e se a ava-

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liação adicional pelo especialista não irá implicar a probabilidade de resultado anormal. Para uma bate-
modificações no planejamento cirúrgico, esta não é ria de 20 exames bioquímicos, as chances de todos
necessária. serem normais é de apenas 36%; isto é, há chance de
A utilização de algoritmos, que podem ser indivi- 64% de que existirá pelo menos um resultado anor-
dualizados para cada instituição, auxilia a realização mal(28) . Ainda, segundo Macpherson(28) , “ao se optar
da avaliação e também contribui para a redução de pela solicitação de um exame num paciente sem acha-
custos. dos sugestivos de doença na história ou no exame físi-
É prática comum que as equipes cirúrgicas tenham co, que irá influenciar no resultado, os fatores a serem
seus avaliadores preferenciais (consultores) e que considerados são os seguintes: primeiro, existe alta
referenciem seus pacientes para eles. Tal atitude pre- probabilidade de que o resultado do exame seja anor-
tende criar facilidades de comunicação entre clínicos mal?; segundo, um resultado anormal está associado a
e cirurgiões e também preenche aspectos de caráter elevado risco de complicações pós-operatórias, de for-
econômico, pois criam vínculos mais ou menos está- ma que a descoberta de uma anormalidade poderia
veis entre os profissionais e propiciam rotinas de tra- resultar em intervenções para reduzir o risco do pro-
balho (estas otimizariam os recursos e agilizariam os cedimento ou cancelar a cirurgia?; terceiro, existe alta
resultados). Quando se age dessa maneira, tende-se a probabilidade de que, se o exame for repetido após o
fazer todas as avaliações clínicas por quem se “conhe- ato cirúrgico, ele se tornará anormal, de forma que um
ce e é de confiança da equipe cirúrgica”. Entretanto, valor basal seria fundamental?”. Portanto, podemos
às vezes, o cirurgião se esquece de que o paciente já concluir que as principais razões para realizar os exa-
tem médico clínico que o acompanha, que sendo “da mes seriam as seguintes:
mais estrita confiança do paciente” e que sendo um a) detectar condições não suspeitadas que podem alte-
observador e orientador da saúde dele há longo tem- rar o risco cirúrgico;
po, é um avaliador, para aquele paciente, de grande b) obter resultados basais que possam ser úteis na to-
acurácia e perspicácia técnica. Esse clínico com certe- mada de decisão durante e após a cirurgia.
za tem mais condições de avaliar melhor, utilizando, A questão que se coloca não é a de termos exames
inclusive, menos recursos médicos subsidiários por normais, mas sim a de termos exames que sejam úteis
conhecer algumas das particularidades do paciente. O na tomada de decisão pré, per ou pós-operatória. Uma
médico que faz a avaliação sem conhecer previamente boa regra é analisar se o exame em questão seria so-
o paciente tem a tendência de solicitar o maior núme- licitado independentemente da necessidade de o paci-
ro possível de exames subsidiários, para “cercar” to- ente ser ou não submetido a cirurgia.
das as possibilidades e tentar garantir o sucesso do em-
preendimento. Essa atitude não encontra respaldo téc- QUEM DEVE SER AVALIADO?
nico: fazer muitos exames não é igual a fazer boa ava-
liação. As complicações a serem evitadas não são ape- Sendo o ato cirúrgico um ato invasivo, que implica
nas aquelas que a literatura médica relata, mas são prin- a utilização de drogas diversas e que inevitavelmente
cipalmente aquelas que a equipe cirúrgica tem tido a provoca súbitas e intensas modificações fisiológicas,
partir de sua própria experiência e que devem ser dis- as quais são suportadas de forma variável pelos paci-
cutidas com o médico avaliador. entes, há uma tendência em submeter todos os pacien-
tes (jovens, idosos, com ou sem doenças prévias, gra-
EXAMES SUBSIDIÁRIOS PRÉ- OPERATÓRIOS ves ou com problemas de pequena monta, etc.) a ex-
tensas avaliações com sofisticados e modernos méto-
Os médicos consultores ligados às equipes cirúr- dos na tentativa de diagnosticar o grau de “suportabi-
gicas tendem a estabelecer rotinas, inclusive de exa- lidade” dos pacientes. Talvez o único método de se
mes laboratoriais. Chamamos de exame de rotina quan- saber com certeza o que cada paciente suporta seja
do ele é solicitado para todos os pacientes, indepen- submetê-lo ao procedimento propriamente dito, o que
dentemente dos achados na história e do exame físico. obviamente não é exeqüível. Por outro lado, o estresse
As investigações acerca de exames pré-operatórios de induzido pelo ato cirúrgico é reversível sem interven-
rotina concluíram que o número de resultados de exa- ção médica. Há, então, uma adaptação fisiológica do
mes não selecionados e que detectam anormalidades é organismo humano, que está dentro do esperado e que
baixo, com grande número de resultados falsos positi- possibilita o próprio ato cirúrgico. A magnitude do que
vos. Como os resultados deles são independentes uns é passível de adaptação é de difícil detecção e não há
dos outros, quanto maior o número de exames, maior exames que avaliem tal variação. Trata-se, portanto,

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não-cardíaca: quem deve ser avaliado e quem deve avaliar

sempre de uma avaliação médica estimativa (com alto culdades na avaliação funcional desse grupo de paci-
grau de incerteza) baseada em conjecturas de ordem entes, conforme relato de Del Guercio e Cohn(33) . O
teórica, de difícil demonstração prática, e que depen- que é mais aceito é tentar fazer a cirurgia no menor
dem daquilo que o cirurgião e o anestesista fazem du- espaço de tempo, com a menor agressão possível; es-
rante e após a cirurgia, da experiência prévia de am- ses dois aspectos estão intimamente ligados à destre-
bos e também de fatores individuais relativos ao paci- za e à experiência do cirurgião e só podem ser avalia-
ente e sua capacidade de resposta aos estímulos. A in- dos por ele mesmo.
certeza está presente mesmo nos jovens que possuem Outro fator que merece consideração é o ligado às
elevada capacidade de adaptação aos mais diversos doenças psiquiátricas. São pacientes que podem estar
fatores agressivos. É, no entanto, essa mesma estima- fazendo uso de diversos medicamentos que modifi-
tiva que pode ajudar na tomada de decisão, pois ela cam a fisiologia e os padrões de resposta habitualmente
alertará para os aspectos relevantes e de maior proba- esperados. Além disso, existem interações
bilidade de complicações. Sem dúvida os portadores medicamentosas entre as drogas anestésicas e as de
de doenças crônicas e de problemas médicos especi- uso psiquiátrico, sendo o principal exemplo os
ais podem ter rebaixamento na capacidade de se ajus- inibidores da monoaminoxidase e das drogas causa-
tarem às modificações induzidas pelo ato cirúrgico. doras de síndromes de abstinência (34) . Em tais pacien-
Nos próximos capítulos, os diversos autores discuti- tes, impõe-se minuciosa avaliação pré-anestésica e
rão a importância das doenças concomitantes para o comunicação obrigatória entre o cirurgião, o anestesista
bom andamento das cirurgias em geral e de estratégi- e o psiquiatra. Avaliações feitas por terceiros esbarra-
as para acompanhamento cirúrgico. riam em enormes dificuldades, tais como história clí-
A idade do paciente é um fator que não deve ser nica nem sempre possível de ser obtida, nível alterado
esquecido. Vários autores (29-32) demonstraram existir de consciência do paciente e modificações funcionais
aumento da mortalidade cirúrgica relacionada com a induzidas pelas drogas psicotrópicas.
idade, principalmente em procedimentos de emergên- Outra situação especial é aquela ligada às urgências,
cia. Esse aumento deve-se principalmente às altera- quando decisões devem ser tomadas no menor intervalo
ções decorrentes da idade (30) , que provocam diminui- de tempo com o objetivo de garantir a vida do paciente
ção da reserva funcional dos diversos aparelhos, em que está sob séria ameaça. Nem sempre podem ser obti-
especial diminuição em graus variáveis das funções das as informações adequadas ou realizadas medidas para
cardíaca, respiratória e renal, com efeitos adversos estratificação do risco cirúrgico. Assim, a avaliação aca-
sobre as evoluções cirúrgicas. Há que se considerar ba sendo direcionada para minorar os riscos de compli-
ainda que os idosos têm probabilidade aumentada de cações pós-operatórias, independentemente da cirurgia
apresentar diversas doenças, inclusive coronariopatia, que foi realizada (a qual, na realidade, garantiu a vida
muitas vezes de forma assintomática, devido às daquele paciente), com posterior estratificação de risco
autolimitações impostas pela idade. Há evidentes difi- e orientação ao paciente.

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não-cardíaca: quem deve ser avaliado e quem deve avaliar

BASES AND IMPORTANCE OF PREOPERATIVE EVALUATION FOR NONCARDIAC


SURGERY: WHO NEEDS EVALUATION AND WHO IS GOING TO EVALUATE

DANIEL LAGES DIAS, LUIZ ANTÔNIO K. B ITTENCOURT , JOSÉ RENATO CAVICCHIO, MÁRCIO JANSEN
FIGUEIREDO, ANA MARIA SIMÕES

Referal to a cardiologist for preoperative evaluation is a very common practice, but there’s a lot of distortions
on it. The consultant physician must act as an adviser, evaluating the clinical status of the patient, stressing in
his functional capacity, and also evaluating the risk of the proposal surgery. In this way, the physician can use
one of the many risk indices available on medical literature. Referal to the specialist or demand of high cost
exams is many times unnecessary, although some special groups of patients need a higher attention.
Key words: preoperative care, risk assessment, noncardiac surgery, surgical risk.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:259-67)


RSCESP (72594)-976

R EFERÊNCIAS and management of risk from coronary artery di-


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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 267
O PAPEL DO CIRURGIÃO NA AVALIAÇÃO PRÉ-OPERATÓRIA

ADMAR CONCON F ILHO* , C LAUDIO PINHO

Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Valinhos


Endereço para correspondência: Rua Sílvio Concon, 44 — CEP 13270-240 — Valinhos — SP

Com a responsabilidade sobre a indicação cirúr- a nutrição, as particularidades dos idosos, dos porta-
gica e sobre seu resultado, o cirurgião precisa ofere- dores de neoplasias e outras doenças, o conhecimen-
cer as melhores condições para que seu paciente su- to dos riscos operatórios e a melhora de todos esses
porte o ato cirúrgico-anestésico. A história clínica fatores permitirão melhor resultado no tratamento ci-
detalhada, o estado psíquico-emocional do paciente, rúrgico proposto.
o exame físico pormenorizado, os exames Descritores: avaliação pré-operatória, complica-
laboratoriais, a propedêutica armada, os cuidados com ções pós-operatórias, triagem pré-operatória.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:268-76)
RSCESP (72594)-977

I NTRODUÇÃO principal elo afetivo entre o cirurgião e seu paciente.


Em função disso, a informação pré-operatória sobre a
Sem dúvida, a responsabilidade maior na indica- doença a ser tratada, as possibilidades terapêuticas, a
ção cirúrgica de um paciente cabe ao cirurgião. A im- técnica operatória e os riscos e complicações ineren-
portância de indicar um método terapêutico agressi- tes ao procedimento devem ser detalhadamente abor-
vo, lesivo, que invada não só o aspecto íntimo e emo- dados pelo cirurgião junto com o paciente e seus fa-
cional do ser humano, mas também sua integridade miliares, esclarecendo todas as dúvidas. Essa consci-
física, é de suma complexidade. Ainda que, algumas entização evita transtornos futuros entre o médico e a
vezes, o paciente já venha encaminhado ao cirurgião família, mesmo diante de complicações pós-operató-
com a indicação do tratamento operatório por parte do rias.
clínico responsável pelo paciente, cabe ao cirurgião, Com o grande avanço da Medicina, de seus méto-
como médico e capacitado para essa prática, ratificá- dos diagnósticos e terapêuticos mais complexos, e
la ou contra-indicá-la. conseqüentemente mais onerosos, com o conhecimento
A gravidade de retirar uma pessoa de seu convívio e a ciência mais disponíveis para toda a população por
familiar, submetê-la a procedimento anestésico, reali- meio da globalização, com o despertar dos questiona-
zar uma terapêutica cirúrgica, rompendo-lhe a integri- mentos e cobranças dos resultados por parte dos paci-
dade física, devolvendo-a novamente a sua família e à entes e familiares, e, poderíamos dizer, consumidores
sociedade, no mínimo em estado clínico igual, e se dos serviços médicos, ficou ainda mais preocupante o
possível melhor, obriga-nos a tomar todas as medidas preparo pré-operatório, até por motivos jurídicos e le-
necessárias e disponíveis para atingir um resultado gais.
mais satisfatório. É controversa a necessidade de diversos exames
Mesmo diante de toda a complexidade tecnológi- laboratoriais e avaliações especializadas e a utilização
ca atual, a relação médico-paciente continua sendo o da propedêutica armada quando comparados seus be-

*
Ex-médico assistente da Cirurgia do Trauma do HC-UNICAMP.

268 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
CONCON FILHO A
O papel do cirurgião na avaliação pré-operatória

nefícios com seus custos. cessos contra médicos, impulsionado pela própria
Levando-se em consideração a pessoa do pacien- mídia, o que faria o profissional da área médica cer-
te, a gravidade de sua doença, seu estado de saúde, a car-se de exames para justificar sua conduta, criando
urgência da realização do ato operatório, a segurança a chamada “Síndrome de Documentação” (5,6) .
e a proteção da equipe médica, e os aspectos médico- Melo(2) aponta os aspectos responsáveis por essa
legais, podemos tentar propor algumas medidas em rotina de exames pré-operatórios: “Autoridade”, dos
diferentes situações. Mesmo diante de diversos proto- livros-textos e dos serviços de cirurgia que ensinam e
colos e classificações propostas, sabe-se que uma boa difundem essa prática; “Tradição”, gerando nos cirur-
história clínica e o exame físico são insubstituíveis. giões a tendência de repetir procedimentos clássicos;
Dentro da história clínica, devemos cada vez mais es- “Preconceito”, que impede o questionamento destes;
tar atentos quanto aos antecedentes do uso de drogas, “Conjectura”, onde a não realização desses exames
prática cada vez mais comum em nosso meio, princi- aumentaria o risco cirúrgico; e “Hábito”, onde solici-
palmente entre os jovens. Os usuários de algumas dro- tamos exames sem considerar sua real necessidade.
gas, como a cocaína, correm risco maior de desenvol- Ainda, o excesso de trabalho do cirurgião e o re-
ver edema pulmonar agudo ou instabilidade duzido tempo disponível para a avaliação clínica de-
hemodinâmica durante a anestesia. talhada levariam o profissional a solicitar diversos exa-
Podemos dividir o preparo pré-operatório em fun- mes para surpreender laboratorialmente alguma do-
ção do tempo disponível para se avaliar e preparar o ença que poderia ser suspeitada por uma minuciosa
paciente para a operação, considerando-se três situa- história e exame físico. A dissociação entre os servi-
ções: indicação cirúrgica eletiva, de emergência e de ços de cirurgia e anestesiologia poderia levar à sus-
urgência. pensão de uma cirurgia pela “falta de exames”, acar-
retando ao cirurgião uma série de transtornos de or-
CIRURGIAS ELETIVAS dem pessoal, burocrática, profissional e de dinâmica
de serviço(5) .
A extensa literatura sobre a melhor avaliação pré- Esses exames pré-operatórios podem ser divididos
operatória, tentando determinar índices ou classifica- em três categorias:
ções que melhor poderiam prever os riscos de compli- a) Descritivos: realizados para avaliar o estado atual
cações intra e pós-operatórias, tem-se mostrado diver- de uma doença ou condição já identificada previa-
gente quanto aos exames necessários para cada paci- mente.
ente. b) Parâmetro inicial: para servirem de comparação no
O risco de complicações cardiopulmonares pós- caso de uma complicação pós-operatória.
operatórias está na dependência de diversos fatores, c) Triadores: para detectar doenças e condições insus-
entre eles idade acima de 70 anos, história de infarto peitas clinicamente. Nessa categoria pesam as
do miocárdio prévio, insuficiência cardíaca ou doen- maiores críticas, uma vez que o gasto excessivo
ça pulmonar crônica, principalmente em cirurgias de nesses exames poderia ser dirigido a programas de
grande porte, gastrocirurgias ou cirurgias de emergên- prevenção e outros (7) . Além do custo-benefício
cia(1) . proibitivo, grande número de doenças
diagnosticadas não recebe tratamento correspon-
Exames subsidiários dente, resultando em benefício clínico desprezí-
O conceito de “Rotina Pré-Operatória”, com pro- vel(8) .
tocolos listando diversos exames subsidiários, basea- A maioria dos autores concorda com a realização
do geralmente na idade e na cirurgia proposta, sem a do eletrocardiograma para aqueles pacientes com clí-
análise criteriosa das indicações dos exames baseadas nica sugestiva, grupos de risco para doença cardíaca
numa apurada avaliação clínica individual, tem sido a oculta e idosos. A radiografia de tórax estaria dispen-
rotina da maioria dos serviços de cirurgia(2) . Alguns sada nos pacientes com menos de 30 anos de idade,
autores alegam esse procedimento na tentativa de di- desde que assintomáticos e sem fatores de risco para
agnosticar doenças insuspeitas ou usar esses dados doenças pulmonares.
como referências para possíveis dosagens no pós-ope- Segundo um estudo realizado por Labbate(9) , não
ratório, caso haja alguma complicação (3,4) . demonstraram significado estatístico preditivo de com-
Uma preocupação cada vez mais presente em nos- plicações intra e pós-operatórias os exames de hemo-
so meio é garantir-se de possíveis questionamentos no globina, glicemia, uréia, hematócrito, creatinina, análi-
aspecto legal em virtude do crescente número de pro- se urinária, radiografia de tórax e avaliação do porte

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 269
CONCON FILHO A
O papel do cirurgião na avaliação pré-operatória

cirúrgico. Tiveram significados o eletrocardiograma imunológica, celular e humoral.


de pacientes do sexo masculino, a idade, a classifica- A repleção nutricional pré-operatória melhora a
ção da American Society of Anesthesiologists (10,11) e a resposta à cirurgia e diminui as complicações relacio-
presença de doenças associadas. Esse autor conclui que nadas à nutrição(14) .
o aumento do custo pela realização de exames pré- A avaliação do estado nutricional pode ser feita
operatórios em pacientes ASA I e II que serão subme- baseada em alguns parâmetros:
tidos a cirurgia de porte I e II segundo a classificação a) Dados antropométricos: espessura da prega cutânea
de Vélez-Gil e Gonzales (12) não apresentou correspon- do tríceps, circunferência muscular do terço mé-
dente melhora nos resultados finais obtidos. Esses exa- dio do braço, altura e peso.
mes apresentam relação custo-benefício desfavorável, b) Determinações bioquímicas: dosagem de albumina,
com preditividade muito baixa. transferrina ou proteínas totais no soro.
c) Estudo imunológico: teste de hipersensibilidade a
Risco pré-operatório antígenos de memória e a linfocitometria total.
Na tentativa de identificar os pacientes com risco A história cuidadosa e o exame físico podem cons-
de complicações pós-operatórias, Klotz e colaborado- tituir um meio confiável e mais útil de determinar o
res(13) propõem, após estudo de regressão logística onde estado nutricional(14) . Alteração no apetite, perda de
foi analisado o histórico do paciente e após exame fí- peso de 10% em curto espaço de tempo, vômito, diar-
sico detalhado, propedêutica armada e exames réia ou intolerâncias alimentares são fatores que suge-
laboratoriais, a classificação da ASA e detalhes da ci- rem estado de desnutrição. Antecedentes de ressecções
rurgia, um índice baseado em quatro fatores: gástricas e intestinais também favoreceriam o estado
a) Complexidade cirúrgica: 1 a 4 pontos. desnutricional. O exame físico evidenciando perda de
— Grupo 1 — cirurgias, excluindo a entrada no gordura, atrofia dos músculos intrínsecos da mão, pro-
abdome e tórax (1 ponto). eminência incomum da escápula ou processos espi-
— Grupo 2 — cirurgias abdominais pequenas (2 nhosos das vértebras indicam estado consuntivo. A
pontos). presença de edema indica hipoalbuminemia. A glossite
— Grupo 3 — cirurgias torácicas (3 pontos). ou queilose podem indicar desnutrição.
— Grupo 4 — cirurgias abdominais extensas e A terapia nutricional consiste em quantificar a in-
retroperitoneais. gesta calórico-protéica oral, determinar a necessidade
b) Classificação da ASA: 1 a 4 pontos. básica diária e utilizar complementação. Podem ser
— ASA I — 1 ponto. usados suplementos orais, ou dietas enterais por son-
— ASA II — 2 pontos. das quando o trato digestivo está funcionante. A nutri-
— ASA III — 3 pontos. ção parenteral prolongada pode ser usada quando o
— ASA IV — 4 pontos. trato digestivo não está funcionante ou para suplemen-
c) Doenças respiratórias: 0 ou 1 ponto. tar a ingesta oral. A nutrição parenteral prolongada
d) Neoplasias: 0 ou 1 ponto. também está indicada nos casos de preparo pré-opera-
Risco pré-operatório: tório de doentes desnutridos, pós-operatório de cirur-
— Classe A: até 4 pontos — baixo risco; compli- gias de grande porte, complicações pós-operatórias,
cações sistêmicas inferiores a 5%. neoplasias, doenças intestinais inflamatórias, afecções
— Classe B: 5 a 7 pontos — risco intermediário; pancreáticas, fístulas do aparelho digestivo, trauma,
complicações sistêmicas de 17,9%. síndrome do intestino curto e falências orgânicas (15) .
— Classe C: 8 a 10 pontos — alto risco; complica- Nos pacientes com neoplasias, seis a dez dias de
ções sistêmicas de 33,3%. nutrição parenteral prolongada no pré-operatório me-
Concluem esses autores que pacientes com alto ris- lhoram os resultados no pós-operatório de cirurgias
co de complicações perioperatórias e pós-operatórias oncológicas (16) . A incidência de complicação no paci-
são mais facilmente identificados com essa análise que ente oncológico desnutrido é de 48%, enquanto no
com o método da ASA isoladamente. paciente nutrido é de 23%.

Aspectos nutricionais do cuidado pré-operatório Avaliação pré-operatória do paciente oncológico


Já é sabido que a desnutrição aumenta a incidência Os pacientes que serão submetidos a tratamento
de infecção na ferida operatória, pneumonia, abscesso cirúrgico e estão fazendo quimioterapia ou radiotera-
intra-abdominal, insuficiência respiratória pós-opera- pia pré-operatória devem receber atenção especial em
tória e formação de fístula, e altera as funções virtude de algumas particularidades (17) .

270 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
CONCON FILHO A
O papel do cirurgião na avaliação pré-operatória

Pacientes em quimioterapia flamação, necrose, fibrose e formação de fístula,


Os agentes quimioterápicos para o câncer afetam comprometendo a cicatrização da ferida operatória.
praticamente todos os órgãos e tecidos. Também sofrem a imunossupressão da medula ós-
1) Efeitos cardíacos: cardiotoxicidade aguda ou crô- sea, principalmente nos idosos e nos pacientes sub-
nica, com alterações eletrocardiográficas ines- metidos a quimioterapia, diminuindo sua resposta à
pecíficas, batimentos atriais e ventriculares pre- infecção ou hemorragia.
maturos e arritmias complexas, com risco de in- Marcadores tumorais
suficiência cardíaca congestiva decorrente de Utilizados para revelar o volume tumoral, a res-
cardiomiotoxicidade provocada pelo quimiote- posta ao tratamento e a recidiva (17,18).
rápico. Esses pacientes devem ser submetidos a 1) CA 15.3: no câncer de mama (também au-
avaliação cardiológica e eletrocardiográfica, às mentado nos tumores malignos do ovário, pulmão,
vezes até ecocardiograma e ventriculografia ra- fígado e endométrio).
dioisotópica. 2) CA 125: no tumor ovariano (também aumen-
2) Efeitos pulmonares: fibrose pulmonar, principal- tado nos tumores malignos do pâncreas, pulmão,
mente nos pacientes com mais de 70 anos de ida- aparelho digestivo, mama, adenocarcinoma do
de, com doença pulmonar preexistente e radiote- endométrio, mesotelioma maligno e colo do útero).
rapia prévia. Apresentam sintomas como cefaléia, 3) CA 19.9: no câncer colorretal, de pâncreas e
astenia, febre, tosse não produtiva e dispnéia ao gástrico (também aumentado nos tumores malignos
esforço. A radiografia de tórax mostra fino das vias biliares, fígado e ovário).
infiltrado reticular e basal. A prova de função pul- 4) CA 72.4: no câncer gástrico (também aumen-
monar revela diminuição da capacidade de difu- tado nos tumores malignos colorretais, do pâncreas,
são e padrão ventilatório restritivo. A gasometria ovário e pulmão).
arterial pode mostrar hipoxia e hipocapnia. Esses 5) Antígeno prostático específico: aumentado em
pacientes devem realizar radiografia de tórax, pro- doença benigna da próstata (hiperplasia benigna e
va de função pulmonar e gasometria arterial antes prostatite) e no câncer da próstata.
da cirurgia. 6) Fosfatase ácida prostática: no câncer da prós-
3) Hepatotoxicidade: com elevações subclínicas das tata.
enzimas hepáticas; a disfunção hepática pode alte- 7) Antígeno carcinoembrionário: no câncer
rar o metabolismo de anestésicos sistêmicos e ina- colorretal (também aumentado em tumores malig-
lados. Deve-se fazer uma avaliação da função he- nos do pâncreas, pulmão, fígado, vias biliares, me-
pática antes da anestesia. dular da tireóide, colo do útero, mama, ovário, bexi-
4) Sistema nervoso central: a disfunção do sistema ga e trato gastrointestinal).
nervoso central pode simular comprometimento 8) Alfafetoproteína: nos hepatocarcinomas (tam-
tumoral, devendo-se fazer o diagnóstico diferenci- bém aumentado nos casos de cirrose hepática e he-
al com metástase cerebral. patites, nos tumores malignos do pâncreas, estôma-
5) Toxicidade gastrointestinal: mucosite oral ou go, cólon, pulmões e rins).
esofagiana, náuseas, vômitos e diarréia, com as al- 9) Gonadotrofina coriônica B-HCG: nos tumo-
terações eletrolíticas. Devem-se avaliar os eletró- res de células germinativas do testículo e ovário e
litos antes da cirurgia. tumores trofoblásticos gestacionais.
6) Toxicidade renal: nefrotoxicidade, hipomagnesemia 10) Calcitonina: no carcinoma medular da
e hipocalcemia podem aparecer após o uso de al- tireóide, de pequenas células do pulmão e na mama.
guns quimioterápicos. Deve-se avaliar os eletrólitos
e a função renal. Considerações pré-operatórias no paciente
7) Toxicidade hematológica: a supressão da medula geriátrico
óssea é a principal toxicidade vista com os agentes A população de idosos está aumentando com o
quimioterápicos, com diminuição dos leucócitos, passar dos anos, mais cirurgias estão sendo realiza-
seguida de plaquetopenia. A cirurgia deve ser rea- das nessa faixa etária e mais cirurgiões estão habili-
lizada na fase de recuperação da medula, com es- tados a executá-las. Os pacientes geriátricos possu-
tudo do hemograma com plaquetas e, se necessá- em epidemiologia diferente de doenças e têm res-
rio, mielograma. postas fisiológicas diferentes ao estresse da doen-
Pacientes em radioterapia ça(19) . O índice de mortalidade cirúrgica é maior no
Sofrem os efeitos locais da radioterapia, com in- idoso. As principais causas de óbitos no paciente ci-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 271
CONCON FILHO A
O papel do cirurgião na avaliação pré-operatória

rúrgico idoso são cardiopulmonares e infecciosas. A refluxo no pré-operatório e suspender, se possível,


otimização pré-operatória dos sistemas cardiovascular, os medicamentos que reduzem a pressão no
respiratório, imunológico e nervoso diminui a morta- esfíncter inferior do esôfago (sedativos,
lidade cirúrgica. No entanto, devemos entender que anticolinérgicos, bloqueadores do canal de cálcio
pequenas alterações crônicas nos parâmetros fisioló- e teofilina).
gicos e laboratoriais já fazem parte da homeostase b) Hemorragia digestiva alta: avaliar o estado
desse indivíduo, não sendo necessária hipercorreção hemodinâmico; reposição volêmica rápida; tratar
ou trazer esses valores para dentro da faixa de norma- coagulopatia; realizar endoscopia digestiva alta
lidade. para o diagnóstico etiológico; a maioria (80%) ces-
a) Considerações cardiovasculares: as complicações sa o sangramento espontaneamente.
cardiovasculares são as causas mais comuns de c) Hemorragia digestiva baixa: avaliar estado
óbito nos pacientes idosos. Indicar monitorização hemodinâmico; reposição volêmica rápida; tratar
hemodinâmica invasiva no perioperatório de paci- coagulopatia; sonda nasogástrica para excluir
entes ASA III com risco cardíaco elevado, segun- sangramento digestivo alto; avaliação proctológica
do Goldman(20) . para afastar doença orificial; realizar colonoscopia
b) Considerações pulmonares: as alterações fisiológi- para o diagnóstico etiológico(23) .
cas e o risco de doença pulmonar adquirida au- d) Colecistopatia crônica calculosa: investigar a pos-
mentam o risco de complicações pulmonares, prin- sibilidade de coledocolitíase por meio da história
cipalmente pneumonia. Preparo pré-operatório com de icterícia prévia e alterações das dosagens de
fisioterapia respiratória, tratamento das bronqui- fosfatase alcalina, bilirrubinas e amilase; realizar
tes bacterianas e controle do broncoespasmo. Usar a colangiopancreatografia endoscópica retrógrada
profilaxia trombótica e mobilização precoce no pré-operatória quando da suspeita de coledoco-
pós-operatório. Os fatores preditivos para compli- litíase.
cações pulmonares no pós-operatório são: pneu- e) Doentes ictéricos: avaliar a função hepática, a crase
mopatia, sintomas respiratórios, idade acima de 50 sanguínea, a função renal, a possibilidade de in-
anos, cirurgia acima de 210 minutos, tabagismo e fecção na árvore biliar obstruída e usar antibiótico
distrofia. A doença pulmonar crônica é o fator mais profilático(24) .
importante, principalmente quando associado a f) Ressecções intestinais: avaliar o estado nutricional
cirurgia acima de 210 minutos e co-morbidades (dosagens da albumina e outros) e a presença de
(47% de complicações pulmonares no pós-opera- verminoses com o protoparasitológico de fezes,
tório)(21) . Indicar a prova de função pulmonar se- para diminuir a incidência de deiscência de
gundo os critérios de Houston e colaboradores (22) : anastomoses e fístulas intestinais.
candidatos a cirurgia abdominal superior, acima de
60 anos, com doença pulmonar, obesidade mórbi- Profilaxia da trombose venosa profunda e
da, tabagista e portador de sintomas respiratórios. tromboembolismo pulmonar
c) Considerações imunológicas: declínio da imunida- Todos os pacientes cirúrgicos correm o risco de
de celular e humoral (imunossenescência). A desenvolver trombose venosa profunda e sua princi-
subnutrição, oculta nos idosos, predispõe a com- pal complicação, o tromboembolismo pulmonar (25) .
plicações infecciosas. Usar antibiótico profilático. Os fatores de risco são: história prévia de trombo-
d) Considerações sobre o sistema nervoso central: é se venosa profunda, idade avançada, tabagismo, obe-
comum o declínio cognitivo e psiquiátrico em pa- sidade, repouso prolongado e anestesia geral.
cientes geriátricos no pós-operatório. Uma lesão Métodos de profilaxia:
cerebral preexistente de demência ou acidente a) Meias de compressão graduada: reduzem 11% de
vascular cerebral predispõe ao delírio pós-opera- trombose venosa profunda quando usadas isolada-
tório, que pode afetar até 10% a 15% dos pacien- mente.
tes. O delírio pode ser produzido ou agravado por b) Dispositivos de compressão pneumática intermiten-
infecção oculta, toxicidade medicamentosa ou dis- te: quando contra-indicado o uso de anticoagu-
túrbio metabólico (hiponatremia dilucional). lantes.
c) Heparina: reduz a trombose venosa profunda no pós-
Avaliação pré-operatória na doença operatório em 50%, com raro risco de sangramento.
gastrintestinal Dose de 5.000 U subcutânea, uma ou duas horas
a) Doença do refluxo gastroesofágico: programa anti- antes da cirurgia, manter de 12 em 12 horas até a

272 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
CONCON FILHO A
O papel do cirurgião na avaliação pré-operatória

deambulação.
d) Programa de monitorização não-invasiva: para os Acesso venoso central pré-operatório
pacientes de cirurgia ortopédica de grande porte e Indicado em cirurgias de grande porte, onde a me-
pacientes cirúrgicos com dois ou mais fatores de dida da pressão venosa central se faz necessária du-
risco para trombose venosa profunda. rante a cirurgia para se estimar o estado volêmico e
e) Filtros na veia cava: nos pacientes onde está contra- permitir a reposição rápida de soluções cristalóides ou
indicado o uso de anticoagulantes. Não impede a colóides, quando necessário.
trombose venosa profunda, só diminui o Se possível , o cateter venoso central deve ser pas-
tromboembolismo pulmonar. sado na véspera da cirurgia e sua correta posição de-
terminada por estudo radiológico do tórax.
Predição de mortalidade Deve-se evitar a instalação do cateter em situação
Vários são os fatores que aumentam a mortalidade de emergência, pois aumenta as complicações (pneu-
cirúrgica(26) . motórax, hidrotórax, lesão vascular e outras)(28) .
Existem as variáveis relacionadas ao paciente: sexo,
idade, pressão arterial sistêmica, disfunção renal, Sugestão mínima na avaliação pré-operatória
disfunção hepática e doenças associadas. Em que pesem as particularidades inerentes de cada
Existem variáveis relacionadas à cirurgia: comple- paciente, em função de suas características físicas e
xidade cirúrgica, prioridade cirúrgica e tempo anesté- de suas doenças associadas, que implicarão preparo
sico. pré-operatório individualizado e personalizado, pode-
Nos homens, a taxa de mortalidade é duas vezes mos propor uma rotina mínima de avaliação pré-ope-
maior que nas mulheres. ratória, considerando-se a relação custo-benefício.
A mortalidade aumenta com a idade. Somente com estudos prospectivos e randomizados,
Nos pacientes com pressão arterial sistêmica mai- com meta-análises, utilizando-se também a medicina
or que 160 mmHg, a taxa de mortalidade era duas ve- baseada em evidências, poderemos tentar chegar a ín-
zes maior que nos pacientes com pressão arterial dices ou protocolos mais seguros e menos onerosos.
sistêmica normal. Naqueles com pressão arterial a) Pacientes hígidos, abaixo de 40 anos de idade: hemo-
sistêmica menor que 100 mmHg, era sete vezes maior grama completo e coagulograma (com atividade de
que nos indivíduos normais. protrombina e RNI). Avaliação anestesiológica pou-
Disfunção renal: taxa de mortalidade seis vezes cos dias antes da cirurgia e no dia da cirurgia.
maior. b) Pacientes hígidos, acima de 40 anos de idade: hemogra-
Disfunção hepática: taxa de mortalidade sete ve- ma completo, coagulograma, glicemia, creatinina, uri-
zes maior. na I, radiografia de tórax. Avaliação anestesiológica pou-
A taxa de mortalidade aumenta quando tem doen- cos dias antes da cirurgia e no dia da cirurgia. Avaliação
ça associada, é maior quanto maior a ASA e quanto cardiológica com eletrocardiograma.
maior a complexidade cirúrgica. c) Pacientes com doenças associadas: devem ter avali-
As cirurgias de urgência e emergência têm maior ação do especialista da doença em questão e a li-
taxa de mortalidade que as eletivas. beração para o ato operatório.
As taxas de mortalidade das cirurgias com tempo d) Cirurgias no trato digestivo: proteínas total e fra-
anestésico acima de 240 minutos eram três vezes mai- ções e protoparasitológico; preparo de cólon na
ores que aquelas de 121 a 240 minutos, cinco vezes véspera da cirurgia.
maiores que aquelas de 61 a 120 minutos e oito vezes e) Possibilidade de transfusão: tipagem sanguínea,
maiores que aquelas de até 60 minutos. provas cruzadas e reserva de hemoderivados. Nas
É possível reduzir a taxa de mortalidade otimizando cirurgias de grande porte, com grande probabili-
essas variáveis no pré-operatório, reduzindo o tempo dade de transfusão sanguínea, a realização da pré-
cirúrgico e realizando o menor procedimento cirúrgico. coleta de sangue do próprio paciente, dias antes da
No doente grave, de risco, devemos lançar mão de cirurgia, visando à autotransfusão.
medidas para prevenir as complicações pós-operatóri-
as: suporte nutricional, correção da anemia, melhora CIRURGIA DE EMERGÊNCIA
da função cardíaca, fisioterapia respiratória, profilaxia
com antibiótico, postergar operação quando possível, Chamamos, assim, aquelas operações que devam
cateter venoso central intra-operatório, monitorização ser realizadas imediatamente, com o mínimo de tem-
intra e pós-operatória e controle do débito urinário(27) . po (ou nenhum) de preparo pré-operatório, em função

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 273
CONCON FILHO A
O papel do cirurgião na avaliação pré-operatória

da gravidade e do risco iminente de morte. pecíficas. As medidas gerais incluem aquelas neces-
Como exemplos, aqueles pacientes vítimas de sárias a todos os pacientes, independentemente da do-
traumatismos fechados (como, por exemplo, aciden- ença e do tipo de cirurgia. Entre as medidas específi-
tes automobilísticos) ou penetrantes (como, por exem- cas incluem-se aquelas que dependem do tipo de paci-
plo, ferimentos por projétil de arma de fogo ou arma ente ou do tipo de doença cirúrgica e, conseqüente-
branca), que por insuficiência respiratória ou perda mente, de suas intercorrências.
volêmica aguda podem vir a falecer em poucos minu-
tos. Medidas gerais
Com a sistematização de atendimento preocupada Primeiramente, devemos conscientizar o paciente
em diagnosticar e tratar primeiro aquelas lesões que e seus familiares de sua doença e do tratamento opera-
levariam o paciente a óbito mais precocemente, como tório proposto. Isso implica boa relação médico-paci-
a hipoxia e a hipovolemia, preconizada pelo Colégio ente, desde já transmitindo segurança e conforto ao
Americano de Cirurgiões através do ATLS (“Advanced enfermo, com preparo psicológico adequado àquele
Trauma Life Support”)(29) . que, além de estar sofrendo por uma afecção aguda,
Nesses casos, o preparo pré-operatório resume-se será submetido a tratamento agressivo e invasivo.
em diagnosticar e tratar as lesões ameaçadoras da vida, Melhora do estado geral, com hidratação parenteral
realizar procedimentos rápidos e efetivos como a adequada, lembrando que, na maioria dos casos, o pa-
intubação traqueal e a reposição volêmica, e levar o ciente encontra-se com ingesta oral insuficiente há
paciente imediatamente ao centro cirúrgico para muitas horas ou dias, algumas vezes complicada com
submetê-lo a cirurgia e correção da lesões, como pa- vômitos. A realização do ato anestésico e cirúrgico com
rar a hemorragia. um paciente restabelecido de suas condições
Exames subsidiários, como radiografia, exames hemodinâmicas transcorre de forma muito mais está-
laboratoriais, tipagem sanguínea e outros, podem ser vel e segura. Um parâmetro simples e confiável da boa
feitos durante a cirurgia, quando já tiverem sido trata- recuperação da hidratação e da volemia é observar a
das (ou controladas) as lesões ameaçadoras da vida. diurese; se presente, deve ser espontânea ou por meio
O perfeito entrosamento do cirurgião com a equi- de sondagem vesical.
pe de resgate que fez o atendimento pré-hospitalar, com O jejum pré-operatório de seis horas para líquidos
a equipe do pronto-socorro, com a equipe do centro e de oito horas para sólidos só é possível em alguns
cirúrgico e com o anestesiologista é necessário para casos, como apendicite aguda na fase inicial, que pode
que se perca o menor tempo possível até que o pacien- evitar a realização de anestesia com o “estômago
te esteja recebendo o tratamento definitivo no centro cheio”, com a chamada seqüência rápida de intubação
cirúrgico. traqueal e paralisação muscular, com risco de aspira-
ção pulmonar.
CIRURGIA DE URGÊNCIA A realização de hemograma completo é importan-
te, não só para se ter idéia mais confiável da
São assim definidas as cirurgias em que se dispõe hemoglobina, leucócitos e plaquetas (o que pode ser
de um curto período de tempo para se confirmar o di- substituído por anamnese e exame físico detalhados),
agnóstico e preparar o paciente para operá-lo nas me- mas também para satisfazer uma necessidade famili-
lhores condições clínicas possíveis. Esse período pode ar, já que culturalmente é difícil explicar uma cirurgia
variar em algumas horas, dependendo da doença ci- sem a realização de “nenhum exame de sangue”.
rúrgica.
Como exemplos, podemos citar o abdome agudo Medidas específicas considerando-se o paciente
inflamatório (por exemplo, apendicite aguda, Alguns cuidados especiais e a realização de exa-
colecistite aguda e outras), o abdome agudo por obs- mes particulares deverão ser providenciados depen-
trução (por exemplo, por bridas ou por tumores), o dendo da idade do paciente e de seus antecedentes
abdome agudo hemorrágico (por exemplo, prenhez mórbidos.
tubária rota, cisto hemorrágico de ovário), o abdome Pacientes com mais de 40 anos de idade deve-
agudo por perfuração (por exemplo, úlcera perfurada) rão ser submetidos a eletrocardiograma; caso haja
e o abdome agudo vascular (por exemplo, trombose alguma alteração, verificada pelo cirurgião e/ou
mesentérica). anestesiologista, deverão ser avaliados pelo cardio-
Para o preparo pré-operatório para essas cirurgias logista.
de urgência, podemos dividir em medidas gerais e es- Aqueles que já possuem cardiopatia ou que este-

274 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
CONCON FILHO A
O papel do cirurgião na avaliação pré-operatória

jam em uso de medicações cardiovasculares deverão sim como a realização de gasometria (mesmo que ve-
ser submetidos a eletrocardiograma e avaliação cardi- nosa) para quantificar o pH e o bicarbonato, diagnos-
ológica. ticando-se acidose decorrente de desidratação ou de
Antecedentes de nefropatia indicam o estudo da alcalose hipoclorêmica hipocalêmica pela perda do
função renal no período pré-operatório, com dosagem HCl.
de uréia e creatinina, que também servirão como refe- Abdome agudo vascular
rência para prováveis dosagens no pós-operatório. Necessita um estudo da coagulabilidade sanguí-
Quando em uso de diuréticos, devem ter seus ele- nea, uma vez que, em alguns casos, o quadro isquêmi-
trólitos avaliados, como o sódio e o potássio. co ocorre não por alteração vascular, mas por estados
Hepatopatas e etilistas crônicos ou aqueles com dis- de hipercoagulabilidade.
túrbios de coagulação deverão ser avaliados quanto à Hemorragias
função hepática, realizando-se o coagulograma, para se Como no abdome agudo hemorrágico ou nas he-
ter idéia de seu estado de coagulação sanguínea. morragias digestivas altas e baixas, onde, além da do-
O pneumopata, com doença crônica do fluxo alve- sagem da hemoglobina e do hematócrito, faz-se ne-
olar, deve ter estudo radiológico pulmonar para se ava- cessário o estudo do coagulograma e tipagem sanguí-
liar o estado enfisematoso e, quando necessário e ha- nea com as provas cruzadas.
vendo tempo hábil e disponibilidade, gasometria arte-
rial e prova de função pulmonar. CONCLUSÃO

Medidas específicas considerando-se a doença O cirurgião deve tentar preparar seu paciente o
Abdome agudo inflamatório melhor possível para ser submetido a tratamento ci-
A leucometria é importante para termos uma idéia rúrgico. São diversas as variáveis que o cirurgião deve
do nível de infecção e para servir de parâmetro no conhecer, estudar e corrigir no período pré-operató-
pós-operatório. Dosagem da creatinina quando utili- rio, otimizando a evolução de seu paciente.
zamos o aminoglicosídio como parte da antibiotico- O cirurgião não deve se limitar a ser unicamente
terapia. um operador. Deve, sim, ser um excelente clínico no
Abdome agudo por obstrução pré-operatório, um exímio técnico no intra-operatório
A presença de vômitos implica a dosagem dos ele- e um competente intensivista e metabologista no pós-
trólitos para imediata correção devido às perdas, as- operatório.

T HE ROLE OF THE SURGEON IN THE PREOPERATIVE EVALUATION

ADMAR CONCON FILHO, C LAUDIO PINHO

Regarding the surgeon’s responsibility to give advice and thus its consequences, patients need to be offered
the best possible conditions in order to undergo surgery. Improvement of the following factors will enable a
better result in the surgical treatment provided: a detailed clinical history and physical examination, related
laboratory evaluations, the importance of beneficial nutrition, particularities concerning the elderly and neoplasm
patients, and a complete knowledge of preoperative risks.
Key words: preoperative evaluation, postoperative complications, preoperative screening.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:268-76)


RSCESP (72594)-977

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 275
CONCON FILHO A
O papel do cirurgião na avaliação pré-operatória

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276 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
RISCOS E ORIENTAÇÕES PRÉ-OPERATÓRIAS EM
ASSINTOMÁTICOS DO PONT O DE VISTA CARDIOVASCULAR
E COM ALTERAÇÕES ELETROCARDIOGRÁFICAS

ADALBERTO MENEZES L ORGA, ADALBERTO MENEZES LORGA FILHO

Instituto de Moléstias Cardiovasculares — IMC


Endereço para correspondência: Rua Castelo D’Água, 3030 — Caixa Postal 681 — CEP 15015-210 —
São José do Rio Preto — SP

A identificação de alterações eletrocardiográficas culares do paciente e, se necessário, ajustes nos cui-


na avaliação pré-operatória de adultos assintomáti- dados perioperatórios. Outras alterações eletrocar-
cos sob o ponto de vista cardiovascular, candidatos a diográficas, como bloqueio do ramo esquerdo, altera-
cirurgia não-cardíaca, deve ser interpretada com cau- ções do segmento ST-T, bloqueio atrioventricular de
tela. Alterações como infarto recente do miocárdio e primeiro grau, apesar de aparentemente importantes,
bloqueio atrioventricular avançado são consideradas são tidas como “preditores menores” de risco, não
“preditores maiores” de risco cardiovascular perio- existindo, na literatura, evidências de que aumentem
peratório aumentado, exigindo providências pré-ope- o risco cirúrgico. A não ser em casos excepcionais,
ratórias (como, por exemplo, adiamento da cirurgia pacientes com alterações consideradas “preditores
ou implante de marcapasso). Ainda, segundo as dire- menores” de risco não necessitam de investigação pré-
trizes existentes, consideram-se “preditores interme- operatória mais detalhada. Recomenda-se que o ele-
diários” de risco cirúrgico os achados como infarto trocardiograma faça parte de toda avaliação pré-ope-
do miocárdio antigo, ritmo não sinusal e presença de ratória de cirurgias não-cardíacas em indivíduos,
mais de 5 extra-sístoles ventriculares no eletrocardio- mesmo assintomáticos, com mais de 40 anos de idade.
grama convencional. Nesses casos, é importante uma Descritores: risco cirúrgico, eletrocardiograma,
avaliação mais detalhada das condições cardiovas- assintomáticos.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:277-81)
RSCESP (72594)-978

I NTRODUÇÃO de), ao “tempo” da cirurgia (eletiva, urgente ou de


emergência) e, provavelmente, à capacidade funcio-
A avaliação inicial pré-operatória para cirurgia não- nal do paciente, permitirá que se tomem os cuidados
cardíaca em adultos assintomáticos com mais de 40 anos inerentes ao procedimento a ser realizado.
de idade deve incluir, obrigatoriamente, história clínica Nas várias avaliações propostas para quantificação
e exame físico detalhados e eletrocardiograma, além de do risco cirúrgico, ao menos entre as mais seguidas,
outros testes específicos e inerentes a cada caso. desde as mais antigas(1) às mais recentes(2) , aí incluídas
É raro surpreendermos, no eletrocardiograma de as diretrizes de associações de cardiologia (3) e de clí-
assintomáticos, alterações importantes que exijam nica médica(4) , as alterações eletrocardiográficas con-
maiores esclarecimentos ou interfiram nas decisões sideradas importantes e que poderão aumentar o risco
perioperatórias, podendo adiar ou suspender o proce- do procedimento cirúrgico são: 1) infarto recente do
dimento cirúrgico proposto. miocárdio (não diagnosticado); 2) bloqueio
Com essa avaliação clínica inicial, é possível atrioventricular de alto grau; 3) infarto antigo do
estratificar-se o risco de eventos cardiovasculares gra- miocárdio (não diagnosticado); 4) ritmo não sinusal;
ves no per e no pós-operatório, que, associado ao tipo e 5) mais de 5 extra-sístoles ventriculares no
de cirurgia (local, extensão, repercussões e gravida- eletrocardiograma convencional. As duas primeiras

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 277
LORGA AM e col.
Riscos e orientações pré-operatórias em assintomáticos do ponto de vista cardiovascular e com alterações eletrocardiográficas

alterações são consideradas “preditores maiores” de vio foi preditor negativo para infarto do miocárdio não
risco cardiovascular perioperatório aumentado (3, 4) . As reconhecido. Diabete dependente ou não de insulina não
alterações restantes (de 3 a 5), juntamente com altera- foi preditor positivo para infarto do miocárdio não reco-
ções do segmento ST-T, sobrecarga ventricular esquer- nhecido, apesar de sê-lo para isquemia silenciosa.(7)
da e bloqueio do ramo esquerdo, são tidas como Muito importante também foi a constatação, em
preditores de risco intermediário ou baixo(3, 4) . ambos os estudos, de que o fato de o infarto ser ou não
reconhecido não interferiu na mortalidade total. O
INFARTO RECENTE DO MIOCÁRDIO infarto do miocárdio não reconhecido teve o mesmo
NÃO- DIAGNOSTICADO prognóstico do diagnosticado (5,6) .
É claro que a identificação de infarto do miocárdio
Uma parcela importante dos infartos do miocárdio recente não diagnosticado é só questão de acaso, mas
passa despercebida, ou por serem totalmente poderá acontecer, mesmo que muito raramente. Na
assintomáticos ou por terem sintomas pouco impor- Tabela 1, considerada a incidência de infartos totais e
tantes e/ou atípicos que são interpretados como de outra de infartos não reconhecidos em Framingham (5) (inci-
doença (gastrite, bursite, hérnia de hiato, etc.). Em dência) e no Cardiovascular Halth Study (prevalência)(6),
Framingham (5) , mais de 30% dos infartos diagnostica- pode-se obter o número necessário para diagnosticar,
dos nas revisões bienais da população acompanhada isto é, o número de pessoas submetidas a
não foram reconhecidos como tal à época do evento e eletrocardiograma necessário para se diagnosticar
metade deles foi totalmente assintomática (Tab. 1). infarto na população estudada. Deve-se observar que
Essa incidência, tanto dos infartos do miocárdio reco- o número necessário para diagnosticar para infartos
nhecidos como dos não-diagnosticados, aumentou não reconhecidos foi de aproximadamente 25, ou seja,
consideravelmente entre homens acima de 45 anos e de cada 25 pacientes submetidos a eletrocardiograma,
mulheres acima de 55 anos (5) (Fig. 1) um tinha infarto do miocárdio não reconhecido previ-
amente.
Tabela 1. Porcentagem de infartos do miocárdio (IMT) Esses números referem-se à população americana,
e infartos não reconhecidos (IMNR) em Framingham confirmados em Honolulu(8) e em homens de Reikja-
(30 a 84 anos)(5) e no Cardiovascular Health Study vik(9) , mas ainda não há evidências de que possam ser
(CHS) (maiores de 65 anos)(6) . As porcentagens dos aplicados no Brasil. Diagnosticado ou suspeitado um
dois estudos, apesar de se referirem à incidência em infarto do miocárdio não reconhecido, a cirurgia de-
Framingham e à prevalência no Cardiovascular Health verá ser adiada até que medidas clínicas adequadas
Study, levam a números muito semelhantes de pacien- sejam tomadas e o paciente tenha evolução de pelo
tes submetidos a eletrocardiograma necessários para menos quatro a seis semanas após o evento, para ser
diagnosticar (NND). liberado para o procedimento cirúrgico proposto. Ex-
ceção feita, obviamente, aos casos de emergência,
Framingham CHS como, por exemplo, rotura de aneurisma aórtico, rotura
de víscera, trauma, etc. Freqüentemente, se o exame
IMT IMNR IMT IMNR não-invasivo indutor de isquemia, como a cintilografia
miocárdica de perfusão com dipiridamol, for negati-
% 13,8 4,2 15,3 3,4 vo, não haverá necessidade da avaliação invasiva des-
NND 7 24 7 26 se paciente com infarto do miocárdio recente.
Casos com cirurgia inadiável podem se beneficiar com
a utilização perioperatória de betabloqueadores(10,11) , com
No Cardiovascular Health Study (6) , em pacientes redução de até dez vezes na mortalidade em paci-
de ambos os sexos, maiores de 65 anos, as observa- entes com cardiopatia isquêmica de alto risco (por
ções foram semelhantes, com 22% dos infartos fican- exemplo, cirurgia de aneurisma de aorta em paci-
do sem diagnóstico à época do evento (Tab. 1). Nesse entes com sinais de isquemia na cintilografia do
estudo, os seguintes fatores foram preditores positi- miocárdio). (11)
vos para infarto do miocárdio não reconhecido em ido-
sos: sexo feminino, ausência de história de angina, BLOQUEIO ATRIOVENTRICULAR DE
ausência de história de insuficiência cardíaca, ausên- ALTO GRAU ASSINTOMÁTICO
cia de história de claudicação, ausência de história fa-
miliar, saúde percebida boa ou ótima. Tabagismo pré- Não é raro que portadores de bloqueio

278 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
LORGA AM e col.
Riscos e orientações pré-operatórias em assintomáticos do ponto de vista cardiovascular e com alterações eletrocardiográficas

exemplo, atropina, prostigmina,


betabloqueadores, verapamil,
etc.) seja no sistema periférico
de His-Purkinje (procainamida,
etc.) em pacientes com bloque-
ios atrioventriculares de 1o e 2o
graus ou mesmo portadores de
bloqueios bi ou trifasciculares.

INFARTO ANTIGO
DO MIOCÁRDIO
NÃO- DIAGNOSTICADO
IMR 5 4,3 12,6 19,2 9,7 3,2
IMNR 0,1 1,2 3,8 8,5 6,0 1,7 A identificação de ondas Q
IMT 0,6 5,5 16,4 27,7 15,7 4,9 patológicas no eletrocardiogra-
NND-T 167 18 6 4 6 20 ma pré-operatório sugere infar-
NND-NR 995 80 23 10 15 57 to antigo do miocárdio, que
Figura 1. Incidência de infarto do miocárdio em 10 anos, em Framingham pode ser confirmado por disfun-
(modificado da referência 5): incidência, por 100 pessoas, de infarto do ção segmentar no ecocardiogra-
miocárdio (IMT), reconhecidos (IMR) ou não reconhecidos (IMNR), con- ma. Não há consenso entre as
(3, 4) sobre o que é con-
forme a faixa etária. O número de pessoas submetidas a eletrocardiograma, diretrizes
necessárias para diagnosticar (NND) um infarto do miocárdio (NND-T) ou siderado infarto recente ou an-
um infarto do miocárdio não reconhecido (NND-NR), varia com a faixa etária tigo: uma define recente como
e provavelmente é custo-efetivo a partir dos 40 anos (menos que 1:18 e 1:80, o infarto com mais de 7 e me-
respectivamente). nos de 30 dias (3) ; a outra classi-
fica-o como recente se ocorrido
há menos de 6 meses e tardio se
atrioventricular de 2o ou 3o graus sejam assintomáticos ocorrido há mais de 6 meses (4) . Entretanto, em ambas
e tenham vida normal com a bradiarritmia não o infarto recente é de maior risco. O infarto antigo não
diagnosticada. O diagnóstico no eletrocardiograma diagnosticado é considerado preditor intermediário de
pré-operatório, entretanto, exige providências, às ve- risco cardiovascular, justificando avaliação mais deta-
zes precedentes ao ato cirúrgico. Nos casos de blo- lhada da condição clínica e do estado funcional atual
queio atrioventricular do 2o grau tipo Wenckebach com do paciente e a tomada de providências adequadas para
QRS estreito, apenas uma investigação não invasiva otimizar as condições operatórias. Também, índices
(Holter, teste de esforço) mais detalhada é suficiente, de risco revistos (2) , mais recentes, indicam a simples
pois a maioria desses bloqueios é de localização nodal presença de ondas “Q” patológicas como preditores
atrioventricular. Já o bloqueio atrioventricular de 2o de risco de complicações cardiovasculares periopera-
Mobitz tipo II, os bloqueios atrioventriculares de grau tórias.
avançado (seja variante de Wenckebach ou Mobitz tipo
II) e os bloqueios atrioventriculares totais deverão ser OUTRAS ALTERAÇÕES NO
tratados com marcapasso definitivo antes do procedi- ELETROCARDIOGRAMA
mento cirúrgico proposto(12) . Os casos de bloqueio
atrioventricular do 2 o grau, nos quais suspeita-se que As diretrizes da ACC/AHA (3) consideram como
esteja ocorrendo bloqueio no sistema His-Purkinje, “preditores menores” de risco cardiovascular
poderão ser submetidos a estudo eletrofisiológico pré- perioperatório aumentado: bloqueio do ramo esquer-
operatório para que se possa definir o local do blo- do, alterações de ST-T (exceção as de infarto recente),
queio e tomar a conduta adequada. É aparente tam- sobrecarga de ventrículo esquerdo e ritmo não-sinusal
bém que em situações de emergência essa avaliação porque não há evidências de que estas aumentem, in-
poderá não ser possível. dependentemente, o risco perioperatório. A presença
Deve-se também ficar alerta para a ação, durante o de mais de 5 ectopias ventriculares ou alterações
ato cirúrgico, de fármacos que interferem na condu- isquêmicas do segmento ST-T no eletrocardiograma
ção atrioventricular, seja no nó atrioventricular (por convencional de repouso tem o mesmo valor na

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 279
LORGA AM e col.
Riscos e orientações pré-operatórias em assintomáticos do ponto de vista cardiovascular e com alterações eletrocardiográficas

estratificação que o infarto antigo (há mais de 6 me- tretanto, essas alterações, normalmente, não impedi-
ses), nas diretrizes da ACP (4) , ou seja, são de risco in- rão a cirurgia, nem necessitarão, na maioria das vezes,
termediário. de avaliações invasivas pré-operatórias, porém serão
Outras situações que devem ser consideradas são a de grande valia no manuseio per e pós-operatório des-
fibrilação atrial com alta freqüência ventricular (ape- ses pacientes. É sugerido que diabéticos com mais de
sar de muito raramente ser assintomática), o bloqueio 40 anos de idade e apresentando alterações do seg-
atrioventricular de 1 o grau e o ritmo juncional, que tam- mento ST-T sejam submetidos a cintilografia do
bém deverão ser abordados pré-operatoriamente. miocárdio com dipiridamol, pela possibilidade de
Essas alterações ditas menores podem nos orien- isquemia silenciosa(7) .
tar a pesquisar condições antes insuspeitadas (como, Essas considerações reforçam a necessidade de o
por exemplo, cardiomiopatia hipertrófica, pré-excita- eletrocardiograma ser incluído na rotina de avaliação
ção ventricular, etc.) ou a avaliar condições ainda não pré-operatória de pacientes com mais de 40 anos de
diagnosticadas, porém já suspeitadas ao exame físico idade, mesmo que assintomáticos e com história clíni-
(valvopatias, arritmias, hipertensão arterial, etc.). En- ca negativa do ponto de vista cardiovascular.

PREOPERATIVE RISK AND ORIENTATION OF ASYMPTOMATIC PATIENTS WITH


ELECTROCARDIOGRAPHIC ABNORMALITIES

ADALBERTO MENEZES LORGA, ADALBERTO MENEZES LORGA FILHO

The identification of some electrocardiographic abnormalities in the preoperative evaluation of asymptomatic


adults, candidates to a non-cardiac surgical procedure, has to be carefully considered. Electrocardiographic
findings such as a recent myocardial infarction and advanced AV block are taken as high risk perioperative
“major predictors” and preoperative actions should be used (postponement of surgery or pacemaker implant,
for instance). Other abnormalities such as old myocardial infarction, rhythm other than sinus and more than 5
premature ventricular contractions in the conventional electrocardiogram are considered of intermediate risk,
according to the most recently published guidelines. In these cases, a detailed evaluation of the cardiovascular
status of the patients is indicated. Other electrocardiographic abnormalities such as left bundle branch block,
ST-T segment abnormalities and first degree AV block are considered “minor predictors” because there is no
evidence to indicate a high perioperative risk and do not deserve further evaluation, in most of patients. In
conclusion, considering the important information that can be obtained with the preoperative electrocardiogram,
it should be performed in all preoperative evaluation for non-cardiac surgery in adults over 40 years old, even
if asymptomatic.
Key words: electrocardiogram, asymptomatic, preoperative risk.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:277-81)


RSCESP (72594)-978

R EFERÊNCIAS surgery. Circulation 1999;1000:1043-9.


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procedures. N Engl J Med 1977;297:845-50. assessing and managing the perioperative risk from
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prediction of cardiac risk of major noncardiac 5. Kannel WB, Abbott RD. Incidence and prognosis

280 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
LORGA AM e col.
Riscos e orientações pré-operatórias em assintomáticos do ponto de vista cardiovascular e com alterações eletrocardiográficas

of unrecognized myocardial infarction — an update Sigfusson N. Unrecognized myocardial infarction:


of the Framingham study. N Engl J Med epidemiology, clinical characteristics and the
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7. Milan Study of Atherosclerosis and Diabetes Group. 11. Poldermans D, Boersma E, Bax JJ, Thomson IR,
Prevalence of unrecognized silent myocardial van de Ven LLM, Blankenstejn JD, et al. The effect
ischemia and its association with atherosclerotic of bisoprolol on perioperative mortality and
risk factors in noninsulin-dependent diabetes myocardial infarction in high-risk patients
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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 281
QUAIS PACIENTES DEVEM RECEBER CUIDADOS DE UTI
NO PÓS-OPERATÓRIO E QUE CONDUTAS DEVEM SER TOMADAS
PARA PREVENIR COMPLICAÇÕES CARDIOVASCULARES?

ANTONIO C LAUDIO DO AMARAL BARUZZI, ELIAS KNOBEL

Centro de Terapia Intensiva — Hospital Israelita Albert Einstein


Endereço para correspondência: Av. Albert Einstein, 627 — CEP 05651-901 — São Paulo — SP

A doença arterial coronária é uma das doenças tes selecionados, porém carece de estudos definitivos.
mais prevalentes em pacientes cirúrgicos e está asso- O uso adequado de drogas antiarrítmicas, inotró-
ciada a elevada morbidade e mortalidade. A adequa- picos positivos e hipotensores arteriais será de im-
da monitorização cardíaca poderá reduzir os eventos portante valor no controle desses eventos.
isquêmicos e o infarto do miocárdio. Sempre deverá ser realizada a prevenção da trom-
A insuficiência cardíaca também tem alta mortali- bose venosa profunda e do tromboembolismo pulmo-
dade e em vários casos é secundária a doença arteri- nar.
al coronária. A monitorização cardíaca invasiva em Descritores: cirurgia cardíaca, prevenção da trom-
pacientes de alto risco poderá ser benéfica em pacien- bose venosa.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:282-8)
RSCESP (72594)-979

I NTRODUÇÃO laboratoriais de rotina para determinada intervenção,


além da comunicação entre os mesmos com a equipe
Tem sido estimado que mais da metade dos óbitos médica da unidade intensiva deverão proporcionar
que ocorrem no período pós-operatório é secundária a melhores resultados no pós-operatório.
eventos cardíacos. Muitas das admissões de paciente A seguir, serão discutidos alguns aspectos peculi-
cirúrgico na unidade intensiva são para monitorização ares quanto aos cuidados no pós-operatório de porta-
cardíaca, seja para pacientes de risco cardiovascular dores de doença arterial coronária, insuficiência car-
ou para aqueles que apresentaram alguma instabilida- díaca, arritmias cardíacas e hipertensão arterial.
de hemodinâmica no intra-operatório (1) .
O controle rigoroso dos sinais vitais, do equilíbrio Doença arterial coronária
hidroeletrolítico e ácido-básico, da glicemia e do con- Nos pacientes com suspeita ou conhecida doença
teúdo arterial de oxigênio, e a adequada ventilação são arterial coronária, a isquemia miocárdica é freqüente
fatores prognósticos de suma importância. no período perioperatório, com maior prevalência no
Por vezes, a ativação do sistema nervoso simpáti- pós-operatório. O infarto do miocárdio ocorre em até
co e da medula adrenal, seja pela dor ou por distúrbios 6% dos pacientes portadores de doença arterial
homeostáticos, poderá acarretar alterações da freqüên- coronária, sendo a metade desses eventos obervada no
cia cardíaca e o surgimento de extra-sístoles supra e/ mesmo dia da cirurgia (2) .
ou ventriculares. A monitorização contínua da depressão do segmen-
O prévio conhecimento das condições clínicas do to ST, adotada em alguns centros internacionais de
paciente, o adequado preparo pré-operatório nas ci- unidade intensiva, em pacientes submetidos a cirurgia
rurgias eletivas, a intervenção imediata da equipe ci- não-cardíaca tem revelado que no terceiro dia de pós-
rúrgica, em especial do anestesista, em qualquer alte- operatório são observados seus maiores desníveis, atin-
ração anormal dos sinais vitais e dos controles gindo até –3 mm. Portanto, a realização seqüencial do

282 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
BARUZZI ACA e col.
Quais pacientes devem receber cuidados de UTI no pós-operatório e que condutas devem ser tomadas
para prevenir complicações cardiovasculares?

eletrocardiograma e a determinação periódica de O sucesso do tratamento baseia-se na identi-


enzimas cardíacas em pacientes selecionados são im- ficação precoce e no rápido tratamento dos fato-
portantes na detecção precoce da isquemia e do infarto res precipitantes da disfunção ventricular esquer-
do miocárdio. da aguda.
Dentre as medidas preventivas, o uso perioperatório A monitorização das pressões de enchimento
de betabloqueador (atenolol, metoprolol, propranolol) ventricular e do débito cardíaco é reservada para ca-
tem reduzido os eventos isquêmicos e o risco de infarto sos especiais de difícil manuseio das drogas vasoativas
do miocárdio. Embora utilizados por alguns, ainda não e diuréticos. Não existem evidências definitivas de que
estão comprovados os benefícios dos nitratos tal procedimento aumente a sobrevida do paciente.
endovenosos, dos antagonistas dos canais de cálcio e
da clonidina na redução desses eventos (3) . Arritmias cardíacas
A anestesia epidural reduz a atividade As arritmias cardíacas observadas no pós-operató-
simpaticoadrenal e tem sido defendida por alguns au- rio são geralmente decorrentes de distúrbios
tores quanto à redução da morbidade e da mortalidade eletrolíticos, ácido-básico e do aumento da atividade
cardíacas (4) . Taxas de hemoglobina acima de 10 g/dl e adrenérgica. A correção desses distúrbios e o uso de
temperatura corpórea central próxima de 36,5oC são betabloqueadores poderão reverter tais arritmias. Os
outras medidas preventivas. antiarrítmicos de uso habitual, tais como xilocaína,
O tratamento da isquemia e o do infarto do amiodarona, quinidina e digitálicos, devem ter suas
miocárdio não diferem das condutas habituais, exceto doses e indicações respeitadas.
quanto ao uso proibitivo de trombolíticos. Nitratos,
antiagregantes plaquetários, aspirina e heparina devem Hipertensão arterial
ser indicados, respeitando-se seus riscos e benefícios. A súbita elevação da pressão arterial no pós-ope-
A cinecoronariografia não é contra-indicada, mas sim ratório costuma ser secundária ao aumento da ativida-
o uso de bloqueadores de receptores de glicoproteína de adrenérgica, especialmente naqueles previamente
IIb/IIIa, pelo risco de sangramento em paciente pós- hipertensos. A hipertensão poderá causar excessivo
cirúrgico. sangramento na área cirúrgica, preciptar isquemia
miocárdica, disfunção ventricular esquerda e conges-
Insuficiência cardíaca tão pulmonar. Controle da analgesia, das trocas gaso-
A insuficiência cardíaca é um dos principais fa- sas, da distensão gástrica e da bexiga urinária,
tores de risco quanto a morbidade e mortalidade hipotermia e hipovolemia são algumas causas de hi-
perioperatórias. Alguns estudos demonstram que pertensão arterial e deverão ser identificadas (5) .
95% dos quadros agudos ocorrem na primeira hora O tratamento baseia-se na identificação dos fato-
do pós-operatório. A ativação simpática, associada res mencionados. Os betabloqueadores (atenolol,
à dor e ao despertar da anestesia, bem como a re- metoprolol, propranolol) são as drogas de primeira
dução da pressão positiva e dos níveis do PEEP escolha, seguidos dos dilatadores arteriais, como, por
durante o desmame da ventilação mecânica, pode- exemplo, nitroprussiato de sódio. Quando o paciente
rão precipitar os sinais de congestão pulmonar pela aceitar o uso oral, poderão ser introduzidos inibidores
insuficiência cardíaca. da enzima de conversão da angiotensina,
Os achados de exame físico associados a betabloqueadores, hidralazina ou outros de uso roti-
hipoxemia, sobrecarga volêmica e hipotransparência neiro.
dos campos pulmonares à radiografia do tórax suge- Em resumo, as complicações cardíacas observa-
rem tal diagnóstico. Na ausência de hipotensão, o tra- das no período perioperatório não são raras e reque-
tamento baseia-se no uso racional de diuréticos de alça, rem atenção especial em sua adequada identificação e
nitroglicerina e seus derivados, nitroprussiato de sódio, tratamento. Dentre elas, a isquemia e o infarto do
em especial nos pacientes hipertensos pelos seus efei- miocárdio são as mais comuns e as de pior prognósti-
tos agudos na redução da pré- e da pós-carga ventricu- co. A insuficiência cardíaca é menos freqüente, por
lares. Na vigência de hipotensão arterial, drogas inotró- vezes secundária a doença arterial coronária. As
picas positivas estão indicadas. A utilização precoce arritmias cardíacas e a hipertensão arterial são de fácil
da máscara de “continuous positive airway pressure” identificação pela monitorização cardíaca e pressórica
é importante recurso terapêutico, não raro precedido contínua. O uso criterioso de betabloqueadores é im-
por leve sedação para melhor adaptação do paciente à portante recurso na prevenção e tratamento dessas com-
mesma. plicações.

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 283
BARUZZI ACA e col.
Quais pacientes devem receber cuidados de UTI no pós-operatório e que condutas devem ser tomadas
para prevenir complicações cardiovasculares?

PROFILAXIA DA TROMBOSE VENOSA PROFUNDA Vários fatores de risco, clínico ou cirúrgico, para
trombose venosa profunda têm sido identificados e
A profilaxia da trombose venosa profunda deve ser deve-se atribuir a cada um deles um peso diferenciado
realizada tanto nos pacientes clínicos como cirúrgi- (Tab. 1).
cos. As principais complicações da trombose venosa O paciente é classificado de risco baixo quando a
profunda são o tromboembolismo pulmonar e a soma dessa pontuação for < 1, risco moderado quando
síndrome pós-trombose venosa profunda, onde a entre 2 e 4, e risco alto quando > 4 pontos. A profilaxia
recanalização incompleta do trombo junto ao plano será realizada conforme o risco encontrado. Quanto
valvar do sistema venoso profundo causa estase veno- mais fatores de risco estiverem presentes, maior será a
sa e insuficiência valvar. estratificação do risco do paciente e, portanto, mais
A profilaxia é a melhor forma de prevenção do intensa a profilaxia.
tromboemblismo pulmonar. Quando adequada, reduz Weinmann Salzman (7) propõem classificar os pa-
o risco em 70% a 80% dos casos, sendo raras as com- cientes em três níveis de risco: 1) baixo risco; 2) risco
plicações hemorrágicas. Infelizmente, os principais moderado; e 3) risco alto, conforme a incidência de
fatores que contribuem para sua subutilização devem- eventos tromboembólicos em pacientes não submeti-
se ao fato de sua incidência ser subestimada (a maio- dos a profilaxia da trombose venosa profunda, levan-
ria é assintomática), às dúvidas quanto a sua eficácia e do-se em consideração várias condições clínicas e ci-
ao receio de sangramento. rúrgicas (Tab. 2).
Os métodos de profilaxia, sejam farmacológicos Um indivíduo com menos de 40 anos de idade,
ou não-farmacológicos, devem ser individualizados e submetido a ato operatório com duração de até 60
aplicados conforme o grau de risco para trombose ve- minutos e sem nenhum outro fator de risco, é classifi-
nosa profunda. Mesmo após a alta hospitalar, esta deve cado de risco baixo. Entretanto, se a idade for superior
ser continuada entre os que ainda apresentam algum a 40 anos e o tempo cirúrgico acima de 60 minutos, o
risco de trombose venosa profunda (6) . risco será moderado. Assim, a profilaxia para os di-

Tabela 1. Trombose venosa profunda: fatores de risco.

Fatores de risco Pontos Fatores de risco Pontos

1. Idade > 40 anos 1 15. IAM complicado 2


2. Idade > 60 anos 2 16. AVCI 2
3. Tabagismo 1 17. Antecedente de TVP/TEP 2
4. Obesidade 1 18. Edema, varizes, úlcera e
5. Estrógenos estase dos membros inferiores 2
ou anticoncepcionais 1 19. Diabete melito 1
6. Neoplasia 2 20. ICC 2
7. Gravidez e puerpério 1 21. História familiar de TVP/TEP 2
8. Imobilização 2 22. Cirurgia de grande porte
9. Trombofilia 2 nos últimos 6 meses 1
10. Síndrome nefrótica 1 23. Queimaduras extensas 2
11. Policitemia 2 24. Anticorpo antifosfolípide 2
12. Doença auto-imune 1 25. Infecções 1
13. Leucemias 1 26. Cirurgia geral < 60 min 1
14. IAM não complicado 1 27. Cirurgia geral > 60 min 2
28. Cirurgia de quadril, joelhos,
próteses, fraturas de osso longo
ou múltiplas, politrauma >4

TOTAL DOS PONTOS = (aplique na Tabela 3)

IAM = infarto agudo do miocárdio; ICC = insuficiência cardíaca congestiva; AVCI = acidente vascular cerebral isquêmico;
TVP = trombose venosa profunda; TEP = tromboembolismo pulmonar.

284 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
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Quais pacientes devem receber cuidados de UTI no pós-operatório e que condutas devem ser tomadas
para prevenir complicações cardiovasculares?

Tabela 2. Risco de evento tromboembólico sem profilaxia.

Risco baixo Risco moderado Risco alto


(< 1 ponto) (2 a 4 pontos) (> 4 pontos)

Trombose venosa profunda


distal (%) 2 10-40 40-80
Trombose venosa profunda
proximal (%) 0,4 2-8 10-20
Tromboembolismo pulmonar
sintomático (%) 0,2 1-8 5-10
Tromboembolismo pulmonar
fatal (%) 0,002 0,1-0,4 1-5

versos níveis de risco deverá ser diferenciada (Tab. 3). (8 mmHg), porção distal da coxa (10 mmHg) e porção
No primeiro exemplo, o paciente deveria ser submeti- proximal (8 mmHg). Aumentam 36% a velocidade do
do a profilaxia não-farmacológica (meias elásticas, fluxo da veia femoral. É a primeira medida profilática
inclusive no ato operatório, além da deambulação pre- a ser adotada além da deambulação precoce.
coce); no segundo, à associação da profilaxia Compressão pneumática intermitente dos membros
farmacológica (heparina de baixo peso molecular ou inferiores
heparina não-fracionada) além das meias elásticas e A insuflação seqüencial de “cuffs” de 35 mmHg,
deambulação. 30 mmHg e 20 mmHg, respectivamente, no tornoze-

Tabela 3. Profilaxia conforme o número de pontos.

Risco baixo Riscomoderado Risco alto


(< 1 ponto) (2 a 4 pontos) (> 4 pontos)

Medidas não-farmacológicas Medidas farmacológicas Medidas farmacológicas


— Movimentação ativa Enoxaparina: 20 mg SC (1 x/dia) Enoxaparina: 40 mg SC (1 x/dia)
dos membros inferiores Nadroparina: 0,3 ml SC (1 x/dia) Nadroparina: 0,6 ml SC (1 x/dia)
— Deambulação precoce Dalteparina: 2.500 UI SC (1 x/dia) Dalteparina: 5.000 UI SC (1 x/dia)
— Meias elásticas de média Heparina: 5.000 UI SC (2 x/dia) Heparina: 5.000 UI SC (3 x/dia)
compressão até as coxas ou Nos pacientes cirúrgicos: iniciar Nos pacientes cirúrgicos: iniciar
— Compressão pneumática a profilaxia duas horas antes a profilaxia doze horas antes
intermitente da cirurgia, seguida de aplicação da cirurgia, seguida de aplicação
diária enquanto persistir o risco diária enquanto persistir o risco
Sempre associar as medidas Sempre associar as medidas
não-farmacológicas não-farmacológicas

Nadroparina (Fraxiparina®), enoxaparina (Clexane®), dalteparina (Fragmin®), heparina (Liquemine®).

As principais contra-indicações para a profilaxia lo, no joelho e na coxa, aumenta em 240% a velocida-
farmacológica são: sangramento ativo e os distúrbios de de fluxo na veia femoral. Quando apenas uma câ-
hemorrágicos graves (congênito ou adquirido). mara é utilizada no tornozelo, com pressão de 35
mmHg durante 12 segundos, esse aumento é de 180%.
Profilaxia não-farmacológica Há evidências de que essa modalidade de profilaxia
Meias elásticas aumenta a atividade fibrinolítica endógena.
As meias elásticas têm compressão graduada: tor- Filtro na veia cava inferior
nozelos (18 mmHg), panturrilhas (14 mmHg), joelhos Indicado quando a profilaxia farmacológica não

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 285
BARUZZI ACA e col.
Quais pacientes devem receber cuidados de UTI no pós-operatório e que condutas devem ser tomadas
para prevenir complicações cardiovasculares?

pode ser realizada (por exemplo, sangramento ativo), Heparina de baixo peso molecular (dalteparina,
na vigência de alto risco de tromboembolismo pulmo- enoxaparina, nadroparina)
nar. O portador de fratura ortopédica com fenômeno Obtida pela despolimerização da heparina, tem
tromboembólico recente e necessidade de tratamento peso molecular entre 4.000 e 6.000 dáltons. Em rela-
cirúrgico poderá beneficiar-se do mesmo. Complica- ção à heparina não-fracionada, tem maior capacidade
ções: migração do filtro, estase venosa crônica e para inibir o fator Xa e menor afinidade por proteínas
tromboembolismo pulmonar por meio de vasos plasmáticas, vasculares, células endoteliais,
colaterais. Filtros especiais para uso temporário (du- macrófagos e plaquetas. Isso confere maior biodispo-
ração de até 14 dias) com retirada dos mesmos após nibilidade e meia-vida plasmática, com redução dos
comprovação de ausência de trombo é outra opção efeitos colaterais (plaquetopenia e risco de sangra-
profilática. mento).
Dextran 40
Profilaxia farmacológica Reduz a adesão e a agregação plaquetárias. É utili-
Heparina não-fracionada (Liquemine®) zado nas doses de 500 ml por via endovenosa durante
Polissacarídeo natural extraído da mucosa intesti- 6 a 24 horas e mantido por alguns dias. Pode causar
nal de porco ou de pulmão bovino. Tem peso molecular insuficiência cardíaca pela expansão volêmica,
médio de 15.000 dáltons e interage com a antitrombina anafilaxia e insuficiência renal.
III, alterando sua conformação estrutural. Inativa vá-
rios fatores da cascata da coagulação: XIIa, XIa, IXa, RECOMENDAÇÕES ESPECIAIS(8-11)
Xa e IIa (trombina), sendo a trombina e o fator Xa os
mais sensíveis a sua ação (Fig. 1). Nos pacientes cardiopatas submetidos a cirurgias
Somente um terço da heparina infundida por via oftalmológica, neurológica ou urológica de grande
endovenosa liga-se à antitrombina III, promovendo seu porte, recomenda-se a compressão pneumática inter-
efeito anticoagulante. O restante liga-se ao fator de mitente ou as doses farmacológicas indicadas para a
von Willebrand, às células endoteliais e aos profilaxia de moderado risco.
macrófagos. Durante a internação, manter a profilaxia farma-
cológica e a não-farmacológica
enquanto persistirem os fatores de
risco.
Após a alta hospitalar, manter
a profilaxia durante algumas sema-
nas até que o paciente volte a deam-
bular ou reassuma as atividades
habituais.
Na grávida cardiopata com
história pregressa de trombose
venosa profunda e/ou tromboem-
bolismo pulmonar, sua recorrên-
cia em gestações subseqüentes
varia de 4% a 15%. Realizar a
profilaxia com heparina não-fra-
cionada (7.500 a 10.000 UI SC 2
x/dia) ou com heparina de baixo
peso molecular (doses indicadas
para paciente de alto risco). As
heparinas não atravessam a pla-
centa e não apresentam efeito
teratogênico. Manter anticoagu-
lante oral durante seis meses no
pós-parto.
Figura 1. Complexo heparina/ATIII inativa os fatores da coagulação XIIa, No trauma medular, a incidên-
XIa, IXa, Xa e trombina (IIa), especialmente estes dois últimos. cia de trombose venosa profunda

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BARUZZI ACA e col.
Quais pacientes devem receber cuidados de UTI no pós-operatório e que condutas devem ser tomadas
para prevenir complicações cardiovasculares?

é maior nas duas primeiras semanas e rara após o ter- cidência de tromboembolismo pulmonar sem profilaxia
ceiro mês. Utilizar heparina não-fracionada ou hepa- é de até 4% dos casos. No pós-operatório, utilizar as
rina de baixo peso molecular (pelo menos três meses) doses indicadas para a profilaxia de risco moderado.
associada às medidas não-farmacológicas. Nos pacientes domiciliares, a profilaxia deverá ser
Na neurocirurgia, a profilaxia não-farmacológica realizada enquanto persistirem os fatores de risco.
tem sido a recomendada durante os primeiros dias. Nos portadores de cateter peridural, a profilaxia
Após, utilizar heparina não-fracionada ou heparina de deverá ter início uma hora após sua retirada. Se a
baixo peso molecular. profilaxia estiver em curso, aguardar duas horas do
Na cirurgia de revascularização miocárdica, a in- término do efeito terapêutico para sua retirada.

WHICH POSTOPERATIVE PATIENTS SHOULD BE TREATED IN THE INTENSIVE CARE


SETTING AND WHAT PROCEDURES SHOULD BE TAKEN TO PREVENT CARDIOVASCULAR
COMPLICATIONS ?

ANTONIO CLAUDIO DO AMARAL BARUZZI, ELIAS KNOBEL

Coronary artery disease is the most prevalent underlying cardiovascular disease in surgical patients, and it
is associated with considerable morbidity and mortality in this setting. A major focus of postoperative care must
be monitoring for ischemia and therapy designed to reduce or prevent ischemia and myocardial infarction.
While less common, acute congestive heart failure in the postoperative setting is associated with mortality
and may be consequence of underlying coronary artery disease. Perioperative invasive monitoring in high-risk
patients may reduce adverse outcome. However, studies supporting this practice are not compelling.
Newer drugs can treat perioperative arrhythmias, reduce cardiac performance, and arterial hypertension
providing the clinician with valuable tools to prevent and avoid adverse cardiac outcomes.
Venous thromboembolism prevention is always important for surgical patients.
Key words: perioperative cardiac care, venous thromboembolism prevention.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:282-8)


RSCESP (72594)-979

R EFERÊNCIAS 5. Frank SM, Beattie. Intentional hypothermia is


associated with postoperative myocardial
1. Mangano DT. Perioperative cardiac morbidity. ischemia: the Study of Perioperative Ischemia
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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 287
BARUZZI ACA e col.
Quais pacientes devem receber cuidados de UTI no pós-operatório e que condutas devem ser tomadas
para prevenir complicações cardiovasculares?

10. Arcelus JI, Caprini JA, Traverso CI. Venous Knobel E, ed. Condutas no Paciente Grave. São
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288 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
DIABETE E CIRURGIA

MARCOS TAMBASCIA

Disciplina de Endocrinologia — Departamento de Clínica Médica — Universidade Estadual de Campinas — UNICAMP


Endereço para correspondência: Rua Prof. Ferreira Lima, 690 — CEP 13083-220 — Campinas — SP

Estudos prospectivos recentes têm demonstrado insulina intermediária e regular de acordo com as
que as complicações micro e macrovasculares do necessidades é a maneira mais apropriada de contro-
diabete estão relacionadas com o controle da glicemia, lar os diabéticos já usuários de insulina e mesmo os
com a correção da dislipidemia, da obesidade e da que estão sendo controlados com drogas orais, já que
hipertensão arterial, e com a abolição do tabagismo. toda droga oral deve ser interrompida por ocasião de
Um paciente diabético controlado em todas essas va- uma cirurgia eletiva. A automonitorização domiciliar
riáveis tem a mesma taxa de sobrevida do não-diabé- pré-cirurgia e a determinação de perfil glicêmico do
tico. A evolução peri e pós-cirúrgica em um paciente paciente servirão de orientação quanto ao esquema e
diabético não deverá ser diferente de um paciente não- quanto às doses de insulina que deverão ser emprega-
diabético, desde que esteja em bom controle metabó- das. A equipe cirúrgica e o auxílio de médico especi-
lico. As complicações do diabete, no entanto, poderão alizado no tratamento do diabete melito contribuirão
ter influência na evolução e, assim, deverão ser exaus- para o sucesso do procedimento.
tivamente empregadas boa avaliação pré-cirúrgica e Descritores: diabete melito, controle metabólico,
medidas de correção. O tratamento em que se utiliza cirurgia.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:289-92)
RSCESP (72594)-980

I NTRODUÇÃO ciona aos diabéticos qualidade de vida superior à do


passado.
Não existem, hoje, dúvidas com relação à necessi- O estresse cirúrgico associado à eventual diminui-
dade de se controlar muito bem o paciente diabético ção da efetividade de ação insulínica pode precipitar,
no sentido de se impedir a ocorrência de complica- embora raramente, descompensações glicêmicas. Nes-
ções crônico-degenerativas da doença e impedir sua sa situação, a hiperglicemia, podendo gerar diurese
progressão, caso existam. Estudos clássicos, como o osmótica, tem a capacidade de induzir depleção de
DCCT para os pacientes com diabete melito tipo 1 (1) e volume e alterações no equilíbrio hidroeletrolítico(4) .
os estudos de Kumamoto(2) e UKPDS (3) para os paci- Além disso, a falta de insulina, hormônio essencial-
entes com o diabete melito tipo 2, demonstraram a ne- mente anabolizante, poderá desencadear estado
cessidade da manutenção do estado de euglicemia. O catabólico. Assim, o objetivo terapêutico é sempre
outro lado da terapia de normalização glicêmica é o manter um grau de controle que evite as alterações
desafio de se evitar as reações hipoglicêmicas, poten- metabólicas associadas à hipoglicemia, hiperglicemia
cialmente graves nessa situação, e também impedir o grave e cetose. Uma questão ainda não definida é quão
ganho de peso, que invariavelmente tende a ocorrer rigoroso deverá ser o controle da glicemia para permi-
quando se atinge a euglicemia. O conjunto de drogas tir boa evolução intra e pós-operatória. O medo asso-
disponíveis hoje para o tratamento, embora não ideal, ciado à possível morbidade e mortalidade do paciente
permite evitar as descompensações agudas e propor- diabético em cirurgia e a eventual dificuldade de ci-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 289
TAMBASCIA M
Diabete e cirurgia

catrização não têm sido confirmados. Quando diabéti- tos de função renal, como níveis de creatinina, uréia e
cos são pareados com não-diabéticos para idade, sexo e análise urinária, incluindo a avaliação da proteinúria
tipo de cirurgia não foram verificadas diferenças na de 24 horas, marcador de nefropatia diabética. A ava-
prevalência de complicações pós-operatórias ou mesmo liação radiográfica utilizando contraste iodado deverá
dificuldade de cicatrização(5,6) . A manutenção do estado ser cautelosa, pois em pacientes com nefropatia insta-
de euglicemia não está associada à melhor evolução, lada poderá ocorrer insuficiência renal aguda (9) . Quan-
comparativamente ao estado de discreta hiperglicemia. do essa avaliação for inevitável, os pacientes deverão
Algumas alterações funcionais, como deficiência de estar bem hidratados e deverá ocorrer monitorização
quimiotaxia de neutrófilos, fagocitose e ação eletrolítica e dos níveis de creatinina.
antibacteriana, são observadas quando ocorre
hiperglicemia e essas mesmas alterações são revertidas TRATAMENT O DO DIABETE MELIT O DURANTE
com o controle adequado(7) . No entanto, faltam dados no O ESTADO PERIOPERATÓRIO
sentido de se admitir que essas alterações possam modi-
ficar o prognóstico de diabéticos submetidos a procedi- Não existe consenso sobre quais níveis glicêmicos
mentos cirúrgicos. É mais provável que complicações deverão ser observados nos procedimentos cirúrgicos.
crônicas preexistentes, como neuropatia e doença O bom senso mostra que valores entre 140 mg/dl e
macrovascular, possam influenciar a recuperação. 240 mg/dl podem ser considerados satisfatórios, mas
mesmo valores mais elevados não estão associados a
AVALIAÇÃO PRÉ-OPERATÓRIA morbidade e mortalidade elevadas. Por outro lado,
quando os valores de glicemia forem inferiores a 120
Quando a cirurgia é eletiva, a avaliação deverá ter mg/dl, deverá ser necessária atenção maior para se
por objetivo permitir que o paciente seja operado nas impedir evento hipoglicêmico. Para a obtenção de con-
melhores condições possíveis. Para isso, será neces- trole glicêmico rigoroso e correção dos valores da he-
sário identificar e corrigir as eventuais condições que moglobina glicosilada, geralmente é necessário esfor-
potencialmente poderão induzir morbidade e mortali- ço conjunto de paciente e médico e o tempo para o
dade, como as complicações cardíacas, pulmonares e sucesso pode ser de várias semanas. Com freqüência,
renais. Essas complicações poderão ser secundárias o tempo para controlar o paciente para uma cirurgia é
ou não ao diabete melito preexistente. bem restrito, pois o clínico somente é chamado a in-
As complicações microvasculares, como tervir um ou dois dias antes da cirurgia. Uma boa ava-
retinopatia, nefropatia e neuropatia diabética, têm re- liação clínica e metabólica, realizada ambulatorialmen-
lação direta com o grau de controle metabólico(1) . No te, poderá ser de grande importância e utilidade para o
entanto, são as complicações macrovasculares que esforço aqui proposto. A monitorização residencial,
determinam a maioria das causas de óbito em pacien- realizada com o auxílio de glicosímetros, tem forneci-
tes com diabete melito tipo 2 e têm relação com o con- do ao paciente e a seu médico informações extrema-
trole glicêmico, além da eventual dislipidemia, da hi- mente importantes relacionadas ao perfil glicêmico.
pertensão arterial, da obesidade e do tabagismo, que Um paciente bem orientado quanto aos procedimen-
por vezes estão associados (3) . Pacientes com diabete tos e diagnósticos é capaz de alterar individualmente
melito tipo 1 e, principalmente, tipo 2, quando se iden- a dose de sua medicação, determinando, seguramente,
tifica a doença vascular periférica, podem apresentar melhor controle. A sensibilidade à insulina será alte-
a concomitância de doença coronariana assintomática. rada por mudanças no estado nutricional, estresse ci-
A avaliação pré-operatória deverá, então, pesquisar o rúrgico e emocional, além de dor e imobilidade, influ-
diagnóstico de doença coronariana isquêmica. Paci- enciando o controle glicêmico. Em função dessas ra-
entes diabéticos e com história de infarto do miocárdio zões, o uso de insulina exógena será necessário
ou de angina instável poderão ter o risco cirúrgico re- nessa fase também para os pacientes com diabete
duzido se realizada angiografia coronariana e corrigi- melito tipo 2.
do com cirurgia de revascularização ou angioplastia (8) .
Para a maioria dos pacientes, no entanto, uma cirurgia PACIENTE EM USO DE INSULINA
só terá bom prognóstico se forem adotadas medidas
apropriadas de controle clínico. Deve-se preferir que a cirurgia seja realizada no
A nefropatia diabética é ocorrência comum em período da manhã. O paciente deverá receber de meta-
pacientes com história de longa duração de diabete e, de a um terço da dose de insulina intermediária (NPH)
assim, a avaliação pré-operatória deverá incluir aspec- que já usava anteriormente, aplicada antes da anestesia.

290 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
TAMBASCIA M
Diabete e cirurgia

O paciente deverá usar normalmente a dose de insuli- cuidado para se evitar hipoglicemia, principalmente
na intermediária à noite ou no jantar do dia anterior. O no paciente sob anestesia, onde as reações adrenérgicas
controle glicêmico, por meio de dosagens por estão abolidas.
glicosímetros, permitirá ao médico decidir pela utili-
zação de insulina de ação regular. Se a cirurgia so- PACIENTE EM TRATAMENT O COM DROGAS
mente ocorrer no final da manhã ou no período da tar- ANTIDIABÉTICAS ORAIS
de, deve-se iniciar infusão de glicose endovenosa na
quantidade aproximada de 5 g/hora e controlar a velo- Se o paciente estiver em controle metabólico ade-
cidade de infusão ou necessidade de insulina regular quado, a medicação oral deverá ser interrompida no
adicional, baseando-se nas determinações da glicemia. dia anterior e introduzida insulina. As sulfoniluréias
Quando o paciente já estiver em condições de alimen- deverão ser suspensas pela possibilidade de induzir
tação por via oral, a infusão de glicose deverá ser in- hipoglicemia, já que seu tempo de ação é prolongado
terrompida. Quando o paciente estiver utilizando in- e, por vezes, incerto(13) . As biguanidas não deverão ser
sulina de ação prolongada (ultralenta) e doses de insu- utilizadas, pois, em situação de propensão à acidose,
lina regular pré-refeição, aconselha-se a mudança para poderá ocorrer quadro de acidose láctica(13) . A acarbose
o esquema de insulina NPH um ou dois dias antes. não deverá ser utilizada, pois pode induzir retardo na
A utilização de insulina regular, por via venosa, no absorção de monossacarídeos e dificultar a correção
manuseio de diabéticos em cirurgia não tem apresen- de eventual hipoglicemia(13) . O esquema de insulina
tado vantagem quando comparada com o esquema de mais utilizado é o de uma dose inicial arbitrária de
insulina aplicada por via subcutânea(10,11). Esse esque- insulina NPH de cerca de 16 a 20 U pela manhã e in-
ma tem utilidade quando o caso evoluiu para sulina de ação regular nas refeições segundo esquema
descompensação aguda com alteração de pH arterial e predeterminado. Pode-se utilizar a dose de 1 U de in-
eletrolítica e/ou quando ocorrer quadro de sulina regular para cada 40 mg/dl de glicemia, em ho-
vasoconstrição periférica com hipotensão arterial e rários pré-refeição. No dia da operação, adotar a mes-
choque (12) . Está também indicado para casos de cirur- ma conduta indicada para o paciente já em uso de in-
gia em paciente com cetoacidose, septicemia ou mes- sulina a longo prazo. Para pacientes em estado inade-
mo em operações de grande complexidade, como trans- quado de controle glicêmico, a conduta mais apropri-
plantes. Geralmente, a dose utilizada é de 0,1 U/kg de ada é adiar a cirurgia até um controle razoável ou, se
peso por hora, utilizando-se de bombas de infusão e impossível, tratar segundo o esquema proposto para
controle glicêmico freqüente. Deverá haver grande grandes cirurgias ou para o quadro de cetoacidose.

DIABETES AND SURGERY

MARCOS TAMBASCIA

Several prospective studies concerning the relationship of diabetes management control and complications
have recently shown that micro and macrovascular complications are associated with the incapability to control
blood glucose as well with difficulties in the management of dyslipidemia, hypertension, obesity and smoking.
When all these parameters are controlled the survival rate in diabetics are similar to normal glucose patients.
The follow-ups during and after surgery are similar both in non-diabetics and in very well controlled patients.
Diabetic complications however, can be associated with bad prognosis detection and corrections are necessary
prior to surgery. Intermediate and regular insulin should be used according to blood glucose profile. Self
monitorization and the use of glucose measurement several times a day is the best scheme. The medical team
and the participation of an experienced diabetologist will contribute to the surgery outcome.
Key words: diabetes mellitus, metabolic control, surgery.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:289-92)


RSCESP (72594)-980

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 291
TAMBASCIA M
Diabete e cirurgia

R EFERÊNCIAS ry bypass surgery: follow-up of 212 patients ten


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292 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ABORDAGEM PRÉ-OPERATÓRIA DO PACIENTE PNEUMOPATA —
RISCOS E ORIENTAÇÕES

ILMA APARECIDA PASCHOAL, MÔNICA CORSO PEREIRA

Faculdade de Ciências Médicas — Universidade Estadual de Campinas — UNICAMP


Endereço para correspondência: Rua Serra da Bocaina, 178 — CEP 13095-190 — Campinas — São Paulo

Complicações pulmonares são freqüentes após senso sobre o teste ou bateria de testes ideal para es-
procedimentos cirúrgicos, em especial naqueles que tratificar esses indivíduos em grupos de risco diferen-
acontecem no tórax ou no abdome superior. A presen- te. As decisões devem ser tomadas tendo por base a
ça de doença pulmonar crônica prévia constitui o história clínica e o exame físico minuciosos, a avalia-
maior fator de risco para esses eventos adversos. Os ção cuidadosa do radiograma de tórax e o apanhado
portadores de asma brônquica grave sintomáticos à geral de todas as co-morbidades. Testes de função
época da cirurgia têm risco ligeiramente aumentado pulmonar (espirometria, oximetria, gasometria) não
de apresentar complicações no período perioperató- devem ser realizados de rotina em cirurgias que não
rio; se possível, deve-se retardar o procedimento até envolvam a ressecção de tecido pulmonar, a menos
que o paciente esteja assintomático ou, pelo menos, que os sintomas sejam muito importantes. Não existe
oligossintomático. Devem-se usar broncodilatadores um valor medido no pré-operatório para qualquer dos
e corticóides no pré-, intra e pós-operatório. O risco testes de função pulmonar que esteja definido como
de complicações pulmonares pós-operatórias foi ava- capaz de contra-indicar uma cirurgia. Intervenções
liado extensamente na literatura médica até agora em pré-operatórias que podem reduzir o risco de compli-
pacientes portadores de doença pulmonar obstrutiva cações pulmonares incluem tratamento da obstrução
crônica leve ou moderada; se o risco de complicação ao fluxo aéreo (com interrupção do tabagismo, bron-
é definido como o aparecimento de produção aumen- codilatadores, esteróides e antibióticos ) e instruções
tada de secreção, atelectasia, pneumonia ou altera- de uso do espirômetro de incentivo.
ção na função pulmonar, ele está claramente aumen- Descritores: pneumopatias, doenças respiratóri-
tado nessa população de pacientes. Não existe con- as, cirurgia.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:293-302)
RSCESP (72594)-981

I NTRODUÇÃO Pretende-se, ao realizar a avaliação pré-operatória


de determinado doente, que esta seja suficiente para
Complicações pulmonares constituem a forma mais indicar quais as intervenções necessárias antes, durante
freqüente de morbidade pós-operatória em pacientes e depois do ato cirúrgico, a fim de minimizar o risco
que se submetem a cirurgias abdominais ou de complicações.
toracotomias, e são bastante comuns após procedimen- Avanços, como técnicas endoscópicas (videotora-
tos cirúrgicos cardiológicos. A prevalência dessas com- coscopia e laparoscopia) e agentes anestésicos com
plicações é extremamente variável na literatura, es- meias-vidas mais curtas são contrabalançados pela
tando entre 6% e 76% (1) . Essa variação depende prin- crescente necessidade de realização de intervenções
cipalmente da condição pré-operatória do paciente, do cirúrgicas em pacientes com doenças pulmonares cada
procedimento cirúrgico realizado e do tipo de compli- vez mais graves. Além disso, há o crescimento acen-
cação que está sendo considerado. tuado da população de idosos, que constituem um gru-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 293
PASCHOAL IA e col.
Abordagem pré-operatória do paciente pneumopata — riscos e orientações

po de pessoas com maior propensão a apresentar séri- pulmonares mais freqüentes relacionadas à anestesia
os comprometimentos cardiovasculares e/ou pulmo- geral é o acúmulo de muco nos pulmões, levando à
nares. formação de áreas de atelectasia e criando condições
Independentemente das condições pré-operatórias propícias ao desenvolvimento de infecções respirató-
do paciente, tanto o ato anestésico como o cirúrgico rias (4) .
produzem alterações na fisiologia pulmonar que serão É provável que o decréscimo na velocidade de
determinantes na evolução pós-cirúrgica do doente, transporte do muco seja decorrente da depressão ciliar
estando intimamente envolvidos na gênese das com- produzida diretamente pelos gases anestésicos (5) . Há
plicações pulmonares, tanto no paciente pneumopata controvérsia quanto às alterações nas propriedades fí-
como naquele sem problemas respiratórios. sico-químicas do muco produzidas diretamente pela
ação desses mesmos gases.
EFEITO DOS AGENTES ANESTÉSICOS
EFEITO DO AT O CIRÚRGICO
Os agentes anestésicos podem ter diversos efeitos
prejudiciais à função pulmonar, que incluem: dimi- Assim como o ato anestésico, o ato cirúrgico tem
nuição na capacidade residual funcional*, elevação das conseqüências na função pulmonar dos pacientes, a
porções posteriores do diafragma, piora da desigual- despeito de sua situação pré-operatória.
dade ventilação/perfusão e prejuízo no “clearance” A posição em que o paciente permanece durante a
mucociliar. cirurgia é determinante, sob alguns aspectos. As cirur-
A capacidade residual funcional sofre decréscimo gias realizadas em pacientes em posição supina cau-
de 20%, que equivale a cerca de 500 mililitros. A uti- sam decréscimo de 20% na capacidade vital forçada(6) .
lização de anestesia geral com paralisia muscular e Essa queda é significantemente maior nos pacientes
ventilação mecânica causa alterações nos volumes de obesos e nos portadores de doenças neuromusculares,
gás e sangue, tanto no tórax como no abdome. O dia- disfunção diafragmática ou doença pulmonar
fragma desloca-se cranialmente e a caixa torácica tem obstrutiva crônica.
seu diâmetro diminuído. Isso leva à diminuição da O tipo de cirurgia a que foi submetido o doente
capacidade residual funcional e ao desvio do sangue também é um fator fundamental no surgimento de com-
do tórax para o abdome. O relaxamento do diafragma plicações pulmonares.
deve ser a causa inicial do decréscimo da capacidade A diminuição da capacidade vital parece ser um
residual funcional observado(1, 2) . parâmetro sensível e preditivo de complicações pul-
Após cinco minutos de indução anestésica, pode- monares pós-operatórias. Nas cirurgias de andar su-
se observar formação de atelectasia nas porções de- perior do abdome, observa-se queda da capacidade
pendentes dos pulmões, conforme já documentado por vital, situando esse valor entre 37% e 53% dos valores
tomografia computadorizada (3) . pré-operatórios, para o mesmo doente(7, 8) . Nas cirur-
Alguns agentes anestésicos e vasodilatadores po- gias de andar inferior do abdome, a diminuição é para
dem inibir a vasoconstrição pulmonar hipóxica, au- 58% a 75% dos valores pré-operatórios (7, 8) . Nas
mentando, assim, a mistura venosa de sangue prove- toracotomias sem ressecção pulmonar, o decréscimo
niente das áreas atelectásicas ou hipóxicas dos pul- coloca a capacidade vital em 58% dos valores pré-ope-
mões. Os agentes intravenosos parecem preservar a ratórios. Entre os procedimentos do andar superior do
vasoconstrição hipóxica induzida, mas há controvér- abdome, as incisões subcostais têm impacto menor na
sias quanto aos agentes inalatórios(2) . função pulmonar pós-operatória que as incisões de li-
O fluxo mucociliar fica prejudicado por dois a seis nha média(7) .
dias após o ato anestésico. Uma das complicações O ponto mais baixo da capacidade vital no pós-
operatório da maioria dos procedimentos cirúrgicos
situa-se no primeiro dia após a cirurgia. Nas cirurgias
* Considere um indivíduo respirando pausadamente. O vo- de andar superior, em sete a dez dias há retorno aos
lume de ar que entra e sai dos pulmões é ovolume corrente. valores pré-operatórios (7) , enquanto nas cirurgias car-
Em seguida, ele faz uma inspiração máxima, seguida por
díacas, particularmente na revascularização
uma expiração máxima; o volume expirado é chamadoca-
pacidade vital. Entretanto, parte do ar permanece nos pul- miocárdica, essa recuperação pode levar de 6 a 17 se-
mões após expiração máxima; esse é o volume residual.O manas(1, 9) .
volume de ar nos pulmões após expiração normal é acapa- Taggart e colaboradores (9) estudaram 129 pacien-
cidade residual funcional. tes submetidos a cirurgias de revascularização

294 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
PASCHOAL IA e col.
Abordagem pré-operatória do paciente pneumopata — riscos e orientações

miocárdica, e 30 doentes nos quais foram realizadas ratórias. Embora intuitivamente tenha-se a idéia de que
cirurgias abdominais. Todos os pacientes foram avali- quanto mais dados o médico tiver melhor ele vai po-
ados com medidas de pressão parcial de oxigênio, gra- der tratar seu paciente, testes pré-operatórios só de-
diente alvéolo-arterial de oxigênio e porcentagem de vem ser realizados se tiverem a propriedade de influ-
“shunt” pulmonar. Os autores encontraram a presença enciar efetivamente a conduta a ser tomada no perío-
de disfunção pulmonar severa (pressão parcial de oxi- do perioperatório. Por outro lado, a necessidade de
gênio no sangue arterial < 60 mmHg em ar ambiente) cirurgia pode ser a oportunidade para a realização de
em 66% dos pacientes submetidos a cirurgia cardíaca, exames preventivos que, de outra forma, o paciente
no segundo dia de pós-operatório, e em 26% dos paci- não faria: não se pode perder a chance de radiografar
entes, no sexto dia de pós-operatório. Os autores evi- um fumante de longa data e diagnosticar neoplasia de
denciaram que, na sexta semana depois da cirurgia, já pulmão em estádio ainda precoce. O clínico de bom
não havia sinais de disfunção respiratória. senso deve ter em mente essas duas situações ao fazer
A explicação da hipoxemia evidenciada nos paci- uma avaliação pré-operatória.
entes submetidos a circulação extracorpórea é dife- A doença pulmonar crônica preexistente é o fator
rente daquela para aqueles submetidos a cirurgias ge- de risco mais significativo para o desenvolvimento de
rais. complicações pulmonares no pós-operatório. Para
Na cirurgia geral, a hipoxemia, quando presente, identificá-la, uma anamnese bem feita é fundamental.
não se acompanha de aumento do gradiente alvéolo- Propõe-se, a seguir, um roteiro das combinações mais
arterial de oxigênio, sugerindo ser decorrente de um freqüentes de sinais e sintomas das diferentes catego-
estado de diminuição da oxigenação alveolar. Tal rias de doença pulmonar crônica, sempre lembrando
hipoventilação pode, eventualmente, ser conseqüente que as associações aqui estabelecidas existem nos ti-
à anestesia ou à analgesia. pos clínicos mais definidos, e que situações interme-
Nos pacientes submetidos a cirurgia cardíaca, en- diárias, onde os sinais e sintomas se misturam, são
tretanto, observou-se presença de hipoxemia associa- comuns.
da a aumento de gradiente alvéolo-arterial de oxigê-
nio e aumento de porcentagem de “shunt” pulmonar, Antecedentes de crises de dispnéia e chiado há
o que indica a existência de áreas de desigualdade ven- vários anos, no indivíduo não-fumante: o paciente
tilação/perfusão (áreas perfundidas e não ventiladas). asmático
Tais áreas devem corresponder à presença de atelecta- Na maioria das vezes, esse paciente apresenta-se
sia(9). dizendo que tem “bronquite”. Refere crises de chiado
Foram resumidas as principais ocorrências pulmo- e falta de ar desde há muitos anos, desencadeadas por
nares em pacientes que se submetem a cirurgias abdo- exposição à poeira domiciliar; não fuma e tem pouca
minais e torácicas, sejam eles pneumopatas ou não. secreção. Dependendo da gravidade dos sintomas, faz
A alta incidência de eventos adversos perioperató- uso de broncodilatadores com freqüência variável,
rios — que é ainda maior nos pacientes com doenças corticosteróides por via inalatória e/ou corticosteróides
pulmonares e cardiovasculares prévias — e o custo por via oral ou parenteral.
significativo que acarretam, pelo prolongamento do Interessa muito, na avaliação pré-operatória de um
tempo de internação, aumento do sofrimento do paci- asmático, saber o quanto seus sintomas estão contro-
ente e, eventualmente, evolução para óbito, foram res- lados: não se pode levar para anestesia um indivíduo
ponsáveis, durante todo o século XX, por inúmeras que chia todos os dias e tem sibilos difusos na auscul-
tentativas de identificar quais pacientes têm maior ris- ta do tórax. As informações da história clínica e do
co de desenvolvimento dessas complicações, e tam- exame físico podem ser suficientes na orientação da
bém quais as técnicas mais eficazes para preveni-las. conduta(10) , reservando-se a espirometria para os ca-
sos indefinidos ou mais graves, estes últimos depois
IDENTIFICAÇÃO DO PNEUMOPATA COM MAIOR de alguma intervenção terapêutica. Pacientes sintomá-
RISCO CIRÚRGICO ticos têm risco baixo — porém aumentado com rela-
ção aos não-asmáticos — de apresentar morbidade
A estratificação de risco para um procedimento severa e até óbito no período perioperatório(11,12). Em
cirúrgico envolve a realização de história clínica, exa- cirurgias eletivas, podem ser necessárias mais ou me-
me físico e outros exames subsidiários, de modo a nos duas semanas de corticoterapia oral (0,25 mg a
poder classificar o paciente avaliado como de baixo, 0,5 mg por quilograma de peso por dia de prednisona),
médio ou alto risco de complicações intra e pós-ope- além de tratamento broncodilatador adequado, a fim

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Abordagem pré-operatória do paciente pneumopata — riscos e orientações

de colocar o asmático em condições ideais para o pro- nica de maior valor preditivo desses eventos adversos.
cedimento. A maioria dos estudos disponíveis sobre o tema
Caso o paciente tenha feito uso anterior (até seis apresenta falhas de planejamento ou limitações de for-
meses antes) de corticosteróides, inalatórios ou não, mato, o que dificulta sua avaliação. São, geralmente,
há necessidade de se manter corticoterapia intravenosa retrospectivos, com pequeno número de casos; os gru-
no pré-, intra- e pós-operatório imediato (50 mg a 100 pos de pacientes não são homogêneos e a definição de
mg de hidrocortisona a cada quatro horas)(13, 14) . Tanto complicação pulmonar é variável.
quanto possível, não se deve interromper a medicação Um dos primeiros estudos prospectivos relativos a
inalatória que o paciente vinha fazendo uso. esse tema (17) demonstrou que pacientes com doença
Metilxantinas devem ser suspensas antes da cirur- pulmonar obstrutiva crônica têm taxas elevadas (26%)
gia em razão de várias interações adversas com agen- de problemas respiratórios no pós-operatório, tais
tes anestésicos (ketamina, halotano), que favorecem como retenção de secreções, broncoespasmo, pneu-
convulsões e arritmias, e do efeito de redução do tônus monia e ventilação mecânica prolongada. Dos pacien-
do esfíncter gastroesofágico, o que facilita aspiração. tes com doença pulmonar obstrutiva crônica que se
Não pode ser desconsiderado o fato de que a anestesia submeteram a cirurgias grandes de abdome superior,
reduz o fluxo sanguíneo hepático, situação que preju- cerca de 12% morreram, número que contrasta com o
dicaria a metabolização da droga, acarretando níveis achado de 8% para mortalidade geral nesse tipo de
potencialmente tóxicos da substância no sangue (15) . procedimento.
A intubação traqueal pode desencadear Esse efeito prejudicial sobre a função pulmonar das
broncoespasmo, e o anestesista precisa estar pronto cirurgias localizadas no abdome superior foi confir-
para fazer o diagnóstico (inclusive o diferencial com mado no estudo de Svensson e colaboradores (18) .
pneumotórax, pois as duas situações elevam a pressão A presença de doença pulmonar obstrutiva crôni-
na via aérea e fazem cair a saturação) e interpor no ca não aumenta o risco de complicações e mortalida-
circuito anestésico a medicação broncodilatadora(13,14) . de em outros tipos de procedimentos cirúrgicos, como
Os agentes anestésicos inalatórios (halotano, os urológicos e ortopédicos (17) .
enfluorano, isofluorano) são a melhor opção para as- Uma revisão de 135 publicações, de 1989, já con-
máticos, tanto pelo bloqueio dos reflexos como pela cluía que a espirometria anormal no pré-operatório não
ação direta de relaxamento da musculatura das vias era capaz de prever a ocorrência de problemas respi-
aéreas e inibição da liberação de mediadores. Morfina ratórios no pós-operatório (19) .
e derivados e a d-tubocurarina podem trazer proble- Quando não se trata de toracotomia com ressecção
mas, pela possibilidade de liberação de histamina. de tecido pulmonar, a espirometria não é, portanto,
Tem sido demonstrado que a administração obrigatória, nem deve ser feita de rotina.
perioperatória de betabloqueadores reduz o risco de Aqui, novamente, são fundamentais os dados da
complicações isquêmicas cardíacas em até seis a oito história clínica e do exame físico do paciente. O ante-
meses após a cirurgia(16) , fato que vem fazendo aumen- cedente de tabagismo, por si só, já antecipa a ocorrên-
tar o uso dessa classe de drogas no manejo do paciente cia de problemas. Os efeitos lesivos do cigarro no tra-
cirúrgico. No caso de broncoespasmo induzido por to respiratório incluem prejuízo do transporte
betabloqueadores, a droga broncodilatadora de esco- mucociliar, aumento da quantidade de secreção, obs-
lha é o brometo de ipratrópio. trução brônquica, aumento da velocidade de queda do
volume expiratório forçado no primeiro segundo em
O indivíduo grande fumante com queixa de fumantes suscetíveis, e elevação da quantidade de
dispnéia: a grande população de pacientes com carboxi-hemoglobina com diminuição da capacidade
doença pulmonar obstrutiva crônica de transporte de oxigênio (1) . O hábito tabagístico já foi
A presença de doença pulmonar obstrutiva crôni- identificado como fator de risco para complicações
ca aumenta significativamente o risco de complica- pós-operatórias em várias publicações (18,20).
ções pulmonares no período pós-operatório, como Em análise prospectiva de 111 pacientes submeti-
aumento da produção de escarro, atelectasia, pneumo- dos a cirurgia eletiva, o risco de complicações pulmo-
nia e insuficiência respiratória. Além disso, o diagnós- nares pós-operatórias aumentou proporcionalmente à
tico de doença pulmonar obstrutiva crônica sugere intensidade do tabagismo: de 8% em não-fumantes a
maior tendência à mortalidade perioperatória, não ha- 43% em grandes fumantes (20) .
vendo, no entanto, consenso com relação aos indica- O período de abstinência de tabaco antes da cirur-
dores de gravidade da doença pulmonar obstrutiva crô- gia tem importância fundamental no risco de compli-

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Abordagem pré-operatória do paciente pneumopata — riscos e orientações

cações pós-operatórias. Nos pacientes que interrom- gia vascular abdominal detectou freqüência de 24%
peram o hábito de fumar dois ou mais meses antes da de insuficiência respiratória, que necessitou de venti-
cirurgia, foram constadas complicações em 15% dos lação mecânica por mais de 24 horas (25) . Anormalida-
casos. Naqueles que pararam há menos de dois meses, des pré-operatórias de volume expiratório forçado no
a freqüência de complicações verificada foi de 57% (21) . primeiro segundo não foram capazes de identificar
Tendo em mente esses fatos, deve-se sempre recomen- quais pacientes viriam a necessitar de ventilação me-
dar a interrupção do uso de tabaco pelo maior tempo cânica prolongada. Os dados mais significativos para
possível antes de cirurgia, e pelo menos dois meses essa previsão foram: história importante de tabagis-
antes de procedimento eletivo. mo, pressão parcial de oxigênio mais baixa e maior
A queixa de sensação de opressão no peito, cansa- perda de sangue no período intra-operatório.
ço aos esforços e, eventualmente, sufocação reflete a Alguns estudos, no entanto, concluíram que resul-
existência de obstrução brônquica(22) . Normalmente, tados da espirometria podem prever complicações pul-
esses indivíduos apresentam também tosse produtiva monares no período perioperatório(18,26) . De acordo com
persistente, a “marca registrada” da bronquite crôni- Svensson e colaboradores (18) , tanto a pressão parcial
ca, a mais freqüente e mais grave das doenças que com- de oxigênio como a espirometria foram capazes de
põem a síndrome da doença pulmonar obstrutiva crô- discriminar quem precisaria de ventilação mecânica
nica. Sintomas de moderada ou grande intensidade prolongada pós-operatória, em um grupo de pacientes
justificam investigação mais aprofundada, especial- submetidos a correção de aneurismas de aorta
mente quando acompanhados de cianose de extremi- toracoabdominais.
dades, edema de membros inferiores e hipercoloração Valores de PaCO2 persistentemente elevados (mai-
das mucosas. A hipersecreção e a doença inflamatória ores que 45 mm Hg) em pacientes sem doenças neuro-
preferencial de pequenas vias aéreas, esta última uma musculares ou outras causas de hipoventilação cen-
característica de uma parcela suscetível da população tral, podem indicar possibilidade aumentada de com-
de fumantes, combinam-se para diminuir a ventilação plicações pulmonares no pós-operatório, especialmente
em áreas heterogeneamente distribuídas nos pulmões; em cirurgias cardíacas e naquelas que envolvem
a manutenção da perfusão em regiões pouco ventila- ressecção de tecido pulmonar (27) . Não existem, no en-
das prejudica as trocas gasosas e faz cair a pressão tanto, estudos prospectivos, com casuística significa-
parcial de oxigênio no sangue arterial. O aumento da tiva, que abordem especificamente o papel da
resistência ao fluxo aéreo faz crescer o trabalho ne- hipercapnia no aparecimento de complicações pulmo-
cessário para realizar a ventilação, podendo, inclusi- nares pós-operatórias, e também não se pode estabe-
ve, gerar fadiga nos músculos respiratórios; essa lecer um valor de PaCO2 que contra-indique um pro-
exaustão muscular resulta em hipoventilação, que aca- cedimento cirúrgico. Como só os pacientes com do-
ba por produzir hipercapnia. ença pulmonar mais grave têm hipercapnia, parece
Estudo de Nunn e colaboradores (23) foi um dos pri- lógico avaliar com mais reserva o candidato à cirurgia
meiros a correlacionar o risco de complicações pul- que tenha PaCO2 alta.
monares com a gasometria pré-operatória e uma esca- Pacientes com predomínio de enfisema são clini-
la de dispnéia. Nesse trabalho, a casuística era consti- camente diferentes dos bronquíticos: tendem a ser lon-
tuída por indivíduos com doença pulmonar obstrutiva gilíneos, ter dispnéia muito acentuada mesmo em re-
crônica grave (volume expiratório forçado no primei- pouso, e usar intensamente a musculatura acessória
ro segundo menor que 1 litro) e, mesmo assim, a mai- da respiração (em especial os músculos do pescoço).
oria dos pacientes (87%) sobreviveu, sem complica- Chamam ainda a atenção a presença de hiper-insufla-
ções importantes. Os melhores indicadores de neces- ção pulmonar, com aumento acentuado do diâmetro
sidade de ventilação mecânica prolongada pós-opera- ântero-posterior do tórax, pequena excursão do dia-
tória foram a pressão parcial de oxigênio pré-operató- fragma à inspiração, murmúrio vesicular quase inau-
ria e a presença de dispnéia em repouso. dível, pouca secreção, ausência de sibilos, nenhuma
Rao e colaboradores (24) , em trabalho publicado em cianose ou poliglobulia. A ausência de alterações ga-
1992, avaliaram pacientes submetidos a cirurgia por sométricas pode ser enganadora, já que esses indiví-
neoplasias de cabeça e pescoço, e constataram relação duos têm espirometria e volumes pulmonares muito
da incidência de eventos pulmonares adversos com alterados. O aumento do volume do pulmão pela per-
antecedentes de tabagismo intenso, grau de dispnéia da da elasticidade (progressiva destruição inflamató-
no pré-operatório e pressão parcial de oxigênio. ria de fibras elásticas do tecido conjuntivo) faz com
Outra análise de 51 pacientes que sofreram cirur- que ele se comporte como um “elástico velho”: gran-

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Abordagem pré-operatória do paciente pneumopata — riscos e orientações

de e incapaz de reduzir de volume durante a expira- melhora nos índices espirométricos com seu uso. Esse
ção. Essa situação prejudica muito os fluxos expirató- efeito está relacionado à diminuição do volume dos
rios, fato que se comprova na espirometria. Além dis- pulmões, por redução do aprisionamento de ar em seu
so, o rebaixamento do diafragma, empurrado por um interior: volumes pulmonares menores permitem me-
pulmão de volume excessivo, acarreta perda signifi- lhor posicionamento do diafragma, que, ficando me-
cativa em sua eficiência na ventilação, que passa a nos achatado, passa a ter maior eficiência contrátil (32) .
depender muito da musculatura acessória. A limita- Corticosteróides podem produzir aumento de mais
ção dos fluxos expiratórios e a mecânica ventilatória de 15% no volume expiratório forçado no primeiro
deficiente podem aumentar os riscos de complicações segundo em 15% a 56% dos pacientes com doença
pulmonares em pós-operatórios de cirurgias torácicas pulmonar obstrutiva crônica estável (1) . Kerstjens e co-
e abdominais altas. Portanto, esse conjunto de sinais e laboradores (33) demonstraram efeito benéfico do uso
sintomas deve alertar o clínico para a necessidade de de corticosteróides inalatórios na doença pulmonar
avaliação pré-operatória mais detalhada. obstrutiva crônica, tanto no volume expiratório força-
Alguns estudos têm indicado que o tratamento pré- do no primeiro segundo como na freqüência de exa-
operatório agressivo da obstrução brônquica e da hi- cerbações. Em outro estudo, de Paggiaro e colabora-
persecreção diminui a freqüência de eventos adversos dores (34) , a fluticasona inalada, na dose de 500 micro-
pulmonares no período pós-cirúrgico. De acordo com gramas duas vezes por dia, foi comparada com place-
Stein e Cassara(28) , o tratamento pré-operatório com bo, durante seis meses, em portadores de doença pul-
broncodilatadores, antibióticos e fisioterapia respira- monar obstrutiva crônica, ficando constatada redução
tória, associado à interrupção do tabagismo, reduziu a no número de exacerbações.
incidência de complicações pulmonares de 60% nos Durante os episódios de agudização, já se demons-
controles para 22% nos pacientes tratados. O impacto trou que corticosteróides por via intravenosa diminu-
individual de cada uma das intervenções é desconhe- em a taxa de falência de tratamento, encurtam a esta-
cido, mesmo porque, normalmente, elas são utiliza- dia no hospital e promovem melhora mais acentuada
das em conjunto. da função pulmonar em comparação com o placebo(35) .
Fisioterapia respiratória (exercícios de inspiração Portanto, parece razoável indicar-se um período de
profunda, treinamento da tosse, drenagem postural, corticoterapia antes de cirurgias eletivas em pacientes
percussão e vibração) e técnicas que visam à expan- com doença pulmonar obstrutiva crônica e sintomas
são do pulmão (espirometria de incentivo, respiração respiratórios não controlados. Recomenda-se de 0,25
com pressão positiva intermitente e pressão positiva mg a 0,5 mg de prednisona por quilograma por dia
contínua na via aérea com máscara) são bastante utili- durante duas semanas. No pré-operatório imediato, no
zados na prevenção e no tratamento de complicações intra- e pós-operatório, deve-se utilizar hidrocortiso-
pulmonares pós-operatórias. Nos vários trabalhos pu- na por via parenteral (50 mg a 100 mg por via intrave-
blicados sobre o tema (29, 30) , a espirometria de incenti- nosa a cada 4 horas).
vo, a respiração com pressão positiva intermitente e Muito embora se possa temer um aumento na fre-
os exercícios de inspiração profunda são igualmente qüência de deiscências de suturas com o uso de corti-
efetivos na prevenção de problemas pulmonares pós- costeróides, um estudo que avaliou essa complicação
operatórios. A espirometria de incentivo é preferida em cirurgias abdominais não apontou a terapia com
pela facilidade de utilização. esse tipo de droga como fator de risco significativo (36) .
A pressão positiva contínua na via aérea nasal e a Aumento na dispnéia, no volume de secreção ou
pressão positiva em dois níveis na via aérea nasal têm na purulência da secreção, ou pelo menos duas dessas
vários efeitos benéficos no pós-operatório, revertendo queixas, indicam exacerbação da doença pulmonar
atelectasias e mantendo a capacidade residual funcio- obstrutiva crônica(37) , que deve ser tratada também com
nal em valores normais. Desse modo, previne-se a hi- antibióticos. A escolha do antimicrobiano deve levar
poxemia e reduz-se a necessidade de reintubações(31) . em conta a flora comum nesses indivíduos: Haemo-
O brometo de ipratrópio e os beta-2 adrenérgicos philus influenzae, Haemophilus parainfluenzae, Mo-
devem ser utilizados de rotina sempre que houver chi- raxella catarrhalis, Streptoccocus pneumoniae e bac-
ado ou outro sinal de obstrução brônquica reversível térias Gram-negativas e/ou estafilococos nos pacien-
no exame físico ou na prova ventilatória. Tem sido tes mais graves. Os três primeiros agentes citados são
demonstrado também que os beta-2 adrenérgicos po- grandes produtores de betalactamase, fato que restrin-
dem ter ação terapêutica nos pacientes com doença ge o número de drogas ativas que podem ser emprega-
pulmonar obstrutiva crônica, ainda que não se note das.

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Abordagem pré-operatória do paciente pneumopata — riscos e orientações

Por tudo que foi exposto até aqui, fica claro que os seguintes fatores: idade maior que 70 anos, antece-
uma boa história clínica e um exame físico minucioso dentes de angina do peito, diabete e presença de extra-
são absolutamente essenciais para se avaliar o pacien- sístoles ventriculares e/ou onda Q no eletrocardiogra-
te com doença pulmonar candidato a cirurgia. Se hou- ma(39) .
ver antecedentes, queixas ou sinais significativos de
comprometimento do pulmão, o radiograma de tórax, Os pacientes bronquectásicos
a espirometria, a oximetria de pulso e/ou a gasometria A hipersecreção nos bronquectásicos provoca as
arterial podem ajudar na análise da gravidade do pro- mesmas alterações funcionais descritas para a bron-
cesso. A combinação de exames muito alterados com quite crônica. A colonização bacteriana persistente das
cirurgias torácicas ou abdominais altas serve para an- secreções mantém um processo inflamatório, que pode
tecipar problemas, mas não existe um valor determi- desencadear broncoespasmo grave, além de ser res-
nado para qualquer dos parâmetros medidos antes do ponsável pela progressão da lesão pulmonar. Os agen-
procedimento cirúrgico que possa ser utilizado para tes infecciosos encontrados nesses pacientes são mais
contra-indicar a cirurgia. ou menos aqueles da bronquite crônica; no entanto,
No caso de cirurgias que envolvam retirada de te- com maior freqüência, detecta-se a presença de Pseu-
cido pulmonar, resultados ruins na espirometria e/ou domonas aeruginosa e Staphylococcus aureus, que
gasometria levantam a necessidade de se complemen- exigem terapia antimicrobiana específica. De modo
tar o estudo do paciente com medidas da função pul- geral, valem para esses doentes as mesmas considera-
monar regional, por meio de cintilografia, avaliação ções dos portadores de doença pulmonar obstrutiva
da capacidade de difusão (com monóxido de carbo- crônica, com maior ênfase na drenagem de secreções
no), teste cardiopulmonar de exercício (com determi- e antibioticoterapia.
nação do consumo de oxigênio), e cateterização do
ventrículo direito para determinação da resistência Os pacientes com restrição e hiperventilação
vascular pulmonar(1,27) . Pacientes com doenças intersticiais e hipertensão
Anamnese e exame físico bem conduzidos reve- pulmonar podem ter risco maior de complicações pul-
lam também co-morbidades. Estratificações de risco monares no período perioperatório, do mesmo modo
compostas, que incluam alterações de vários órgãos e/ que os portadores de doença pulmonar obstrutiva crô-
ou sistemas, são mais sensíveis na previsão de com- nica. No entanto, não existem trabalhos publicados
plicações pós-operatórias pulmonares que simplesmen- sobre estimativas de risco nesse grupo específico de
te a espirometria (38) . São particularmente importantes indivíduos (40) .

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Abordagem pré-operatória do paciente pneumopata — riscos e orientações

PREOPERATIVE EVALUATION OF THE PATIENT WITH LUNG DISEASE —


PERIOPERATIVE PULMONARY CARE AND RISKS

ILMA APARECIDA PASCHOAL, MÔNICA CORSO PEREIRA

Pulmonary complications after surgery occur commonly, especially after upper abdominal surgery and
thoracic procedures. Chronic lung disease is the most significant risk for these complications. Patients who
have severe asthma and are symptomatic are at higher risk for perioperative complications; if possible, therefore,
surgery should be done when asthmatic patients are symptomfree. Bronchodilators and corticosteroids should
be used in the perioperative period. Postoperative risk has been evaluated extensively in patients with mild to
moderate chronic obstructive lung disease; if risk is defined as the development of increased sputum production,
atelectasis, pneumonia and alterations in pulmonary function, it is clearly increased in that population. No
consensus exists as to the ideal test or battery of tests to stratify different patient groups by risk. The clinical
decisions should still be based on a careful clinical assessment that includes physical examination, review of
the chest radiogram and assessment of comorbid conditions. Pulmonary function studies do not need to be
performed routinely before pulmonary resectional surgery, unless the symptoms are too severe. No absolute
value for any measured preoperative parameter has ever been defined that could or should be used to
contraindicate surgery. Preoperative interventions that may lessen the rate of pulmonary complications include
treatment of airflow obstruction (with smoking cessation, bronchodilators, steroids and antibiotics) and
instructions on the use of incentive spirometry.
Key words: lung diseases, respiratory tract diseases, surgery.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:293-302)


RSCESP (72594)-981

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Abordagem pré-operatória do paciente pneumopata — riscos e orientações

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302 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
AVALIAÇÃO PRÉ-OPERATÓRIA NO PACIENTE COM
DOENÇA HEPÁTICA AGUDA E CRÔNICA

FÁBIO SANTANA MACHADO, HERLON SARAIVA MARTINS

Disciplina de Clínica Geral — Grupo de Avaliação Perioperatória — HC-FMUSP


Endereço para correspondência: Av. Dr. Éneas Carvalho de Aguiar, 255 — CEP 05403-000 — São Paulo — SP

A avaliação perioperatória de pacientes com do- mentos cirúrgicos eletivos. Os hepatopatas que preci-
ença hepática aguda ou crônica é um desafio. A ava- sam de cirurgia de emergência são um desafio em
liação pré-operatória para a determinação da severi- particular, pois os cuidados pré-operatórios devem ser
dade e da duração da doença hepática presente, bem feitos em curto espaço de tempo e a mortalidade peri-
como a correção de fatores de risco reversíveis, é fun- operatória é alta. Nos pacientes Child B e C, é essen-
damental. A presença de hepatite aguda e de cirrose cial suporte em unidade de terapia intensiva.
Child C é fortemente associada a complicações peri- Descritores: avaliação pré-operatória, cirrose,
operatórias; portanto, deveriam ser evitados procedi- complicações perioperatórias.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:303-10)
RSCESP (72594)-982

I NTRODUÇÃO É importante observar que os pacientes hepatopa-


tas podem apresentar alterações laboratoriais, como
A avaliação pré-operatória e o acompanhamento aumento sérico de aminotransferases, fosfatase alcali-
perioperatório dos hepatopatas representam um desa- na e bilirrubinas, após procedimentos cirúrgicos. Es-
fio constante na prática do médico internista. A doen- sas alterações, em geral, não apresentam significado
ça hepática causa alterações na síntese protéica e no clínico. Este artigo considerará os fatores de risco mais
metabolismo de drogas e de nutrientes, além de alte- importantes no hepatopata, além de discutir estratégi-
rar a excreção e a eliminação de toxinas por interferir as para evitar a morbidade e a mortalidade periopera-
no sistema reticuloendotelial. Essas alterações podem tórias.
afetar a metabolização de drogas utilizadas em
anestesia (anestésicos, analgésicos, bloqueadores EFEITOS DA ANESTESIA NO FÍGADO
neuromusculares, etc.), além de aumentar o risco de
sangramento cirúrgico e propiciar aumento da inci- O papel dos agentes anestésicos como causa fre-
dência de infecções. Por outro lado, o hepatopata apre- qüente de disfunção hepática é incerto. Atualmente,
senta grandes alterações hemodinâmicas, decorrentes nenhum agente anestésico é diretamente hepatotóxi-
da hipertensão portal, e isso pode ser fator importante co. Entretanto, todos os agentes anestésicos, incluin-
para instabilização hemodinâmica durante a cirurgia. do aqueles administrados por via epidural ou espinhal,
Quando analisamos pacientes hepatopatas, pode- reduzem o fluxo sanguíneo hepático e, conseqüente-
mos notar que a maioria dos pacientes não apresenta mente, a oferta de oxigênio ao fígado. Em estudos com
comprometimento importante da função hepática e, voluntários humanos saudáveis submetidos a aneste-
provavelmente, não apresenta risco perioperatório sia, o fluxo sanguíneo hepático foi reduzido, em mé-
muito aumentado. Por outro lado, os pacientes com dia, 35%. Em voluntários saudáveis, há uma tentativa
disfunção acentuada apresentam risco aumentado para de compensação dessa queda de fluxo por meio do
complicações perioperatórias. aumento de fluxo pela artéria hepática. Esse fenôme-

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MACHADO FS e col.
Avaliação pré-operatória no paciente com doença hepática aguda e crônica

no, chamado de reciprocidade de fluxo, ocorre como ça hepática, pois sua eliminação é por glucoronidação.
reação reflexa da artéria hepática à vasodilatação das Os barbitúricos devem ser usados com cautela, pois
veias do território esplâncnico e queda da pressão por- os mesmos ligam-se aos receptores gama
tal. Entretanto, não há dados demonstrando que essa aminobutírico e isso pode precipitar encefalopatia he-
queda de fluxo leve a alterações importantes no meta- pática em pacientes com doença hepática prévia. Em
bolismo do oxigênio. Por essas alterações fisiopatoló- raras circunstâncias, os benzodiazepínicos e os
gicas, podemos concluir que em pacientes hepatopa- barbitúricos podem causar colestase, associada a fe-
tas, que já apresentam redução do fluxo hepático, epi- bre, hepatite, linfadenopatia, eosinofilia e dermatite.
sódios de hipoxia, hipotensão e hipercapnia deveriam Esse quadro é mais comum em pacientes com doença
ser evitados aos máximo, pois podem agravar muito o hepática prévia. (2, 5)
fluxo hepático e causar danos isquêmicos em um fíga-
do já doente. EFEITOS DA CIRURGIA NÃO-HEPÁTICA
Entre os anestésicos inalatórios, o isoflurano é o NO FÍGADO PREVIAMENTE DOENTE
preferido para administração em hepatopatas, pois é o
único que aumenta o fluxo sanguíneo hepático e seu O procedimento cirúrgico pode descompensar o
metabolismo hepático é inferior a 0,2%. Por outro lado, paciente hepatopata e aumentar a morbidade e a mor-
o halotano e o enflurano diminuem o fluxo sanguíneo talidade pós-operatórias. A laparotomia leva a grande
hepático, como resultado da vasodilatação sistêmica e redução de fluxo sanguíneo hepático, em comparação
do efeito inotrópico negativo. Além disso, o halotano com cirurgias extra-abdominais. O mecanismo prová-
pode causar hepatite imunoalérgica na minoria dos vel para essa diminuição de fluxo é a hipotensão
casos (um caso de hepatite em cada 35.000 exposi- sistêmica reflexa secundária à tração da víscera abdo-
ções) (Tab. 1). (1-3) minal. Cirurgias com grande potencial de sangramento
podem levar à queda do fluxo sanguíneo hepático e à
Tabela 1. Fatores de risco para hepatite por halotano. isquemia dos hepatócitos. Pacientes submetidos pre-
viamente a cirurgia podem apresentar certo grau de
— Obesidade aderências intra-abdominais, o que pode ser um fator
— Múltiplas exposições ao halotano de risco para sangramento em hepatopatas. Na Tabela
— Sexo feminino 2, pode ser observada a média das taxas de morbidade
— História familiar de hepatite por halotano e de mortalidade de diversos estudos.
As referências citadas na Tabela 2 não são uma
Os hepatopatas apresentam resistência aumentada revisão de todos os estudos da literatura, mas, com
aos bloqueadores neuromusculares, porque apresen- certeza, esses estudos representam aproximadamente
tam grande volume de distribuição. Entretanto, seu a taxa de morbidade e de mortalidade dos pacientes
efeito será mais prolongado devido ao aumento do com doença hepática submetidos a cirurgia em geral.
volume de distribuição, à redução da atividade Por esses dados, podemos tirar algumas conclusões
plasmática da pseudocolinesterase e à diminuição da sobre os hepatopatas submetidos a cirurgia:
excreção biliar. Atualmente, o atracúrio é o bloqueador 1) As taxas de morbidade e de mortalidade são eleva-
neuromuscular de escolha em pacientes com doença das tanto para cirurgias de emergência como para
hepática ou com doença obstrutiva de vias biliares, pois cirurgias eletivas; entretanto, as cirurgias de emer-
seu metabolismo não depende do fígado ou do rim. gência apresentam taxa maior de complicações.
Em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos 2) Colecistectomia, cirurgia gástrica e colectomia es-
prolongados (transplante hepático), o doxacúrio é o tão associadas a maior taxa de complicações.
bloqueador recomendado. (4) 3) Quando houver indicação cirúrgica de tratamento
Os analgésicos e sedativos apresentam particulari- de cálculo biliar em pacientes com cirrose avança-
dades importantes. A morfina e a meperidina podem da, a colecistectomia subtotal ou a colecistostomia
apresentar seu metabolismo diminuído em hepatopatas deve ser a cirurgia preferida.
em comparação com o fentanil ou sulfentanil, sendo 4) Há poucos dados com relação à cirurgia cardíaca;
estes dois últimos os narcóticos preferidos para admi- contudo, a cirurgia em pacientes Child B e C é
nistração em hepatopatas. Os benzodiazepínicos, em acompanhada de altas taxas de mortalidade. Em
geral, apresentam sua ação prolongada em pacientes casos selecionados, o paciente poderá ser subme-
com doença hepática; entretanto, o oxazepan e o tido a cirurgia sem circulação extracorpórea, visto
lorazepan podem ser usados em pacientes com doen- que essa técnica agrava os distúrbios de coagula-

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Avaliação pré-operatória no paciente com doença hepática aguda e crônica

Tabela 2. Morbidade e mortalidade cirúrgicas em pacientes hepatopatas.

Gravidade
da disfunção Morbidade Mortalidade
Tipo de cirurgia hepática (%) (%)

Cirurgia abdominal(6) Child A, B, C 28% 8%


Colecistectomia (7) Child A (maioria) 11% 0%
Cirurgia abdominal(8) Child A, B, C Não relatado 28%
Colecistectomia
laparoscópica(9) Child A, B (Tab. 6) 32% 0%
Colectomia (10) Pacientes cirróticos 48% 24%
Herniorrafia umbilical(11) Pacientes cirróticos 16,6% 8,3%
Cirurgia abdominal(12) Child B e C Não relatado 67%
Cirurgia abdominal Child A, B, C 43% A, 10%
(eletiva e de urgência)(13) B, 30%
C, 82%
Cirurgia de emergência
para úlcera péptica(14) Cirróticos Não relatado 54%
Colecistectomia (15) TP > 2,5 s e TP < 2,5 s 100% e 25,6% 83,3% e 9,3%
Colecistectomia (16) Child A, B, C 28% 10,2%
Cirurgia cardíaca(17) Child A, B 25%, 100% 0% e 80%
Esfirectomia endoscópica(18) Child A, B, C 13,5% 7,7%

TP = tempo de protrombina.

ção, e aumenta a disfunção plaquetária e a tretanto, nos últimos anos, a taxa de mortalidade tem
fibrinólise em pacientes com doença hepática. Por declinado em torno de 16%. A provável redução da
esses dados, procedimentos menos invasivos, tipo mortalidade está relacionada à identificação dos fato-
angioplastia, deveriam ser preferidos em pacien- res potencialmente desfavoráveis para a ressecção he-
tes hepatopatas.(19) pática (Tab. 3). Quando esses fatores são ignorados,
principalmente a pressão da veia porta, o paciente po-
EFEITOSDA CIRURGIA HEPÁTICA NO FÍGADO derá evoluir no pós-operatório com ascite, icterícia ou
PREVIAMENTE DOENTE encefalopatia hepática refratárias ao tratamento. (20-24)

Este tópico é de suma importância, porque uma Tabela 3. Fatores que contra-indicam a ressecção he-
cirurgia hepática mal avaliada em portador de doença pática.
hepática prévia pode levá-lo à morte. A seguir, serão
discutidas as cirurgias hepáticas mais freqüentemente — Pressão na veia porta > 10 mmHg (parece ser o
realizadas. mais importante)
— Toracotomia
Cirurgia de ressecção hepática — Doenca pulmonar prévia
Em geral, os pacientes submetidos a cirurgia de — Doença inflamatória hepática associada
ressecção hepática por neoplasia apresentam cirrose — Diminuição do “clearance” da idiocianina verde
associada em seus diversos graus. A ressecção pode — Diminuição da captação hepática do tecnécio-99,
ser feita de forma cirúrgica ou por embolização, tera- visto na cintilografia hepática
pia criogênica ou alcoolização. Uma ressecção mal
indicada pode ser incompatível com a vida, se o paci- Transplante hepático
ente possuir fígado já limitado funcionalmente. Há Essa alternativa terapêutica vem sendo usada com
poucos estudos com pacientes com Child B e C e, por sucesso nos pacientes em que a ressecção está contra-
isso, é difícil a análise adequada de mortalidade. En- indicada. Os resultados são animadores; entretanto, o

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Avaliação pré-operatória no paciente com doença hepática aguda e crônica

número de órgãos doados é pequeno, o que compro- Quando analisamos a relação entre icterícia
mete a utilização dessa técnica de forma mais freqüen- obstrutiva e o procedimento cirúrgico para
te. (21, 22) desobstrução da via biliar, tudo leva a crer que a dre-
nagem biliar via endoscópica com ou sem
Cirurgia de “shunt” portocava esfincterectomia é a melhor abordagem antes do pro-
Esse tipo de cirurgia diminuiu muito nos últimos cedimento cirúrgico definitivo, se indicado. A drena-
anos, com o advento da endoscopia digestiva e do uso gem via transparietal hepática parece aumentar a mor-
de betabloqueadores para prevenir a hemorragia di- talidade quando realizada antes do procedimento ci-
gestiva alta. Quando esses pacientes são operados, a rúrgico definitivo. (5, 30, 31)
classificação de Child é um bom guia para as taxas de
mortalidade. Os pacientes Child A apresentam morta- QUAL O RISCO PERIOPERATÓRIO DE PACIENTES
lidade de 0 a 8%; Child B, de 4% a 30%; e Child C, de COM DOENÇA HEPÁTICA?
19% a 70%. (25)
Como vimos em tópicos anteriores, o risco de com-
CIRURGIA EM PACIENTES COM ICTERÍCIA plicações perioperatórias aumenta, dependendo da
OBSTRUTIVA condição hepática do paciente (classificação de Child)
e do tipo de cirurgia e anestesia. Entretanto, já ficou
Os pacientes com icterícia apresentam diferen- claro que a estimativa de complicações perioperatórias
tes taxas de mortalidade perioperatória, que vari- não é muito fácil, pois os estudos não são consistentes
am de 8% a 28%. Esse aumento de mortalidade está e obviamente a taxa de complicação irá variar de ser-
associado a particularidades fisiopatológicas da hi- viço para serviço. Há poucos estudos que examina-
perbilirrubinemia. (5) A bilirrubina é capaz de supri- ram doenças hepáticas de forma específica.
mir a imunidade celular em modelos experimen-
tais, diminuir a expressão das moléculas de adesão Hepatites
de polimorfonucleares e deprimir a resposta imu- As hepatites agudas (virais e alcoólicas) são con-
nológica a produtos da parede da bactéria. A bilir- tra-indicações absolutas para procedimentos cirúrgi-
rubina pode causar, também, lesão renal por meio cos eletivos, com taxas de mortalidade podendo variar
de vários mecanismos (26-29) : 10% a 55% se forem realizados procedimentos abdo-
1) a endotoxemia que acompanha a icterícia obstrutiva minais. Caso seja necessária biópsia hepática, deverí-
pode lesar o sistema renal, principalmente pelo amos optar pelo procedimento por punção, visto que a
desequilíbrio entre citoquinas e prostaglandinas; biópsia a “céu aberto” apresenta, comparativamente,
2) lesão tóxica direta do parênquima renal; maior taxa de mortalidade. Procedimentos eletivos só
3) por meio de mecanismos coadjuvantes, como alte- deveriam ser cogitados em pacientes com hepatite que
ração da coagulação, favorecendo a deposição de já estivessem assintomáticos e com as enzimas hepá-
fibrina peritubular; ticas normais. (2, 5, 25)
4) potencialização do efeito nefrotóxico dos
aminoglicosídeos e antiinflamatórios não- Hepatite crônica
hormonais. Em pacientes compensados, a taxa de complica-
Nos pacientes com icterícia obstrutiva, alguns fa- ções perioperatórias é baixa, mas pacientes com com-
tores de risco já estão bem estabelecidos (Tab. 4)(26-29) . prometimento clínico, laboratorial e histológico im-
portantes apresentam maior taxa de complicações; por
Tabela 4. Fatores de riscos perioperatórios que aumen- isso, cada caso deve ser analisado, pesando a relação
tam a mortalidade em pacientes com icterícia risco-benefício do procedimento. (2, 25, 32)
obstrutiva.
Esteato-hepatite ou esteatose hepática
— Hematócrito < 30% Essas duas entidades não parecem aumentar a taxa
— Bilirrubina sérica > 11 mg/dl de complicações perioperatórias de cirurgia em geral;
— Doença maligna causando a obstrução entretanto, em cirurgias de ressecção pode haver au-
— Azotemia mento da mortalidade. (33)
— Hipoalbuminemia
— Colangite Hepatite auto-imune
Quando o paciente está em remissão, em geral, as

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MACHADO FS e col.
Avaliação pré-operatória no paciente com doença hepática aguda e crônica

taxas de complicações são baixas; entretanto, deve-se QUAIS OS CUIDADOS QUE DEVEMOS TER
ter cuidado com a reposição de corticóide no NO PERIOPERATÓRIO DE PACIENTES COM
perioperatório. (5) DOENÇA HEPÁTICA PRÉVIA?

Hemocromatose Várias complicações clínicas, como encefalopatia


Obviamente, o estado funcional do fígado é im- hepática, sangramento, anasarca, insuficiência renal e
portante, principalmente se a cirrose já está presente; óbito, podem acontecer no pós-operatório de hepato-
contudo, não devemos esquecer do diabete e da patas. Entretanto, não há dúvida de que para o hepato-
cardiopatia que acompanham essa doença.(5) pata é preciso solicitar exames laboratoriais, como
hemograma, eletrólitos, coagulação, enzimas hepáti-
Doença de Wilson cas e albumina, para melhor definir seu risco periope-
No caso de a cirrose estar presente, ocorre aumen- ratório. Por outro lado, todos os pacientes que estão
to considerável das complicações perioperatórias; en- em programação cirúrgica devem ter história e exame
tretanto, devemos nos lembrar do comprometimento físico cuidadosos para identificação de provável he-
psiquiátrico que acompanha essa doença, além da in- patopatia. Deve-se reforçar que a história e o exame
terferência da D-penicilamina na cicatrização, fatores físico são suficientes para identificação de pacientes
de risco adicionais para complicações perioperatóri- com hepatopatia, sendo, portanto, dispensáveis exa-
as(5). mes complementares para detecção desses pacientes.
Nos pacientes com doença hepática prévia, podem-
Cirrose se tomar alguns cuidados para diminuir a taxa de com-
Vários estudos retrospectivos têm demonstrado plicações pós-operatórias, como, por exemplo:
correlação entre variáveis clínicas e cirúrgicas e mor- 1. Identificar pacientes de risco e evitar cirurgias
bidade e mortalidade dos pacientes hepatopatas sub- eletivas nesse grupo (25) (Tab. 7).
metidos a cirurgia em geral (Tab. 5 ). A classificação 2. Pacientes com encefalopatia devem ser tratados an-
de Child-Turcotte e Pugh ou ambas em conjunto po- tes da cirurgia, com profilaxia de encefalopatia (35) :
dem ser usadas como guias prognósticos em hepato- — manter níveis normais de potássio;
patas (Tab. 6). Por outro lado, hipoxemia associada a — corrigir a alcalose;
doença hepatopulmonar pode agravar a morbidade e a — evitar sedativos;
mortalidade desses pacientes (2, 25, 34, 35) . Em contraste, — corrigir sangramentos e evitar obstipação.
testes laboratoriais mais sofisticados, como capacida- 3. Evitar sangramentos: (2,25)
de de eliminação de galactose, “clearance” da indoci- — repor vitamina K e manter o tempo de
anina verde, taxa metabólica de lidocaína, dentre ou- protrombina no máximo de 3 s acima do normal;
tros, não foram superiores às variáveis clínicas em pre- — repor plasma fresco quando necessário e manter
dizer complicações perioperatórias em pacientes com o tempo de protrombina no máximo em 3 s acima
doença hepática prévia (5) . do normal;

Tabela 5. Fatores de risco para complicações em pacientes cirróticos submetidos a cirurgia.

Tipo de cirurgia Características do paciente

— Emergência — Child C > B


— Abdominal (colecistectomia, gastrectomia, etc.) — Ascite/encefalopatia/icterícia
— Cardíaca — Infecção/anemia
— Hepatectomia — Desnutrição/hipoalbuminemia
— Hipertensão portal
— TP > 2,5 s não corrigidos após vitamina K
— Hipoxemia
— Testes laboratoriais anormais

TP = tempo de protrombina.

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MACHADO FS e col.
Avaliação pré-operatória no paciente com doença hepática aguda e crônica

Tabela 6. Classificação de Child-Turcotte.

A B C

Albumina (g/dl) > 3,5 3,0-3,5 < 3,0


Bilirrubina (mg/dl) < 2,0 2,0-3,0 Incontrolável
Ascite Nenhuma Controlada Incontrolável
Encefalopatia Nenhuma Leve Coma
Estado nutricional Excelente Bom Péssimo
Tempo de protrombina* < 4,0 s 4,0-6,0 s >6s
Mortalidade perioperatória 0-10% 4-31% 19-76%

* Modificações feitas pela classificação de Pugh.

Tabela 7. Contra-indicações para cirurgia eletiva em 5. Profilaxias (25) :


pacientes hepatopatas. — usar bloqueador H2 para prevenir sangramen-
tos;
— Hepatite aguda viral e alcoólica — evitar excesso de transfusões;
— Insuficiência hepática fulminante — evitar instabilidade hemodinâmica e hipovole-
— Hepatite crônica severa mia, pois podem levar à piora da função hepática;
— Child C — evitar o uso de drogas hepatotóxicas (evitar
— Severa coagulopatia (tempo de protrombina alar- aminoglicosídeo e antiinflamatórios não-hormo-
gado e/ou plaquetas < 50.000/mm 3) nais, pois os mesmos podem potencializar o apa-
— Hipoxemia/insuficiência cardíaca grave recimento de lesão renal);
— Insuficiência renal aguda — monitorizar níveis de aminotransferases, bilir-
rubinas e tempo de protrombina no pós-operató-
rio, pois isso pode ser um marcador precoce de le-
— repor concentrado de plaquetas quando a conta- são hepática (os níveis glicêmicos devem ser mo-
gem for inferior a 50.000 plaquetas/mm3. Em geral nitorizados, pois hipoglicemia freqüentemente
é necessária a reposição de 8 a 10 unidades de con- acompanha insuficiência hepática no pós-operató-
centrado de plaquetas. Manter a contagem de pla- rio).
quetas em no mínimo 100.000/mm3 é o ideal tam- 6. Manejo do paciente com icterícia(5, 36, 37)
bém no pós-operatório; — evitar hipovolemia (expansão com 3 litros de
— alguns sangramentos associados à doença he- cristalóides na 24 horas que antecedem a cirurgia
pática podem responder à infusão de desmopres- parece razoável);
sina; — terapia com antibióticos;
— caso esteja presente coagulação intravascular dis- — corrigir distúrbios de coagulação, quando ne-
seminada, pode haver resposta à infusão de concen- cessário (vide tópico específico);
trado de antitrombina III, o que é controverso; — administração de lactulose ou ácido ursodeoxi-
— o uso de agentes fibrinolíticos é contra-indicado, cólico pode diminuir a endotoxemia e evitar com-
por aumentar a incidência de eventos trombóticos. plicações infecciosas e renais;
4. Manejo da ascite(2) : a presença de ascite aumenta a — evitar aminoglicosídeos e antiinflamatórios não-
incidência de deiscência da ferida cirúrgica e de hormonais;
aparecimento de hérnia abdominal. Deve-se sem- — drenagem biliar via endoscópica antes da cirur-
pre tratar a ascite antes da cirurgia, se possível uti- gia definitiva poderá diminuir as complicações
lizando algumas das medida descritas a seguir: perioperatórias;
— furosemida e espironolactona para reduzir a — evitar drenagem via transparietal hepática an-
ascite, nos casos em que a cirurgia é eletiva; tes da cirurgia definitiva, pois aumenta as compli-
— paracenteses podem ser usadas, embora com cações perioperatórias.
cautela, pois a mesma pode levar a insuficiência 7. Manejo nutricional(38) : em geral é indicada melhora
renal ou encefalopatia hepática. nutricional, apesar de não haver estudos bem con-

308 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
MACHADO FS e col.
Avaliação pré-operatória no paciente com doença hepática aguda e crônica

duzidos de como realizar esse manejo, nem qual pre que possível, devemos tentar melhorar o esta-
seriam as metas desse tratamento. Entretanto, sem- do nutricional.

PREOPERATIVE EVALUATION OF PATIENTS WITH CHRONIC OR ACUTE LIVER DISEASE

FÁBIO SANTANA MACHADO, HERLON SARAIVA MARTINS

Preoperative evaluation of patients with chronic or acute liver disease poses a unique challenge. A thoughtful
preoperative hepatology consultation aimed at accurate determination of the severity and chronicity of the liver
disease present, and correction of any reversible risk factors, are essential. Ongoing acute hepatitis and Child’s
C cirrhosis are strongly associated with perioperative complications and should lead to avoidance of elective
surgery. Patients with liver disease requiring emergent surgery are particularly challenging, because preoperative
preparation must be brief and perioperative mortality is high. Aggressive supportive care in an intensive care
unit is essential in patients Child B and C.
Key words: preoperative evaluation, cirrhosis, perioperative complications.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:303-10)


RSCESP (72594)-982

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310 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ABORDAGEM PRÉ-OPERATÓRIA DO PACIENTE HIPERTENSO:
RISCOS E ORIENTAÇÕES

JOÃO CARLOS ROCHA , AUGUSTO TERRANOVA ROCHA

Setor de Hipertensão Arterial — Faculdade de Ciências Médicas — UNICAMP


Endereço para correspondência: Rua Eduardo Lane, 200 — CEP 13075-903 — Campinas — SP

O risco cirúrgico de um paciente hipertenso de- ciente e à equipe cirúrgica, e eleva os custos hospita-
pende da gravidade da hipertensão arterial e do grau lares sem diminuir o risco operatório. Paciente com
de comprometimento dos órgãos-alvo. Variações da pressão arterial superior a 180/110 mmHg tem risco
pressão arterial ocorrem em fases distintas do ato ci- cirúrgico elevado; nesses casos, a cirurgia eletiva deve
rúrgico: eleva-se no período de indução anestésica, ser suspensa, e o paciente deve ter alta hospitalar até
cai com o aprofundamento do plano anestésico e ele- o controle adequado da pressão arterial, o que pode
va-se novamente no período de recuperação levar semanas ou meses. Variações da pressão arteri-
anestésica. Elevação da pressão arterial média de 20 al 24 ou 48 horas antes da cirurgia não trazem bene-
mmHg por mais de 15 minutos ou queda de 20 mmHg fícios adicionais e até devem ser evitadas. O esquema
por mais de uma hora são preditores de complicações terapêutico anti-hipertensivo, sempre que possível, não
peri e pós-operatórias. deve ser modificado nos 10 dias que antecedem a ci-
Valores de pressão arterial na fase hospitalar pré- rurgia. O controle da variabilidade da pressão arteri-
operatória não se correlacionam com risco cirúrgico. al média no perioperatório é mais importante para se
Pacientes com hipertensão arterial leve ou mode- evitar complicações que o eventual controle da pres-
rada, com valores da pressão arterial até 179/109 são arterial no pré-operatório imediato.
mmHg sem lesão de órgão-alvo, têm risco cirúrgico Descritores: hipertensão arterial, risco cirúrgico,
semelhante ao do normotenso. Suspender ou adiar comprometimento de órgãos-alvo, variabilidade da
cirurgias, nesses casos, traz grande frustração ao pa- pressão arterial.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:311-6)
RSCESP (72594)-983

C ONSIDERAÇÕES GERAIS comum nos pacientes submetidos a cirurgia, com


prevalência variando de 28% a 36% (3, 4) . Estima-se que
A hipertensão arterial é a mais prevalente das do- 61% dos pacientes portadores de doença isquêmica
enças vasculares. Estima-se que 17% da população bra- miocárdica submetidos a cirurgias em geral sejam
sileira adulta seja hipertensa(1) e essa prevalência é ain- hipertensos (5) . A avaliação do risco cirúrgico de um
da mais elevada (cerca de 60%) na população com mais paciente hipertenso é um dos principais e mais comuns
de 65 anos de idade(2) . Por outro lado, a hipertensão motivos para solicitação de consulta pré-operatória (6) .
arterial é o principal fator de risco das doenças Se, de um lado, o aumento da expectativa de vida
cardiovasculares, como insuficiência cardíaca aumentará a prevalência da hipertensão arterial, de
congestiva, infarto agudo do miocárdio, angina do outro lado o aprimoramento dos métodos diagnósti-
peito, acidente vascular cerebral e arteriopatia perifé- cos e das técnicas cirúrgicas aumentará o número de
rica; depois do diabete, é a segunda causa de insufici- cirurgias nos paciente idosos. Esses fatos, seguramen-
ência renal na comunidade atual. Por causa dessa gran- te, deverão, no futuro próximo, fazer da hipertensão
de prevalência, a hipertensão arterial é um problema arterial o principal fator de risco das cirurgias em ge-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 311
ROCHA JC e col.
Abordagem pré-operatória do paciente hipertenso: riscos e orientações

ral. O preparo adequado do paciente hipertenso com o AVALIAÇÃO DO RISCO CIRÚRGICO


objetivo de minimizar os riscos operatórios e o cance-
lamento de cirurgias decorrentes de pressão arterial O médico clínico, internista ou cardiologista, ao
elevados são fatores comuns na clínica hospitalar (7) . ser solicitado para avaliar o risco cirúrgico de um pa-
ciente hipertenso, depara-se com dois grandes desafi-
CONSIDERAÇÕES FISIOLÓGICAS os:
1) Qual o nível da pressão arterial do paciente hi-
O paciente hipertenso desenvolve uma resposta pertenso que seu risco operatório não difere dos nor-
cardiovascular adaptativa aos períodos prolongados de motensos?
elevação da pressão arterial, como hipertrofia do 2) A redução da pressão arterial poucas horas an-
ventrículo esquerdo, que acarreta elevação da pressão tes da cirurgia diminui o risco cirúrgico?
diastólica final e déficit de relaxamento do ventrículo O clássico trabalho de Sprague, realizado em 1929
esquerdo (disfunção diastólica), redução da reserva e com inúmeras citações na literatura médica, revela
coronária, redução do fluxo renal, desvio da curva de que a mortalidade operatória do paciente hipertenso
fluxo cerebral para a direta, hipertrofia da camada antes do advento da terapêutica anti-hipertensiva era
muscular arteriolar e disfunção endotelial. de 32% (3, 5, 13) . Após a introdução da reserpina e da
Durante a anestesia, ocorrem períodos distintos de metildopa no arsenal terapêutico da hipertensão arte-
grande instabilidade hemodinâmica: rial, vários investigadores incriminaram essas drogas
1) Na indução anestésica, precisamente na como agentes causadores de hipotensão e bradicardia
laringoscopia e na intubação endotraqueal, ocorre intra-operatória e que a administração das mesmas
estimulação simpática, com elevação da freqüência deveria ser suspensa vários dias antes de uma cirurgia
cardíaca e da pressão arterial. Se em pacientes eletiva (14) . Outros, no entanto, discordavam de tal afir-
normotensos a freqüência cardíaca eleva-se entre 15 e mação, alegando que esses fatos, bradicardia e hipo-
20 batimentos por minuto (bpm) e a pressão arterial tensão, estavam mais correlacionados à perda sanguí-
sistólica até 30 mmHg, nos pacientes hipertensos não nea que à interação medicamentosa de agentes anesté-
tratados esses valores são exacerbados, podendo ele- sicos e drogas anti-hipertensivas (15,16).
var-se até 40 bpm na freqüência cardíaca e 90 mmHg Em 1971, Roberts e colaboradores (8) demonstra-
na pressão arterial sistólica(6) . Esse aumento da insta- ram que pacientes hipertensos não tratados ou trata-
bilidade hemodinâmica decorrente das alterações es- dos e não controlados, com média da pressão arterial
truturais antes descritas no paciente hipertenso pode de 211/105 mmHg, desenvolviam declínios intra-ope-
induzir o aparecimento de isquemia miocárdica, insu- ratórios da pressão arterial superiores aos dos pacien-
ficiência cardíaca congestiva, acidente vascular cere- tes normotensos ou hipertensos controlados e que eram
bral e hemorragia subaracnóidea (8-10) . mais sujeitos a ter arritmia cardíaca e alterações ele-
2) Após esse período, e com o aprofundamento do trocardiográficas sugestivas de isquemia miocárdica.
plano anestésico, a pressão arterial média cai abaixo Esses episódios ocorriam sempre que a pressão arteri-
dos níveis pré-operatórios. Esse declínio ocorre por al média caía a 50% dos valores basais pré-operatóri-
ação direta dos agentes anestésicos, inibição da ativi- os, que eram transitórios, desaparecendo quando os
dade simpática, perda dos reflexos barorreceptores re- valores da pressão arterial se estabilizavam. Verifica-
guladores da pressão arterial e perda da consciência. ram também que os pacientes hipertensos bem con-
Os pacientes hipertensos não controlados estão sujei- trolados tinham comportamento hemodinâmico intra-
tos a ter períodos de hipotensão mais acentuados e mais operatório semelhante aos dos normotensos, e que es-
prolongados que os normotensos, que podem levar a sas alterações hemodinâmicas e suas conseqüências
isquemia miocárdica, e alterações no fluxo cerebral e tinham correlação nítida com os valores da pressão
renal, que podem trazer alterações transitórias ou de- arterial, independentemente de o paciente ter sido tra-
finitivas em suas funções (3,11) . tado ou não.
3) O último período de instabilidade hemodinâmica Se o risco cirúrgico é evidente para hipertenso gra-
ocorre na recuperação anestésica, onde os 15 minutos ve, qual seria o risco do hipertenso leve, moderado ou
após a extubação e o despertar são caracterizados por estágio 1 e 2 de acordo com a classificação do III Con-
elevação na pressão arterial sistólica de 10 mmHg a senso Brasileiro de Hipertensão Arterial, ou seja, pres-
15 mmHg e de freqüência cardíaca em 10 bpm ou mais. são arterial sistólica > 140 < 180 mmHg e pressão ar-
Nos pacientes hipertensos, esses valores são também terial diastólica > 90 < 110 mmHg(1) .
exacerbados e podem levar à lesão de órgãos-alvo (12) . Dos 676 pacientes analisados por Goldman e cola-

312 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ROCHA JC e col.
Abordagem pré-operatória do paciente hipertenso: riscos e orientações

boradores (3) para avaliar o risco cirúrgico, 196 eram senciais para detectar lesão de órgãos-alvo, são de
hipertensos leves e moderados (pressão arterial dias- maior importância na avaliação do risco operatório do
tólica < 110 mmHg). Desses 196, 79 estavam adequa- paciente hipertenso que o questionável papel protetor
damente tratados, 40 inadequadamente tratados e 77 de uma droga anti-hipertensiva administrada no pré-
não estavam em tratamento. Esses autores constata- operatório. Não se pode, também, deixar de valorizar
ram que, durante a cirurgia, os três grupos de pacien- o nível de estresse e ansiedade do paciente no pré-
tes hipertensos não apresentaram alterações hemodi- operatório, fato que deve contribuir para a elevação da
nâmicas significativas que os diferenciassem dos pa- pressão arterial.
cientes normotensos. Os parâmetros analisados foram: As complicações conseqüentes às alterações da
nadir da pressão arterial sistólica no intra-operatório, auto-regulação regional da circulação e suas compli-
uso de drogas vasopressoras, administração de volu- cações conseqüentes à anestesia e ao ato cirúrgico têm
me endovenoso e incidência de hipertensão pós-ope- relação direta com o tempo da variação da pressão ar-
ratória. Não houve, também, significativa diferença de terial. Acima dos limites da auto-regulação têm-se hi-
eventos adversos entre os grupos. peremias e abaixo, isquemia. Variações da pressão ar-
Por outro lado, pacientes com antecedentes de aci- terial média maiores que 20 mmHg têm correlação
dente vascular cerebral e acidente vascular isquêmico direta com insuficiência cardíaca congestiva no pós-
transitório ou insuficiência renal caracterizada por ní- operatório de infarto agudo do miocárdio, isquemia
veis de uréia elevada tiveram nadir da pressão arterial miocárdica e insuficiência renal(19-21) ; 21% dos paci-
sistólica significativamente mais elevado que os paci- entes que apresentaram complicações cardíacas ou
entes hipertensos sem complicações. Da mesma for- renais tiveram queda da pressão arterial média de 20
ma, pacientes normotensos que tomaram diuréticos em mmHg durante mais de uma hora ou elevação da pres-
razão de alguma doença tinham índices de complica- são arterial média de 20 mmHg por mais de 15 minu-
ções intra-operatórias maiores que os pacientes hiper- tos. Variações maiores de 40 mmHg na pressão arteri-
tensos. Esses dados indicam que doenças prévias ou al média ou mais não tiveram maiores complicações
lesões de órgãos-alvo, decorrentes da hipertensão, são que as acima relacionadas.
maiores indicadores de risco que os valores da pres- Dentre os agentes anestésicos, somente o halotano
são arterial isoladamente. induziu alterações hemodinâmicas na série de Gold-
Episódios de hipertensão pós-operatórios ocorre- man(3) . Os pacientes hipertensos que usaram halotano
ram com mais freqüência nos pacientes hipertensos tiveram queda da pressão arterial sistólica mais pro-
que nos normotensos, independentemente se o paci- nunciada e estatisticamente significativa em relação
ente estivesse em tratamento ou não, e esses episódios aos outros agentes anestésicos. O decréscimo da pres-
tiveram relação muito mais direta com a história pré- são arterial sistólica foi mais evidente nos pacientes
via de hipertensão que com os valores pré-operatórios hipertensos ou com história prévia de hipertensão que
da pressão arterial. Em outro estudo, Charlson(18) e co- nos pacientes normotensos. Do ponto de vista clínico,
laboradores constataram que 20% dos pacientes que não foram observados achados significativos.
relataram ter tido pressão arterial diastólica > 120 O uso de agentes adrenérgicos e a administração
mmHg ou hospitalização por crises hipertensivas de- adequada de líquidos intra-operatórios são recursos que
senvolveram insuficiência cardíaca congestiva no pós- se pode utilizar para evitar a labilidade da pressão ar-
operatório, independentemente dos valores pré-ope- terial e alterações hemodinâmicas. Esses cuidados são
ratórios da pressão arterial. mais importantes para se evitar lesões de órgãos-alvo
Esses dados não justificam a necessidade de rigo- que o controle da pressão arterial no pré-operatório
roso controle da pressão arterial no pré-operatório imediato.
imediato. As alterações hemodinâmicas, a labilidade
perioperatória da pressão arterial e suas complicações HIPERTENSÃO PÓS- OPERATÓRIA
são inerentes às características das alterações vascula-
res do paciente hipertenso. A avaliação do risco cirúr- Hipertensão pós-operatória ocorre mais
gico do paciente hipertenso está muito mais relacio- freqüentemente em pacientes com história de hiper-
nada com os antecedentes de gravidade e complica- tensão grave no passado, independentemente dos va-
ções da hipertensão arterial que com os valores da pres- lores da pressão arterial no pré-operatório. Em muitos
são arterial obtidos nas hospitalização para cirurgia. pacientes, antecedentes de hipertensão é o único fato
Anamnese e exame clínico realizados de maneira cui- que se correlaciona com hipertensão pós-operatória.
dadosa e minuciosa, aliados a exames subsidiários es- Edema pulmonar, acidente vascular cerebral e isquemia

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 313
ROCHA JC e col.
Abordagem pré-operatória do paciente hipertenso: riscos e orientações

miocárdica são eventos que podem se correlacionar tomados nos casos de hiperaldosteronismo.
com hipertensão pós-operatória. De maneira geral, podemos concluir que se o con-
Além da hipertensão preexistente, outros fatores trole adequado da hipertensão arterial é capaz de re-
podem contribuir para a elevação da pressão arterial duzir as lesões dos órgãos-alvo (1) , é obvio que esse
no pós-operatório. Dor, talvez o fator principal, exci- conceito poderá ser aplicado em relação aos riscos ci-
tação pós-anestesia, excesso de líquido infundido no rúrgicos quando um paciente hipertenso for submeti-
intra-operatório, reação à extubação, hipotermia e tre- do a cirurgia.
mores são os mais prevalentes. A abordagem adequa- Algumas considerações, no entanto, merecem ser
da dessas variáveis poderá evitar o uso intempestivo feitas:
de drogas anti-hipertensivas. 1) A ausência de controle ideal da pressão arterial não
Não existe forte correlação entre hipertensão pós- acarreta, de maneira geral, aumento do risco cirúr-
operatória e complicações cardiovasculares. Insufici- gico.
ência cardíaca congestiva e edema agudo de pulmão 2) Pacientes com pressão arterial igual ou inferior a
podem ocorrer em pacientes com fração de ejeção bai- 160/110 mmHg, sem lesão de órgão-alvo, têm ris-
xa, nos quais a elevação da pressão arterial aliada a co cirúrgico semelhante ao normotenso.
excesso de administração de líquido intra-operatório 3) Adiar uma cirurgia por causa de hipertensão arteri-
são fatores desencadeantes. al diagnosticada incidentalmente, ou não devida-
mente controlada de acordo com os parâmetros
HIPERTENSÃO SISTÓLICA ISOLADA E acima, traz grande desconforto ao paciente e à equi-
HIPERTENSÃO SECUNDÁRIA pe médica, eleva os gastos hospitalares e não di-
minui o risco cirúrgico.
O papel da hipertensão sistólica isolada (pressão 4) Cirurgias eletivas em pacientes com pressão arteri-
arterial sistólica > 160 e pressão arterial diastólica < al superior a 180/110 mmHg devem ser adiadas,
90 mmHg) é pouco conhecido como fator de risco ci- pois há risco de complicações intra- e pós-opera-
rúrgico em cirurgia geral; ao que parece, o risco da tórias. Nesses casos, o paciente deverá ter alta hos-
hipertensão sistólica isolada é mais significativo em pitalar, pois o controle adequado da pressão arteri-
cirurgias vasculares. Pacientes que se submeteram a al pode durar semanas ou meses.
endarterectomia com pressão arterial sistólica > 200 5) Controle a curto prazo da pressão arterial em um ou
mmHg tinham 19% a mais de chance de desenvolver dois dias antes da cirurgia é desaconselhado, pois
hipertensão pós-operatória, 10% deles tiveram com- não traz benefícios adicionais.
plicações neurológicas contra somente 3,4% dos pa- 6) Se a cirurgia for realizada até dentro de 10 dias, o
cientes que não tiveram hipertensão pós-operatória (22) . esquema de terapêutica anti-hipertensiva não deve
Pacientes hipertensos em decorrência de nefropa- ser alterado, mesmo que o controle da pressão ar-
tia, a principal causa de hipertensão secundária, têm terial não seja o ideal, pois essa mudança no es-
maior probabilidade de desenvolver insuficiência re- quema terapêutico pode aumentar a instabilidade
nal no pós-operatório. Portadores de hipertensão re- da pressão arterial intra-operatória.
novascular, além de também terem maior risco de in- 7) Toda medicação anti-hipertensiva deve ser tomada
suficiência renal pós-operatória, em geral têm hiper- até o dia da cirurgia e ser reinstituída no pós-ope-
tensão arterial mais grave e, se possível, devem ser ratório o mais breve possível, no sentido de se evi-
apropriadamente diagnosticados e tratados antes de tar hipertensão pós-operatória. A via parenteral da
cirurgia eletiva. própria medicação ou de seus análogos deve ser
Portadores de feocromocitoma requerem especial utilizada caso o paciente não possa ingerir com-
atenção, pois podem apresentar grande instabilidade primidos.
da pressão arterial intra- e pós-operatória. Recomen- 8) Nas cirurgias de urgência e também nas cirurgias
da-se infusão adequada de líquido endovenoso, para eletivas, o controle das oscilações da pressão arte-
preservar o volume intravascular, e uso de antagonis- rial pelo anestesista é mais importante para se evi-
tas alfa- e beta-adrenérgicos. tar complicações que o controle da pressão arterial
Pacientes com outras formas de hipertensão secun- no pré-operatório.
dária, como síndrome de Cushing e hiperaldosteronis- 9) Se o risco cirúrgico da hipertensão arterial isolada-
mo primário, geralmente toleram bem a cirurgia e se mente não é significativo, o mesmo não se pode
comportam como pacientes hipertensos primários. dizer quando existe lesão associada de órgãos-alvo.
Cuidados especiais, como hipopotassemia, devem ser Nesse caso, o risco cirúrgico é ampliado de acordo

314 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ROCHA JC e col.
Abordagem pré-operatória do paciente hipertenso: riscos e orientações

com a severidade do envolvimento do órgão-alvo cardiologista uma atuação minuciosa e cuidadosa, na


e a magnitude do ato cirúrgico. qual todas essas variáveis devam ser analisadas e os
A avaliação do risco operatório do paciente eventuais riscos e benefícios da cirurgia sejam consi-
hipertenso requer do médico clínico, internista ou derados.

SURGICAL RISK OF THE HYPERTENSIVE PATIENTS

JOÃO CARLOS ROCHA , AUGUSTO TERRANOVA ROCHA

The surgical risk of a hypertensive patient depends on the severity of the hypertension and on the degree of
the lesions of the target organs. A blood pressure variation occurs in specific phases of the surgery. It increases
during anesthetic induction, falls as the anesthetic plan gets deeper and elevates again in the recovery period.
An increase, in mean arterial pressure, greater than 20 mmHg for at least 15 minutes or a fall of 20 mmHg for
at least one hour are predictors of peri and post operation complications. Blood pressure values during in
hospital staying do not correlate with surgical outcome.
Patients with mild to moderate hypertension (blood pressure values up to 179/109 mmHg), and no target
organ lesion, have the same surgical risk as a normotensive patient. Canceling or postponing the surgery in
those cases brings huge frustration to the patient, surgical staff, increases the hospital cost and has no effect in
diminishing the surgical risk. Blood pressure values higher than 180/110 mmHg increases surgical risk and in
those cases elective surgery should be canceled, patient discharged from hospital until appropriated blood
pressure control which could take weeks or even months. Changes in blood pressure 24 to 48 hours before
surgery do not bring additional benefits and should even be avoided. The antihypertensive therapy should not
be changed 10 days prior to surgery if possible. The variation control of the mean arterial pressure in the
perioperative period is more important in preventing surgical complications than the isolated control of immediate
preoperation blood pressure value.
Key words: hypertension, surgical risk, target organs damage, blood pressure variability.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:311-6)


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316 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ABORDAGEM PRÉ-OPERATÓRIA DO PACIENTE PORTADOR
DE DOENÇA DAS ARTÉRIAS CORONÁRIAS CLINICAMENTE ESTÁVEL
EULÓGIO EMÍLIO MA RTINEZ FILHO, FRANCISCO DE ASSIS COSTA

Serviço de Hemodinâmica — Instituto do Coração (InCor) — HC-FMUSP


Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 — CEP 05403-000 — São Paulo — SP

Portadores de doença arterial coronária apre- invasivos, assim como terapêutica específica po-
sentam maior incidência de morbidade e mortali- dem ser indicados, objetivando, principalmente, a
dade perioperatórias em cirurgias não-cardíacas. segurança do paciente e do procedimento cirúrgi-
O risco cardíaco pode ser classificado em alto, in- co, sem, contudo, perder de vista a análise de cus-
termediário ou baixo, na dependência do tipo de to-benefício.
cirurgia a ser realizado. Com base nessa estratifi- Descritores: doença arterial coronária, cirur-
cação, exames complementares, não-invasivos e gia não-cardíaca, risco cardíaco.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:317-23)
RSCESP (72594)-984

I NTRODUÇÃO determinar, com bastante segurança, alguns predito-


res clínicos de aumento do risco operatório (3-5) . O clás-
A incidência de infarto do miocárdio após cirurgia sico índice de Goldman (6) , de grande utilidade prática,
não-cardíaca varia de 2% a 17% em portadores de estabeleceu alguns escores para diversas variáveis clí-
doença arterial coronária, enquanto ocorre em apenas nicas, agrupando-as e conferindo-lhes uma pontuação,
0,1% a 0,2% entre os não-coronariopatas (1) . A morta- conforme a magnitude do parâmetro clínico conside-
lidade perioperatória também é maior nos pacientes rado.
com doença coronária. A cirurgia e a anestesia impõem Pacientes com diagnóstico de angina instável ou
sobrecarga circulatória à qual o coração doente é mais angina estável classe funcional III-IV (Canadian Car-
vulnerável que o coração normal(2) . Assim, criterioso diovascular Society), infarto do miocárdio recente (até
exame clínico, geralmente aliado a exames comple- um mês) ou com evidências de isquemia residual de-
mentares, desempenha papel fundamental no que diz vem ser apreciados para cinecoronariografia, com vis-
respeito à correta avaliação do risco cirúrgico, bem tas à avaliação de doença coronária obstrutiva e possí-
como na prevenção de eventos cardíacos, garantindo a vel revascularização miocárdica, antes da realização
segurança e o sucesso da intervenção cirúrgica. da cirurgia não-cardíaca(3-5) . Todavia, pacientes com
angina estável classe funcional I-II (Canadian) são
A IMPORTÂNCIA DA AVALIAÇÃO CLÍNICA tidos como de risco cardiovascular intermediário
(Tab. 1).
A avaliação pré-operatória do paciente portador de Portadores de doença coronária estável, classe fun-
doença coronária clinicamente estável, candidato a cional I-II, podem ser estratificados de acordo com
cirurgia não-cardíaca, deve consistir, basicamente, de sua capacidade funcional, variável normalmente esti-
anamnese, exame físico e eletrocardiograma conven- mada em equivalentes metabólicos (METs). Em tem-
cional. Alicerçando-se nas informações advindas des- po, vale a pena lembrar que um MET representa o con-
ses três elementos da propedêutica médica é possível sumo de oxigênio de 3,5 ml/kg/min, o que correspon-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 317
MARTINEZ FILHO EE e col.
Abordagem pré-operatória do paciente portador de doença das artérias coronárias clinicamente estável

Tabela 1. Preditores clínicos de aumento do risco cardiovascular perioperatório. (4, 5)

Preditores maiores
— Síndromes coronárias instáveis: infarto do miocárdio recente (até 30 dias) com evidências de
isquemia; angina instável ou angina estável classe funcional III-IV
— Insuficiência cardíaca congestiva descompensada
— Arritmias importantes: bloqueio atrioventricular de alto grau; arritmias ventriculares sintomáticas, na
presença de doença cardíaca subjacente; arritmias supraventriculares com freqüência ventricular elevada
— Doença valvar severa
Preditores intermediários
— Angina estável classe funcional I-II
— Infarto do miocárdio prévio ou presença de onda Q patológica
— Insuficiência cardíaca congestiva compensada
— Diabete melito
Preditores menores
— Idade avançada
— Anormalidades eletrocardiográficas: sinais de hipertrofia ventricular, bloqueio de ramo esquerdo,
anormalidades do segmento ST e da onda T
— Outro ritmo que não o sinusal
— Baixa capacidade funcional
— História de acidente vascular cerebral
— Hipertensão arterial sistêmica descontrolada

de ao consumo de um indivíduo de 70 kg em repouso EXAMES NÃO-INVASIVOS


e em decúbito supino. Na Tabela 2 estão listadas algu-
mas das atividades do dia-a-dia e o correspondente Vários estudos têm sugerido que a capacidade fun-
consumo de oxigênio em METs (4,5) . cional ao exercício é um importante fator preditor de
De acordo com a estratificação de risco cardíaco, resultados perioperatórios(7) . McPhail e colaboradores(8)
as cirurgias não-cardíacas são classificadas em inter- demonstraram que, entre pacientes submetidos a ci-
venções de alto, intermediário e baixo risco, consoan- rurgias vasculares de alto risco, aqueles que consegui-
te a probabilidade de ocorrência de morte e infarto do ram atingir o limite submáximo da freqüência cardía-
miocárdio não-fatal (Tab. 3). Com efeito, a incidência ca, isto é, 85% do valor máximo previsto, exibiram
desses eventos mostra-se superior a 5% para os proce- menor morbidade cardíaca operatória, quando com-
dimentos reputados como de alto risco, entre 1% e 5% parados àqueles que não alcançaram tal limite. Estri-
para os de risco intermediário e inferior a 1% para tamente sob o ponto de vista da doença coronária cli-
aqueles de baixo risco(4,5) . nicamente estável, dos exames não-invasivos para a
A capacidade funcional de um indivíduo tem sido estratificação de risco cardíaco fazem parte teste
classificada como excelente, se maior que 7 METs; ergométrico, exame de perfusão miocárdica (tálio ou
moderada, entre 4 e 7 METs; e pobre, quando abaixo sestamibi) com estresse físico ou farmacológico,
de 4 METs. Uma pobre capacidade funcional tem-se ecocardiografia de estresse com dobutamina e
revelado preditor de risco para cirurgia não-cardíaca. eletrocardiografia de longa duração (Holter).
Pacientes com risco operatório intermediário e pobre
capacidade funcional devem ser submetidos a outros Teste ergométrico
exames não-invasivos para a estratificação de risco Como se sabe, a sensibilidade média do teste ergo-
cardíaco. Aqueles com risco intermediário e com mo- métrico para detectar doença coronária obstrutiva gira
derada ou excelente capacidade funcional, se candi- em torno de 66%, com especificidade média de 84%.
datos a procedimentos de alto risco, também devem Nos casos de portadores de doença arterial coronária
ser levados à realização de testes para estratificar ris- triarterial, a sensibilidade média chega a quase 90% (9) .
co. Esses testes são desnecessários para pacientes com O teste ergométrico também apresenta boa acurácia
capacidade funcional moderada, se o procedimento para a avaliação da capacidade funcional. A presença
cirúrgico for de baixo risco(3-5) . de sinais de isquemia miocárdica induzida por baixos

318 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
MARTINEZ FILHO EE e col.
Abordagem pré-operatória do paciente portador de doença das artérias coronárias clinicamente estável

Tabela 2. Algumas atividades do dia-a-dia, de acordo com seu consumo de oxigênio, em equivalentes metabó-
licos (METs). (4, 5)

Consumo de oxigênio em
equivalentes metabólicos Atividades do dia-a-dia

1 MET Comer, vestir-se, usar o banheiro


Caminhar dentro de casa
Caminhar a 3,2-4,8 km/h
Executar tarefas simples, como lavar louça
4 METs Subir escadas
Caminhar a 6,4 km/h
Correr pequenas distâncias
Limpar assoalhos ou móveis
Moderadas atividades recreativas: dançar, jogar tênis em dupla
> 10 METs Participar de esportes extenuantes: natação, tênis (individual), basquete

níveis de exercício físico (< 4 METs ou freqüência 1%, em seguimento clínico de quatro anos. Pacientes
cardíaca < 100 batimentos por minuto) identifica um acometidos de problemas neurológicos, ortopédicos e
grupo de alto risco no que se refere ao desenvolvi- vasculares periféricos, portanto sem condições físicas
mento de eventos cardíacos no intra-operatório. Por adequadas para o exercício, podem se beneficiar de
outro lado, isquemia miocárdica induzida por níveis exames de imagem, sob a utilização de estresse far-
maiores de exercício físico (> 7 METs ou freqüência macológico com adenosina e, principalmente, com
cardíaca > 130 batimentos por minuto) evidencia um dipiridamol, ecocardiografia com dobutamina ou ele-
grupo de baixo risco operatório para eventos cardía- trocardiograma de longa duração (Holter).
cos (10) . Conforme demonstrado no estudo CASS(11) , os
pacientes que exibiram sinais de isquemia miocárdica Testes de perfusão miocárdica com estresse
com menos de três minutos de exercício (protocolo de farmacológico
Bruce) tiveram mortalidade acima de 5%, enquanto Em nosso meio, o dipiridamol é o fármaco mais
aqueles capazes de completar até nove minutos de es- comumente usado para promover estresse farmacoló-
forço físico apresentaram mortalidade anual inferior a gico nos exames cintilográficos de perfusão com tálio

Tabela 3. Estratificação de risco cardíaco (morte e infarto do miocárdio não-fatal) para cirurgia não-cardíaca. (4,5)

Alto risco (risco cardíaco superior a 5%)


— Grandes cirurgias de emergência, sobretudo em idosos
— Cirurgias da aorta e outras cirurgias vasculares maiores
— Cirurgia arterial periférica
— Procedimentos cirúrgicos prolongados, associados a grandes perdas de sangue e/ou fluidos
Risco intermediário (risco cardíaco entre 1% e 5%)
— Endarterectomia de carótida
— Cirurgias intra-abdominais e torácicas
— Cirurgias de cabeça e pescoço
— Cirurgias ortopédicas
— Cirurgias de próstata
Baixo risco (risco cardíaco inferior a 1%)
— Procedimentos endoscópicos
— Procedimentos superficiais
— Remoção de catarata
— Cirurgia de mama

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MARTINEZ FILHO EE e col.
Abordagem pré-operatória do paciente portador de doença das artérias coronárias clinicamente estável

ou sestamibi. À parte algumas diferenças de ordem grama de longa duração, em pacientes de alto risco
físico-químicas, os dois radiotraçadores são muito efi- operatório para eventos cardíacos. Porém, uma varia-
cientes na avaliação da perfusão miocárdica. O dipiri- da gama de alterações eletrocardiográficas interfere
damol age provocando dilatação em artérias não lesa- na análise dos resultados do método e prejudica seu
das, por isso aumentando seu fluxo, ao mesmo tempo uso habitual na avaliação de risco pré-operatório (3) . No
em que piora a perfusão de zonas já mal irrigadas (fe- entanto, o método pode identificar acima de 90% de
nômeno do “roubo de fluxo”). Vários foram os estu- pacientes com alto risco para complicações isquêmi-
dos levados a efeito com o fito de correlacionar com- cas. Aqueles com isquemia assintomática, detectada
plicações perioperatórias com alterações observadas no pré- ou no pós-operatório, exibiram percentual em
na cintilografia com dipiridamol. Boucher e colabora- torno de 30% de risco de desenvolver eventos clíni-
dores (12) constataram haver relação entre defeitos de cos, como infarto do miocárdio, angina instável, con-
redistribuição com tálio e eventos isquêmicos graves gestão pulmonar e morte(16) .
no intra-operatório (angina instável, infarto agudo do
miocárdio e óbito). Tais eventos ocorreram em 50% dos AVALIAÇÃO INVASIVA
doentes submetidos a cirurgia por doença vascular peri-
férica e que apresentaram alterações de perfusão mio- As indicações de cinecoronariografia na avaliação
cárdica à cintilografia de tálio com dipiridamol. pré-operatória de cirurgia não-cardíaca seguem os
Para Leppo e colaboradores (13) , os defeitos de per- mesmos critérios gerais de indicação do exame (17) . A
fusão foram considerados fatores preditores de com- cinecoronariografia deve ser indicada para pacientes
plicações graves, com elevada sensibilidade (93%), de alto risco, particularmente para aqueles com sus-
mas com baixa especificidade (62%). O valor prediti- peita de lesão de tronco da coronária esquerda, doen-
vo positivo, ou seja, a probabilidade de que um teste ça coronária triarterial, em pacientes com síndromes
anormal esteja associado a tais complicações, foi de coronárias instáveis ou com severa angina estável (clas-
33%. Em pacientes com alterações reversíveis de per- se funcional III-IV), grupo em que um procedimento
fusão, localizadas em um só território, há menor pro- de revascularização miocárdica, percutânea ou cirúr-
babilidade de surgirem complicações perioperatórias gica, muito provavelmente modificaria a história na-
que naqueles cujos defeitos estendem-se por várias tural da doença coronária. Por outro lado, em um estu-
regiões. Contudo, a baixa especificidade da cintilogra- do demonstrou-se que a cinecoronariografia de rotina
fia com dipiridamol limita sua indicação rotineira, na precedendo cirurgias vasculares revelou que 59% dos
prática clínica(14) . doentes com suspeita de doença arterial coronária apre-
sentavam doença coronária obstrutiva multiarterial, ou
Ecocardiografia com dobutamina mesmo lesões inoperáveis. Em contrapartida, doença
A experiência com a ecocardiografia de estresse arterial coronária grave difusa foi encontrada em 23%
com dobutamina é menor que a já adquirida com o dos pacientes sem história de cardiopatia isquêmica(18) .
exame cintilográfico na avaliação pré-operatória de Outros estudos confirmaram que a presença de doen-
risco cirúrgico. Alguns estudos, no entanto, atestaram ça coronária, evidenciada pela cinecoronariografia,
a utilidade do método para essa finalidade. Um exame afeta negativamente o prognóstico de cirurgias envol-
normal, definido por ausência de anormalidades da vendo a aorta abdominal. Uma vez que se trata de do-
contração segmentar, apresenta valor preditivo nega- ença muito prevalente entre pacientes com arteriopa-
tivo de 93% a 100%. Já a detecção de anormalidades tia periférica, vários autores advogam a realização de
da contração tem valor preditivo positivo para com- cinecoronariografia antes de cirurgias vasculares mai-
plicações perioperatórias que varia de 7% a 30%, ci- ores (19-21) .
fras que se assemelham àquelas encontradas na cinti-
lografia de perfusão com tálio(15) . Portanto, a ecocar- T ERAPÊUTICA PRÉ -OPERATÓRIA
diografia de estresse com dobutamina parece ser no
mínimo tão eficaz quanto a cintilografia de tálio com Pacientes previamente submetidos a revasculari-
dipiridamol, como preditor de complicações periope- zação miocárdica bem-sucedida exibem baixa morta-
ratórias. lidade perioperatória, que não é diferente daquela ve-
rificada em pacientes sem doença coronária. Uma re-
Eletrocardiografia de longa duração (Holter) visão entre 1.600 pacientes do estudo CASS (11) , sub-
Isquemia espontânea, manifestada por depressão metidos a cirurgia não-cardíaca de alto risco, demons-
do segmento ST, pode ser detectada pelo eletrocardio- trou mortalidade de 2,4% em pacientes com doença

320 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
MARTINEZ FILHO EE e col.
Abordagem pré-operatória do paciente portador de doença das artérias coronárias clinicamente estável

arterial coronária significativa e sem revascularização placebo em pacientes com vários fatores de risco para
miocárdica prévia, bem superior à mortalidade entre doença arterial coronária, submetidos a cirurgia não-
pacientes sem doença arterial coronária (0,5%) ou com cardíaca. O tratamento com atenolol foi iniciado des-
revascularização miocárdica prévia (0,9%). Uma vez de a internação até a alta hospitalar. Os autores obser-
que o risco da própria revascularização miocárdica varam redução de 15% na ocorrência de infarto do
normalmente excede o risco da cirurgia não-cardíaca, miocárdio, angina instável, insuficiência cardíaca con-
o procedimento de revascularização miocárdica rara- gestiva requerendo internação e morte em seis meses
mente está justificado, precedendo cirurgias não-car- e até dois anos de seguimento clínico. Esses achados
díacas de baixo risco(3) . são consistentes com estudos prévios que apontaram
Com relação à revascularização miocárdica percu- os benefícios do uso dos betabloqueadores no perio-
tânea por angioplastia transluminal coronária, Huber peratório de cirurgias não-cardíacas em pacientes de
e colaboradores(22) estudaram pacientes, em sua maio- alto risco, sobretudo os portadores de doença arterial
ria portadores de angina estável classe funcional III- coronária. É importante realçar que esses pacientes não
IV (Canadian) ou angina instável, todos com testes devem interromper o uso da medicação durante a in-
funcionais positivos e submetidos a angioplastia trans- ternação para a cirurgia. Além dos betabloqueadores,
luminal coronária antes da cirurgia não-cardíaca, ten- o uso de nitratos pode também reduzir a incidência de
do esta sido realizada em média nove dias após a angi- eventos isquêmicos no perioperatório de cirurgias não-
oplastia transluminal coronária bem-sucedida. Os au- cardíacas (25) . Cabe ainda ressaltar que os nitratos (su-
tores observaram taxa de infarto agudo do miocárdio blingual, endovenoso ou tópico) e a nifedipina sublin-
perioperatório de 5,6% e mortalidade de 1,9%, con- gual podem ser usados no pós-operatório imediato de
cluindo que, em pacientes submetidos a angioplastia pacientes com angina. Entretanto, nenhum deles subs-
transluminal coronária com sucesso por severa doen- titui os betabloqueadores nos casos em que esses agen-
ça coronária, o risco de complicações maiores associ- tes já se haviam mostrado efetivos no controle da do-
adas à cirurgia não-cardíaca é baixo. Em outro estudo, ença isquêmica miocárdica(26) .
Gottlieb e colaboradores (23) demonstraram diminuição
de morbidade perioperatória em cirurgias vasculares CONCLUSÃO
de alto risco, entre pacientes com doença arterial co-
ronária e submetidos a angioplastia transluminal co- Todos os pacientes coronariopatas candidatos a
ronária antes da intervenção operatória. cirurgia não-cardíaca devem ser cuidadosamente ava-
No que tange ao tratamento medicamentoso, não liados clinicamente. Aqueles identificados como de alto
há dúvidas de que o estresse cirúrgico acarreta aumento risco necessitam de rigoroso controle clínico e o uso
das catecolaminas circulantes, fato que pode gerar de betabloqueador pode ser imperativo. O procedimen-
conseqüências cardíacas adversas, como arritmias e to eletivo deve ser suspenso, caso o paciente não reú-
maior predisposição à rotura de placa aterosclerótica. na condições clínicas satisfatórias para enfrentar a in-
Baseando-se nessas evidências, tem-se proposto o uso tervenção cirúrgica(27) . Já para aqueles clinicamente
de betabloqueadores no perioperatório de cirurgias estáveis (a maioria em classe funcional I-II), assim
não-cardíacas em pacientes portadores de doença co- considerados como de risco intermediário, testes fun-
ronária obstrutiva, salvo as contra-indicações de pra- cionais não-invasivos são recomendáveis. Pacientes
xe. Alguns estudos observacionais e pequenos ensaios candidatos a cirurgias vasculares de grande porte cons-
randomizados sugerem que a administração de tais tituem um grupo especial, para o qual a cinecoronari-
agentes diminui a incidência de isquemia e infarto do ografia deve ser indicada, a menos que os métodos
miocárdio perioperatório. Em estudo randomizado, não-invasivos sugiram muito baixa probabilidade de
Mangano e colaboradores (24) utilizaram atenolol ou doença coronária concomitante.

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MARTINEZ FILHO EE e col.
Abordagem pré-operatória do paciente portador de doença das artérias coronárias clinicamente estável

PREOPERATIVE ASSESSMENT OF PATIENTS WITH STABLE CORONARY ARTERY DISEASE

EULÓGIO EMÍLIO MARTINEZ FILHO, FRANCISCO DE ASSIS COSTA

Patients with coronary artery disease are at increased risk of perioperative cardiac morbidity and mortality.
Therefore, clinical assessment is essential for cardiac risk stratification. Cardiac risk is determined by clinical
profile, results of exercise tests or other noninvasive methods for identification of myocardial ischemia, and type
of noncardiac surgery. Indications for preoperative invasive investigation are based on the combined analysis
of the above mentioned risk determinants. Preoperative revascularization, if necessary, is associated with
reduction in perioperative cardiac morbidity and mortality.
Key words: coronary artery disease, noncardiac surgery, cardiac risk.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:317-23)


RSCESP (72594)-984

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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 323
ABORDAGEM PRÉ -OPERATÓRIA DO PACIENTE COM SÍNDROME
ISQUÊMICA AGUDA RECENTE

JOSÉ CARLOS NICOLAU, LILIA NIGRO MAIA , OSANA MARIA C. COSTA

Instituto do Coração (InCor) — HC-FMUSP


Hospital de Base — FAMERP
Endereço para correspondência: Rua Aureliano Coutinho, 355 — 14 o andar — CEP 01224-020 — São Paulo — SP

Na década de 70, surgiram estudos que identifica- instável ou refratária, ou quando houver necessidade
ram a angina instável ou infarto do miocárdio recente de cirurgia não-cardíaca urgente.
como os preditores mais importante de resultados ad- Não existem estudos randomizados ou controla-
versos em pacientes submetidos a cirurgia não-cardí- dos que estabeleçam a validade de se realizar proce-
aca ou procedimentos vasculares maiores. dimento de revascularização miocárdica profilatica-
Foi relatado risco de 30% a 37% de reinfarto ou mente para diminuir o risco de cirurgia não-cardía-
morte cardíaca quando os pacientes eram operados ca. Entretanto, algumas séries têm demonstrado que
dentro de três meses após síndrome isquêmica aguda, os pacientes com cirurgia de revascularização prévia
de 11% a 16% entre três e seis meses, e de 4% a 5% ou angioplastia transluminal coronária bem-sucedi-
após seis meses. Estudos mais recentes descreveram das têm taxas de mortalidade comparáveis às de pa-
significativa redução nessa taxa de riscos decorrente cientes sem doença arterial coronária.
dos avanços nas técnicas operatórias e anestésicas. As indicações para cirurgia de revascularização
Os testes não-invasivos em pacientes com angina miocárdica ou angioplastia transluminal coronária
instável ou infarto agudo do miocárdio recente têm se (com ou sem stent) para o subgrupo de pacientes com
mostrado úteis na estratificação do risco pré-opera- síndrome isquêmica aguda recente são iguais às reco-
tório e têm demonstrado que a isquemia induzível é mendadas para portadores de doença arterial
um significativo preditor de eventos perioperatórios. coronária em geral.
A angiografia coronária pré-operatória está Descritores: angina instável, infarto do mocárdio,
indicada nos casos estratificados como risco alto ou doença arterial coronária, cirurgia não-cardíaca, ava-
intermediário pelos testes não-invasivos, na angina liação pré- e perioperatória cardiovascular.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:324-33)
RSCESP (72594)-985

As complicações cardiovasculares continuam a ser tos a cirurgia não-cardíaca ou vascular identificaram


uma importante causa de morbidade e de mortalidade as síndromes isquêmicas agudas (angina instável ou
em pacientes submetidos a cirurgias não-cardíacas ou infarto agudo do miocárdio) recentes como o fator in-
vasculares. Dentre todas as cardiopatias, a doença ar- dividual mais importante de risco de infarto agudo do
terial coronária constitui o maior preditor de eventos miocárdio/reinfarto ou morte cardíaca(3-11) . Nenhuma
cardíacos adversos perioperatórios (1-3) . dessas séries tinha dados suficientes para mostrar re-
sultados definitivos, mas algumas delas relataram ris-
CIRURGIA NÃO- CARDÍACA E co de 30% a 37% de infarto agudo do miocárdio/rein-
RISCO CARDIOVASCULAR farto ou morte cardíaca quando os pacientes eram ope-
rados nos primeiros três meses após episódio de sín-
Na década de 70, estudos que avaliaram candida- drome isquêmica aguda, 11% a 16% quando operados

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NICOLAU JC e cols.
Abordagem pré-operatória do paciente com síndrome isquêmica aguda recente

entre três e seis meses, e 4%a 5% após seis meses(3-8) . nal e, dessa maneira, estabelecer o risco cardíaco peri-
Já a partir da década de 80, outros autores relata- operatório.
ram taxas de risco menores que aquelas referidas pe-
los estudos iniciais (12-14) . Os melhores resultados des- Exames não-invasivos
sas publicações provavelmente estão relacionados a Teste de esforço
avanços nas técnicas operatórias e anestésicas, melhor Diversos autores (20-24) avaliaram o papel desse mé-
seleção de pacientes e melhor manejo das intercorrên- todo na determinação de eventos cardíacos periopera-
cias cardíacas e não-cardíacas(15) . tórios em pacientes submetidos a cirurgia não-cardía-
Rao e colaboradores (13) , estudando um grupo de ca ou vascular, mas em muitas séries os casos com
pacientes submetidos a cirurgia não-cardíaca após in- angina instável ou infarto recente foram excluídos.
farto agudo do miocárdio recente, encontraram taxa Nesses estudos, o risco de eventos cardíacos sub-
de reinfarto de 5,7% nos primeiros três meses pós- seqüentes foi significativamente menor nos pacientes
infarto agudo do miocárdio e de 2,3% entre quatro e que suportaram maiores cargas(22,23), sendo observada
seismeses. ainda correlação positiva entre o risco e o grau de in-
Por outro lado, utilizando-se testes não-invasivos fradesnível do segmento ST(24) .
na estratificação de risco de pacientes com síndrome Testes de estresse farmacológico
isquêmica aguda há menos de seis meses, demonstrou- Em pacientes incapazes de realizar esforço físico,
se que a isquemia induzível é um importante preditor ou ainda nas fases mais precoces das síndromes
de eventos cardíacos no período perioperatório(16-19) . isquêmicas agudas, pode-se realizar cintilografia
Séries utilizando cintilografia miocárdica demonstra- miocárdica ou ecocardiograma associados a estresse
ram que o grau de risco de eventos cardíacos correla- farmacológico. Nessa situação, obviamente, somente
cionou-se com a extensão do defeito(17) , sendo obser- a presença ou a ausência de isquemia e viabilidade
vado que a redistribuição do tálio foi um significativo miocárdica podem ser detectadas, não sendo possível
fator de risco para eventos cardíacos perioperatórios, a avaliação da capacidade física do paciente. Entre-
ao contrário da presença de defeitos fixos (18) . Por ou- tanto, pode-se avaliar a função ventricular esquerda,
tro lado, Raby e colaboradores (19) , utilizando monito- que se correlaciona com o desempenho do paciente na
rização eletrocardiográfica ambulatorial (Holter), de- ergometria e se constitui em importante preditor de
monstraram que eventos cardíacos perioperatórios fo- eventos futuros.
ram significativamente mais freqüentes no grupo com Cintilografia miocárdica com dipiridamol
isquemia. Publicações recentes têm demonstrado o valor pre-
Esses dados demonstram que a presença de isque- ditivo positivo desse método em populações não-sele-
mia miocárdica em pacientes com doença arterial co- cionadas (25, 26) , variando entre 4% e 20%. O valor pre-
ronária seleciona uma população de maior risco para ditivo negativo para um exame normal permanece alto
eventos cardíacos, quando submetidos a cirurgia não- (aproximadamente 99%) para infarto do miocárdio ou
cardíaca. morte cardíaca(27-29) .
Outro importante preditor de eventos, além da is- Ecocardiograma de estresse com dobutamina
quemia, em pacientes com síndrome isquêmica aguda Estudos que utilizaram esse teste na avaliação pré-
recente, é a baixa capacidade funcional detectada na operatória de pacientes candidatos a cirurgia não-car-
ergometria. A presença dessa complicação aumenta de díaca(30, 31) encontraram valor preditivo positivo entre
forma significativa o risco de complicações cardíacas 23% e 50%, e valor preditivo negativo entre 93% e
subseqüentes, estando freqüentemente relacionada a 100%. Além disso, demonstra-se que o grau de anor-
pior desempenho ventricular esquerdo por conta de malidade e/ou mudanças na movimentação da parede
infartos mais extensos. (20,21) acometida, com menores doses de dobutamina, é um
poderoso determinante de risco aumentado para even-
AVALIAÇÃO PRÉ-OPERATÓRIA DE PACIENTES tos cardíacos perioperatórios (30,31).
COM SÍNDROME ISQUÊMICA AGUDA RECENTE Monitorização eletrocardiográfica ambulatorial
(Holter)
Com base no anteriormente exposto, o objetivo Esse método identificou mais de 90% dos pacien-
básico da avaliação pré-operatória em pacientes com tes que desenvolveram complicações agudas periope-
síndrome isquêmica aguda recente, candidatos a pro- ratórias (19) . Entretanto, esse exame apresenta diversas
cedimento não-cardíaco, é o de identificar a presença limitações, entre elas a impossibilidade de seu uso em
de isquemia miocárdica, avaliar a capacidade funcio- pacientes que apresentam alterações no eletrocardio-

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NICOLAU JC e cols.
Abordagem pré-operatória do paciente com síndrome isquêmica aguda recente

grama de repouso(21) . Em resumo, o papel do Holter na ava- Em conclusão, as indicações de cirurgia de revas-
liação pré-operatória permanece não estabelecido, não exis- cularização miocárdica ou angioplastia transluminal
tindo dados definitivos que permitam recomendação roti- coronária para esse subgrupo de pacientes são essen-
neira do mesmo nas situações ora em discussão. cialmente iguais àquelas recomendadas para todos os
pacientes portadores de doença arterial coronária (39,40),
Exames invasivos — angiografia coronária e o pacientes, sempre que possível, deve ser encami-
Apesar de não haver unanimidade sobre o assunto, nhado à cirurgia não-cardíaca com ausência de isque-
alguns autores defendem a realização da angiografia mia miocárdica evidente. Isso implica dizer que, se
coronária como teste de “screening” a ser realizado de houver indicação independente para cirurgia não-cardí-
rotina em pacientes que vão ser submetidos a cirurgia aca e procedimento de revascularização miocárdica, este
vascular, por conta da alta prevalência de doença arte- último deve ser realizado antes da cirurgia não-cardíaca,
rial coronária nessa população (32, 33) . Entretanto, as Di- na dependência da urgência da cirurgia não-cardíaca e
retrizes das sociedades norte-americanas de Cardiolo- da estabilidade da doença arterial coronária(21) .
gia sobre o assunto indicam a angiografia coronária
pré-operatória apenas nos casos estratificados como ESTRATÉGIA PARA AVALIAÇÃO CARDÍACA
de risco alto ou intermediário pelos testes não-invasi- PRÉ- OPERATÓRIA DE CIRURGIA NÃO-CARDÍACA
vos, na angina instável ou refratária, ou quando hou-
ver necessidade de cirurgia não-cardíaca urgente(34) . A Figura 1 resume a estratégia proposta pelas so-
ciedades norte-americanas de Cardiologia para a ava-
PROCEDIMENTOS DE REVASCULARIZAÇÃO liação cardíaca pré-operatória de cirurgia não-cardía-
MIOCÁRDICA ANTES DE CIRURGIA ca. Como se nota, pacientes com síndromes coronári-
NÃO-CARDÍACA as agudas recentes (infarto do miocárdio e angina ins-
tável) são considerados de alto risco e, portanto, sem-
Não existem estudos randomizados ou controla- pre que possível, devem ser avaliados de forma inten-
dos que estabeleçam a validade de se realizar cirurgia siva antes da liberação da cirurgia não-cardíaca.
de revascularização miocárdica ou angioplastia trans-
luminal coronária profilaticamente para diminuir o ris- Tipo de procedimento cirúrgico
co de cirurgia não-cardíaca. Entretanto, séries retros- O primeiro passo nessa avaliação é classificar o
pectivas não controladas têm demonstrado que paci- tipo de cirurgia como de risco cardíaco alto, interme-
entes com cirurgia de revascularização prévia bem- diário ou baixo(41) . Os procedimentos geralmente con-
sucedida têm taxas de mortalidade comparáveis à de siderados de alto risco, definido como risco cardíaco
pacientes sem doença arterial coronária estabelecida, > 5%, são: cirurgias de emergência (principalmente
quando submetidos a procedimentos cirúrgicos não- em idosos), cirurgia aórtica e outras cirurgias vascula-
cardíacos(35, 36) . res maiores, cirurgia vascular periférica e procedimen-
O maior desses estudos analisou, a partir do banco tos nos quais se antecipam tempos cirúrgicos longos,
de dados do estudo CASS (“Coronary Artery Surgery associados com troca de grande quantidade de fluidos
Study”)(35) , 1.600 pacientes submetidos a cirurgia não- e/ou perda sanguínea. Procedimentos de risco inter-
cardíaca. Nessa amostra, encontraram taxas de morta- mediário, definido como risco cardíaco entre 1% e 5%,
lidade perioperatória de 0,5% nos indivíduos sem evi- incluem cirurgias intraperitoneais ou torácicas, endar-
dência angiográfica de doença arterial coronária, 0,9% terectomia carotídea, e cirurgias de cabeça e pescoço,
nos pacientes submetidos a cirurgia de revasculariza- ortopédica e prostática. Procedimentos de baixo risco,
ção miocárdica prévia ao procedimento não-cardíaco, definido como risco cardíaco < 1%, incluem endosco-
e 2,4% nos pacientes com doença arterial coronária pia e procedimentos superficiais, e cirurgia de catara-
significativa angiograficamente, mas não submetidos ta e de mama. Importante recordar que um achado de
a cirurgia de revascularização miocárdica prévia. risco cardíaco aumentado não deve, necessariamente,
Publicações têm demonstrado, em análises retros- levar à recomendação de angiografia coronária e re-
pectivas, a baixa incidência de complicações cardio- vascularização(21, 41).
vasculares em pacientes submetidos a angioplastia
transluminal coronária previamente à cirurgia não-car- História clínica (índices de risco)
díaca. Entretanto, o pequeno número de pacientes in- Após considerar o tipo de procedimento cirúrgico,
cluídos e a análise retrospectiva tornam difícil uma assim como o risco cardíaco inerente a tal procedi-
conclusão definitiva sobre o assunto(37,38). mento e a provável prevalência de doença coronária,

326 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
NICOLAU JC e cols.
Abordagem pré-operatória do paciente com síndrome isquêmica aguda recente

deve-se avaliar a história cardíaca do paciente(41) . A tos invasivos (cirurgia ou angioplastia), antes da libe-
avaliação clínica básica obtida pela história, pelo exa- ração da cirurgia não-cardíaca.
me físico e pela revisão do eletrocardiograma, geral- Em resumo, quando se analisam, em conjunto, as
mente, proporciona ao clínico dados suficientes para informações obtidas pela história cardíaca e o tipo de
estimar o risco cardíaco. procedimento cirúrgico a ser realizado, é importante
Os preditores clínicos podem ser divididos em perceber que história verdadeiramente negativa seria
maiores, intermediários e menores. Os maiores, quan- a ausência de qualquer fator de risco. Quando acresci-
do presentes, podem resultar em atraso ou cancela- da a procedimento de baixo risco, a história de risco
mento da cirurgia não-cardíaca, e são os seguintes: cardíaco negativo pode então ser avaliada contra ou-
presença de infarto do miocárdio recente (três a seis tros fatores, como a capacidade funcional. Ao contrá-
meses); evidência objetiva de descompensação cardí- rio, pacientes que têm história cardíaca positiva (um
aca; presença de angina classe 3-4 segundo a classifi- ou mais fatores clínicos de risco) ou não têm história
cação canadense; presença de arritmias significativas clínica disponível, e vão ser submetidos a procedimento
(bloqueio atrioventricular avançado, arritmias sinto- de maior risco, devem ser encaminhados para avalia-
máticas na presença de doença cardíaca de base, arrit- ções adicionais(41) .
mias supraventriculares com freqüência ventricular
não-controlada); e doença valvar grave. Os preditores Capacidade funcional
intermediários, quando presentes, justificam cuidado- O próximo nível de interação refere-se à avaliação
sa avaliação do estado atual do paciente, e são os se- objetiva da capacidade funcional. Basicamente, fato-
guintes: angina do peito leve, infarto do miocárdio res de risco cardíaco obtidos pela história também de-
prévio não recente, insuficiência cardíaca prévia com- vem ser avaliados em relação à capacidade total de
pensada e diabete melito. Os preditores menores de exercício do paciente(41) . Essa medida é expressa em
risco são marcadores de doença cardiovascular que não níveis de equivalentes metabólicos (MET). Múltiplos
proporcionam, de forma independente, risco periope- do valor basal do MET podem ser usados para expres-
ratório aumentado, e são os seguintes: idade avança- sar a demanda aeróbica para atividades específicas. O
da, eletrocardiograma anormal, ritmo não-sinusal risco cardíaco perioperatório e a longo prazo é aumen-
(como, por exemplo, fibrilação atrial), capacidade fun- tado em pacientes incapazes de atingir demanda de,
cional baixa, história de acidente vascular encefálico pelo menos, 4 METs durante a maioria das atividades
e hipertensão sistêmica não-controlada (21,41). diárias normais. O “Duke Activity Status Index” e
História de infarto agudo do miocárdio nos últi- outras escalas de atividade fornecem ao clínico um
mos três a seis meses, de maneira geral, constitui-se conjunto de questões para determinar a capacidade
em fator de risco importante para eventos cardíacos funcional do paciente. Gasto de energia para ativida-
perioperatórios. Admite-se, hoje, que a presença de des como comer, vestir-se, andar dentro de casa e la-
miocárdio isquêmico e a disfunção ventricular esquerda var pratos pode alcançar de 1 a 4 METs. Subir um
sejam os mediadores desse risco aumentado. A pes- lance de escadas, andar no térreo a 6,4 km/h, correr
quisa dessas alterações, que deve ser realizada preco- curta distância, esfregar o chão ou jogar golfe variam
cemente no pós-infarto do miocárdio, é a chave para a entre 4 e 10 METs. Esportes enérgicos, como nadar,
avaliação de risco futuro. Se um teste de estresse re- jogar tênis e futebol, excedem 10 METs (21) .
cente não indica miocárdio residual em risco, a proba- O propósito da adição da capacidade funcional ao
bilidade de reinfarto após cirurgia não-cardíaca é bai- tipo de cirurgia e história cardíaca é ajudar a determi-
xa(41) . Embora não haja estudos clínicos adequados para nar o paciente que requer teste adicional para avalia-
confirmar tais recomendações, parece razoável que se ção do risco cardíaco. É importante salientar que paci-
espere a cicatrização do infarto agudo do miocárdio entes com risco cardíaco baixo e história negativa, que
(quatro a seis semanas) para a realização de cirurgias têm capacidade funcional pobre, também podem re-
não-cardíacas eletivas, sempre após adequada avalia- querer testes adicionais. No caso específico em dis-
ção do risco do paciente, por meio de testes específi- cussão, de síndromes isquêmicas agudas recentes, to-
cos (21) , que vão permitir a liberação do procedimento dos os pacientes, sempre que possível, devem ser es-
em prazo substancialmente menor, em relação aos seis tratificados e deve ser corrigida a eventual presença
meses anteriormente preconizados (41) . Da mesma for- de isquemia, antes de serem liberados para o procedi-
ma, pacientes com quadro de angina instável devem, mento não-cardíaco(41) , como se nota na Figura 1.
sempre que possível, ter seu quadro isquêmico rever-
tido, freqüentemente com a utilização de procedimen- continua na página 330

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NICOLAU JC e cols.
Abordagem pré-operatória do paciente com síndrome isquêmica aguda recente

Figura 1. Passos para a estratégia de avaliação cardíaca pré-operatória.† Cuidados subseqüentes podem incluir

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Abordagem pré-operatória do paciente com síndrome isquêmica aguda recente

cancelamento ou atraso da cirurgia, revascularização coronária seguida por cirurgia não-cardíaca ou cuidados intensificados.

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Abordagem pré-operatória do paciente com síndrome isquêmica aguda recente

RECOMENDAÇÕES : QUAIS TESTES? fase de retirada de preparações com teofilinas. Dobu-


tamina não deve ser usada como provocadora de es-
Teste de esforço para isquemia miocárdica e ca- tresse em pacientes com arritmias sérias ou hipoten-
pacidade funcional são/hipertensão graves (21) .
É o tipo de procedimento que apresenta a maior
soma de experiências e praticabilidade na rotina de Monitorização eletrocardiográfica ambulatorial
testes de estresse cardíacos (41) . Capacidade funcional (Holter)
diminuída em pacientes com doença arterial coroná- O uso desse método como teste pré-operatório
ria crônica, ou naqueles convalescendo após evento deve-se restringir à identificação de pacientes para os
cardíaco agudo, está associada a risco aumentado de quais vigilância adicional ou intervenção médica po-
morbidade e mortalidade cardíacas (21) . Duração do dem ser benéficas. A evidência atual não apóia o uso
exercício < 3 minutos e depressão do segmento ST > desse exame isoladamente para referir pacientes para
1,5-2 mm implica risco significativo e independente angiografia coronária(21) .
quando adicionado à história cardíaca e ao tipo de ci-
rurgia(41) . Angiografia coronária
Para certos pacientes de alto risco, pode ser apro-
Testes de estresse farmacológico priado realizar angiografia coronária ao invés de teste
São indicados, principalmente, em casos de pacien- não-invasivo. Por exemplo, consultas pré-operatórias
tes limitados para o exercício e nos casos com eletrocar- podem identificar pacientes com angina instável ou
diograma anormal, mais comum na população idosa, que evidência de isquemia residual após infarto agudo do
apresentam alta prevalência de hipertensão e alterações miocárdio recente, para o qual angiografia coronária
de ST-T(41) . As duas técnicas mais extensivamente utili- está indicada. Em geral, indicações para angiografia
zadas são a imagem de perfusão com tálio e dipiridamol coronária pré-operatória são similares àquelas identi-
ou adenosina, e a ecocardiografia de estresse com dobu- ficadas para situações não-cirúrgicas (21) .
tamina. Esses testes melhoram a estratificação de risco
para pacientes de risco intermediário que serão subme- CONCLUSÃO
tidos a cirurgia vascular. Infelizmente, estudos com tá-
lio-dipiridamol e ecocardiografia de estresse com dobu- Todos os pacientes com síndromes isquêmicas ins-
tamina em pacientes não vasculares demonstram que táveis devem ser estratificados quanto ao risco subse-
esses testes estão aquém do ideal, em termos de avalia- qüente, antes da alta hospitalar. No caso de indicação
ção prognóstica efetiva em pacientes submetidos a ci- de cirurgia não-cardíaca eletiva, eventual presença de
rurgia não-vascular(42) . isquemia deve ser corrigida antes de sua realização, o
Em pacientes com bloqueio de ramo esquerdo, o que implica dizer que, idealmente, o paciente deve ser
teste de estresse com dipiridamol ou adenosina é pre- enviado para o procedimento não-cardíaco sem evi-
ferível ao teste de esforço físico ou dobutamina, pois a dência, por meio de testes específicos, de presença de
taquicardia induzida pelos dois últimos pode resultar, isquemia. Nos casos de cirurgias de emergência, caso
em alguns pacientes, em defeitos septais reversíveis, o paciente seja considerado de alto risco, devem ser
mesmo na ausência de doença da artéria descendente tomadas medidas adicionais, como, por exemplo, a
anterior. Dipiridamol por via intravenosa deve ser evi- utilização de monitorização hemodinâmica contínua
tado em pacientes com broncoespasmo significativo, e balão intra-aórtico, no sentido de diminuir ao máxi-
doença carotídea crítica ou em pacientes que estão em mo o risco do paciente.

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NICOLAU JC e cols.
Abordagem pré-operatória do paciente com síndrome isquêmica aguda recente

PREOPERATIVE ASSESSMENT OF PATIENTS WITH RECENT UNSTABLE ISCHEMIC


SYNDROMES

JOSÉ CARLOS NICOLAU, LILIA NIGRO MAIA, O SANA MARIA C. C OSTA

During the 1970’s, several studies reported unstable angina or recent myocardial infarction as the most
important predictors of adverse outcomes for patients undergoing noncardiac surgery or major vascular
procedures.
Studies reported the risk of reinfarction or cardiac death ranging between 30-37% for patients operated on
within three months following an episode of unstable ischemic syndrome. The risk decreased to 11-16% when
the surgery was performed three to six months after the acute episode, and to 4-5% when the operation was
performed more than six months after the acute episode. More recent data indicated an important reduction of
risk rates due to the improvements in the surgical and anesthesiology fields.
Noninvasive tests are useful for preoperative cardiac risk assessment in patients with unstable angina or
acute myocardial infarction, being well demonstrated that inducible ischemia is a significant predictor of
perioperative events.
Preoperative coronary angiography is indicated for patients at high or intermediate cardiac risk, according
to noninvasive tests, or with unstable or refractory angina pectoris, or yet if the patient is to require urgent
noncardiac surgery.
At present, no randomized clinical trials have demonstrated whether or not prophylactic coronary
revascularization reduces the noncardiac surgery risk. However, some series have demonstrated that patients,
who previously have successfully undergone coronary artery bypass surgery or coronary angioplasty, have
similar mortality rates relatively to patients without evidence of coronary artery disease.
In the subgroup of patients with unstable ischemic syndromes, the indications for coronary artery bypass
surgery or transluminal coronary angioplasty (with or without stent), are the same as those utilized for patients
with coronary artery disease in general.
Key words: unstable angina, myocardial infarction, coronary artery disease, noncardiac surgery,
cardiovascular pre and perioperative assessment.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:324-33)


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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 333
ABORDAGEM DO PACIENTE ASSINTOMÁTICO DO PONTO DE VISTA
CARDIOLÓGICO E COM INDICAÇÃO DE REVASCULARIZAÇÃO
DE AORTA E SEUS RAMOS

ANAÍ ESPINELLI S. DURAZZO, BRUNO CARAMELLI

Instituto do Coração — HC-FMUSP


Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 — CEP 05403-000 — São Paulo — SP

A doença vascular acometendo a aorta e seus metidos a cirurgia vascular maior demonstram re-
ramos ocorre tipicamente em uma população de dução de risco de eventos cardiológicos nos paci-
idade avançada que tende a apresentar ateroscle- entes tratados com essa droga no período periope-
rose coronariana e outras doenças não cardíacas ratório.
associadas, aumentando seu risco cirúrgico. Mais de 80% dos infartos do miocárdio ocor-
A doença arterial coronária é a causa mais fre- rem durante o período pós-operatório, com pico de
qüente de morte após cirurgia vascular maior. Taxa incidência no terceiro dia. A detecção de lesão mi-
de mortalidade perioperatória de 0,9% a 5%, inci- ocárdica após cirurgia vascular é complicada pela
dência de infarto do miocárdio de 3,6% a 10% e alta prevalência de anormalidades eletrocardiográ-
34% de eventos cardíacos em pacientes de alto risco ficas e pela alta taxa de falsos positivos da enzima
podem ser esperados após cirurgia vascular eletiva. CK-MB. Alguns autores sugerem que as troponi-
Um dos objetivos da avaliação pré-operatória nas I e T podem melhorar a abordagem clínico-te-
é determinar se doenças associadas estão presen- rapêutica desses pacientes por identificar aqueles
tes e corrigi-las ou minimizá-las. Outro objetivo é que estão apresentando algum grau de dano mio-
detectar e quantificar a gravidade da doença arte- cárdico.
rial coronária e, então, estimar o risco cardíaco O infarto do miocárdio é a principal causa de
para a cirurgia proposta. Os algoritmos do Ameri- morte durante os primeiros cinco anos após cirur-
can College of Cardiology em conjunto com os da gia vascular. Todos os pacientes vasculares estão
American Heart Association e do American Colle- sob risco de apresentar eventos cardíacos tardios
ge of Physicians propõem uma abordagem especi- e, portanto, devem ser seguidos com controle rigo-
al, com avaliação cardíaca não-invasiva para es- roso dos fatores de risco e avaliação periódica da
ses pacientes. progressão da doença arterial coronária.
Trabalhos publicados que avaliam o efeito car- Descritores: período pós-operatório, doença is-
dioprotetor do betabloqueador em pacientes sub- quêmica do coração, cirurgia vascular.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:334-42)
RSCESP (72594)-986

I NTRODUÇÃO rioperatória do paciente vascular com indicação de tra-


tamento cirúrgico. Apesar de diversas opções disponí-
A doença vascular acometendo a aorta e seus ra- veis, uma abordagem universalmente aceita e utiliza-
mos ocorre tipicamente em uma população de idade da ainda não emergiu.
avançada, que tende a apresentar aterosclerose coro- Entre as operações não-cardíacas, as vasculares
nariana e outras doenças não cardíacas associadas e apresentam os índices de complicações cardiovascu-
que têm risco cirúrgico aumentado comparado com lares mais elevados. A doença arterial coronária tem
outras populações. Por isso, o grande interesse e vári- sido a “causa mortis” mais freqüente após cirurgia
as pesquisas para definição da melhor abordagem pe- vascular maior. Por esse motivo, tanto a evolução pe-

334 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
DURAZZO AES e col.
Abordagem do paciente assintomático do ponto de vista cardiológico e com indicação de revascularização de aorta e seus ramos

rioperatória como a tardia após cirurgia vascular são impacto sobre a evolução. Como os pacientes vascu-
dependentes da doença arterial coronariana e suas com- lares são, em sua maioria, tabagistas ou ex-tabagistas,
plicações. a ocorrência de alteração da função pulmonar ou de
A sobrevida tardia após cirurgia vascular parece neoplasias pode ser mais freqüente nessa população
independer do diagnóstico da doença vascular de base: de alto risco. Grande porcentagem dos pacientes sub-
os pacientes com aneurisma de aorta abdominal, do- metidos a revascularização dos membros ou amputa-
ença vascular periférica obstrutiva e doença carotídea ção é portadora de diabete melito, que pode ser con-
têm taxa de sobrevida global semelhante. Observou- trolado com dieta, hipoglicemiantes orais ou insulina.
se que a incidência e a distribuição da doença arterial A hipertensão é comum nos pacientes vasculares. O
coronária são similares no aneurisma de aorta abdo- diabete e a hipertensão devem, preferencialmente, ser
minal, na doença carotídea e na doença vascular peri- controlados no período pré-operatório.
férica obstrutiva, o que pode explicar os padrões de Outro objetivo do período pré-operatório é detec-
sobrevida comparáveis nesses grupos tão díspares de tar e quantificar a gravidade da doença arterial coro-
pacientes com doença vascular. (1-7) nária e, então, estimar o risco cardíaco para a cirurgia
proposta. Em muitos casos, essa é a primeira oportu-
CIRURGIA VASCULAR nidade de o paciente ser avaliado por um cardiologis-
ta. Os pacientes vasculares freqüentemente têm evi-
A cirurgia vascular é habitualmente realizada para dência clínica da doença arterial coronária. Angina do
prevenção de acidente vascular cerebral, para salva- peito está presente em 27% a 50% dos pacientes, e
mento de membro ou prevenção de morte por rotura 33% a 44% apresentam história de infarto do miocár-
de aneurisma de aorta. O acidente vascular cerebral, o dio pregresso. Mas mesmo em pacientes vasculares
infarto do miocárdio pós-operatório e outras compli- com história cardiológica negativa e sem sintomas, a
cações, incluindo a morte, podem ocorrer durante e presença de doença coronariana deve ser suspeitada.(2)
após a cirurgia vascular. A prevalência e a gravidade da doença arterial co-
A Tabela 1 mostra as incidências esperadas de com- ronária em pacientes vasculares têm sido estimadas a
plicações em cirurgia vascular. (8, 9) partir de estudos nos quais todos os pacientes foram
submetidos a cineangiocoronariografia antes da cirur-
Tabela 1. Incidência de complicações em cirurgia gia vascular. O infarto do miocárdio foi responsável
vascular. por 56% a 69% da mortalidade após cirurgia vascular,
refletindo a associação comum entre doença arterial
Mortalidade operatória 0,9% a 5% coronária e doença vascular periférica.
Infarto agudo do miocárdio 3,6% a 10% A Tabela 2 demonstra a prevalência e a gravidade
Eventos cardíacos (morte e da doença arterial coronária nos pacientes vasculares.
infarto agudo do miocárdio
não-fatal) 34% em pacientes
de alto risco Tabela 2. Prevalência e gravidade da doença arterial
cardiológico coronária.

P ERÍODO PRÉ -OPERATÓRIO Gravidade da doença


arterial coronária Prevalência
Um dos objetivos da avaliação pré-operatória é
determinar se doenças associadas que podem afetar a Estenose > 70% de pelo menos
evolução cirúrgica estão presentes. Quando encontra- uma coronária 77%
das, é importante determinar se essas doenças podem Obstrução significativa de todos
e devem ser corrigidas ou minimizadas no período pré- os três vasos coronarianos 44%
operatório. Coronárias normais 8%
Como já mencionado, o paciente vascular tende a
ser idoso, sendo comum apresentar doenças associa- Esses estudos também evidenciaram que 40% dos
das e aterosclerose de outros vasos além daqueles res- pacientes cardiologicamente assintomáticos apresen-
ponsáveis pela indicação da cirurgia vascular. Ateros- tavam pelo menos doença de um vaso e 29% tinham
clerose associada de artéria coronária, artéria caróti- envolvimento avançado dos três vasos ou da artéria
da, artérias viscerais além da aorta e seus ramos tem descendente anterior.

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DURAZZO AES e col.
Abordagem do paciente assintomático do ponto de vista cardiológico e com indicação de revascularização de aorta e seus ramos

A alta incidência de doença arterial coronariana dio com tálio e dipiridamol como preditor de compli-
assintomática é um dado importante porque o risco de cações cardíacas. Em um grupo de 48 pacientes sub-
eventos cardíacos correlaciona-se com a gravidade da metidos a cirurgia vascular periférica, 8 dos 16 com
doença arterial coronariana e é independente dos sin- hipocaptação transitória do radiofármaco (redistribui-
tomas. Conseqüentemente, todos os pacientes ção) no estudo cintilográfico pré-operatório apresen-
vasculares, mesmo aqueles assintomáticos para doen- taram eventos cardíacos, comparados com nenhum
ça arterial coronariana, devem ser considerados sob evento nos outros 32 pacientes com cintilografia pré-
risco de complicações cardíacas perioperatórias e de- operatória normal ou somente com hipocaptação per-
vem ser submetidos a avaliação perioperatória cuida- sistente. Desde seu estudo inicial, vários trabalhos si-
dosa.(10-17) milares têm confirmado a validade da relação entre
redistribuição e risco perioperatório de complicações
Avaliação cardiológica pré-operatória do paciente cardíacas. A Tabela 3 demonstra a comparação do ris-
vascular co perioperatório com a redistribuição na cintilografia
Esses dados sugerem que a população de pacien- do miocárdio com tálio e dipiridamol.
tes submetidos a operações vasculares, por constituí-
rem o grupo de maior risco de complicações cardio- Tabela 3. Risco de eventos perioperatórios em rela-
vasculares, deva receber atenção especial na avalia- ção ao número de segmentos de redistribuição da
ção perioperatória. De fato, a maioria dos algoritmos cintilografia do miocárdio com tálio e dipiridamol.
ou esquemas de avaliação de risco perioperatório já
publicados propõe estratégias especiais para identifi- Número de segmentos Risco de eventos
car esse grupo de pacientes, utilizando exames com de redistribuição perioperatórios
maior acurácia diagnóstica. Os pacientes com predi-
tores clínicos intermediários (angina do peito graus I 0 1%
ou II, infarto do miocárdio prévio diagnosticado por 2 ou mais 30%
história ou ondas Q patológicas no eletrocardiogra-
ma, insuficiência cardíaca prévia ou compensada e A sensibilidade para predizer eventos cardíacos foi
diabete melito) ou capacidade de exercício limitada, de 86% e a especificidade, de 57%. A despeito de sua
segundo o algoritmo do American College of Cardio- relativa alta sensibilidade, o uso clínico tem sido ques-
logy em conjunto com a American Heart Association, tionado pela baixa especificidade. Entre os pacientes
e os pacientes com risco intermediário que serão sub- com teste positivo, 70% não terão um evento cardía-
metidos a cirurgia vascular, segundo o algoritmo do co. Várias medidas têm sido desenvolvidas para me-
American College of Physicians, devem realizar lhorar a especificidade desse exame. As Tabelas 4 e 5
avaliação cardíaca não-invasiva antes da cirurgia, apresentam a relação quantitativa que tem sido de-
que inclui ecocardiograma com estresse farmaco- monstrada entre o número de segmentos de
lógico ou cintilografia do miocárdio com tálio e redistribuição, o número de territórios coronarianos
dipiridamol.(17, 18) envolvidos e o risco de eventos.
O estudo de perfusão com o tálio identifica, de for-
ma não-invasiva, áreas do miocárdio com fluxo san-
Tabela 4. Relação entre o número de segmentos de
guíneo insuficiente, um achado que aumenta o risco
redistribuição e o risco de eventos.
de complicações perioperatórias. Uma vez que o tálio
proporciona medida funcional do fluxo sanguíneo do
miocárdio, tem melhor potencial como preditor dos Número de segmentos
pacientes que estão sob alto risco comparado com o de redistribuição Risco de eventos
uso da arteriografia coronariana, que proporciona so-
mente informação anatômica. A finalidade principal 1 Próximo de zero
do tálio nos pacientes vasculares não é somente iden- 2a3 12%
tificar aqueles com doença arterial coronária, mas, tam- >4 36%
bém, identificar pacientes de alto risco para morbida-
de e mortalidade perioperatória, independentemente Conseqüentemente, o risco de complicações car-
da anatomia coronariana. díacas é relacionado não somente com a redistribui-
Em 1985, Boucher e colaboradores (19) publicaram ção, mas também ao número total de segmentos ou
o primeiro trabalho do uso da cintilografia do miocár- múltiplos territórios coronarianos envolvidos. A cinti-

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DURAZZO AES e col.
Abordagem do paciente assintomático do ponto de vista cardiológico e com indicação de revascularização de aorta e seus ramos

paciente e sugestões da abordagem terapêutica intra e


Tabela 5. Relação entre o número de territórios
pós-operatória é preferível e pode ser feita na sala ci-
coronarianos envolvidos e o risco de eventos.
rúrgica, enquanto o paciente está sendo rapidamente
preparado para o procedimento. O risco é muito au-
Número de territórios de
mentado para procedimentos vasculares de urgência e
distribuição das
emergência.
artérias coronárias Risco de eventos
Mecanismos dos eventos
1 13%
Os eventos isquêmicos miocárdicos perioperatórios
3 43%
ocorrem mais freqüentemente em pacientes com tes-
tes provocativos de isquemia miocárdica positivos,
lografia do miocárdio com tálio e dipiridamol é o exa- sugerindo que a estenose significativa de artéria
me mais amplamente utilizado como teste de detec- coronária tem papel essencial na patogênese das
ção de doença arterial coronariana para doentes vas- síndromes isquêmicas coronarianas perioperatórias. A
culares, pois não necessita do esforço físico, pela ca- estenose coronariana pode aumentar a vulnerabilidade
pacidade de detecção de doença assintomática e gran- do paciente a isquemia ou infarto causados por insta-
de familiaridade na interpretação. (13, 17-24) bilidade hemodinâmica perioperatória, anemia secun-
A cateterização coronariana e a revascularização dária a sangramentos perioperatórios, hipoxemia, am-
miocárdica cirúrgica são, habitualmente, realizadas nos biente pró-trombótico associado ao procedimento ci-
pacientes que apresentam esses testes anormais, a des- rúrgico pela ativação plaquetária e do sistema de coa-
peito da ausência de dados suficientemente consisten- gulação, aumento do tônus simpático associado a au-
tes demonstrando melhora da evolução com esse tipo mento da freqüência cardíaca e rotura das placas
de estratégia. Vários estudos não-randomizados têm ateroscleróticas coronarianas. (9, 12, 13, 17)
sugerido que a revascularização do miocárdio antes
de cirurgia vascular pode diminuir a probabilidade de Redução do risco cardíaco na cirurgia vascular
infarto do miocárdio após cirurgia vascular. Os resul- A prevenção de eventos cardíacos inicia-se no pe-
tados desses estudos retrospectivos, entretanto, não são ríodo pré-operatório, com o controle rigoroso do dia-
diretamente aplicáveis aos pacientes vasculares sinto- bete, de outras doenças associadas e da hipertensão.
máticos, que tendem a ser mais idosos e apresentar Se persistir hipertensão mais severa (pressão arterial
doenças associadas. Conseqüentemente, os riscos da diastólica maior ou igual a 110 mmHg), é prudente
cateterização coronariana, revascularização miocárdica considerar o adiamento, se possível, da operação para
e, então, a cirurgia vascular maior devem ser somados intensificação medicamentosa e controle pressórico
e considerados conjuntamente com o adiamento ne- pré-operatório mais adequado. Medicamentos anti-hi-
cessário para realização desses procedimentos e com pertensivos em uso, como betabloqueadores, bloque-
o diagnóstico vascular de base. (15-18, 25) adores de canal de cálcio e nitratos, devem ser manti-
Quando uma operação vascular é necessária para dos durante a operação. Cuidado especial deve ser to-
pacientes coronarianos sintomáticos (infarto do mio- mado para suspensão de drogas betabloqueadoras e
cárdio recente, angina instável, insuficiência cardíaca clonidina, pelo risco do efeito rebote de hipertensão,
congestiva), a angiografia coronária deve ser conside- taquicardia e vasoespasmo.
rada como parte da avaliação pré-operatória. A deci- Ansiedade e taquicardia relacionadas com eleva-
são da revascularização do miocárdio deve ser alta- ção dos níveis de catecolaminas devem ser controla-
mente individualizada, com base na idade, nas doen- das com sedativos pré-operatórios. A adequada hidra-
ças associadas e na concordância do paciente em ser tação é crítica para o desempenho cardíaco. Muitos
submetido a duas intervenções cirúrgicas maiores. pacientes encontram-se em estado de desidratação crô-
A avaliação cardiológica extensa é absolutamente nica pelo uso de diuréticos para tratamento de hiper-
contra-indicada para emergências vasculares, como tensão arterial ou aguda, pelos jejuns necessários para
rotura de aneurisma de aorta e isquemia mesentérica a realização de exames diagnósticos. Inversamente,
aguda, e relativamente contra-indicada para urgências mesmo graus leves de congestão cardíaca aumentam
vasculares, como isquemia aguda de membros e aneu- muito o consumo de oxigênio pelo miocárdio e, por-
risma de aorta abdominal sintomático. Quando o adi- tanto, a isquemia, devendo ser corrigidos. (12, 13, 17, 26)
amento da cirurgia é potencialmente prejudicial, a ava- Em pacientes com alto risco cardiológico não mo-
liação rápida para informação da gravidade clínica do dificável (como, por exemplo, a idade), o risco da ope-

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Abordagem do paciente assintomático do ponto de vista cardiológico e com indicação de revascularização de aorta e seus ramos

ração pode ser reduzido pela modificação da estraté- Poldermans e colaboradores (9) testaram o efeito do
gia cirúrgica ou por medidas que melhorem a tolerân- bisoprolol em um grupo de pacientes de alto risco car-
cia cardíaca para o procedimento. Se o único sintoma diológico submetidos a cirurgia vascular maior. Os
for a claudicação intermitente, o tratamento clínico é pacientes randomizados para receber bisoprolol apre-
a alternativa mais segura. Para isquemia de membro, sentaram taxa de eventos de 3,4% contra 34% no gru-
angioplastia, aterectomia ou enxerto extra-anatômico po que recebeu tratamento habitual sem betabloquea-
são habitualmente mais seguros que um procedimen- dor, com redução de risco de eventos cardíacos de
to que requeira laparotomia. Quando um procedimen- 91%.(9)
to maior é inevitável, como o tratamento de aneuris-
ma de aorta grande ou sintomático ou para dor isquê- P ERÍODO INTRA -OPERATÓRIO
mica de repouso na doença oclusiva infra-inguinal, o
risco pode ser minimizado com preparação pré-opera- O objetivo do controle intra-operatório dos paci-
tória cuidadosa. entes com doença arterial coronariana é o de preven-
O papel do betabloqueador ção, detecção e tratamento da isquemia miocárdica,
Drogas que promovem o bloqueio dos receptores antes que lesões permanentes se instalem. Como já
beta-adrenérgicos previnem as complicações cardía- citado, a prevenção inicia-se no período pré-operató-
cas em pacientes com infarto agudo do miocárdio, is- rio.
quemia silenciosa e falência cardíaca. Todos os agentes inalatórios têm efeito inotrópico
O bloqueio dos receptores beta-adrenérgicos no negativo. Anestesia peridural ou raquidiana não de-
período perioperatório tem sido proposto para dimi- primem o miocárdio diretamente, mas podem estar
nuição do risco das complicações cardíacas periope- associadas com ansiedade e hipertensão no paciente
ratórias. O mecanismo protetor não é ainda totalmen- acordado ou bradicardia ou hipotensão devido ao blo-
te esclarecido. Vários mecanismos têm sido propos- queio simpático, o que pode aumentar o consumo mi-
tos: ocárdico de oxigênio. Em estudos prospectivos que
— diminuição do consumo de oxigênio pelo miocár- compararam a anestesia epidural com a geral, não hou-
dio por diminuição da freqüência cardíaca e da ve diferença na redução de complicações cardiológi-
contratilidade miocárdica, prevenindo a isquemia cas perioperatórias. (12, 13, 26, 33, 34)
miocárdica, reduzindo o tamanho do infarto ou Alterações durante o intra-operatório devem ser
ambos; tratadas porque em um coração isquêmico podem di-
— diminuição do consumo de oxigênio pelo miocár- minuir o fluxo coronariano e precipitar isquemia mio-
dio por supressão da lipólise, levando à maior me- cárdica. A terapêutica depende da causa. Fatores cau-
tabolização da glicose em relação aos ácidos gra- sais devem ser corrigidos assim que identificados. A
xos livres; hipertensão associada a taquicardia geralmente indica
— aumento da estabilidade das placas ateroscleróti- analgesia inadequada e é tratada com reforço anesté-
cas; sico. Por outro lado, alterações isquêmicas do eletro-
— aumento do limiar de fibrilação ventricular na pre- cardiograma acompanhadas de hipotensão podem ser
sença de isquemia. causadas por perda sanguínea, redução na resistência
Existem poucos trabalhos publicados que avaliam periférica pela liberação do clampeamento aórtico ou
o efeito cardioprotetor do betabloqueador em pacien- disfunção ventricular. As bradiarritmias (bradicardia
tes submetidos a cirurgia vascular maior. Entretanto, sinusal e ritmo juncional) podem ocorrer durante pe-
esses dados de literatura demonstram a redução de risco ríodos de estímulo vagais, respondendo à diminuição
de eventos cardiológicos nos pacientes tratados com do nível de anestesia ou administração de atropina ou
essa droga no período perioperatório. (9, 17, 27-32) beta-agonistas. As taquiarritmias podem ser expres-
Mangano e colaboradores (29) testaram o efeito do são da hipovolemia, vasodilatação ou sensibilização
atenolol comparado com o placebo em um grupo de do miocárdio às catecolaminas circulantes. As opera-
pacientes de baixo risco cardiológico submetidos a ções vasculares podem estar associadas com perda
cirurgia eletiva não-cardíaca. Os pacientes randomi- substancial de sangue e grandes variações do volume
zados para receber atenolol apresentaram taxa de mor- intravascular. Procedimentos vasculares podem envol-
talidade em relação ao grupo que recebeu tratamento ver o uso de anticoagulantes assim como de protami-
habitual sem betabloqueador de 0% contra 8% nos na, ambos podendo apresentar reações adversas. A
primeiros seis meses, 3% contra 14% no primeiro ano necessidade de transfusão maciça durante cirurgia vas-
e 10% contra 21% ao final de dois anos. (29) cular da aorta e de seus ramos aumenta a possibilida-

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DURAZZO AES e col.
Abordagem do paciente assintomático do ponto de vista cardiológico e com indicação de revascularização de aorta e seus ramos

de de coagulopatia dilucional assim como de compli- car aqueles que estão apresentando algum grau de dano
cações agudas ou crônicas relacionadas com a própria miocárdico. Além do valor diagnóstico de marcador
transfusão. A duração da operação pode estar associa- de isquemia miocárdica, a detecção de níveis eleva-
da a complicações, como hipotermia e aumento do ris- dos de troponina são indicadores de mau prognóstico
co de complicações pulmonares e cardíacas. a longo prazo nesse grupo de pacientes. (37,38)
Não existem métodos confiáveis para a detecção
da isquemia miocárdica no paciente anestesiado, ten- Hipertensão arterial sistêmica
do o ecocardiograma transesofágico sido proposto A hipertensão arterial sistêmica ocorre mais habi-
como possível método para sua detecção. tualmente com a interrupção da ventilação com pres-
A despeito da evidência de que a isquemia silenci- são positiva ou na sala de recuperação. Os fatores pre-
osa é freqüente durante cirurgias vasculares, o infarto cipitantes mais comuns incluem: sobrecarga volumé-
do miocárdio intra-operatório não é comum, indican- trica, hipoxemia, ansiedade e dor. A abordagem tera-
do os efeitos benéficos da adequada monitorização pêutica mais adequada inclui oxigenação adequada,
hemodinâmica para esse grupo de pacientes. Porém, controle da dor e do balanço hídrico com uso de diuré-
não se pode descartar a possibilidade de subdiagnósti- ticos, se necessário. Para hipertensão arterial sistêmi-
co do infarto do miocárdio intra-operatório. (12, 13, 26) ca mais severa, o nitroprussiato e o betabloqueador
são as medicações preferidas. A hidralazina endove-
P ERÍODO PÓS- OPERATÓRIO nosa em baixas doses é efetiva, mas pode precipitar
taquiarritmias supraventriculares. (17,26)
Infarto do miocárdio
Mais de 80% dos infartos ocorrem durante o perí- Insuficiência cardíaca congestiva
odo pós-operatório, com pico de incidência no tercei- Apesar de a insuficiência cardíaca congestiva pós-
ro dia. Alguns trabalhos demonstram que a combina- operatória poder ser causada por infarto ou isquemia
ção de eletrocardiograma e dosagens de CK-MB seri- do miocárdio, grande parte dos casos está relacionada
adas é capaz de detectar muitos infartos nas primeiras diretamente com administração de fluidos em exces-
24 horas de pós-operatório. A monitorização so. A insuficiência cardíaca congestiva tende a ocor-
eletrocardiográfica contínua tem mostrado que 40% rer após a interrupção da ventilação com pressão-po-
dos pacientes desenvolvem alterações isquêmicas no sitiva e novamente 24 a 48 horas após a operação, quan-
pós-operatório, com forte correlação com infartos sub- do o líquido administrado no período perioperatório é
seqüentes. Como a isquemia é silenciosa e o infarto mobilizado dos sítios extravasculares. Os diuréticos
ocorre quando a maioria dos pacientes já deixou a endovenosos e raramente os digitálicos são a terapia
unidade de terapia intensiva, muitos episódios de suficiente para a insuficiência cardíaca congestiva pós-
isquemia e dano miocárdico não são detectados, a operatória relacionada aos fluidos. (17, 26)
menos que as medidas de rotina acima citadas sejam
realizadas. A ocorrência do infarto alguns dias após a Arritmias pós-operatórias
cirurgia, quando a maioria dos pacientes está São comuns e geralmente são manifestações de
hemodinamicamente estável, sugere que este deve ser uma complicação não-cardíaca, como sangramento, in-
conseqüência de múltiplos fatores, incluindo fecção ou desequilíbrio ácido-básico ou eletrolítico.
hipercoagulabilidade por ativação plaquetária, anemia, Para o tratamento dessas arritmias, geralmente é ne-
ansiedade, febre, atelectasia, taquicardia sinusal e hi- cessário o reconhecimento e a correção dos fatores
pertensão. A equipe médica pós-operatória deve estar extracardíacos.
ciente da freqüência e da importância da isquemia si- Taquicardia sinusal
lenciosa e estar preparada para reconhecer e tratar pron- É a arritmia mais comum no pós-operatório. Vári-
tamente essas alterações fisiológicas que causam as etiologias não-cardíacas estão relacionadas: dor,
isquemia antes que o infarto se instale. (12, 13, 17, 26, 35, 36) hipovolemia, hipervolemia, febre, anemia, hipoxemia,
A detecção de lesão miocárdica após cirurgia êmbolo pulmonar, ansiedade, infecção, hipotensão e
vascular é complicada pela alta prevalência de anor- anormalidades eletrolíticas (especialmente a
malidades eletrocardiográficas e pela alta taxa de fal- hipocalemia). O tratamento está baseado no reconhe-
sos positivos da CK-MB. Dados de literatura têm su- cimento e na correção do fator precipitante.
gerido que os novos marcadores de lesão cardíaca, in- Fibrilação atrial
cluindo a troponina I e T, podem melhorar a aborda- É também comum no pós-operatório. Precipitantes
gem clínico-terapêutica desses pacientes por identifi- não-cardíacos: pneumonia, atelectasias, êmbolo pul-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 339
DURAZZO AES e col.
Abordagem do paciente assintomático do ponto de vista cardiológico e com indicação de revascularização de aorta e seus ramos

monar. Digitálicos, verapamil ou betabloqueador po- nados com eventos cardíacos perioperatórios, mas têm
dem ser usados para controle da freqüência ventricular. demonstrado forte correlação com a sobrevida a lon-
A cardioversão (medicamentosa ou elétrica) é adiada go prazo. Após reconstrução vascular com sucesso,
até que os fatores precipitantes sejam eliminados. pacientes que previamente não apresentavam sintomas
“Flutter” atrial de doença arterial coronária, por sua restrição física,
É pouco tolerado pela freqüência ventricular rápi- modificam o estilo de vida e aumentam o grau de ati-
da e pelo difícil controle farmacológico. A cardioversão vidade física a ponto de desenvolverem angina. Por
elétrica é o tratamento de escolha. (17, 26, 39) causa da prevalência de isquemia silenciosa, todos os
pacientes vasculares, sintomáticos ou assintomáticos,
ACOMPANHAMENTO A LONGO PRAZO estão sob risco de apresentar eventos cardíacos tardi-
os e, portanto, devem ser seguidos com controle rigo-
O infarto do miocárdio é a principal causa de mor- roso dos fatores de risco e avaliação periódica da pro-
te durante os primeiros cinco anos após cirurgia vas- gressão da doença arterial coronária para, assim, ofe-
cular. A disfunção ventricular e a presença de defeitos recer melhor qualidade de vida e longevidade após
fixos na cintilografia do miocárdio não estão relacio- cirurgia vascular maior. (6, 12, 26, 40)

ASSESSMENT OF ASYMPTOMATIC PATIENT BEFORE VASCULAR SURGERY

ANAÍ ESPINELLI S. DURAZZO, BRUNO CARAMELLI

Vascular disease typically affects an older population which tends to have associated coronary atherosclerosis
and other associated illnesses that increases its surgical risks. Coronary artery disease has been the most
common cause of death after major vascular surgery. Rates from 0,9% to 5% for operative mortality, 3,6% to
10% for postoperative myocardial infarction and a 34% for all cardiac events in a cardiac high risk population
were related after elective vascular surgery.
One goal of preoperative clinical evaluation is to determine whether associated conditions are present and
correct or minimize them. Another one is to detect and to quantify the severity of coronary artery disease and
thereby to estimate the cardiac risk of the proposed surgery. American College of Cardiology and the American
Heart Association and American College of Physicians guidelines for the preoperative cardiovascular evaluation
propose a special approach for those patients scheduled for vascular surgery with a noninvasive cardiac evaluation
before surgery.
Trials evaluating the cardioprotective effect of beta-blockers on the incidence of serious cardiac events after
vascular surgery showed a reduction in this risk.
More than 80% of myocardial infarctions occur during the postoperative period, with the peak incidence
being on the third day. Detection of myocardial injury after noncardiac surgery is complicated by the high
prevalence of electrocardiographic abnormalities and the high false positive rate of creatine kinase in this
setting. Some data have suggested that cardiac troponin I and T, might improve management of patients by
identifying those who were having or were at risk for cardiac complications.
Myocardial infarction is the primary cause of death during the first 5 years after a vascular procedure. All
vascular patients are at risk for developing late cardiac morbidity and therefore should be followed with strict
control of risk factors and periodic assessment of the progression of their coronary artery disease.
Key words: perioperative care, coronary artery disease, vascular surgical procedures.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:334-42)


RSCESP (72594)-986

340 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
DURAZZO AES e col.
Abordagem do paciente assintomático do ponto de vista cardiológico e com indicação de revascularização de aorta e seus ramos

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DURAZZO AES e col.
Abordagem do paciente assintomático do ponto de vista cardiológico e com indicação de revascularização de aorta e seus ramos

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342 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
AVALIAÇÃO PRÉ-OPERATÓRIA DE PACIENTES COM
DOENÇA CARDÍACA VALVAR

OSWALDO CESAR ALMEIDA -FILHO, A NDRÉ SCHMIDT, ANTÔNIO P AZIN-FILHO, BENEDITO CARLOS MACIEL,
JOSÉ ANTÔNIO MARIN -NETO

Divisão de Cardiologia — Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto — Universidade de São Paulo
Endereço para correspondência: Av. Bandeirantes, 3900 — Campus Universitário Monte Alegre — CEP 14040-000 —
Ribeirão Preto — SP

As valvopatias graves são marcadores clínicos rização invasiva são úteis em todas as situações para
maiores de risco cardíaco em pacientes submetidos a identificação e correção precoce de desvios, tais como
cirurgia não-cardíaca. A magnitude do risco cardía- hipotensão arterial sistêmica, taqui e bradiarritmias.
co é dependente da interação de diferentes fatores, A avaliação pré-operatória baseia-se, primordi-
incluindo o tipo de procedimento cirúrgico não-car- almente, na história clínica e no exame físico criterio-
díaco proposto, o grau de urgência do mesmo, e o tipo sos. Exames complementares, invasivos ou não, de-
e a gravidade da valvopatia envolvida. vem ser solicitados apenas quando seus resultados
A estenose aórtica grave e/ou sintomática é um podem ter implicações diretas na condução do caso.
preditor de risco cardíaco consensualmente aceito Ressalta-se a importância da profilaxia para endocar-
como indicativo, em muitas circunstâncias, da neces- dite bacteriana em todos os pacientes com próteses
sidade de troca valvar ou valvoplastia por balão an- valvares ou lesões valvares adquiridas, mesmo de
tes da cirurgia não-cardíaca proposta. Aos pacientes menor gravidade, que sejam expostos a bacteremia.
com diagnóstico de estenose mitral grave, também se Finalmente, considera-se a terapêutica anticoagulan-
indica, com freqüência, intervenção prévia para alí- te nos portadores de próteses valvares submetidos a
vio do gradiente diastólico entre átrio e ventrículo procedimentos com risco de hemorragia, sendo reco-
esquerdos, reduzindo a congestão pulmonar. mendada a substituição do anticoagulante oral, tem-
As lesões regurgitantes geralmente são passíveis porariamente, por heparina.
de controle clínico com medidas de redução da pós- Descritores: valvopatia cardíaca, cirurgia não-
carga iniciadas no pré-operatório e mantidas no in- cardíaca, profilaxia de endocardite infecciosa, avali-
tra- e pós-operatório. Medidas agressivas de monito- ação pré-operatória.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:343-50)
RSCESP (72594)-987

I NTRODUÇÃO Não obstante a estenose aórtica grave tivesse sido


identificada por Goldman e colaboradores (2) , em um
As valvopatias graves, juntamente com síndromes dos clássicos trabalhos da literatura, como um dos
isquêmicas agudas, insuficiência cardíaca congestiva marcadores de risco maior para cirurgias não-cardía-
descompensada e arritmias cardíacas graves, incluin- cas, em um estudo recente do mesmo grupo (3) , avali-
do bloqueio atrioventricular de alto grau, arritmia ando um número substancial de pacientes (4.315 indi-
ventricular sintomática ocorrendo em paciente com víduos) operados eletivamente, nenhuma valvopatia
cardiopatia subjacente e taquiarritmia supraventricular surgiu entre os seis preditores independentes identifi-
associada a alta taxa de condução atrioventricular, são cados: cirurgias de alto risco, história de doença car-
consideradas preditores clínicos maiores de risco car- díaca isquêmica, história de insuficiência cardíaca,
díaco para pacientes submetidos a cirurgias não-car- história de doença cerebrovascular, tratamento pré-
díacas(1). operatório utilizando insulina e creatinina sérica mai-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 343
ALMEIDA-FILHO OC e cols.
Avaliação pré-operatória de pacientes com doença cardíaca valvar

or que 2,0 mg/dl. É provável que a exclusão dos pro- tório; a maioria (71%) foi submetida a monitorização
cedimentos de emergência na investigação mais recente invasiva, envolvendo cateter intra-arterial sistêmico e
explique, pelo menos em parte, a ausência da estenose pulmonar, pressão venosa central e oximetria de pul-
aórtica, assim como de outros marcadores identifica- so. Especulou-se, também, que o pronto controle de
dos no primeiro estudo, tais como idade avançada e hipotensão arterial sistêmica durante a cirurgia e a rí-
arritmias cardíacas significativas. O aprimoramento da gida monitorização de todos os parâmetros hemodi-
abordagem clínica perioperatória desses pacientes tam- nâmicos e gasosos sanguíneos permitiram otimização
bém deve ter influenciado os resultados desse estudo do atendimento ao paciente, reduzindo, conseqüente-
mais recente. mente, as chances de complicações maiores.
São relativamente raros, na literatura, especialmen- O tipo e a urgência do procedimento cirúrgico não-
te quando comparados às publicações relativas à cardíaco proposto são importantes para gradação do
isquemia miocárdica, estudos envolvendo avaliação de risco ao qual o cardiopata será exposto. Complicações
valvopatias previamente a cirurgias não-cardíacas (4) . cardíacas são duas a cinco vezes mais freqüentes em
Ainda mais escassos são os relatos referentes à estenose cirurgias de urgência em relação a procedimentos
mitral grave, o que talvez se justifique pela baixa eletivos. (7)
prevalência dessa modalidade de lesão nos países do Os procedimentos cirúrgicos podem ser didatica-
Primeiro Mundo. Considerando-se, ainda, que a mente classificados, quanto ao risco cardíaco, em três
estenose mitral de etiologia reumática, tão freqüente níveis: alto, intermediário e baixo. No grupo de alto
entre nós, afeta pacientes mais jovens, e que a inci- risco estão incluídas as grandes cirurgias de emergên-
dência de procedimentos cirúrgicos não-cardíacos au- cia, principalmente em idosos; procedimentos na aorta
menta com a idade, provavelmente a seleção dos paci- e outras abordagens vasculares de grande porte; e, ain-
entes incluídos nos grandes estudos, geralmente aci- da, procedimentos cirúrgicos prolongados associados
ma de 40 anos (2) ou 50 anos (3) , encontra o grupo de com grandes variações hidroeletrolíticas e/ou perda
estenose mitral já como portadores de próteses sanguínea. Entre os procedimentos que envolvem ris-
valvares, negligenciando-se, portanto, a doença de co intermediário incluem-se endarterectomia de
base. carótida, cirurgias de cabeça e pescoço, procedimen-
A integração entre o clínico responsável pela ava- tos intraperitoneais ou intratorácicos, e cirurgias orto-
liação pré-operatória e os demais profissionais envol- pédicas e de próstata. No grupo de baixo risco estão
vidos no procedimento, anestesista, cirurgião e inten- os procedimentos endoscópicos, procedimentos super-
sivista, é crítica para o melhor resultado final. Os cui- ficiais, e cirurgias de catarata e mamas. No estudo
dados especiais envolvem tanto a fase pré-operatória, publicado por Goldman e colaboradores (2) foram ex-
com eventuais ajustes ou troca de medicações, indica- cluídos da casuística, entre outros, os pacientes sub-
ção prévia de procedimentos terapêuticos, tais como metidos a ressecções prostáticas transuretrais, basea-
angioplastias, valvoplastias e revascularizações mio- dos na observação de que tais procedimentos são con-
cárdicas cirúrgicas, que podem determinar o adiamento siderados seguros em idosos cardiopatas (8) . Conside-
da cirurgia não-cardíaca proposta, assim como cuida- ram-se procedimentos de alto risco aqueles em que a
dos críticos no intra- e no pós-operatório, incluindo probabilidade de complicações cardíacas é maior que
monitorização intravascular, visando à identificação e 5%, o risco intermediário é de 1% a 5% e o baixo risco
à correção precoces de eventuais instabilizações he- é inferior a 1% (1) .
modinâmicas. Mangano e colaboradores(5) consideram A história clínica e o exame físico criteriosos
o pós-operatório imediato o período de maior risco associados ao eletrocardiograma, geralmente, são
cardíaco de todo o perioperatório. suficientes para responder a maioria das questões
Em estudo recente, Torsher e colaboradores (6) ava- na avaliação pré-operatória(4) . A análise dos dados
liaram 19 pacientes adultos portadores de estenose clínicos, quando considerada em conjunto com o
aórtica grave (gradiente sistólico médio ventrículo es- tipo de procedimento cirúrgico não-cardíaco pro-
querdo-aorta maior que 50 mmHg) submetidos a 28 posto e seu grau de emergência, permite estabele-
procedimentos cirúrgicos não-cardíacos sem prévia cer o grau de risco (alto, médio ou baixo) de com-
troca valvar ou valvoplastia por balão. Curiosamente, plicações cardíacas. É aconselhável que apenas pro-
os pacientes apresentaram baixos índices de compli- cedimentos diagnósticos que resultem em alguma
cações, o que foi interpretado pelos autores como de- mudança de postura na condução do paciente se-
corrente do ótimo padrão de cuidados aos quais esses jam recomendados, evitando-se a realização de exa-
pacientes foram submetidos no intra- e no pós-opera- mes precoces onerosos que não adicionam infor-

344 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ALMEIDA-FILHO OC e cols.
Avaliação pré-operatória de pacientes com doença cardíaca valvar

mações diagnósticas substanciais (1) . nos quais a reduzida reserva miocárdica pode ser in-
Geralmente, pacientes considerados de baixo ris- suficiente para superar o estresse determinado pelo
co são submetidos a cirurgia não-cardíaca proposta procedimento cirúrgico, resultando em complicações
apenas com dados obtidos em sua história clínica, no severas, devem-se considerar as indicações de troca
exame físico e no eletrocardiograma. Por outro lado, valvar antes do procedimento.
os pacientes de alto risco são submetidos a testes di- Recomenda-se a avaliação do desempenho do
agnósticos não-invasivos ou invasivos que possam adi- ventrículo esquerdo por ecocardiografia ou angiografia
cionar informações que garantam maior segurança à nuclear naqueles indivíduos com história de insufici-
intervenção proposta. Em contrapartida, nos pacien- ência cardíaca, nos quais as funções sistólica e
tes classificados como de risco intermediário, as con- diastólica não sejam previamente conhecidas (1) . A ava-
dutas são menos definidas, em decorrência da ausên- liação da função ventricular de rotina em todos os pa-
cia de estudos com número suficiente de pacientes que cientes não está fundamentada em estudos clínicos.
permitam estabelecer recomendações homogêneas. Na avaliação dos sopros, quando há dúvida sobre
Nesses casos, uma análise das características clínicas sua etiologia, para investigar a gravidade da valvopatia
deve nortear a indicação dos exames complementa- ou, ainda, na avaliação funcional de próteses valvares,
res. a Doppler-ecocardiografia é o método de escolha a ser
Em pacientes cardiopatas valvares, a identificação utilizado(9) .
e a interpretação correta de sopros revestem-se de gran-
de importância. O sopro, refletindo significativa tur- ENDOCARDITE INFECCIOSA
bulência intracardíaca, é um dos sinais mais freqüen-
tes de valvopatia, mas deve inicialmente ser diferenci- A endocardite infecciosa é uma séria complicação,
ado da não incomum manifestação de fenônemos associada a morbidade e mortalidade elevadas, à qual
hemodinâmicos fisiológicos, que podem caracterizar os pacientes portadores de valvopatias e próteses esta-
o sopro inocente ou funcional. Os sopros diastólicos rão expostos quando submetidos a procedimentos ci-
muito dificilmente são funcionais, e quase sempre re- rúrgicos passíveis de provocar bacteremia(10) . A indi-
sultam de doenças cardíacas orgânicas que devem ser cação de profilaxia para endocardite infecciosa
investigadas; as mais freqüentes são a insuficiência independe dos critérios de gravidade do risco cardía-
aórtica e a estenose mitral. Sopros sistólicos indicativos co discutidos anteriormente, pois deve ser feita mes-
de doença valvar associam-se quase sempre a estenose mo em lesões valvares leves. Insuficiência aórtica leve
aórtica ou pulmonar. secundária a degeneração valvar, muito freqüente em
A correta identificação etiopatogênica dos sopros idosos e habitualmente associada a ótima evolução
é importante para a recomendação básica inicial, bem clínica, pode transformar-se em endocardite com séri-
como para a recomendação de profilaxia de endocardite as conseqüências para o paciente. Portanto, o cuidado
infecciosa e, posteriormente, para a seleção de paci- de indicar o uso de antibióticos profiláticos de modo
entes que necessitam de avaliação quantitativa da se- correto antes dos procedimentos com risco de
veridade das lesões valvares. bacteremia nos pacientes com condições
As indicações para investigação e tratamento das predisponentes deve ser sempre ressaltado.
valvopatias nos pacientes candidatos a cirurgia não- A profilaxia da endocardite deve sempre ser
cardíaca são semelhantes aos pacientes em geral e são indicada nas condições consideradas de alto risco e
discutidas em recente consenso publicado pelas soci- moderado risco descritas na Tabela 1 e é desnecessá-
edades norte-americanas de Cardiologia (1,9) . ria nas condições de baixo risco ali descritas (9) .
As lesões estenóticas sintomáticas associam-se a Apesar da recomendação clara indicando a
risco de insuficiência cardíaca ou choque no período profilaxia de endocardite em todos os pacientes com
perioperatório, requerendo, freqüentemente, interven- valvopatias adquiridas (risco moderado), observamos,
ções de valvoplastia por balão ou troca valvar antes da na prática diária, que os portadores de estenose mitral
cirurgia não-cardíaca, para reduzir esse risco. As le- pura dificilmente apresentam essa complicação, tal-
sões regurgitantes são, geralmente, mais bem tolera- vez pelo relativo baixo gradiente encontrado na diástole
das e requerem apenas rígido controle das condições entre o átrio e o ventrículo esquerdo.
de volemia, freqüência cardíaca, pré- e pós-carga no Existem revisões e artigos específicos sobre o re-
intra- e no pós-operatório. Nos casos associados à de- gime de administração dos antibióticos na profilaxia
pressão significativa do desempenho sistólico do de endocardite. Em resumo, devem ser utilizados an-
ventrículo esquerdo (fração de ejeção menor que 35%), tibióticos bactericidas que sejam eficientes contra os

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ALMEIDA-FILHO OC e cols.
Avaliação pré-operatória de pacientes com doença cardíaca valvar

Tabela 1. Recomendações para profilaxia de endocardite infecciosa:

Categorias de alto risco: Há indicação para profilaxia


— Próteses valvares cardíacas
— Endocardite bacteriana prévia
— Cardiopatia congênita cianótica complexa (por exemplo, tetralogia de Fallot, transposição das grandes arté-
rias, ventrículo único)
— “Shunts” sistêmico-pulmonares construídos cirurgicamente (por exemplo, Blalock-Taussig)
Categorias de risco moderado: Há indicação para profilaxia
— Outras cardiopatias congênitas que não são classificadas como de alto nem como de baixo risco (por exem-
plo, valva aórtica bicúspide, coarctação de aorta, comunicação interventricular, persistência do canal arterial)
— Disfunções valvares adquiridas (por exemplo, seqüelas valvares de febre reumática)
— Cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva
— Prolapso da valva mitral com evidência de regurgitação e/ou degeneração valvar
Categorias de baixo risco: Não há indicação de profilaxia
— Comunicação interatrial tipo ostium secundum isolada
— Após seis meses de cirurgia para correção de comunicação interatrial, interventricular e persistência do canal
arterial sem lesões residuais
— Antes de cirurgia de revascularização miocárdica
— Prolapso valvar mitral sem regurgitação
— Sopro funcional ou inocente
— Doença de Kawasaki prévia sem disfunção valvar
— Portadores de marcapasso ou desfibrilador implantável

agentes patógenos potenciais presentes na flora local estenose aórtica é especiamente importante, visto que
da região a ser manipulada (por exemplo, boca ou uma área de 1,0 cm² pode ser funcionalmente grave
orofaringe — estreptococos; trato genitourinário ou em paciente de grande porte físico, enquanto uma área
trato gastrointestinal baixo — enterococos ou outro de 0,7 cm² pode não ser funcionalmente grave em pa-
agente Gram-negativo), obedecendo-se as recomen- ciente de menor porte. O consenso sobre valvopatias
dações consensuais publicadas.(9,10) publicado em 1998(9) pela duas sociedades norte-ame-
ricanas de Cardiologia estabelece como grave a
ESTENOSE AÓRTICA estenose aórtica com área valvar menor ou igual a 1,0
cm² e reafirma que em corações com função sistólica
A valva aórtica normal, quando aberta, apresenta normal deve-se esperar gradiente sistólico médio maior
área que varia de 3,0 cm² a 4,0 cm². Sabe-se que essa que 50 mmHg. Estabelece também que os valores ab-
área pode experimentar redução para cerca de um quar- solutos de área valvar e gradiente sistólico não devem
to desses valores máximos, sem que ocorram ser utilizados como determinantes primários para a
significantes alterações funcionais (11,12). Portanto, uma indicação de troca valvar. Nesse grupo de pacientes, a
área valvar de 0,75 cm² a 1,0 cm² nem sempre é consi- presença de sintomas é elemento indispensável para
derada crítica. Conceitualmente, considera-se estenose se definir a decisão terapêutica, em muitas circunstân-
aórtica grave quando encontramos área menor que 0,75 cias.
cm². Quando a função sistólica é normal, essa altera- Há virtual consenso sobre o risco elevado que re-
ção associa-se a gradiente sistólico médio entre o presenta a estenose aórtica severa nos pacientes can-
ventrículo esquerdo e a aorta maior que 50 mmHg. As didatos a procedimentos cirúrgicos não-cardíacos (1, 2)
medidas de área e gradientes, realizadas por meio dos A presença de barreira fixa ao esvaziamento do
estudos hemodinâmicos invasivos, apresentam ótima ventrículo esquerdo limita a capacidade de adaptação
correlação com os dados obtidos pela Doppler do coração aos eventuais estresses desencadeados pelo
ecocardiografia, desde que respeitadas as condições ato cirúrgico, resultando em alto risco de falência
ideais de janela ecocardiográfica e equipamentos apro- ventricular sistólica e congestão pulmonar. A
priados (9) . A presença de sintomas no portador de hipertrofia ventricular que acompanha a estenose

346 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ALMEIDA-FILHO OC e cols.
Avaliação pré-operatória de pacientes com doença cardíaca valvar

aórtica também concorre para instalação de disfunção hipertensão pulmonar (9) .


diastólica, tendendo a agravar a congestão pulmonar. Enquanto a área da valva mitral normal varia de
A associação de hipertrofia ventricular com obstrução 4,0 cm² a 5,0 cm², a redução para valores de 2,5 cm²,
da via de saída do ventrículo esquerdo predispõe o geralmente, não provoca alterações hemodinâmicas
indivíduo à isquemia miocárdica, com ou sem doença significativas ou sintomas(14) . Pacientes com área valvar
aterosclerótica coronariana associada. maior que 1,5 cm² não costumam ter sintomas em re-
Como regra, portadores de estenose aórtica grave pouso(15) . A área valvar, nos casos considerados críti-
e/ou sintomática, candidatos a procedimentos cirúrgi- cos, geralmente são menores de 1,0 cm². A freqüência
cos não-cardíacos de modo eletivo, devem ser subme- cardíaca é importante fator determinante das altera-
tidos previamente a troca valvar. Em raras situações, ções hemodinâmicas nessa valvopatia. A elevação da
nas quais, por alguma razão, a troca valvar aórtica não freqüência cardíaca determina encurtamento da fase
for possível, ou por recusa do paciente ou por contra- diastólica do ciclo cardíaco, o que reduz o tempo de
indicação formal, pode-se considerar a indicação de esvaziamento do átrio esquerdo, provocando maior
valvotomia aórtica percutânea por balão. Esse proce- elevação da pressão nessa câmara. Portanto, pacientes
dimento deve ser considerado de elevado risco e de portadores de lesões classificadas como moderadas
eficiência limitada, principalmente no subgrupo dos podem apresentar sintomas de congestão pulmonar
idosos (nos quais essa indicação é mais comum), pelo durante períodos de taquicardias. Isso tende a ocorrer
fato de as válvulas aórticas, geralmente, estarem quando aumenta a instabilidade elétrica atrial, princi-
calcificadas. Entretanto, respeitadas essas ressalvas, a palmente durante surtos de fibrilação atrial.
intervenção percutânea pode ao menos reduzir parcial Desse modo, a freqüência cardíaca deve ser muito
e temporariamente o gradiente transvalvar, permitin- bem controlada durante o período perioperatório em
do a realização da cirurgia não-cardíaca com menor qualquer portador de estenose mitral, evitando, a todo
risco. Posteriormente, a troca valvar pode ser reconsi- custo, episódios de taquicardia. Além disso, é funda-
derada. mental, nos pacientes com estenose mitral, o controle
Em algumas situações especiais, quando o pacien- rigoroso da volemia no período perioperatório, uma
te com estenose aórtica grave, sintomática, é submeti- vez que o excesso de volume aumenta o risco de edema
do a procedimento cirúrgico não-cardíaco em situa- agudo de pulmão nesses pacientes.
ção de extrema urgência, que não permite sequer a Os portadores de estenose mitral grave candidatos
consideração de procedimentos prévios, ou quando há a procedimentos cirúrgicos não-cardíacos, considera-
recusa do paciente à troca valvar ou à valvotomia por dos de alto risco, serão beneficiados com a indicação
balão, ou ainda quando esses procedimentos não este- prévia de valvoplastia percutânea mitral por balão ou
jam indicados e a intervenção não-cardíaca não possa intervenção cirúrgica clássica (comissurotomia) (16) .
ser evitada ou adiada, o rígido controle por meio de
monitorização invasiva agressiva durante o intra- e o INSUFICIÊNCIA AÓRTICA E MITRAL
pós-operatório permite reduzir o risco de complica-
ções para níveis aceitáveis (6,13) . Diversamente das lesões estenóticas, em que a pre-
sença de barreiras fixas limita a capacidade de adapta-
ESTENOSE MITRAL ção do coração, tornando, em determinadas condições,
inevitável a indicação de procedimentos de correção
Essa condição associa-se a dificuldade de esvazia- do defeito valvar antes da eventual cirurgia não-cardí-
mento do átrio para o ventrículo esquerdo, em decor- aca proposta, as lesões regurgitantes são geralmente
rência de obstrução do fluxo transvalvar mitral, pro- mais toleradas e passíveis de controle clínico, permi-
vocando aumento do gradiente diastólico entre essas tindo a realização das cirurgias indicadas com boa
câmaras. O aumento da pressão no átrio esquerdo re- margem de segurança.
flete-se na circulação venosa pulmonar, o que provo- A regurgitação aórtica grave predispõe o paciente
ca distensão de veias e capilares pulmonares, resul- à sobrecarga volumétrica do ventrículo esquerdo du-
tando em congestão pulmonar; edema pulmonar pode rante a cirurgia. Atenção especial deve ser dispensada
ser determinado mesmo quando a pressão nos capila- ao controle volumétrico, para evitar congestão pulmo-
res pulmonares excede a pressão osmótica do plasma. nar. Esses pacientes beneficiam-se, também, da redu-
Como resposta da circulação pulmonar, ocorrem ção da pós-carga ventricular esquerda, obtida com o
vasoconstrição, hiperplasia da íntima e hipertrofia da uso de inibidores da enzima de conversão,
média, que leva a aumento da resistência vascular e bloqueadores de cálcio ou com associação de nitrogli-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 347
ALMEIDA-FILHO OC e cols.
Avaliação pré-operatória de pacientes com doença cardíaca valvar

cerina e hidralazina. Em contraste com o que ocorre do seu esvaziamento e podendo, conseqüentemente,
na estenose mitral, os portadores de insuficiência mascarar depressões de contratilidade, pois a fração
aórtica beneficiam-se das freqüências cardíacas mais de ejeção pode permanecer normal ou pouco diminu-
elevadas, uma vez que o encurtamento da diástole ten- ída, enquanto, na verdade, a reserva funcional do
de a reduzir o volume regurgitante da aorta para o ventrículo esquerdo está comprometida (17) . Portanto,
ventrículo. Por outro lado, a bradicardia é desfavorá- pequenas reduções da fração de ejeção, nesses indiví-
vel, por aumentar o tempo da diástole e também o vo- duos, representam significativas depressões do desem-
lume regurgitante. penho sistólico.
É fundamental a investigação etiológica da
regurgitação valvar, já que o mesmo determinante dessa PRÓTESES VA LVARES CARDÍACAS
lesão pode ter conseqüências adicionais que influen-
ciam o risco cirúrgico. Portadores de próteses biológicas e metálicas de-
A sobrecarga volumétrica ventricular esquerda é vem receber profilaxia para endocardite antes de pro-
também a principal conseqüência fisiopatológica da cedimentos invasivos que provoquem bacteremia.
insuficiência valvar mitral. Medidas de redução da pós- Adicionalmente, é muito importante, na avaliação
carga e uso de diuréticos devem ser adotados no pré- pré-cirúrgica desse grupo de pacientes, o ajuste da
operatório dos procedimentos cirúrgicos não-cardía- medicação anticoagulante. Antes de procedimentos que
cos, visando ao equilíbrio hemodinâmico otimizado envolvam risco de hemorragia, a medicação
durante a cirurgia. Dependendo da situação, deve-se anticoagulante deve ser suspensa vários dias antes da
recorrer à monitorização invasiva intra- e pós-opera- cirurgia proposta, sendo substituída pela heparina. A
tória para garantir ao paciente estabilidade heparina tem meia-vida curta, e pode ser utilizada até
hemodinâmica. o mais próximo possível do ato cirúrgico. Após a ci-
A avaliação do desempenho sistólico do ventrículo rurgia, pode ser reiniciada assim que o risco de he-
esquerdo pela fração de ejeção nos portadores de in- morragias diminuir. Antes da alta hospitalar, o
suficiência mitral grave deve ser analisada cautelosa- anticoagulante oral pode ser reiniciado (18) .
mente. A regurgitação mitral representa, funcionalmen- Para procedimentos cirúrgicos menores, nos quais
te, uma segunda via de saída para o ventrículo esquer- o risco de hemorragia também é pequeno, é possível a
do. Essa via comunica-se com o átrio esquerdo e as redução dos anticoagulantes orais para níveis
veias pulmonares, territórios de baixa resistência que subterapêuticos durante o procedimento, retornando à
oferecem ao ventrículo pós-carga reduzida, facilitan- dose normal após sua realização.

348 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ALMEIDA-FILHO OC e cols.
Avaliação pré-operatória de pacientes com doença cardíaca valvar

PERIOPERATIVE EVALUATION OF VALVULAR HEART DISEASE PATIENTS

OSWALDO CESAR ALMEIDA -FILHO, ANDRÉ SCHMIDT , ANTÔNIO PAZIN-FILHO, BENEDIT O CARLOS MACIEL,
JOSÉ ANTÔNIO MARIN-NET O

Valvular heart disease is associated with increased risk of cardiovascular complications during noncardiac
surgery. The magnitude of this excess risk correlates with several factors, including: type of surgical procedure,
the degree of clinical urgency and the severity of the cardiac valvar disease.
Severe or symptomatic aortic stenosis is consensually viewed as a high risk predictor of cardiovascular
complications. Thus, in most clinical circumstances, before the noncardiac surgery is performed, it is
recommended balloon valvuloplasty or surgical valve replacement. In patients with severe mitral stenosis balloon
valvuloplasty is usually indicated for reduction of the transvalvular gradient and amelioration of the pulmonary
congestion, before the noncardiac surgery can be more safely done.
Regurgitant lesions are more commonly amenable to clinical control measures to reduce the ventricular
afterload, that should be initiated in the preoperative period and sustained throughout the operative and
postoperative phases. Intravascular rigorous monitoring is useful in most situations for identification and early
correction of common hemodynamic derangements such as hypotension, as well as rhythm disturbances such
as tachy or bradiarrhythmias. Preoperative evaluation of patients is based essentially in the clinical history and
careful physical examination. Invasive or non-invasive laboratory evaluation is indicated only when its results
are likely to yield relevant data for medical management of the patients.
It is important to emphasize the mandatory prophylaxis of infective endocarditis in all patients with acquired
valvar lesions or valvar prosthesis, even when not hemodinamically severe, because of the risk of bacteremia
during the surgical procedure. Also, patients on oral anticoagulant therapy should have their warfarin
discontinued and temporarily replaced by heparin when undergoing surgical procedures likely to impose high
risk of bleeding.
Key words: valvular heart disease, noncardiac surgery, perioperative evaluation, infectious endocarditis
prophylaxis.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:343-50)


RSCESP (72594)-987

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ALMEIDA-FILHO OC e cols.
Avaliação pré-operatória de pacientes com doença cardíaca valvar

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350 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ABORDAGEM PRÉ-OPERATÓRIA DE PACIENTES EM USO DE
ANTICOAGULANTES E ANTIAGREGANTES PLAQUETÁRIOS

RICARDO M ANRIQUE

Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia e Hospital do Coração


Endereço para correspondência: Av. Dr. Dante Pazzanese, 500 — CEP 04012-909 — São Paulo — SP

O uso de anticoagulantes e antiplaquetários ex- Entretanto, o risco hemostático também está presen-
pandiu-se nos últimos 10 anos, com novos métodos te, especialmente quando controlar uma hemorragia
não-invasivos permitindo o diagnóstico da trombose é indispensável, como num ato cirúrgico. A presente
venosa e dos quadros isquêmico-necróticos. O uso de revisão aborda esse problema: o preparo do paciente
drogas mais bem toleradas, com aplicação única e com anticoagulado ou em uso de antiplaquetários que ne-
menor incidência de efeitos colaterais explica a ex- cessita de cirurgia, seja no cenário emergencial ou
pansão dos anticoagulantes. A disponibilidade, o bai- eletivo. A primeira providência é descobrir, na anam-
xo custo do ácido acetilsalicílico e a ampla divulga- nese, o uso dessas drogas. A segunda, contar com um
ção de suas virtudes reduzindo o risco de quadros is- laboratório capaz de realizar as provas necessárias
quêmico-trombóticos incentivaram sua indicação pelo para identificar a intensidade do efeito das drogas e
médico, mas também a automedicação. O conceito da indicar as medidas de correção dessas alterações far-
aterotrombose e as novas técnicas de tratamento das macológicas, buscando o menor risco hemostático. O
oclusões vasculares incorporaram novas drogas na objetivo dessas medidas é assegurar hemostasia efici-
prevenção e terapia da hiperatividade plaquetária. Por ente, evitando a hiperatividade, por um fenômeno de
outro lado, a maior potência e o efeito imediato dessas rebote, dos fatores pró-trombóticos.
drogas também aumentaram o risco de hemorragia. Descritores: anticoagulantes, antiplaquetários,
Os benefícios da redução da atividade dos meca- pré-operatório, preparo para cirurgia cardíaca, pré-
nismos envolvidos na trombose são incontestáveis. operatório de cirurgia não-cardíaca.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:351-60)
RSCESP (72594)-988

I NTRODUÇÃO drogas e em evitar efeito rebote, com o perigo intrín-


seco de reproduzir o quadro oclusivo (1) . A razão desse
O objetivo mais importante de qualquer ato médi- perigo está caracterizada:
co é o benefício do paciente. No ato cirúrgico, esse 1. Na própria indicação da medicação anticoagulante
princípio associa-se, inicialmente, à sobrevida do pa- ou antiplaquetária. A condição primária para indi-
ciente e, posteriormente, à recuperação motivada pelo cação dessa categoria de drogas é um diagnóstico
ato cirúrgico. Toda operação provoca lesões em teci- de tromboembolismo ou grave risco do mesmo.
dos e vasos. A hemorragia conseqüente exige que a Quando suspensa a medicação antitrombótica, não
primeira condição a ser satisfeita seja uma hemostasia existe teste laboratorial rotineiro que permita iden-
eficiente do ponto de vista mecânico (suturas) e bioló- tificar o perigo iminente de uma recidiva.
gico para o controle do sangramento. 2. No efeito rebote causado pelo antídoto ou pela sim-
Nos pacientes usuários de medicação que reduz a ples suspensão dos antitrombóticos, que causa qua-
eficiência da hemostasia, seja a coagulação ou a fun- dro de hiperatividade coagulante ou hiper-reativi-
ção plaquetária, a satisfação dessa premissa é tarefa dade plaquetária, condições que podem determi-
complicada. O desafio está em reverter o efeito das nar recidiva de eventos isquêmico-necróticos.
Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 351
MANRIQUE R
Abordagem pré-operatória de pacientes em uso de anticoagulantes e antiagregantes plaquetários

O uso de anticoagulantes e antiagregantes permi- H EPARINA


tiu o controle de quadros tromboembólicos, tanto de
forma preventiva como terapêutica. A intervenção ci- A maior experiência no uso pré-operatório de
rúrgica tem que lidar com o problema da alteração heparina, sem interrupção, é na angina instável. Para
hemostática induzida por essas drogas. O risco imedi- cirurgia cardíaca NÃO é necessário suspender o uso
ato é de sangramento e suas conseqüências. Para de heparina no pré-operatório, seja na sua forma não-
minimizar esse problema é necessário o preparo do fracionada ou de baixo peso molecular.
paciente no pré-operatório. A primeira medida é uma Entretanto, deve-se tomar cuidado quando se pre-
boa anamnese, para descobrir o uso desse grupo de tende realizar qualquer tipo de manobra com uso de
drogas, especialmente ácido acetilsalicílico prescrito punção espinhal. Existindo essa necessidade, é impor-
pelo médico ou sob forma de automedicação. É im- tante realizá-la conhecendo a intensidade da
portante lembrar os muitos compostos com ácido anticoagulação com heparina e, se necessário, postergá-
acetilsalicílico que existem no mercado e o fato de al- la até que o tempo de coagulação ativado atinja valor
gumas vezes o paciente não considerar o produto como próximo de 150 segundos ou uma vez e meia o tempo
medicamento. As medidas de reversão do efeito de- de tromboplastina parcial ativado inicial. Além desses
vem considerar a intensidade do bloqueio valores, corre-se o risco de hemorragia aracnoídea se-
farmacológico. Para definir esse efeito, é fundamental cundária à punção. Um pequeno sangramento é capaz
a análise laboratorial que quantifica essa variável. de causar quadros neurológicos muito graves. No caso
Neste artigo, são expostas as técnicas utilizadas em do uso de heparina de baixo peso molecular, a janela
nossa prática no preparo de pacientes em uso de de segurança está após a quarta hora da última dose do
antitrombóticos para cirurgias cardíacas e não-cardía- medicamento: só então devemos realizar o procedi-
cas, sendo a primeira, com a adição de circulação mento. Em casos de dose da heparina de baixo peso
extracorpórea, a de maior risco hemostático. molecular corrigida pelo peso corporal ou pelo tempo
Do ponto de vista genérico, podemos classificar de tromboplastina parcial ativado, deve-se manter o
os pacientes para cirurgia cardíaca como portadores controle, medido entre a segunda e terceira horas após
de, no mínimo, uma destas três doenças: cardiopatia a última dose, dentro de uma vez e meia a duas vezes
congênita, valvulopatia e coronariopatia isquêmica. o valor inicial. Essas medidas reduzem o risco de com-
Cada um desses subgrupos tem uma característica plicações.
hemostática diferenciada. O congênito cianótico é Em associação com o uso de heparina, a
hipocoagulante e tem resposta fibrinolítica exacerba- toracotomia é acompanhada de sangramento maior,
da; o valvulopata evolui com eventual lesão hepática porém sem maiores conseqüências do ponto de vista
pela congestão crônica, hipovitaminose K se prescri- hemorrágico, especialmente em reoperações. Se o pa-
tos antibióticos ou quando em uso de anticoagulantes ciente estiver recebendo heparina não-fracionada e for
orais, se portador de prótese valvar mecânica; o verificado sangramento muito profuso, deve-se redu-
coronariano crônico é, geralmente, portador de hiper- zir a dose por via endovenosa e NÃO USAR
atividade plaquetária, de histórico de eventos vaso- PROTAMINA, pois, além de produzir eventual efeito
oclusivos e de risco trombótico aumentado. rebote, atrapalhará a anticoagulação durante o uso da
O paciente tratado com antitrombóticos, sejam bomba coração-pulmão. Isso sem considerar o efeito
anticoagulantes ou antiagregantes, geralmente apre- deletério do complexo heparina-protamina. Se o con-
senta doença de base que deve ser considerada, espe- trole laboratorial indicar prolongamento dos valores
cialmente quando há fatores de risco permanentes e além da faixa terapêutica, deve-se suspender tempo-
não removíveis, como genético, faixa etária, sexo mas- rariamente a infusão de heparina e continuar com a
culino, etc. operação e corrigir a dose durante a perfusão, tendo
como referência o valor do tempo de coagulação ati-
PREPARO PRÉ-OPERATÓRIO DO PACIENTE vado inicial.
ANTICOAGULADO Na vigência do uso de heparina de baixo peso
molecular ou heparina não-fracionada subcutânea ini-
Em casos especiais, é possível indicar intervenção ciada no pré-operatório e na indicação de uma cirur-
cirúrgica não-cardíaca sem modificar a medicação gia cardíaca, se o controle laboratorial indicar excesso
antitrombótica. Dependendo de algumas variáveis (tipo de heparina, devem-se realizar controles horários, es-
da cirurgia, medicação em uso, risco de vida do paci- perando para atingir um valor na faixa de segurança
ente), essa atitude pode ser correta. para iniciar o procedimento cirúrgico. O uso de

352 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
MANRIQUE R
Abordagem pré-operatória de pacientes em uso de anticoagulantes e antiagregantes plaquetários

protamina só está autorizado em caso de complicação ponto de ação hepático e seu efeito é revertido em
hemorrágica antes da cirurgia, e impossibilita a inter- período menor. A femprocumona, um dicumaríni-
venção imediata com circulação extracorpórea. Em se co, pela maior afinidade hepática, tem efeito com
tratando de emergência, o ato cirúrgico pode ser reali- duração mais prolongada. O período necessário
zado, considerando os riscos e o benefício. Mas sem- para essa reversão dura de 5 a 14 dias, dependendo
pre será um atitude excepcional. da capacidade endógena para produzir e da oferta
A plaquetopenia induzida pelo uso de heparina é exógena de vitamina K e da função hepática. O
uma complicação que implica avaliação cuidadosa do efeito dos anticoagulantes orais será mais intenso
caso. Deve-se suspender a heparina, que pode causar no subgrupo de pacientes com disfunção hepática
hemorragia secundária à plaquetopenia, trombose ar- e a recuperação, mais lenta. Assim, há casos nos
terial pelo chamado trombo branco (formação de quais o período acima é superado. Nesses pacien-
macroagregado de plaquetas) ou trombose venosa pro- tes, quando a indicação é de cirurgia de emergên-
funda. A seguir, deve-se reiniciar imediatamente a cia, sua condição cardiológica é incompatível com
anticoagulação oral (especialmente se o paciente é período de espera tão prolongado. Nessas circuns-
portador de válvula cardíaca protética mecânica). Além tâncias, deve-se oferecer uma alternativa terapêu-
disso, pode-se usar prednisona, 40 a 60 mg/dia, tanto tica compatível com a condição clínica. Essa é a
pelo efeito antiinflamatório como pelos efeitos indicação paro o uso de vitamina K, com o objeti-
imunossupressor e estímulo medular para a maturação vo de reversão rápida.
de megacariócitos.
A realização de plasmaferese depende da intensi- REVERSÃO DO EFEITO DO
dade do quadro e a transfusão de plaquetas só está ANTICOAGULANTE ORAL
indicada em caso de hemorragia ativa grave. Esses
procedimentos estão contra-indicados como forma de Por razões didáticas, o procedimento será dividido
tratamento preventivo, pois podem produzir aumento em dois:
do risco trombótico plaquetário e têm importante efeito 1) cirurgias eletivas; e
imunoativador da plaqueta. 2) cirurgias de emergência ou em pacientes que não
Com o uso de hirudina recombinada (Lepirudin®) têm condições cardiológicas para esperar a rever-
ou sulfato de heparan (Danaparoid®), em pacientes com são passiva do efeito do anticoagulante oral.
quadros vaso-oclusivos ou contra-indicação para Numa intervenção cirúrgica eletiva, os pacientes
anticoagulação oral, a reversão do quadro geralmente com INR na faixa terapêutica podem esperar cinco a
é observada no terceiro ou quarto dias, simplesmente sete dias até a normalização das condições
pela suspensão da heparina. procoagulantes. Nas emergências ou em pacientes com
alteração hepática crônica, com história recente ou
ANTIVITAMINAS K pregressa de insuficiência cardíaca congestiva
recidivante, a evolução deverá ser mais lenta. Nesses
Este é, sem dúvida, o maior desafio na indicação casos, deve-se prescrever vitamina K para acelerar a
de uma cirurgia. Os pacientes que pertencem a esse reversão, pois o tempo de recuperação prolongado
grupo ou têm história de trombose venosa profunda aumenta o risco cardiovascular do paciente.
ou embolia pulmonar, ou são portadores de prótese O valor de INR ideal para a intervenção cirúrgica
valvar mecânica, ou ainda estão evoluindo com trom- é de 1,2 a 1,3. No caso de paciente com indicação ci-
bose intracavitária atrial ou ventricular. Em resumo, rúrgica e anticoagulação plena, deve-se suspender o
trata-se de indicação cirúrgica em paciente com qua- anticoagulante oral e substituí-lo por heparina subcu-
dro de elevado risco trombótico. É evidente que nesse tânea não-fracionada ou heparina de baixo peso
grupo de pacientes não podemos suspender a molecular, sendo esta última a medicação de eleição(2) .
anticoagulação oral sem substituição, pelo risco de Com relação ao uso preventivo de heparina como
recidiva. As variáveis que definem este perigo são: anticoagulante ponte no pré-operatório, salvo circuns-
1. Evolução do quadro tromboembólico: quanto mais tâncias especiais, essa substância deve ser administra-
recente o último evento, maior o risco de recidiva da em doses menores que as usuais. Deve ser conside-
a curto prazo. rado o nível de anticoagulação que o paciente está no
2. Presença de fatores de risco não removíveis. início da retirada do anticoagulante oral, se está na
3. O tipo de anticoagulante oral: a warfarina sódica, faixa terapêutica ou acima dela ou ainda além da faixa
um monocumarínico, tem menor afinidade pelo de segurança. Além disso, deve-se considerar qual

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Abordagem pré-operatória de pacientes em uso de anticoagulantes e antiagregantes plaquetários

anticoagulante oral está sendo usado (warfarina sódica SUSPENSÃO DO ANTICOAGULANTE ORAL OU
ou femprocumona). REVERSÃO PASSIVA
Dentro da faixa terapêutica do INR (entre 2 e 3,5),
quanto maior o valor mais pode-se retardar o início do É importante saber qual o anticoagulante oral uti-
uso da heparina subcutânea, entre 24 e 48 horas após a lizado, pois a duração do período de anticoagulação
suspensão do anticoagulante oral. Em se tratando de será diferente. A warfarina sódica (Marevan®) tem
femprocumona, essa medida até pode ser adiada por menor afinidade pelo ponto de ação e perde o efeito
mais 24 horas, lembrando-se de que o paciente, no em menor tempo (cinco dias, em média) que a
início da retirada da anticoagulação oral, ainda está femprocumona (Marcoumar ®, sete dias). A recupera-
anticoagulado pelo cumarínico e o uso de heparina não ção do INR depende também da geração endógena, da
acrescenta segurança antitrombótica, podendo ser cau- ingestão e da absorção da vitamina K, assim como da
sa de sangramento. função hepática.
Quando o valor do INR está aquém da faixa tera- Esse processo multivariável pode significar perío-
pêutica, a heparina, por via subcutânea, pode ser ini- dos muito prolongados para a recuperação dos níveis
ciada simultaneamente à suspensão do anticoagulante hemostáticos dos fatores dependentes da vitamina K.
oral. Por outro lado, se o INR estiver além de 3,5, deve- Nesse espaço de tempo, está, sem dúvida, aumentado
se considerar que foi administrada dose exagerada de o risco de o paciente ser submetido a intervenção ci-
cumarínicos, ou que se trata de hipovitaminose K ou rúrgica.
de disfunção hepática. Para o grupo de pacientes com valor de INR muito
A hipovitaminose K é um problema decorrente do alterado, associado ao uso simultâneo de antibióticos,
uso de antibióticos de secreção biliar e eliminação di- como, por exemplo, na endocardite bacteriana não-
gestiva, que esterilizam o intestino e promovem a eli- responsiva ao tratamento clínico ou naqueles com in-
minação dos microorganismos saprófitos formadores suficiência cardíaca congestiva ou congestão hepática
de vitamina K. Nesses casos, propomos suspender o crônica, nos quais prevemos espera muito prolonga-
anticoagulante oral e iniciar a heparina, quando o INR da, indicamos vitamina K para reversão do efeito do
estiver próximo de 2. A administração de lactobacilos anticoagulante oral. A mesma indicação é feita para o
pode ajudar a recuperação. grupo de pacientes que não podem esperar os cinco ou
sete dias da recuperação passiva.
DOSE DE HEPARINA
USO DA VITAMINA K OU REVERSÃO ATIVA
De acordo com a experiência do autor, devem-se
utilizar as heparinas de baixo peso molecular, porque O uso de vitamina K é sempre precedido pela ad-
causam menos efeitos hemorrágicos e têm cobertura ministração subcutânea de heparina não-fracionada ou
terapêutica mais eficiente que a heparina não- heparina de baixo peso molecular. A vitamina K deve
fracionada(3) . Entretanto, seu uso rotineiro, em todos ser usada com parcimônia, na dose adequada, para re-
os ambientes hospitalares, é impossível por razões versão parcial do INR (alvo INR +1,2). Como a indi-
econômicas. As doses utilizadas para tratamento pre- cação primária para anticoagulação oral é o risco
ventivo em pacientes de baixo risco são: nadroparina, tromboembólico, o uso excessivo de vitamina K pode
0,3 ml (2,850 UI antifator Xa), por via subcutânea, a causar recidiva do quadro por rebote dos fatores
cada 24 horas; enoxaparina, 20 mg, por via subcutâ- procoagulantes.
nea, a cada 24 horas; dalteparina, 2.500 UI antifator Outra complicação do excesso de vitamina K é a
Xa, por via subcutânea, a cada 24 horas; e heparina “resistência” ao reinício da anticoagulação oral devi-
não-fracionada, 5,000 UI, por via subcutânea, de 12 do ao aumento do depósito de vitamina K (no tecido
em12 horas. adiposo), retardando o efeito dos cumarínicos (4, 5) .
Em pacientes de alto risco, como os portadores de
trombo cavitário, em válvula ou tromboembolismo DOSE DE VITAMINA K
recente, recomendamos: nadroparina, 0,3 a 0,6 ml, por
via subcutânea, a cada 24 horas; ou enoxaparina, 40 Se o INR estiver na faixa terapêutica (entre 2 e
mg, por via subcutânea, a cada 24 horas; ou dalteparina, 3,5), iniciar com 3 a 5 mg de vitamina K por via veno-
5.000 UI antifator Xa, por via subcutânea, a cada 24 sa e repetir o tempo de protrombina oito horas após a
horas; ou, ainda, heparina não-fracionada, 5.000 UI, administração. Uma ampola de fitomenadiona
por via subcutânea, de 8 em 8 horas. (Kanakion®) tem 10 mg de vitamina K1 em 1 ml. Aci-

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Abordagem pré-operatória de pacientes em uso de anticoagulantes e antiagregantes plaquetários

ma da faixa terapêutica (INR acima de 2), geralmente Em casos extremos, como o de um paciente que
são suficientes 2 mg de fitomenadiona como dose ini- não responde à vitamina K ou que não pode esperar as
cial. Finalmente, fora da faixa (INR além de 3,5), ini- seis horas necessárias para obter o efeito revertido do
ciar com 5 a 7 mg de vitamina K1. anticoagulante, e que apresenta valor de INR próximo
O tempo necessário para a síntese dos fatores de- de 2, espontâneo (não medicamentoso), secundário à
pendentes de vitamina K, contando com função hepá- insuficiência cardíaca congestiva refratária ou conges-
tica normal (fatores II, VII, IX e X), é de seis horas. tão hepática e com indicação cirúrgica, devem ser usa-
Por essa razão, o controle do tempo de protrombina dos fatores plasmáticos concentrados. Para o
não deve ser realizado antes desse período. Nos casos Prothromplex ou complexo de protrombina (fatores II,
em que o resultado indica insuficiente recuperação, IX e X), a dose depende da depressão pré-operatória
pode ser administrada uma dose de reforço, que, ge- dos fatores procoagulantes. O uso deve ser restrito ao
ralmente, é metade da inicial. período anterior à toracotomia no caso de intervenção
Para compreender o risco do uso exagerado da vi- cirúrgica cardíaca. Em média, para um adulto, são ne-
tamina K, deve-se lembrar que os fatores procoagu- cessários só dois a três concentrados de 600 UI. Essa
lantes dependentes da vitamina K são formados em quantidade, aparentemente pequena, é suficiente, pois,
duas etapas. Na primeira, o fígado sintetiza um pre- uma vez corrigida a alteração cardíaca, a normaliza-
cursor, uma proteína sem poder coagulante. Essa eta- ção dos parâmetros hemodinâmicos permite a rápida
pa não é influenciada pelo anticoagulante oral. A se- recuperação na síntese das proteínas procoagulantes.
gunda fase é a de vitamina K dependente, caracteri-
zando-se pela inserção de um aminoácido terminal que ANTIAGREGANTES PLAQUETÁRIOS NO
transforma o precursor em fator procoagulante passí- PRÉ- OPERATÓRIO
vel de ativação pelo cálcio (Fig. 1).
A literatura médica registra tra-
balhos que descrevem níveis ele-
vados de morbidade e de mortali-
dade em pacientes operados na vi-
gência do uso de ácido acetilsalicí-
lico ou ticlopidina, com problemas
hemostáticos graves no pós-opera-
tório, causando sangramento pro-
longado, hipovolemia e choque
com perda funcional orgânica múl-
tipla que pode levar a óbito(6-8) .
Nesses casos, a equipe cirúr-
gica muitas vezes procura em vão
obter o controle hemostático por
meios mecânicos de um quadro de
falência da hemostasia biológica.
Por outro lado, existem esco-
las que operam pacientes na vi-
Figura 1. Ciclo da vitamina K na síntese de fatores procoagulantes. gência do uso de antiplaquetári-
os. A justificativa apresentada é
que uma plaqueta com função
Quando se administra um anticoagulante oral, a controlada supera melhor o período de circulação ex-
primeira etapa da síntese não é suprimida, e a proteína tracorpórea, com hemostasia pós-operatória mais efi-
precursora continua sendo produzida e vai se acumu- ciente e com menor sangramento(9-12) .
lando, porque não é utilizada. Quando se administra Nossa experiência com estudos de função plaque-
excesso de vitamina K, a grande quantidade de pre- tária em controle de drogas antiagregantes indica que
cursor é transformada subitamente em fatores o grupo de pacientes em uso de antiplaquetários não é
procoagulantes, que desequilibram a homeostase na homogêneo e que entre eles há pacientes com hiper-
forma de uma hipercoagulação que clinicamente pode reatividade residual, normorreatividade e hiporreati-
se evidenciar como recidiva tromboembólica. vidade(12) (Fig. 2).

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Abordagem pré-operatória de pacientes em uso de anticoagulantes e antiagregantes plaquetários

Figura 2. Distribuição da reatividade plaquetária em pacientes tomando ácido acetilsalicílico no pré-operatório.

O problema para se utilizar racionalmente os almente, é desaconselhar intervenção cirúrgica cardí-


antiagregantes no pré-operatório está relacionado com aca com circulação extracorpórea quando o índice for
a identificação da parcela de pacientes hiporreativos menor que 90, suspender o ácido acetilsalicílico e ad-
por causa do uso desses medicamentos e que constitu- ministrar um antiplaquetário que não produz
em a coorte em risco de sangramento operatório. Essa hipofunção, como a pentoxifilina 400 mg a cada doze
premissa é importante, pois não há sentido em retirar horas, por via oral, vitamina C 1 g/dia por via oral e
os antiplaquetários cinco a sete dias antes da operação estrogênios conjugados 20 mg por via venosa a cada
para todos os pacientes, pois alguns podem tornar-se oito horas. A associação com pentoxifilina evita even-
hiper-reativos e sofrer um evento oclusivo intra-ope- tual efeito rebote plaquetário, com aumento do risco
ratório, geralmente com grave evolução. trombótico. Geralmente, 48 a 72 horas depois é possí-
Em 1990, iniciamos a observação dos pacientes vel realizar a operação com segurança. Os estrogênios,
que, em uso de antiagregantes, eram submetidos a ci- por sua sua vez, atuam sobre o colágeno perivascular
rurgia cardíaca com circulação extracorpórea. Obser- e melhoram a permeabilidade vascular (1) .
vamos que o sangramento ocorria em até 90% daque- O risco de sangramento também aumenta em rela-
les com índice de reatividade plaquetária menor que o ção a outros parâmetros, tais como as reoperações, onde
limite inferior normal. O índice é calculado a partir de as aderências naturais formadas após a primeira cirur-
quatro provas de estimulação plaquetária. A faixa da gia oferecem área cruenta maior, que favorece
normalidade está entre 23% e 35% da escala para cada sangramento na vigência de condições hemorrágicas
prova e valores acima de 35% indicam hiper- preexistentes. O risco também está aumentado na pre-
reatividade. O índice de reatividade é a soma dos va- sença de anormalidades em outros fatores hemostáticos
lores máximos de cada prova: de 90 a 140 é conside- e na presença de história de sangramentos prévios.
rado normal; acima de 140, indica hiper-resposta; e Se o índice está na faixa da normalidade, o pacien-
menor que 90, hipofunção (Fig. 3). te é liberado para a operação, sem acréscimo
Em até 90% dos casos com sangramento em paci- terapêutico. Nesse caso, não é uma contra-indicação o
entes com uso de ácido acetilsalicílico havia relação fato de o paciente ter recebido ácido acetilsalicílico,
com hiporreatividade plaquetária. Nossa atitude, atu- ticlopidina ou ambos no dia anterior à cirurgia.

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Abordagem pré-operatória de pacientes em uso de anticoagulantes e antiagregantes plaquetários

Diagnóstico de reatividade plaquetária


Figura 3. Índice de reatividade plaquetária.

O paciente cujo índice mostra hiper-reatividade está benefícios com essa prática:
liberado para cirurgia e, no caso de índice maior de 1. Redução do sangramento pós-operatório. No grupo
160, até 240, indicamos 300 mg de pentoxifilina dilu- de pacientes com uso prévio de antiplaquetários
ída com 250 ml de soro glicosado, infundida na velo- em que foi determinado o índice de reatividade
cidade de 50 ml/hora desde a indução anestésica. O plaquetária no pré-operatório, aqueles com índice
princípio dessa terapia de emergência é que as na faixa da normalidade apresentaram média de
plaquetas hiper-reativas serão perdidas na circulação drenagem torácica em 48 horas estatisticamente
extracorpórea, seqüestradas pela adesão a superfícies semelhante à do grupo que não usa antiplaquetários
não endotelizadas e na formação de microtrombos (601,02 + 402,51 ml e 548,30 + 298,50 ml, respec-
plaquetários. Tanto a ativação das plaquetas com libe- tivamente) (Figs. 4 e 5).
ração de substâncias pró-agregantes como a 2. No grupo que apresentava índice acima de 160 e
plaquetopenia resultante do seqüestro e consumo de que foi tratado com pentoxifilina endovenosa, não
plaquetas podem causar o paradoxo de trombose e observamos quadros oclusivos no perioperatório.
sangramento. A maioria dos infartos perioperatórios 3. Para os pacientes que apresentam hiporreatividade
está relacionada a esse fenômeno. plaquetária, recomendamos adiar a operação. Nos
Se o índice for maior que 240, indicamos últimos dez anos, tomamos essa atitude em 264
pentoxifilina por via venosa, na dose de 700 mg dilu- casos, tendo sido observada apenas uma vez evo-
ída em 240 mg de soro glicosado e infundida na velo- lução indesejável, com crise anginosa grave e mor-
cidade de 10 ml/hora, iniciando-se 12 horas antes da te. Nesse caso, não foi utilizada terapia antiagre-
operação e continuando na UTI por 48 a 72 horas. Pos- gante complementar com drogas de segunda linha,
teriormente, o antiagregante oral pode ser utilizado de após a suspensão do ácido acetilsalicílico.
forma rotineira. É importante que a medicação seja Uma nova família de antiplaquetários, atualmente
infundida em veia periférica com auxílio de bomba de em uso, é a dos inibidores dos receptores plaquetários
infusão. IIb/IIIa, fundamentalmente utilizados para reduzir aci-
Nossa atual política em relação aos antiplaquetários dentes oclusivos agudos durante manobras hemodinâ-
é que essas drogas não contra-indicam cirurgia cardí- micas terapêuticas em pacientes de alto risco trombó-
aca com ou sem circulação extracorpórea. A contra- tico coronariano. Em casos de falência do procedimen-
indicação é decorrente de hipoagregação induzida pela to hemodinâmico e na indicação de revascularização
dose excessiva do antiplaquetário. Da análise dessa cirúrgica de emergência, devemos valorizar alguns ele-
hiporreatividade plaquetária chegamos à conclusão de mentos clínicos:
que ela pode ser produzida por qualquer dose de ácido a) A situação cardiológica é muito instável?
acetilsalicílico ou ticlopidina. Esse resultado indica que b) Existem outros fatores que indicam intervenção
existem variáveis farmacodinâmicas individuais que imediata?
precisam ser consideradas. Temos observado alguns c) O risco de adiar a cirurgia por doze horas é mui-

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Abordagem pré-operatória de pacientes em uso de anticoagulantes e antiagregantes plaquetários

Figura 4. Drenagem em paciente em uso de ácido acetilsalicílico e com índice de reatividade plaquetária > 100.

to elevado? o paciente em tratamento antiplaquetário prévio (com


d) O abciximab está associado a outros ácido acetilsalicílico e ticlopidina) à angioplastia re-
antiplaquetários? cebe abciximab(13) . Caso ocorra insucesso na
O efeito do abciximab após a suspensão da admi- angioplastia e exista a necessidade de cirurgia cardía-
nistração é curto. Observamos que após doze horas a ca, recomendamos que, se possível, esta seja realiza-
recuperação é da ordem de 60% da resposta normal, da sem circulação extracorpórea, que seja feita trans-
permitindo a realização de uma operação com relativa fusão de plaquetas, monitorando a função plaquetária
segurança. Entretanto, recomendamos que o momen- e iniciando a toracotomia com recuperação de 60% da
to operatório deva ser individualizado pela determina- reatividade plaquetária, e que seja suspensa a admi-
ção do índice de reatividade plaquetária. Em condi- nistração de heparina não-fracionada. Nesses casos,
ções críticas, com grande instabilidade da circulação as heparinas de baixo peso molecular são as drogas de
coronária e indicada cirurgia de emergência, a recupe- eleição e deve ser respeitada a janela de quatro horas
ração pode ser induzida mediante a transfusão para iniciar a operação. Em caso de indicação de ci-
plaquetária imediatamente antes da toracotomia. rurgia imediata, a heparina de baixo peso molecular
A situação hemostática é realmente crítica quando deve ser usada somente no pós-operatório imediato.

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Figura 5. Drenagem em paciente sem uso de ácido acetilsalicílico e com índice de reatividade plaquetária > 100.

PREOPERATIVE APPROACH OF PATIENTS USING ANTICOAGULANTS AND


ANTIPLATELETS

RICARDO MANRIQUE
The use of anticoagulants and antiplatelets has increased very fast in the last 10 years. New and non invasive
diagnostic methods allow a diagnostic confirmation of venous thrombosis and ischemia. New drugs with less
side effects and better tolerability can be administered once a day explaining the increasing use of the
anticoagulants. Great availability and lower cost are the reasons for the popularity of aspirin. The benefits in
the prevention of arterial occlusions increased the use of aspirin by medical prescription and auto-medication.
The concept of atherothrombosis and new methods to treat vascular occlusions brought new drugs for the
prevention and treatment of platelets hyperactivity. These are more potent and its principal side effect is bleeding.
The benefits of the control of thrombosis risk factors are important but the hemorrhagic risk must be reevaluated
when the hemostatic functions are needed like in surgery procedures. This review outlines these problems,
preoperatory preparation of patients on anticoagulants or antiplatelets, submitted to emergency or elective
surgery. The first step is to check if the patient is using this medication. The second is to run laboratory tests to
disclose the intensity of the inhibition effect and perform pharmacological reversion. The goal of these measures
is to achieve a partial reversion, enough to assure an efficient hemostatic control and avoiding a hyperactivity
rebound of the pro-thrombotic factors.
Key words: anticoagulants, antiplatelets, pre-operative, preparation for cardiac surgery, preoperative of
non cardiac surgery.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:351-60)
RSCESP (72594)-988

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Abordagem pré-operatória de pacientes em uso de anticoagulantes e antiagregantes plaquetários

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360 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ABORDAGEM PRÉ -OPERATÓRIA DE GESTANTE CARDIOPATA

WALKIRIA SAMUEL AVILA , MAX GRINBERG

Instituto do Coração — HC-FMUSP


Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 — CEP 05403-000 — São Paulo — SP

Cirurgia na gravidez representa intercorrências Quanto ao prognóstico fetal da cirurgia durante a


agudas ou agravamento do quadro clínico refratário gravidez, está relacionado ao quadro clínico materno
à terapêutica não-intervencionista. A avaliação pré- e à época da intervenção cirúrgica, considerando-se
operatória da gestante portadora de cardiopatia im- que no segundo trimestre são menores os riscos de
põe conhecimentos sobre: interação entre cardiopatia teratogenia, de abortamento e de parto prematuro. A
e gravidez; medidas de prevenção das principais com- asfixia intra-útero conseqüente à cirurgia materna está
plicações e seleção dos agentes e das técnicas relacionada a redução de perfusão uteroplacentária,
anestésicas apropriadas; aspectos fetais e obstétricos; vasoconstrição ou aumento do tônus uterino, efeitos
aspectos da cirurgia não-cardíaca; e, finalmente, pre- que podem ser prevenidos com a manutenção da pres-
paro para o parto. são arterial e a adequada saturação materna de oxi-
Considera-se que o estado gestacional confere gênio.
maiores morbidade e mortalidade maternas porque a Cirurgia durante a gravidez de mulheres portado-
fisiologia da gestação pode modificar sinais e sinto- ras de cardiopatias exige planejamento pré-operató-
mas que dificultam o diagnóstico e retardam o trata- rio rigoroso e integrado entre obstetra, cardiologista,
mento, acrescentando maior risco materno. Além dis- anestesiologista e cirurgião.
so, esses casos geralmente estão associados à maior Descritores: gravidez, cardiopatia, complicação
gravidade da doença cardíaca ou não e à pior situa- cirúrgica, cirurgia na gravidez, mortalidade mater-
ção clínica da paciente. na, mortalidade fetal.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:361-70)
RSCESP (72594)-989

I NTRODUÇÃO co ou fetal, tipo e extensão do procedimento.


Considera-se que o estado gestacional confere
Cirurgia na gravidez, de modo geral, representa maiores morbidade e mortalidade maternas (2) , porque
intercorrência aguda ou agravamento do quadro clíni- as modificações fisiológicas da gravidez (3) podem am-
co refratário à terapêutica não-intervencionista. Esti- pliar ou obscurecer sinais e sintomas que dificultam o
ma-se que intervenções cirúrgicas, excluindo-se a ce- diagnóstico e retardam o tratamento, acrescentando
sariana, correspondam de 0,2% a 2,2% nas gestações(1) maior risco materno. Além disso, esses casos geral-
e requerem a integração multidisciplinar entre obste- mente estão associados à maior gravidade da doença
tra, cardiologista, anestesiologista e cirurgião. cardíaca ou não e à pior situação clínica da paciente.
As urgências cirúrgicas agudas incidem com igual Quanto ao prognóstico fetal da cirurgia durante a
freqüência em mulheres grávidas e não-grávidas, em gravidez, está relacionado ao quadro clínico materno
idades semelhantes, e exigem planejamento pré-ope- e à época da intervenção cirúrgica, considerando-se
ratório, que inclui rigorosa anamnese e exame físico que no segundo trimestre são menores os riscos de
apoiado em exames que não envolvem risco obstétri- teratogenia, de abortamento e de parto prematuro (4) .

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AVILA WS e col.
Abordagem pré-operatória de gestante cardiopata

A avaliação pré-operatória desse grupo peculiar de hipotensão arterial decorrente da anestesia regional ou
gestantes impõe conhecimentos sobre: interação en- de sangramento pode causar hipervolemia, considera-
tre cardiopatia e gravidez; medidas de prevenção das da a causa mais freqüente de edema agudo dos pul-
principais complicações e seleção dos agentes e das mões em gestantes cardiopatas. Por outro lado,
técnicas anestésicas apropriadas; aspectos fetais e obs- hipotensão arterial não controlada pode causar baixo
tétricos; aspectos da cirurgia cardíaca e não-cardíaca; débito cardíaco em pacientes com cardiopatias graves
e, finalmente, preparo para o parto. do tipo obstrutivo ou doença vascular pulmonar.
Outro fato peculiar de cirurgia durante a gravidez
PLANEJAMENT O CIRÚRGICO E é a dificuldade na intubação endotraqueal (8) , que, as-
CARDIOPATIA M ATERNA sociada a alterações respiratórias fisiológicas da ges-
tação(3) , favorece a inadequada ventilação materna,
A presença de cardiopatia eleva a morbidade e a proporcionando hipoxia, hipercapnia e acidose mater-
mortalidade da cirurgia na gestação em decorrência na, que acarretam aumento da resistência vascular pul-
do aumento do débito cardíaco(5) , do consumo de oxi- monar e hipotensão arterial. Em contrapartida, a
gênio e das variações da pré- e pós-carga(6) . Por isso, a hiperventilação causa alcalose e redução do retorno
avaliação pré-operatória da gestante cardiopata deve venoso, do débito cardíaco e da pressão arterial.
incluir condutas para prevenir as complicações mais Em gestantes portadoras de cardiopatias congêni-
freqüentes no intra e no pós-operatório, como insufi- tas com comunicação intracavitária ou vascular, redu-
ciência cardíaca, tromboembolismo e endocardite in- ções bruscas da resistência vascular sistêmica ou ele-
fecciosa. vação da resistência vascular pulmonar podem exa-
A prevenção da insuficiência cardíaca, da conges- cerbar o fluxo sanguíneo direito-esquerdo e agravar a
tão pulmonar e da síndrome de baixo débito cardíaco cianose e a hipoxemia materna. Por outro lado, a ele-
inclui medidas descritas na Tabela 1, que devem ser vação da resistência vascular sistêmica resulta em au-
mantidas durante e após a cirurgia, com a finalidade mento do fluxo esquerdo-direito e do fluxo sanguíneo
de minimizar as variações hemodinâmicas decorren- pulmonar e agravamento da hipertensão arterial pul-
tes do procedimento e da anestesia. monar.
Pacientes com doença vascular pulmonar grave,
Tabela 1. Recomendações pré-operatórias para cirur- com baixa saturação de oxigênio arterial, habitualmen-
gia geral na gestante cardiopata. te apresentam alto risco de sangramento no parto e
puerpério, que pode ser minimizado com a adminis-
— Controlar a freqüência cardíaca (70 a 90 batimentos/ tração de soluções de Ringer lactato ou plasma fresco.
min) O uso de vasodilatadores, como diltiazem, prostaglan-
— Tratar as arritmias cardíacas dinas E1 e prostaciclinas, tem sido recomendado com
— Fazer o cálculo adequado da infusão de líquidos a finalidade de reduzir a resistência vascular pulmo-
— Controlar a pressão arterial nar e a pressão na artéria pulmonar e aumentar o débi-
— Evitar oscilações na resistência vascular sistêmica to cardíaco, porém a escassez de estudos não permite
e pulmonar concluir sobre os reais benefícios dessas medidas para
— Evitar o uso de drogas depressoras do miocárdio mãe e feto.
É importante enfatizar, nas emergências cirúrgicas
durante a gravidez, que a aspiração do conteúdo gás-
Sob esse aspecto, o aumento da freqüência cardía- trico é facilitada pelo retardo de seu esvaziamento(9) e
ca e a ocorrência de arritmias durante ou após a inter- pelos desvios da posição do estômago e do ângulo da
venção cirúrgica são causas comuns de congestão pul- junção gastroesofágica, decorrentes do aumento
monar em portadoras de estenose mitral ou de baixo uterino, sendo considerada, nessa situação, importan-
débito cardíaco nas pacientes com cardiomiopatia. te causa de óbito materno.
Recomenda-se manter a freqüência cardíaca entre 70 A terapêutica farmacológica previamente usada deve
e 90 batimentos/min e, na eventual ocorrência de ser mantida no pré-operatório, porém o uso de fármacos
taquicardia supraventricular ou fibrilação atrial agu- depressores do miocárdio devem ser evitados no intra-
da, aplicar cardioversão elétrica, considerada não no- operatório dos casos que apresentam rebaixamento da
civa ao concepto(7) , para a reversão imediata ao ritmo função ventricular, embora possam ser benéficos nas
sinusal. cardiomiopatias hipertróficas pelo efeito de relaxamen-
A infusão inadequada de líquidos para controle da to da via de saída do ventrículo esquerdo.

362 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
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Abordagem pré-operatória de gestante cardiopata

Quanto à monitorização intra-operatória, recomen- reintroduzidos seis horas após (14) .


da-se o uso do oxímetro de pulso e administração su- A endocardite infecciosa é uma complicação de-
plementar de oxigênio para melhorar a saturação de corrente de bacteremia causada por procedimentos ou
oxigênio da mãe e do feto e, em alguns casos, reduzir instrumentação cirúrgica ou por infecção em pacien-
a resistência vascular pulmonar. Deve ser usado um tes com defeitos estruturais cardíacos preexistentes. A
cateter na artéria, para registro da medida da pressão incidência de endocardite após cirurgia em pacientes
arterial média e coleta seriada da gasometria, e outro com doença cardíaca preexistente não é alta; por isso,
em veia de grosso calibre, para aferir a pressão venosa a profilaxia com antibióticos exige considerações so-
central, essencial para o controle da infusão de líqui- bre os riscos da cardiopatia preexistente, da bacteremia
dos e para a identificação precoce da falência pelo procedimento e das reações adversas dos agentes
ventricular. para o feto e para a mãe (15) .
A instalação do cateter de Swan-Ganz no intra- Dificuldades clínicas e laboratoriais no diagnósti-
operatório de gestantes com cardiopatia grave, em par- co da endocardite na gravidez elevam as taxas de mor-
ticular doença vascular pulmonar, é controversa, (10,11) talidade, (16) acrescentando uma razão para a indicação
considerando-se as dificuldades em posicioná-lo e da profilaxia com antibióticos nas intervenções cirúr-
impactá-lo na artéria pulmonar, e os riscos de perfura- gicas. Deve-se recomendá-la para pacientes de alto
ção e de outras complicações, como embolia gasosa, risco, portadoras de prótese valvar, com episódio pré-
pneumotórax e arritmias. vio de endocardite infecciosa e com cardiopatia con-
Outra medida que deve ser discutida no planeja- gênita cianótica, e de moderado risco, como insufici-
mento de cirurgia durante a gravidez é a prevenção do ência valvar, cardiomiopatia hipertrófica, cardiopatias
tromboembolismo. A gravidez, por si só, predispõe à congênitas não corrigidas e prolapso mitral com
trombose em decorrência da combinação de estase regurgitação valvar.
sanguínea por efeitos hormonais e mecânicos e de A profilaxia com antibióticos recomendada(17) va-
hipercoagulabilidade por aumento dos fatores de coa- ria com o procedimento cirúrgico e não deve ser mo-
gulação, redução da fibrinólise e de proteínas dificada pelo estado gestacional, porque o período e a
fibrinolíticas. (12) Acrescem, ainda, fatores que elevam dose dos antibióticos não têm efeitos nocivos com-
o risco de tromboembolismo, como obesidade, provados sobre o concepto.
hospitalização prolongada, idade gestacional mais
avançada, paridade e intercorrências cirúrgicas. PLANEJAMENT O PRÉ -OPERATÓRIO DA
A prevenção do tromboembolismo na gestante ANESTESIA
cardiopata exige que se estabeleça o risco/benefício
da anticoagulação, (13) devendo-se avaliar o grau de O objetivo da anestesia é prevenir a dor e a ansie-
prevalência de risco de tromboembolismo, de acordo dade e proporcionar condições clínicas adequadas para
com a situação clínica da paciente. Considera-se que a realização da cirurgia, sem risco para mãe e feto,
gestantes com fibrilação atrial crônica, antecedentes ponderando-se fatores individuais como tipo do pro-
de tromboembolismo, trombo intracavitário e cedimento, estado clínico e emocional da paciente, tipo
cardiomiopatia dilatada apresentam moderado risco, da cardiopatia e idade gestacional.
enquanto gestantes com fibrilação atrial associada a Na programação da anestesia, deve-se considerar,
valvopatia mitral ou portadoras de próteses mecâni- com esmero, as intercorrências, que não são raras,
cas apresentam alto risco de tromboembolismo (14) . descritas na Tabela 2, que podem ser controladas ade-
Embora ainda objeto de controvérsia, a heparina (14) quadamente na mulher grávida não-cardiopata, mas
é o anticoagulante eletivo durante a gravidez, pois, além que na gestante cardiopata elevam a taxa de mortali-
de eficaz, não é nociva ao concepto, uma vez que não dade da mãe e do feto.
atravessa a barreira placentária. O esquema pré-ope- O conhecimento sobre a interação entre as modifi-
ratório de anticoagulação recomendado é heparina não- cações fisiológicas induzidas pela gravidez e a ação
fracionada intravenosa (IV) na dose de 40.000 UI/dia de agentes ou técnicas anestésicas é fundamental na
ou heparina de baixo peso molecular na dose de 1 mg/ seleção prévia da anestesia a ser aplicada em gestan-
kg/dia para as pacientes de alto risco; e heparina não- tes cardiopatas (Tab. 3 ). (18)
fracionada IV na dose de 20.000 UI/dia ou heparina Assim, agentes anestésicos como ketalar, efedrina
de baixo peso molecular na dose de 20 mg/dia para as ou enflurane elevam ainda mais a freqüência cardíaca
pacientes de risco moderado. Os dois esquemas de- da gravidez e podem causar congestão pulmonar ou
vem ser suspensos doze horas antes da cirurgia e baixo débito cardíaco(19) . Por outro lado, os inalatórios,

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Abordagem pré-operatória de gestante cardiopata

da veia cava inferior pelo útero gravídico(19) .


Tabela 2. Intercorrências na cirugia que elevam a
É importante ressaltar que o bloqueio simpático
morbidade e a mortalidade da mãe e do feto.
pode interferir na resposta reflexa da hipotensão supina
da gravidez e agravar a hipotensão arterial durante a
Prejuízo da ventilação
cirurgia, intercorrência minimizada por medidas como
— Depressão respiratória: exagero nas doses de
indução lenta do bloqueio, hidratação apropriada ou
sedativo e narcóticos na anestesia intravenosa
administração de drogas vasopressoras.
ou inalatória
De modo geral, a anestesia regional é bem tolera-
— Obstrução respiratória: relaxamento da língua,
da pela gestante cardiopata; contudo, a redução do re-
corpo estranho ou desvio da cânula endotraqueal
torno venoso pode causar baixo débito cardíaco grave
— Paralisia da musculatura respiratória:
e fatal nos casos de cardiopatias importantes do tipo
na anestesia espinhal
obstrutivo e de hipertensão arterial pulmonar. Além
Hiperventilação artificial
disso, a hiperidratação para o controle da hipotensão
— Alcalose importante
arterial pode desencadear congestão pulmonar, como
Hipotensão arterial
nos casos da estenose mitral.
— Bloqueio subaracnóide
O planejamento da anestesia para o parto inclui as
— Bloqueio caudal ou peridural
mesmas considerações para outros tipos de cirurgia,
— Bloqueio simpático lombar
devendo-se salientar que a gestante parturiente tem
— Reação tóxica
tendência a apresentar falência ventricular no segun-
Hipertensão materna
do estágio do parto ou no puerpério imediato. As dro-
— Dose exagerada de vasopressor
gas utilizadas na analgesia, como sedativos, tranqüili-
— Hipercapnia importante
zantes, opiáceos e agentes derivados da ketamina, não
— Reação tóxica
estão isentas de riscos, pois associam-se a depressão
Depressão respiratória fetal por ação direta
respiratória materna, oscilações da freqüência cardía-
de drogas
ca fetal e depressão neonatal(19) .
Por outro lado, as drogas por inalação de misturas
Tabela 3. Vantagens da anestesia regional sobre a ge- gasosas têm proporcionado alívio importante da dor
ral, durante o parto de gestante com cardiopatia. durante as contrações uterinas e são eliminadas rapi-
damente pelos pulmões, minimizando a depressão do
— Eficácia no alívio da dor e anestesia para interven- neonato quando comparadas à administração sistêmica
ção obstétrica de opiáceos. Contudo, a aplicação desses agentes re-
— Aumento do fluxo placentário, mesmo sob altas quer muito cuidado, devido à perda de reflexo das vias
concentrações plasmáticas de catecolaminas, respiratórias e inconsciência e, quando usados em al-
cortisol e beta-endorfinas, que ocorrem durante o tas doses, podem aumentar o sangramento no pós-par-
parto to por interferência na contração uterina. (19)
— Redução do consumo de oxigênio A anestesia geral é indicada para o parto cesáreo.
— Participação da mãe no nascimento de seu filho Cuidados no pré-operatório incluem administração de
— Depressão do neonato mínima ou inexistente antiácidos solúveis, desvio do útero para a esquerda,
— Aspiração pulmonar praticamente inexistente pré-oxigenação seguida de rápida indução, pressão da
cartilagem cricóide e intubação endotraqueal, mano-
bras que podem ser dificultadas em casos graves, com
como os halogenados, e os indutores intravenosos são instabilidade hemodinâmica. Nessas situações, a
relaxantes uterinos e elevam o fluxo placentário, mas indução anestésica lenta e controlada pode ser obtida
são depressores do miocárdio e devem ser evitados em com administração de altas doses de narcóticos, que
casos de disfunção ventricular (19) . proporcionam homeostase hemodinâmica, porém não
Quanto às técnicas, a anestesia regional (peridural e é isenta de riscos de aspiração traqueal e de depressão
a raquidiana) reduz a pré-carga devido à dilatação dos neonatal.
vasos de capacitância venosa e seqüestro de sangue pela Nos últimos anos, tem sido preconizada a aplica-
circulação periférica, com conseqüente diminuição do ção direta de baixas doses de opiáceos no espaço su-
retorno venoso, do débito cardíaco e do fluxo placentá- baracnóide ou peridural, pois não têm contra-indica-
rio. Habitualmente, há hipotensão arterial, que pode ser ção para cardiopatas, favorecem excelente anestesia
controlada pela adequada hidratação e descompressão para o trabalho de parto, preservam as funções propri-

364 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
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Abordagem pré-operatória de gestante cardiopata

oceptivas, especialmente simpáticas, e minimizam a ASPECTOS FETAIS E OBSTÉTRICOS DURANTE


redução da resistência vascular periférica que ocorre A CIRURGIA NA GRAVIDEZ
nos bloqueios induzidos com anestésicos locais. (20)
Na seleção da técnica anestésica para o parto, de- A avaliação pré-operatória durante a gestação in-
vem-se salientar as vantagens dos bloqueios regionais clui: riscos fetais associados a exposição à radiação
(espinhal, peridural e caudal) sobre a anestesia geral para o diagnóstico, necessidade do uso de fármacos,
em gestante portadora de cardiopatia (Tab. 4). tipo de anestesia e seus agentes, doença materna e tipo
de intervenção cirúrgica.
Dentre as modalidades de exames por imagem usa-
Tabela 4. Princípios gerais do planejamento da cirur-
dos como complementação para o diagnóstico, como
gia geral na gravidez.
ultra-sonografia e ressonância magnética, a radiogra-
fia é a mais preocupante pelo risco fetal. O Consenso
— Atraso tanto no diagnóstico como da cirurgia são
Nacional sobre Proteção à Radiação considera que a
os principais fatores de morbidade e mortalidade
possibilidade de malformações do concepto submeti-
— O segundo trimestre é a fase gestacional mais se-
gura para a mãe e para o feto do a exposição menor que 5 rads é desprezível quando
— Técnicas cirúrgicas não devem ser modificadas por comparada com outros riscos da gravidez. Estima-se
causa da gravidez que as doses de radiação ionizante recebidas pelo feto
— Incisão mediana baixa ou transversa é a preferida em radiografias sejam, excepcionalmente, superiores
na primeira metade da gestação a 5 rads. (21)
— Incisão umbilical deve ser usada na segunda meta- As conseqüências obstétricas e fetais dos fármacos
de da gestação utilizados nos procedimentos cirúrgicos dependem da
— Avaliação seriada do balanço hidroeletrolítico, do idade gestacional. No primeiro trimestre, podem ter
hematócrito e da hemoglobina efeitos teratogênicos e de abortamento relacionados
— O procedimento deve ser realizado em decúbito com a concentração e o tempo de exposição às dro-
dorsal lateral esquerdo gas; no segundo e terceiro trimestres, agem no desen-
— Sedação adequada para minimizar as conseqüênci- volvimento fetal, levando a retardo de crescimento,
as do parto prematuro prematuridade ou natimortalidade.
— Descompressão gastrintestinal para prevenir vômi- Analgésicos, como codeína (22) e derivados do áci-
to e aspiração do acetilsalicílico, e antibióticos, como tetraciclinas,
— Pré-oxigenação antes da indução e da intubação sulfonamidas e aminoglicosídeos, devem ser evitados
— Prevenção de íleo adinâmico pelos efeitos adversos no concepto(23) . Da mesma for-
— Não usar quantidade superior a 1.500 ml de Ringer ma, hipoxia, hipercapnia, hiperoxigenação, acidose,
lactato ou de solução fisiológica durante o parto baixo débito cardíaco e infecção materna podem exer-
— Evitar solução glicosada durante o parto, pois fa- cer efeitos teratogênicos por toxicidade e mutação ce-
vorece a hipoglicemia neonatal
lular fetal e também causam depressão fetal, alteração
— Cateterização vesical com sonda de Foley para pre-
no sistema nervoso central, retardo de crescimento
venir retenção urinária
intra-uterino e prematuridade (24) . Nesse contexto, es-
— Manutenção da rotina antibiótica
— Atenção quando houver edema de membros inferi- tudo comparativo dos resultados fetais entre gestantes
ores, que aumenta o risco de flebite por estase e de submetidas a cerclagem cervical sob anestesias geral
tromboembolismo no pós-operatório e peridural demonstrou igualdade na incidência de
— Não se recomenda deambulação precoce pelo risco malformação congênita.
de parto prematuro A análise de 5.405 intervenções cirúrgicas durante
— Prevenir as contrações prematuras do útero com a gestação(25) (Tab. 5) demonstrou que mais da metade
progesterona (250 mg/dia via vaginal) desses procedimentos foi realizada sob anestesia ge-
ral, utilizando-se óxido nitroso por inalação ou medi-
cação intravenosa em 98% desses casos. Cerca de 41%
As contra-indicações aos bloqueios regionais são: das crianças sofreram algum efeito adverso, como bai-
casos de doença vascular pulmonar, cardiopatias gra- xo peso, prematuridade e óbito neonatal até sete dias
ves do tipo obstrutivo, aneurisma da aorta, discrasia após o ato cirúrgico (Tab. 6).
sanguínea, doença neurológica ativa, infecção no lo- O óxido nitroso em elevadas concentrações (50%
cal da punção medular, hipovolemia importante e uso a 75%) e por tempo prolongado (24 horas) inibe a sín-
de anticoagulantes. tese da metionina em ratos e humanos e parece ter efei-

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Tabela 5. Incidência do tipo de anestesia utilizado em 5.405 cirurgias não-obstétricas durante a gravidez. (Adap-
tado da referência 25.)

Percentual por trimestre

Primeiro Segundo Terceiro


trimestre trimestre trimestre n/%
Tipo de anestesia (n = 2.252) (n = 1.881) (n = 1.272) (n = 5.405)

Geral 65 51 41 2.929/54
Raquidiana/peridural 3 5 6 255/5
Infiltrativa 4 2 3 278/5
Outras 27 38 47 1.932/35

Tabela 6. Resultados fetais (%) de 5.405 gestantes submetidas a cirurgia não-obstétrica durante a gravidez.
(Adaptado da referência 25.)

Trimestre em que a cirurgia foi realizada

Resultado Primeiro Segundo Terceiro Total Significância

Perda fetal l1,1 1,7 1,5 1,4 NS * *


Morte neonatal* 1,4 3,2 1,9 2,1 p < 0,05
Malformação 1,0 0,9 1,5 1,1 NS * *
Peso < 1.500 g 1,7 3,2 1,5 2,2 p < 0,05
Peso < 2.500 g 1,4 1,8 2,2 2,0 p < 0,05
*
Morte neonatal = até sete dias após o parto.
**
NS = não-significativo.

to teratogênico, causando anomalias dos tecidos placentária durante a anestesia (27) . A associação entre
esquelético e muscular, e perdas fetais(26) . Contudo, não prematuridade e anestesia ainda é desconhecida, con-
se verificou maior incidência de anomalias congêni- tudo deve-se ter extrema cautela no uso de norepine-
tas em fetos de pacientes que se submeteram a anestesia frina e de vasopressores que apresentam efeitos utero-
geral com óxido nitroso no primeiro trimestre da ges- tônicos.
tação(25) . Os dados sugerem que as cirurgias abdominais que
Da mesma forma, outros agentes inalatórios, requerem manipulação do útero podem desencadear
como halotano, ciclopropano, metoxiflurano, flu- trabalho de parto prematuro e que os anestésicos como
roxeno e tricloroetilieno, podem se associar a mal- o halotano, com ação depressora sobre o miométrio,
formações congênitas e morte intra-útero, depen- devem ser selecionados para esse tipo de intervenção.
dendo do tempo de exposição e da concentração. Sob esse aspecto, a anestesia regional, que não tem
Drogas pré-anestésicas, como barbitúricos, reser- efeito depressivo sobre o útero, pode ser uma desvan-
pina, ciclizina, imipramina, levopromazina, perfe- tagem para as cirurgias que envolvem manipulação
nazina e procloroperazina, embora sejam conside- uterina(1) .
radas teratogênicas, não tiveram esses efeitos com- E, finalmente, a asfixia intra-útero, conseqüente à
provados em humanos (25) . cirurgia materna, está relacionada a redução de
De modo geral, a administração apropriada de anes- perfusão uteroplacentária, vasoconstrição ou aumen-
tésicos locais, regionais ou inalatórios não causa com- to do tônus uterino, efeitos que podem ser prevenidos
prometimento no desenvolvimento do feto, que tem a com a manutenção da pressão arterial e a adequada
capacidade de se desintoxicar por meio da circulação saturação materna de oxigênio.

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Abordagem pré-operatória de gestante cardiopata

Shnider e Webster (28) estudaram os resultados de ral e discutir as peculiaridades das intervenções com
147 cirurgias, 47 delas realizadas no primeiro trimes- maior incidência durante a gestação.
tre da gravidez e 60 sob anestesia geral. A mortalida-
de perinatal foi maior (7,5% e 2,1%, respectivamen- Apendicectomia
te), mas a incidência de malformação congênita não De igual freqüência na não-grávida, mas de diag-
foi diferente quando comparada com a população não nóstico mais difícil. Sharp (29) , em 363 casos de apen-
operada. dicite aguda durante a gravidez, não encontrou mortes
A monitorização dos batimentos fetais e da maternas no primeiro trimestre, mas registrou 3,9%
cardiotocografia durante a cirurgia e nas primeiras 48 no segundo e 10,9% no terceiro trimestres, elevando-
horas do pós-operatório é fundamental para preservar se para 16,7% no parto. O útero aumentado de volume
a vitalidade fetal. modifica a posição do apêndice e dificulta sua locali-
zação; a supuração e a rotura do apêndice são rápidas
CIRURGIA NÃO-CARDÍACA NA e a peritonite difusa é facilitada pela vascularização
GESTANTE CARDIOPATA aumentada e pela falta da proteção do epíplo. As con-
trações uterinas estimuladas por infecção peritoneal
Mazze e Kallen (25) estudaram 720.000 gestantes, são freqüentemente tetaniformes e predispõem a anoxia
das quais 5.405 foram submetidas a procedimentos e a morte fetal intra-útero.
cirúrgicos não-obstétricos (Tab. 7), e verificaram que
a cirurgia abdominal correspondeu a cerca de um quar- Abdome agudo por obstrução intestinal
to de todas as intervenções, sendo a apendicectomia a Suspeita-se em gestante com história de cirurgia
mais comum. A segunda maior incidência, 19%, abdominal prévia que apresenta náuseas, vômitos, dor
correspondeu a operações ginecológica e urológica. abdominal e parada do trânsito intestinal. A causa mais
O primeiro trimestre foi a idade gestacional em que habitual é a modificação do tamanho e da forma do
ocorreu maior número de procedimentos (41%), se- útero, que provoca tensão nas aderências peritoneais,
guido do segundo e do terceiro trimestres (35% e 24%, formando bridas com estenose do intestino. O diag-
respectivamente). nóstico diferencial deve ser com hiperemese ou com

Tabela 7. Incidência de cirurgias não-obstétricas durante a gravidez em análise de 5.405 mulheres. (Adaptado
da referência 25.)

Percentual por trimestre gestacional

Primeiro Segundo Terceiro


trimestre trimestre trimestre Total
Tipo de cirurgia (n = 2.252) (n = 1.881) (n = 1.272) (n/%)

Sistema nervoso central 7 6 6 323/6


Cabeça e pescoço 8 6 10 419/8
Coração/pulmão 0,7 0,8 0,6 40/0,7
Abdominal 20 30 23 1.331/25
Ginecológica/urológica 24 1,2 6 1.008/19
Laparoscopia 24 1,2 6 868/16
Ortopedia 9 9 14 558/10
Endoscopia 4 11 9 406/8
Pele 4 3 4 202/4
Outras 4 4 6 250/5

A literatura carece de dados sobre cirurgias na ges- trabalho de parto. O desequilíbrio metabólico pode
tante cardiopata, mas é oportuno salientar os princípi- aparecer a partir das quatro horas do início da obstru-
os, descritos na Tabela 4, que devem ser considerados ção, com agravamento progressivo. Descompressão,
nas fases pré-, intra- e pós-operatórias da cirurgia ge- correção de volume e de eletrólitos, e administração

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de plasma são essenciais no pré-operatório. 16% das mulheres, a maioria no primeiro trimestre da
gestação. Barnard e colaboradores (30) , em estudo com
Hemorroidectomia ovelhas prenhes usando insuflação de 20 mmHg na
A pressão exercida pelo crescimento uterino pro- cavidade peritoneal, encontraram queda do fluxo
voca estreitamento e dilatação das veias placentário de 60 mmHg em relação ao nível de con-
hemorroidárias. O tratamento cirúrgico na gravidez trole, três quartos dos quais atribuíveis à queda na pres-
aplica-se aos casos de hemorróidas trombóticas muito são de perfusão e o restante, ao aumento da resistên-
dolorosas, que podem ser tratadas com anestesia lo- cia placentária. A despeito dessas mudanças, a pres-
cal, retirando-se o coágulo; a hemorroidectomia está são de perfusão do feto, o fluxo sanguíneo e o balanço
indicada quando há sangramento persistente e impor- ácido básico não foram comprometidos.
tante, apesar da terapêutica medicamentosa.
PLANEJAMENTO DO PARTO PARA A
Colecistectomia GESTANTE CARDIOPATA
O tempo de esvaziamento da vesícula fica retarda-
do nos dois últimos trimestres, favorecendo a forma- Exceto em casos de doenças da aorta, a via de par-
ção de cálculo. Os sintomas aparecem mais to é de indicação obstétrica. Na via vaginal, o uso de
freqüentemente após a segunda metade da gestação, prostaglandinas, de preferência E2, (31) beneficia a di-
período de maior estase biliar. No início da gravidez, nâmica do trabalho de parto e não eleva a resistência
a presença de icterícia e dor diferencia a colelitíase da vascular pulmonar, como ocorre com outros estimu-
hiperemese, enquanto ao término da gestação esses lantes uterinos. A ocitocina pode ser usada, por meio
sintomas devem ser diferenciados da pré-eclâmpsia de bomba de infusão, na indução e condução do traba-
grave — síndrome HELLP (“Hemolysis Liver Elevated lho de parto.
function Low Platetet count”). O tratamento clínico é Recomenda-se o fórceps de alívio, com a finalida-
a primeira alternativa, por meio de dieta e fármacos de de abreviar o esforço materno no período expulsivo,
antiespasmódicos, sendo a cirurgia indicada somente com a parturiente em decúbito lateral esquerdo, dorso
nos casos de refratariedade, colapso de colédoco ou elevado e oxigenação contínua. A profilaxia com anti-
empiema. bióticos deve ser instalada nos casos de risco alto e
moderado, com a administração de ampicilina (2,0 g
Herniorrafia intravenosa) e gentamicina (1,5 mg/kg intramuscular)
As hérnias podem aparecer ou aumentar de tama- 30 minutos antes do parto.
nho durante a gravidez, em decorrência da pressão in- No pós-parto, deve-se manter controle rigoroso do
tra-abdominal, pelo crescimento do útero, em estrutu- sangramento, com manutenção da ocitocina
ras aponeuróticas previamente frágeis. As hérnias in- intravenosa por seis a oito horas, sendo contra-indica-
guinais e femorais raramente provocam complicações, dos os derivados do “ergot”. Monitorização cardíaca e
ao contrário das umbilicais. A herniorrafia é indicada oxigenação contínua devem ser mantidas por 12 a 24
durante a gravidez, quando há estrangulamento. horas e a deambulação precoce ou movimentação pas-
siva deve ser estimada para reduzir o risco do
Procedimentos por laparoscopia tromboembolismo. Não há contra-indicação para a
São ainda de efeito desconhecido no feto. No estu- amamentação devido à cardiopatia materna ou ao uso
do de Mazze e Kallen (25) (Tab. 3), foram realizados em de fármacos em geral.

368 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
AVILA WS e col.
Abordagem pré-operatória de gestante cardiopata

PREOPERATIVE MANAGEMENT OF NO OBSTETRICAL SURGERY DURING PREGNANCY


IN WOMAN WITH CARDIAC DISEASE

W ALKIRIA SAMUEL AVILA, MAX GRINBERG

Non obstetric surgery during pregnancy is generally considered in acute events or in clinically refractory
cases. The prior management of surgery in pregnant woman with cardiac disease requires knowledge about:
interaction between pregnancy and heart disease; management and prevention of complications, selection of
anesthetic agents; and fetal and obstetrical condition.
Pregnancy should be considered as a factor of maternal mortality and morbidity during surgery since the
modifications of gestation can alter signals and symptoms, impairing the diagnosis and delaying the treatment,
increasing the maternal risk.
The fetal prognosis of surgery during pregnancy is related to maternal disease and gestational age. The
second trimester of gestation presents lower teratogenic risk, spontaneous abortion rate and premature delivery
incidence. The fetal anoxia associated to maternal surgery is related to reduction of placental perfusion caused
by uterine arterial constriction or increase in uterine contractions. These complications can be partially prevented
by maternal arterial pressure control and measures to improve arterial oxygen saturation .
Key words: pregnancy, no obstetrical surgery, cardiac disease, maternal mortality, fetal mortality.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:361-70)


RSCESP (72594)-989

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Abordagem pré-operatória de gestante cardiopata

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370 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ABORDAGEM PRÉ-OPERATÓRIA DE CRIANÇAS COM CARDIOPATIAS
CONGÊNITAS EM CIRURGIA NÃO-CARDÍACA
WILMA TOMIKO MAEDA , NANA MIURA IKARI , MUNIR EBAID

Unidade Clínica de Cardiologia Pediátrica — Instituto do Coração — HC-FMUSP


Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 — CEP 05403-900 — São Paulo — SP

A abordagem pré-operatória de crianças com car- foram classificadas em dois grupos, acianogênicas e
diopatias congênitas em cirurgias não-cardíacas deve cianogênicas, sendo avaliados a história, o exame fí-
ser planejada cuidadosamente, evitando-se, assim, os sico, os exames complementares (radiografia de tó-
riscos no perioperatório. Na maioria das vezes, res- rax, eletrocardiograma, ecocardiograma) e os exames
tringe-se à profilaxia para endocardite infecciosa e laboratoriais. Os fatores de risco, como arritmias, in-
monitorização cardíaca no intra-operatório, pois atu- suficiência cardíaca congestiva, anticoagulação e en-
almente a indicação precoce de cirurgia cardíaca cor- docardite infecciosa, foram considerados em cada
retiva tem aumentado a população de pacientes com grupo.
hemodinâmica cardíaca normal ou próximo da nor- Descritores: cirurgia não-cardíaca, cardiopatias
malidade. As crianças com cardiopatias congênitas congênitas, crianças.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:371-6)


RSCESP (72594)-990

I NTRODUÇÃO dade, que, geralmente, necessita somente cuidados de


profilaxia para endocardite infecciosa. Nas cirurgias
O risco cirúrgico de crianças portadoras de cardio- não-cardíacas eletivas, deve-se considerar a correção
patias congênitas que necessitam de cirurgia não-car- da cardiopatia de base previamente, em especial nos
díaca, de urgência ou eletiva, tem sido modificado nas casos de grande repercussão clínica. Por outro lado,
últimas décadas. Apesar de relativamente recente, a ainda temos crianças que não foram operadas ou que
cirurgia cardíaca pediátrica sofreu grande evolução e foram submetidas a cirurgia cardíaca paliativa ou por-
hoje possibilita alguma forma de correção definitiva tadora de lesões residuais ou com cirurgia não-cardía-
ou paliativa para quase todas as cardiopatias congêni- ca de urgência que irão precisar de cuidados especi-
tas, inclusive no período neonatal. Os avanços tecno- ais. Nessas crianças, os riscos perioperatórios (Tab. 1)
lógicos na área da anestesiologia, como o desenvolvi- podem ser reduzidos quando os problemas inerentes a
mento de fármacos mais seguros, de equipamentos elas são antecipados, realizando planejamento cuida-
como bombas de infusão precisas para a administra- doso no pré-operatório(5) . Observa-se aumento da mor-
ção de medicamentos e líquidos, de monitores não- bidade no perioperatório quando a criança apresenta:
invasivos como o saturômetro periférico, e o maior idade inferior a 2 anos, cirurgia de urgência, hiperten-
interesse dos anestesiologistas pela fisiopatologia das são pulmonar grave, insuficiência cardíaca congestiva
cardiopatias e suas implicações para a anestesia têm e cianose importante(6,7) .
assegurado planejamento perioperatório mais eficien- As principais cirurgias não-cardíacas na faixa pe-
te e com melhores resultados (1-3) . diátrica compreendem as oftalmológicas (catarata con-
A indicação precoce de cirurgia cardíaca(4) correti- gênita, estrabismo), otorrinolaringológicas (implante
va tem aumentado a população de pacientes com he- de tubo nos ouvidos, adenóides), plastia de anomalias
modinâmica cardíaca normal ou próximo da normali- craniofaciais, geral (hérnia, fimose, apendicectomia)

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 371

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MAEDA WT e cols.
Abordagem pré-operatória de crianças com cardiopatias congênitas em cirurgia não-cardíaca

Tabela 1. Fatores de risco pré-operatórios para cirur- Tabela 2. Planejamento pré-operatório de cirurgia não-
gia não-cardíaca. cardíaca.

— Taquiarritmias e bradiarritmias — História clínica e cirúrgica


— Insuficiência cardíaca congestiva — Exame clínico
— Endocardite infecciosa — Exames complementares
— Anticoagulação — Eletrocardiograma
— Cianose — Radiografia de tórax
— Ecocardiograma em Doppler
— Exames laboratoriais: hemograma, coagulograma
e ortopédicas (escoliose, etc.). e eletrólitos
Este artigo enfoca os principais itens na aborda-
gem pré-operatória de crianças com cardiopatia con-
gênita, que serão classificadas em dois grandes gru- ficiência cardíaca. Nas crianças maiores, os sinais e
pos: grupo I, acianogênicas; e grupo II, cianogênicas (8) sintomas são dispnéia, déficit no desenvolvimento fí-
(Tab. 2). sico, intolerância aos exercícios físicos, infecções pul-
monares recorrentes, insuficiência cardíaca e cianose,
GRUPO I — CRIANÇAS ACIANOGÊNICAS quando evoluem para hiper-resistência pulmonar. No
exame físico, a avaliação do quadro nutricional é mui-
Incluem-se nesse grupo criança que apresentam: to importante, pois o déficit ponderal-estatural aumenta
1) desvio de sangue da esquerda para a direita: comu- o risco de complicações respiratórias e infecciosas no
nicação interatrial; comunicação interventricular; perioperatório. Aumento da freqüência cardíaca e do
defeito do septo atrioventricular; persistência de esforço respiratório, estase venosa, precórdio dinâmi-
canal arterial; janela aortopulmonar; fístulas co, ausculta cardíaca com presença de sopro sistólico
arteriovenosas (tipo coronário cavitária e ou diastólico e hepatomegalia são achados freqüentes
sistêmica); nesse grupo de crianças. No exame das extremidades,
2) obstrução de câmaras esquerdas, como os vários deve-se medir a temperatura, o pulso e a pressão arte-
tipos de estenose aórtica e coarctação de aorta; rial nos quatro membros para descartar, principalmente,
3) obstrução de câmaras cardíacas direitas, represen- a coarctação de aorta.
tada pela estenose pulmonar;
4) anomalia de artéria coronária, como a origem anô- Exames complementares
mala de artéria coronária esquerda do tronco ou de Radiografia de tórax
uma das artérias pulmonares. A avaliação da radiografia de tórax vai determinar
a posição do coração, o situs, a forma, o tamanho da
História e exame físico área cardíaca e o aumento da trama do vaso pulmonar,
No planejamento pré-operatório, é importante que e também afastar processo infeccioso pulmonar.
as histórias clínica e cirúrgica sejam bem detalhadas, Eletrocardiograma
principalmente quando há cardiopatia de repercussão; A avaliação do ritmo cardíaco de base é importan-
nessa condição, as seguintes perguntas devem ser te, porque uma das complicações que aumentam o ris-
esclarecidas: Que cardiopatia a criança tem? Qual é a co perioperatório é a presença de arritmias. Nesse gru-
repercussão da lesão? Faz uso de medicamentos? A po de crianças, principalmente no pós-operatório de
criança já foi submetida a cirurgia cardíaca paliativa cirurgias corretivas de comunicação interatrial e de-
ou corretiva? feito do septo atrioventricular total, algumas
No grupo I, as principais manifestações clínicas cardiopatias podem evoluir com taquiarritmias atriais.
são de hiperfluxo pulmonar e insuficiência cardíaca O Holter deve ser realizado em pacientes com distúr-
com maior ou menor repercussão, dependendo do ta- bio do ritmo cardíaco no pré-operatório.
manho da lesão ou das associações. Nessas Ecocardiograma com Doppler
cardiopatias, os sinais e sintomas observados no O estudo ecocardiográfico define as lesões cardía-
lactente são: taquidispnéia, déficit ponderal-estatural, cas, e avalia a função ventricular e a pressão pulmo-
taquicardia, infecções pulmonares de repetição, sopro nar. Os pacientes com cardiopatia congênita devem
cardíaco sistólico ou diastólico, hepatomegalia, insu- ser submetidos a estudo ecocardiográfico quando o

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MAEDA WT e cols.
Abordagem pré-operatória de crianças com cardiopatias congênitas em cirurgia não-cardíaca

cardiopediatra julgar necessário.


Tabela 3. Profilaxia para endocardite infecciosa.
Exames laboratoriais
Os exames solicitados de rotina são: hemograma,
Odontológica
coagulograma e eletrólitos. A avaliação do hemograma
— Extrações dentárias, tratamento de canal e absces-
é importante para verificar a hemoglobina e a série
so dentário
branca, para correção de anemia ou quadro infeccio-
Trato respiratório
so, quando necessário. O coagulograma pode estar al-
— Amigdalectomia, adenoidectomia e broncoscopia
terado em crianças com insuficiência cardíaca
com tubo rígido
congestiva em decorrência do déficit de fatores de co-
Trato gastrointestinal
agulação dependentes da vitamina K; a dosagem de
— Esclerose de varizes esofágicas
eletrólitos é necessária devido ao uso de diuréticos que
— Dilatação de esôfago
expoliam o potássio.
— Colangiografia de vias biliares
— Cirurgia do trato biliar
Fatores de risco no perioperatório
— Cirurgia gastrointestinal
Arritmias
Trato genitourinário
São complicações que devem ser estudadas e tra-
— Cirurgia de malformações do trato genitourinário
tadas antes dos procedimentos cirúrgicos eletivos ou
— Cistoscopia
de urgência, pois comprometem a função ventricular,
— Dilatação de uretra
aumentando o risco cirúrgico.
As taquiarritmias atriais ou bradiarritmias estão
associadas a algumas cardiopatias e à correção de ou-
tras, como, por exemplo: comunicação interatrial, de- amoxacilina na dose de 50 mg/kg ou acima de 29 kg,
feito do septo atrioventricular parcial ou total, comu- 2,0 g por via oral uma hora antes do procedimento; ou
nicação interventricular e lesões residuais valvares. com ampicilina 50 mg/kg/dose por via endovenosa ou
Nos casos de bradiarritmias, congênitas ou pós- intramuscular ou acima de 29 kg, 2,0 g trinta minutos
cirúrgicas, podem necessitar de marcapasso provisó- antes do procedimento. As crianças alérgicas à penici-
rio na cirurgia não-cardíaca. lina podem utilizar clindamicina, cefalexina ou
Insuficiência cardíaca congestiva azitromicina. Nos pacientes de alto risco, naqueles com
A insuficiência cardíaca pode, eventualmente, ne- cardiopatias congênitas cianogênicas e nos portado-
cessitar de medidas anticongestivas mais agressivas, res de próteses valvares, tubos e história pregressa de
como o uso de drogas inotrópicas endovenosa no pré- endocardite, deve-se considerar, em procedimentos nos
operatório. Devem-se avaliar, com maior rigor, as le- tratos gastrointestinal e genitourinário, o uso de
sões residuais e a disfunção ventricular, pois os riscos ampicilina associada a gentamicina; se o paciente for
são maiores. alérgico à ampicilina, esta deverá ser substituída por
Anticoagulação vancomicina. Pacientes com risco moderado compre-
O número de crianças portadoras de próteses endem os portadores de cardiopatias congênitas não
valvares metálicas vem crescendo, e essas crianças corrigidas, como persistência de canal arterial, comu-
fazem uso contínuo de medicação anticoagulante para nicação interventricular, defeito do septo
evitar os fenômenos tromboembólicos. O warfarin é o atrioventricular, coarctação de aorta de pequena reper-
mais usado em nosso meio; assim, antes de qualquer cussão hemodinâmica e valva aórtica bivalvular. In-
intervenção cirúrgica, deve ser suspenso por três dias cluem-se nesse grupo os portadores de doenças ad-
e substituído por heparina, que é suspensa seis horas quiridas, como miocardiopatias e lesões valvares reu-
antes do procedimento. O controle do tempo de máticas, que deverão receber profilaxia para
protrombina deve ser solicitado antes da cirurgia. endocardite infecciosa com amoxacilina ou ampicilina;
Endocardite infecciosa se alérgicos à ampicilina, esta deverá ser substituída
A profilaxia para endocardite infecciosa deve ser pela vancomicina.
realizada em todos os pacientes com cardiopatias con-
gênitas, exceto nas crianças submetidas a GRUPO II — CRIANÇAS CIANOGÊNICAS
atriosseptoplastia, como pode ser observado na Tabe-
la 3(9) . Incluem-se nesse grupo as crianças que apresen-
Em procedimentos odontológicos e dos tratos res- tam:
piratório e esofágico, a profilaxia é realizada com 1) desvio de sangue da direita para a esquerda por le-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 373

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MAEDA WT e cols.
Abordagem pré-operatória de crianças com cardiopatias congênitas em cirurgia não-cardíaca

sões obstrutivas de câmara cardíaca direita acom- terações no situs cardiovisceral e posição cardíaca.
panhadas de comunicação intercavitária: tetralogia Eletrocardiograma
de Fallot, atresia pulmonar, atresia tricúspide, ano- A documentação do ritmo de base da cardiopatia é
malia de Ebstein; muito importante, pois, nesse grupo, são freqüentes as
2) insaturação do fluxo sanguíneo sistêmico por mis- alterações do ritmo cardíaco antes e após a correção
tura da circulação sistêmica com a circulação pul- da lesão cardíaca. Nos portadores de tetralogia de Fallot
monar ou por discordância da conexão e transposição das grandes artérias, a sobrecarga
ventriculoarterial; drenagem anômala total de vei- ventricular direita é observada no eletrocardiograma e
as pulmonares, ventrículo único, tronco arterial a sobrecarga ventricular esquerda é vista nos casos com
comum, transposição das grandes artérias. atresia tricúspide, ventrículo único. O bloqueio de ramo
direito está presente na maioria dos casos após a cor-
História e exame físico reção da tetralogia de Fallot; esses pacientes, em de-
Nesse grupo, tanto a história clínica como a cirúr- corrência da ventriculotomia, podem apresentar
gica devem ser bem detalhadas, pois essas crianças taquiarritmias ventriculares na evolução a longo pra-
são portadoras de lesões residuais ou de comprometi- zo. Nas correções atriais da transposição das grandes
mento da função ventricular mesmo após a correção artérias, são freqüentes os distúrbios do ritmo, com
da cardiopatia. As cirurgias corretivas ou paliativas são taquiarritmias ou bradiarritmias; esses pacientes ne-
realizadas precocemente; o cardiopediatra tem que cessitam da complementação com Holter para estudar
avaliar o estado da criança e descrever a fisiologia da e tratar as arritmias de maneira adequada no pós-ope-
técnica cirúrgica empregada para o planejamento cui- ratório.
dadoso do perioperatório. A escolha dos fármacos para Ecocardiograma
anestesia, a hidratação e a ventilação são influencia- O estudo ecocardiográfico é solicitado para defi-
das pelo tipo de cardiopatia e pela técnica cirúrgica nir as lesões cardíacas e avaliar a função ventricular e
empregada na correção da cardiopatia. Como regra a correção cirúrgica cardíaca. Nas cirurgias paliativas,
geral, as crianças desse grupo são cianóticas quando o pode ser observada a efetividade dos “shunts”
fluxo pulmonar é diminuído (grupo IIA) ou podem ser sistêmico-pulmonares, como Blalock-Taussig ou
cianóticas com insuficiência cardíaca congestiva quan- cavopulmonar, e também o gradiente da bandagem de
do o fluxo pulmonar está aumentado (grupo IIB). Nas tronco pulmonar.
crianças do grupo IIA, os sinais e sintomas mais fre- Exames laboratoriais
qüentes são: cianose, crise de hipoxia com algum grau Nos pacientes cianogênicos, as alterações do
de hipodesenvolvimento ponderal-estatural, coagulograma e hematócrito são freqüentes. O
baqueteamento digital e alterações neurológicas. Nas hematócrito deve estar ao redor de 55% para evitar as
do grupo IIB, os sinais e sintomas mais freqüentes são crises de hipoxia e tromboembolismo arterial no
de insuficiência cardíaca congestiva, com cianose dis- perioperatório; nos casos de hematócrito acima de
creta, taquidispnéia, déficit ponderal-estatural, infec- 65%, deve ser realizada hemodiluição, a fim de redu-
ção pulmonar de repetição e hepatomegalia. zir a viscosidade sanguínea. O coagulograma e a fun-
Ao exame físico, observa-se criança em geral des- ção plaquetária estão alterados nos pacientes com
nutrida, grau de cianose, baqueteamento digital, unhas poliglobulia, devido à coagulopatia de consumo.
em vidro de relógio; na ausculta cardíaca, presença de
sopro sistólico ou diastólico; hepatomegalia é mais Fatores de risco perioperatório
freqüente nas crianças do grupo IIB. Exame neuroló- Arritmias
gico deve ser realizado nas crianças com poliglobulia As arritmias são mais freqüentes e de maior gravi-
acentuada, propensas a ter quadro de tromboembolia dade, em decorrência das técnicas cirúrgicas empre-
cerebral. gadas na correção das cardiopatias. As bradi e as
taquiarritmias observadas nos pacientes submetidos a
Exames complementares cirurgia de Senning ou Mustard necessitam de estudo
Radiografia de tórax prévio para tratamento adequado, quer seja com im-
A avaliação da radiografia torácica é rotina para plante de marcapasso definitivo, ablação por
determinar a posição, o tamanho e a forma da área radiofreqüência ou medicamentoso.
cardíaca; a trama vasopulmonar está diminuída no gru- As taquiarritmias ventriculares aumentam muito o
po IIA e aumentada no grupo IIB. As cardiopatias desse risco cirúrgico, geralmente acompanham pacientes que
grupo são mais complexas, sendo mais freqüentes al- foram submetidos a correção de tetralogia de Fallot

374 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000

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MAEDA WT e cols.
Abordagem pré-operatória de crianças com cardiopatias congênitas em cirurgia não-cardíaca

com ventriculotomia e devem ser tratadas com medi- aumentando a viscosidade sanguínea e o hematócrito.
camentos antiarrítmicos ou implante de desfibriladores As crises de hipoxia podem surgir em qualquer fase
no pré-operatório de cirurgia não-cardíaca. do ato anestésico, principalmente na indução, e de-
Insuficiência cardíaca congestiva vem ser tratadas rapidamente, pois podem evoluir com
O grupo IIB, que evolui com hiperfluxo pulmonar hipoxemia grave, causando seqüelas neurológicas e
e cianose geralmente discreta, tem como principal mesmo óbito no intra-operatório.
manifestação a insuficiência cardíaca congestiva, que, Anticoagulação
quando descompensada, aumenta os riscos cirúrgicos As crianças com cirurgias paliativas tipo Blalock-
com maior freqüência de arritmias, de tempo de venti- Taussig, cavopulmonar bidirecional e total podem es-
lação mecânica, complicações infecciosas e tar fazendo uso de antiagregantes plaquetários, como
hemorrágicas. ácido acetilsalicílico, ou mesmo anticoagulantes, como
Cianose o warfarin. No caso do ácido acetilsalicílico, a medi-
O grau de cianose importante aponta para quadro cação deve ser suspensa cinco dias antes do procedi-
de hipoxemia grave, com aumento do hematócrito, mento cirúrgico. Assim, com relação ao warfarin, nes-
maior risco de fenômenos tromboembólicos e hemor- se grupo, deve-se seguir a mesma orientação descrita
ragias. Essas crianças, no pré- e no pós-operatório, anteriormente.
devem ser adequadamente hidratadas, por via oral ou Endocardite infecciosa
endovenosa, tomando cuidado com ar nos cateteres A profilaxia da endocardite infecciosa está indicada
venosos para evitar embolia gasosa. O jejum prolon- em todos os pacientes, da mesma forma que o grupo
gado deve ser evitado, por depletar o intravascular, das cardiopatias acianogênicas.

PREOPERATIVE ASSESSMENT FOR NONCARDIAC SURGERY IN CHILDREN WITH


CONGENITAL HEART DISEASE

W ILMA TOMIKO MAEDA , NANA MIURA IKARI, MUNIR EBAID

Preoperative assessment for noncardiac surgery in children with congenital heart disease must be planned
carefully, avoiding risks in post operative period. The majority of cases recommends for bacterial endocarditis
prophylaxis and cardiac monitoring. The current cardiac surgery practice of early repair of congenital heart
disease has resulted in a population of patients with normal or near normal cardiac hemodynamics. Children
with congenital heart disease were classified in two groups: acyanotic and cyanotic. Preoperative assessment
should include medical history, physical examination, chest x-ray, electrocardiogram, echocardiography and
laboratory blood exams.
The perioperative risk factors such as arrhythmias, congestive heart failure, anticoagulation, endocarditis
were considered in both groups.
Key words: noncardiac surgery, congenital heart disease, children.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:371-6)


RSCESP (72594)-990

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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 375

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Untitled-63 376 06/12/2002, 16:39


ABORDAGEM PRÉ -OPERATÓRIA DE PACIENTES COM
INSUFICIÊNCIA CARDÍACA

JOSÉ FRANCISCO KERR SARAIVA

Pontifícia Universidade Católica de Campinas


Endereço para correspondência: Av. Cel. Silva Telles, 713 — CEP 13024-001 — Campinas — SP

A insuficiência cardíaca há muito tempo constitui intercorrências graves.


importante problema de saúde pública em nosso meio. A detalhada avaliação do estado clínico com o
E à medida que a população envelhece, surge maior conhecimento etiológico da insuficiência cardíaca
prevalência de doenças cardíacas, concomitantemente congestiva no pré-operatório bem como a otimização
ao aumento de doenças não-cardíacas, mas de reso- da terapia são decisivos para minimizar os riscos
lução cirúrgica. perioperatórios e definir os casos em que se emprega-
As intervenções cirúrgicas em pacientes portado- rão os recursos da monitorização invasiva.
res de insuficiência cardíaca congestiva são acompa- A presente revisão tem por objetivo avaliar a gra-
nhadas de altas taxas de morbidade e mortalidade vidade e os riscos cirúrgicos em pacientes portadores
intra- e pós-operatória, e a compensação da função de insuficiência cardíaca congestiva e também discu-
cardíaca é considerada o principal marcador de risco tir a abordagem clínica, farmacológica e hemodinâ-
em pacientes cirúrgicos. Freqüentemente, as cirurgi- mica perioperatória dos mesmos.
as a que se submetem esses pacientes são procedimen- Descritores: insuficiência cardíaca congestiva,
tos de grande porte, quando não ocorrem em caráter mortalidade, risco cirúrgico, monitorização hemodinâ-
de urgência, fator que eleva a possibilidade de mica, doença cardiovascular.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:377-82)
RSCESP (72594)-991

O PROBLEMA logística em pacientes submetidos a cirurgia vascular,


que o principal fator preditivo de risco perioperatório
A insuficiência cardíaca congestiva constitui um é a classe funcional. A presença de congestão pulmo-
dos principais fatores determinantes de risco nar, particularmente na presença de 3a bulha, consti-
perioperatório, independentemente de sua etiologia ou tui, por si só, aumento do risco(3,4) . Pacientes com evi-
de co-morbidades cardiovasculares associadas. Em seu dências clínicas ou radiológicas de insuficiência car-
clássico trabalho, Goldman e colaboradores (1) estuda- díaca congestiva têm elevada incidência (16%) de de-
ram 1.001 pacientes com mais de 40 anos de idade, senvolvimento de edema pulmonar durante ou após a
com o objetivo de estabelecer os fatores determinantes cirurgia, em contraste com aqueles com história pré-
de complicações cardíacas em pacientes submetidos a via porém sem evidências de insuficiência cardíaca
cirurgia geral. Pela análise de regressão logística, ve- congestiva (6%). Pacientes com insuficiência cardía-
rificaram ser a presença de 3a bulha ou de distensão da ca congestiva classe funcional IV (New York Heart
veia jugular os mais importantes marcadores de com- Association) têm maior probabilidade de desenvolver
plicações graves ou fatais (1) . A mortalidade na cirurgia edema pulmonar ou de descompensar durante ou após
não-cardíaca aumenta proporcionalmente à classe fun- a cirurgia (25%) em comparação com pacientes
cional em que o paciente se encontra. McPhail e cola- assintomáticos(5) . Larsen e colaboradores(6) , em elegan-
boradores (2) verificaram, pela análise de regressão te estudo prospectivo, acompanharam 2.609 pacientes

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 377
SARAIVA JFK
Abordagem pré-operatória de pacientes com insuficiência cardíaca

no pós-operatório, e puderam verificar que a insufici- lação entre manifestações clínicas de insuficiência
ência cardíaca é o fator preditivo de maior risco de cardíaca congestiva e complicações pós-operatórias,
complicações severas ou aumento de mortalidade (6) . já não é possível estabelecer a mesma correlação em
Em recente revisão, Prause e colaboradores (7) pacientes assintomáticos com disfunção ventricular,
correlacionaram os índices de mortalidade onde a escassez de informações limita a conduta des-
perioperatória em 16.227 pacientes submetidos a ci- ses pacientes.
rurgia geral por meio de análise comparativa das tabe-
las de classificação de Goldman e da American Society AVALIAÇÃO PRÉ-OPERATÓRIA
of Anesthesiologists. Os autores concluíram que ambas
as classificações foram preditivas de mortalidade Pacientes portadores de disfunção ventricular es-
perioperatória, ratificando a análise clássica de querda têm risco elevado de complicações
Goldman(7) . As mesmas conclusões foram obtidas por perioperatórias; portanto, é vital a detalhada avaliação
Detsky e colaboradores (8) em estudo no qual foi utili- clínica por meio de minuciosa história e exame.
zado o índice de Goldman modificado (8) . Cooperman A dispnéia aos esforços tem sido proposta como
e colaboradores (9) , avaliando os pacientes submetidos marcador de risco prognóstico independente(11) . Morris
a cirurgia vascular periférica, também verificaram ser e colaboradores (12) , em elegante revisão, demonstra-
a presença de insuficiência cardíaca congestiva impor- ram que capacidade física abaixo de 6 METs indicou
tante marcador de risco pós-operatório (9) . Em resumo, elevado risco de mortalidade independentemente da
é consenso que a presença de insuficiência cardíaca função ventricular esquerda (12) . A simples presença de
congestiva clinicamente manifesta é o mais importan- estase jugular ou 3a bulha ao exame são, conforme
te marcador de complicações cardiovasculares na ci- comentado anteriormente, fatores marcadores prognós-
rurgia geral. Na maioria dos casos, o edema pulmonar ticos no intra- e no pós-operatório. Em pacientes com
pós-operatório ocorre entre 30 e 60 minutos após o história ou exame clínico sugestivos de insuficiência
término da anestesia. Vários mecanismos têm sido pro- cardíaca congestiva, é recomendada a avaliação da
postos para tais complicações, como: sobrecarga de função ventricular no pré-operatório, com o objetivo
volume no intra-operatório, cessação da ventilação de se quantificar a severidade da disfunção ventricular
mecânica sob pressão positiva, depressão miocárdica sistólica bem como da diastólica. Essa informação é
induzida por agentes anestésicos, hipertensão pós-ope- de valia para o tratamento no intra- e no pós-operató-
ratória, aumento da atividade adrenérgica pós-opera- rio. Cabe, no entanto, lembrar que os dados clínicos
tória e conseqüente aumento do trabalho cardíaco(10) . acima descritos têm sido considerados os mais impor-
Quando a insuficiência cardíaca congestiva se mani- tantes determinantes prognósticos independentemen-
festa no intra- e no pós-operatório em pacientes sem te dos métodos de avaliação da função do ventrículo
história pregressa, com freqüência, trata-se de pacien- esquerdo.
tes idosos que muitas vezes possuem alterações Dos métodos disponíveis, o ecocardiograma é o
eletrocardiográficas prévias ou outras evidências de mais freqüentemente utilizado para tal finalidade, mas
afecção cardiovascular e que foram submetidos a ci- têm sido propostas a ventriculografia radioisotópica
rurgias torácica ou abdominal de grande porte(5) . To- ou mesmo a ventriculografia por contraste(13-15) . Estu-
dos os esforços devem ser feitos no sentido de detec- dos da função do ventrículo esquerdo podem ser de
tar insuficiência cardíaca congestiva por meio de cui- grande valor na estratificação de risco em pacientes
dadosa história e exame físico. A identificação da que serão operados. Em 100 pacientes referidos para
etiologia, quando possível, constitui importante infor- cirurgia vascular eletiva, a fração de ejeção obtida pela
mação, considerando as implicações prognósticas das ventriculografia radioisotópica correlacionou-se inver-
mesmas no intra- e no pós-operatório. Por exemplo, a samente com a incidência de infarto e morte pós-ope-
insuficiência cardíaca congestiva decorrente de doen- ratória(16) . O estudo CASS (“Coronary Artery Surgery
ça cardíaca hipertensiva tem prognóstico diferente Study”) analisou a fração de ejeção de 1.600 pacien-
quando comparada a insuficiência cardíaca congestiva tes, que, posteriormente, foram submetidos a cirurgia
de etiologia isquêmica. Considerando que a condição não-cardíaca de grande porte. Esse estudo demonstrou
clínica pré-operatória é o maior marcador de risco que o grau de disfunção ventricular foi intimamente
perioperatório, fica claramente estabelecida a neces- relacionado a complicações perioperatórias, sendo
sidade de se obter a melhor condição bem como levar mais preditivo que a avaliação clínica pré-operatória(15) .
o paciente à sala de operações no estado mais estável Na análise de sete estudos que demonstraram cor-
possível. Se, por um lado, fica bem estabelecida a re- relação positiva entre fração de ejeção ventricular di-

378 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
SARAIVA JFK
Abordagem pré-operatória de pacientes com insuficiência cardíaca

minuída no pré-operatório e eventos pós-operatórios, hemodinâmica dentro dos melhores limites possíveis.
quatro foram prospectivos (13, 17-19) e três, retrospecti- Vários agentes anestésicos podem causar depressão
vos(15, 20, 21) . A maior incidência de complicações foi miocárdica, o que poderá vir a dificultar a manipula-
observada nos grupos de pacientes que tinham fração ção de volume infundido no intra- e no pós-operató-
de ejeção inferior a 35%. Esses dados foram também rio, e aumentar a morbidade (6,8) . Tanto a anestesia ge-
encontrados por Kazmers e colaboradores (22) em paci- ral como os bloqueios espinhais comumente causam
entes com fração de ejeção abaixo de 29%, onde a importante vasodilatação periférica, que pode resultar
mortalidade perioperatória e tardia foi de 59%, com- em hipotensão severa intra-operatória, em particular
parativamente a 18% no grupo com fração de ejeção no paciente hipovolêmico. Mais recentemente, a utili-
superior a 29% (22) . Na análise conjunta de tais resulta- zação de drogas betabloqueadoras em pacientes por-
dos, ficou claramente estabelecida a relação inversa tadores de insuficiência cardíaca congestiva veio mais
entre fração de ejeção e complicações transoperatórias, uma vez chamar a atenção para possíveis distúrbios
entre elas descompensação da insuficiência cardíaca hemodinâmicos decorrentes da utilização desses
congestiva, má evolução e morte. fármacos no pré-operatório. Infelizmente, faltam da-
Otimizar o tratamento farmacológico da insufici- dos consistentes na literatura quanto aos benefícios da
ência cardíaca congestiva antes de procedimento ci- interrupção desses fármacos ou mesmo das conseqüên-
rúrgico eletivo é um ponto extremamente crítico. cias perioperatórias de sua manutenção. Outra dificul-
Freqüentemente, tais pacientes já vêm medicados com dade é a abordagem de pacientes assintomáticos que
o tratamento clássico da insuficiência cardíaca se apresentam com disfunção ventricular e
congestiva: diuréticos, inibidores da enzima de con- cardiomegalia no pré-operatório, sem nunca terem sido
versão da angiotensina e digitálicos. Essas medicações tratados. É provável que em tais pacientes o início de
podem alterar parâmetros hemodinâmicos e metabó- tratamento com inibidores da enzima de conversão seja
licos, levando, muitas vezes, ao aumento do risco de benéfico; no entanto, nesses casos deve-se evitar a uti-
morbidade e de mortalidade no perioperatório. É im- lização rotineira de digitálicos e diuréticos.
portante lembrar que pacientes portadores de insufici-
ência cardíaca congestiva são, muitas vezes, portado- INSUFICIÊNCIA
CARDÍACA ASSOCIADA
res de co-morbidades associadas, como diabete melito À DOENÇA CORONARIANA
e hipertensão arterial, e que, freqüentemente, são sub-
metidos a cirurgia de grande porte. Tais regimes A insuficiência coronariana constitui freqüente
terapêuticos têm claras implicações no intra- e no pós- causa de insuficiência cardíaca congestiva. Vários são
operatório. A utilização de diuréticos pode levar o pa- os mecanismos que levam a ela: ocorrência de múlti-
ciente a estados relativos de hipovolemia, plos infartos, aneurisma ventricular pós-infarto agudo
hipopotassemia e hipomagnesemia, que são estados do miocárdio, remodelamento pós-infarto, e isquemia
de potencial complicação em pacientes de alto risco. crônica (cardiomiopatia isquêmica). Com freqüência,
Não se deve encaminhar pacientes hipovolêmicos ao a insuficiência cardíaca congestiva é descompensada
centro cirúrgico sob o risco de virem a desenvolver por indução e agravo da isquemia decorrentes dos pro-
estados hipotensivos severos. A correta avaliação de cedimentos anestésicos, cirúrgicos ou mesmo pós-ope-
alterações no equilíbrio hidroeletrolítico e suas corre- ratórios, levando os mesmos à piora ou à
ções poderão evitar arritmias, bem como predisposi- descompensação da insuficiência cardíaca congestiva.
ção à intoxicação digitálica. Apesar de os digitálicos A abordagem básica desses pacientes não difere, fun-
contraporem os efeitos depressivos miocárdicos de damentalmente, das outras formas de insuficiência
alguns agentes anestésicos, sua utilização deve per- cardíaca congestiva; no entanto, uma vez diagnosticada
manecer restrita aos grupos de pacientes de estabele- doença coronária associada, toda a rotina pré-opera-
cido benefício, pois os mesmos são causa comum de tória estabelecida para esse grupo de pacientes deve
complicações iatrogênicas em pacientes cirúrgicos, ser instituída juntamente com o tratamento clássico
além de estarem associados a bradiarritmias intra-ope- da insuficiência cardíaca congestiva. No intra- e no
ratórias (5) . Portanto, a digitalização pré-operatória não pós-operatório, é proposta a utilização de nitrogliceri-
deve ser rotina estabelecida, reservando-se seu uso aos na com o objetivo de redução da pré- e da pós-carga,
grupos de maior dificuldade no controle da insufici- tensão de parede diminuindo, conseqüentemente, o
ência cardíaca congestiva. Preferencialmente, a medi- consumo de oxigênio do miocárdio. Conforme comen-
cação do pré-operatório deve ser mantida no pós-ope- tado no início deste artigo, o prognóstico perioperatório
ratório, a fim de se tentar manter a estabilidade na insuficiência cardíaca congestiva pode diferir con-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 379
SARAIVA JFK
Abordagem pré-operatória de pacientes com insuficiência cardíaca

forme sua etiologia, sendo os estados isquêmicos os tórios tem sido reservada, basicamente, a pacientes
de pior prognóstico (15, 23) . portadores de insuficiência cardíaca congestiva grave,
não compensados e que necessitem de acompanhamen-
MONITORIZAÇÃO HEMODINÂMICA to sob contínua supervisão.

A opção por monitorização hemodinâmica invasiva TIPO DE CIRURGIA


em pacientes portadores de insuficiência cardíaca
congestiva está intimamente vinculada à condição pré- Em recente revisão, Mangano(25) verificou que a
operatória do paciente (grau de insuficiência cardíaca ocorrência de complicações cardíacas é duas a cinco
congestiva, estado de compensação da mesma), bem vezes maior em procedimentos de urgência quando
como ao porte, à complexidade e ao potencial para comparada a procedimentos eletivos. Esses achados
distúrbios hídricos e hemodinâmicos. Conforme dis- não causam surpresa se considerarmos que o inespe-
cutido anteriormente, quanto maior a gravidade da in- rado momento cirúrgico impossibilita o paciente de
suficiência cardíaca congestiva e pior a classe funcio- ter seu estado clínico pré-operatório otimizado, em
nal, mais complexo será o intra- e o pós-operatório, e particular nos pacientes portadores de insuficiência
maior será o risco. Quando o preparo de tais pacientes cardíaca congestiva, cujo estado clínico pré-operató-
inspirar utilização de diuréticos e vasodilatadores rio se encontra, muitas vezes, longe de condição satis-
intravenosos, a colocação de cateter de Swan-Ganz fatória. Infelizmente, a maioria das cirurgias de emer-
poderá ajudar na otimização hemodinâmica dos mes- gência (aneurismas rotos de aorta abdominal, perfura-
mos. A monitorização hemodinâmica invasiva pode ções viscerais, politraumatizados) jamais permitirá
também ser útil para otimizar ou mesmo aumentar a avaliações e abordagens terapêuticas detalhadas. Mes-
entrega de oxigênio aos órgãos em paciente de alto mo em cirurgias de relativa urgência, o risco da mo-
risco. Tais análises, além de proporcionar maior segu- léstia em questão impedirá a avaliação da melhora da
rança na manipulação de fluidos, fornecem parâmetros condição cardíaca, que, muitas vezes, leva dias para
hemodinâmicos para reduzir a disfunção cardíaca. se adequar. Por exemplo, pacientes portadores de neo-
Somente um estudo avaliou, prospectivamente, a efi- plasias malignas com complicações agudas muitas
cácia da utilização pré-operatória de cateter de Swan- vezes colocam o clínico e o cirurgião em situações de
Ganz num estudo randomizado, cujos objetivos foram difícil escolha em relação à conduta a ser tomada, em
determinar complicações cardíacas durante a evolu- particular naqueles casos em que é impossível avaliar
ção. Oitenta e nove pacientes submetidos a cirurgia o prognóstico cirúrgico pré-operatório. Ainda existem
vascular foram randomizados para receber o cateter situações semelhantes onde, no entanto, o paciente é
com monitorização na unidade de terapia intensiva, portador de insuficiência cardíaca congestiva em fase
intra- e pós-operatório. Embora tenha havido redução avançada, com prognóstico reservado a curto prazo, e
de complicações cardíacas no grupo monitorizado, não que é colocado diante de doenças cirúrgicas agudas.
se observou redução de morte por complicações car- Concluindo, a avaliação conjunta da equipe clínica,
díacas quando comparados ao grupo controle (24) . Em cirurgião, anestesista e intensivista, é que define o tra-
função da falta de evidências, a opção por tamento mais adequado, dentro das limitações impos-
monitorização hemodinâmica nos estados pré-opera- tas pelo regime de urgência da doença(26) .

380 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
SARAIVA JFK
Abordagem pré-operatória de pacientes com insuficiência cardíaca

PREOPERATORY EVALUATION OF HEART FAILURE PATIENTS

JOSÉ FRANCISCO KERR SARAIVA

For a long time heart failure has been a major problem in our society. A higher prevalence of heart diseases
arises as the population is aging, at the same time that surgical interventions carry on a higher risk.
Surgical interventions in heart failure patients are followed by high indexes of morbimortality during and
after the surgical procedure, and a stable cardiac function is considered the main marker concerning the risk of
unexpected events. Frequently the surgeries are major operative procedures, other times they demand urgent
solutions. Both situations have a higher probability of serious undesirable outcomes.
A detailed evaluation of the clinical condition and optimization of cardiac monitorization resources and
therapy are decisive to bring down the perioperative risks.
The objectives of this paper is to evaluate the risks involved in major surgeries in patients with heart failure,
and also to discuss medical therapy and invasive hemodynamic interventions.
Key words: congestive heart failure, mortality, surgical risk, hemodynamic monitorization, cardiovascular
disease.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:377-82)


RSCESP (72594)-991

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382 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ABORDAGEM PRÉ -OPERATÓRIA DE PACIENTES COM
MIOCARDIOPATIA HIPERTRÓFICA

DIRCEU RODRIGUES ALMEIDA , CLEÓPATRA MEDINA AREOSA , ROSIANE Z. DINIZ, ADAUTO CA RVALHO, RUY
FELIPE M. VIÉGAS, ANTONIO C. CARVALHO, ANGELO A. V. DE PAOLA

Disciplina de Cardiologia — Departamento de Medicina — Escola Paulista de Medicina — UNIFESP


Endereço para correspondência: Rua Flórida, 90 — ap. 112 — CEP 04565-000 — São Paulo — SP

Os portadores de miocardiopatia hipertrófica estão isquemia miocárdica e arritmias. A adequada avalia-


propensos a algumas complicações decorrentes de alte- ção clínica, anatômica e hemodinâmica no pré-opera-
rações na fisiologia cardiovascular, que ocorrem durante tório, o planejamento anestésico, a monitoração e o di-
a anestesia, a cirurgia e o pós-operatório. As alterações agnóstico precoce das complicações possibilitam boa
na pré-carga, na pós-carga, na contratilidade e na fre- evolução para a maioria dos pacientes que necessitam
qüência cardíaca podem agravar a obstrução da via de de intervenções cirúrgicas não-cardíacas.
saída, comprometer o débito cardíaco e precipitar hipo- Descritores: miocardiopatia hipertrófica, anestesia,
tensão severa, insuficiência cardíaca, edema pulmonar, complicações operatórias.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:383-91)
RSCESP (72594)-992

I NTRODUÇÃO te pouca informação na literatura a respeito da avalia-


ção e do manejo dos portadores de miocardiopatia hi-
A miocardiopatia hipertrófica é uma doença cardí- pertrófica por ocasião das intervenções cirúrgicas não-
aca complexa, com características fisiopatológicas cardíacas.
próprias e com grande diversidade morfológica, fun- Neste artigo, serão feitas algumas considerações
cional e na apresentação clínica(1) . A heterogenicidade sobre os principais aspectos da doença, com relevân-
da doença é acentuada pela possibilidade de acometer cia para as informações que são fundamentais na ava-
pacientes de todas as idades. A doença tem amplo es- liação do risco e na prevenção das potenciais compli-
pectro de apresentação clínica, podendo evoluir de cações que possam advir na condução anestésica e no
forma assintomática ou apresentar quadros anginosos, pós-operatório de intervenções cirúrgicas não-cardí-
sincopais, insuficiência cardíaca, edema agudo de pul- acas.
mão, arritmias supraventriculares, ventriculares e, mais
drasticamente, morte súbita(1) . Sua história natural não ETIOLOGIA
é totalmente conhecida, mas sabe-se que a maioria dos
pacientes sobrevive a longo prazo, com mortalidade Dados observacionais atuais sugerem que a
anual de 0,5% a 1,5% (2,3) . prevalência da miocardiopatia hipertrófica na popula-
Devido a suas características anatômicas e funcio- ção geral é maior que a anteriormente mencionada.
nais, mesmo os pacientes assintomáticos podem apre- Estima-se que exista um caso em cada 500 habitan-
sentar complicações hemodinâmicas, elétricas e isquê- tes(6).
micas graves quando submetidos a intervenções far- A doença é decorrente de uma anormalidade pri-
macológicas e anestésicas, por ocasião de interven- mária do músculo cardíaco; usualmente familiar, é
ções cirúrgicas. Em contraste com inúmeros trabalhos transmitida como um traço autossômico e dominante.
sobre o manejo e o risco anestésico para os pacientes Nesse aspecto, também, a doença é heterogênea, po-
com hipertensão arterial e doença coronariana(4,5) , exis- dendo ser causada por mutação em um dos quatro genes

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Abordagem pré-operatória de pacientes com miocardiopatia hipertrófica

que codificam as proteínas do sarcômero cardíaco (do- miocardiopatia hipertrófica apresentam gradiente
ença do sarcômero): a betamiosina de cadeia pesada, pressórico, em repouso, na via de saída do ventrículo
a troponina T, a alfatropomiosina e a proteína C, que esquerdo(1, 8, 9) . Esse gradiente pressórico é gerado por
liga a miosina. Mutações em genes que codificam a obstrução dinâmica da via de saída, com grande vari-
miosina de cadeia leve também estão descritas, e pro- abilidade espontânea (10) , podendo ser reduzido ou abo-
vavelmente outras serão descritas futuramente. Os es- lido por intervenções que reduzam a contratilidade
tudos genéticos têm permitido a caracterização de al- miocárdica (como, por exemplo, betabloqueadores) ou
gumas mutações, com maior risco para morte súbita e por aumento do volume ventricular ou da resistência
conseqüente pior prognóstico(7) . periférica (como, por exemplo, exercício isométrico,
drogas vasoconstritoras). De maneira inversa, o gradi-
PATOLOGIA ente pode ser elevado por fatores que aumentam a
contratilidade miocárdica (como, por exemplo,
A miocardiopatia hipertrófica é definida como uma inotrópicos positivos) e fatores que reduzem o volume
hipertrofia do ventrículo esquerdo e/ou direito, sem ventricular ou a pressão arterial (como, por exemplo,
causa conhecida, usualmente, porém nem sempre, manobra de Valsalva, nitrato de amilo); portando, esse
assimétrica e associada com evidência microscópica gradiente dinâmico pode ser gerado e aumentado por
de desarranjo das fibras (8) . A localização e a extensão estímulos farmacológicos (Tab. 1). Acredita-se que esse
da hipertrofia permitem a caracterização de diferentes gradiente subaórtico seja decorrente da aposição do
formas anatômicas: hipertrofia septal assimétrica, 90%; septo hipertrofiado na via de saída, associado ao mo-
hipertrofia simétrica “concêntrica”, 5%; hipertrofia vimento sistólico anterior da válvula mitral que se apro-
apical, 2%; hipertrofia ventricular direita, 2%; e xima do septo no início da sístole atraído por um efei-
hipertrofia medioventricular, 1%. O sítio e o grau de to Venturi(1, 8, 9) . Ainda existem controvérsias sobre o
hipertrofia são variáveis nas diferentes séries, sendo significado desse gradiente, estando o mesmo envol-
importante também nas manifestações da doença(9) . Na vido no aumento do estresse parietal e excessivo con-
microscopia, observa-se, caracteristicamente, sumo de oxigênio. Aproximadamente 20% dos paci-
hipertrofia e desarranjo das bandas musculares e de- entes com gradiente na via de saída apresentam insu-
sorganização da arquitetura miofibrilar. Fibrose é usu- ficiência valvar mitral de variável intensidade, poden-
almente encontrada entre áreas de hipertrofia. Anor- do esta resultar não só do movimento sistólico anteri-
malidades na microcirculação coronariana (arteríolas or da mitral, como de anomalia de músculo papilar,
intramurais) são caracterizadas por espessamento prolapso valvar mitral, fibrose do folheto anterior e
parietal e redução da luz vascular. Esses achados pró- calcificação do anel mitral; o grau do refluxo mitral
ximo a áreas de fibrose favorecem a hipótese de que pode ser magnificado quando se aumenta o gradiente
essas lesões são responsáveis pelo desenvolvimento subaórtico(8, 9) . A presença do refluxo mitral agrava a
de isquemia miocárdica(8, 9) . As áreas de fibrose e o hipertensão venocapilar pulmonar e a dispnéia, con-
substrato isquêmico estão envolvidos na gênese de tribui para o crescimento do átrio esquerdo e facilita o
arritmia ventricular grave. aparecimento de arritmias supraventriculares.
A presença da obstrução dinâmica na via de saída
FISIOPATOLOGIA com fluxo turbulento determina lesão do endocárdio
septal, lesão de jato na válvula aórtica e lesão do fo-
O conhecimento dos diferentes aspectos lheto mitral, criando, assim, condições para aderência
fisiopatológicos presentes na miocardiopatia de microrganismos e conseqüente endocardite infec-
hipertrófica é fundamental para a compreensão do es- ciosa, justificando a profilaxia antimicrobiana para
pectro sintomatológico, fornece bases para as diferen- endocardite na ocasião de intervenções com potencial
tes formas de terapêutica e possibilita maior entendi- para bacteremia.
mento dos efeitos adversos de estímulos adrenérgicos,
de variações significativas de pré- e pós-carga e de efei- DISFUNÇÃO DIASTÓLICA DO VENTRÍCULO
tos adversos de vários agentes farmacológicos. ESQUERDO

OBSTRUÇÃO DA VIA DE SAÍDA DO VENTRÍCULO A maioria dos pacientes com miocardiopatia hi-
ESQUERDO ( OBSTRUÇÃO SUBAÓRTICA ) pertrófica demonstra anormalidades da função diastó-
lica, independentemente da presença ou não do gra-
Aproximadamente 30% dos portadores de diente e de sintomas (1,9) . Essa disfunção resulta, prin-

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Tabela 1. Efeitos de vários tipos de intervenção sobre o gradiente intraventricular na miocardiopatia hipertrófica.

Aumento do gradiente Redução do gradiente

Manobra de Valsalva Betabloqueadores


Batimento pós-extra-sístole Vasoconstritores
Isoproterenol, dobutamina Anestesia geral
Digitálicos Exercício isométrico
Vasodilatadores
Taquicardia
Hipovolemia
Exercício dinâmico

cipalmente, de anormalidade no relaxamento e na dis- força de contração (por exemplo, betabloqueadores e


tensibilidade ventricular esquerda. Estão envolvidos, bloqueadores dos canais de cálcio — verapamil) e por
nessa alteração, vários fatores, como distúrbios na ci- drogas que aumentam a estabilidade elétrica atrial e
nética do cálcio, isquemia subendocárdica, desarranjo reduzem a resposta ventricular (por exemplo,
de fibras e fibrose. Essa disfunção diastólica eleva pre- amiodarona)(13) .
cocemente a pressão diastólica ventricular, dificultan-
do o esvaziamento atrial, com hipertensão atrial, au- ISQUEMIA MIOCÁRDICA
mento do átrio esquerdo e remodelação, criando subs-
trato para arritmias como a fibrilação atrial. O aumen- Isquemia miocárdica tem sido repetidamente de-
to atrial, a dificuldade de esvaziamento (estase) e a monstrada na miocardiopatia hipertrófica, tanto na
fibrilação atrial tornam esses pacientes propensos a forma obstrutiva como na não-obstrutiva, por meio de
apresentar fenômenos tromboembólicos sistêmicos(11) . estudos de perfusão miocárdica ou por dosagem de
Acredita-se que a disfunção diastólica seja a principal lactato no seio coronário. Vários mecanismos estão
responsável pelos sintomas de dispnéia e intolerância envolvidos, como doença da microcirculação, redu-
ao esforço que esses pacientes apresentam. ção da capacidade vasodilatadora coronariana, com-
A perda da contração atrial efetiva e o aumento da pressão sistólica dos ramos septais, ponte miocárdica,
freqüência cardíaca, observados por ocasião do e redução da pressão de perfusão coronariana(1, 9) . A
surgimento da fibrilação ou “flutter” atrial, reduzem isquemia reduz o relaxamento ventricular e este difi-
drasticamente o débito cardíaco, precipitando culta o enchimento coronariano. Todos esses fatores
descompensações agudas, edema pulmonar, síncope, associados a grande hipertrofia resultam em morte
pré-síncope ou mesmo isquemia miocárdica por redu- celular e fibrose, criando, assim, mais substrato para
ção do fluxo coronariano e aumento do consumo de arritmia ventricular. Portanto, estímulos que aumen-
oxigênio, podendo, inclusive, estar implicado em al- tem o consumo de oxigênio e o gradiente
guns casos de morte súbita(12) . Portanto, nesses paci- intraventricular podem precipitar quadros de isquemia
entes, é imperativo conhecer e evitar os estímulos ou miocárdica e arritmia ventricular. Ainda nesse contex-
drogas que agravem a disfunção diastólica, bem como to, a hipovolemia e a hipotensão reduzem a pressão de
o controle da freqüência cardíaca e a manutenção do perfusão coronariana. Em pacientes com mais de 50
ritmo sinusal, são imprescindíveis para a estabilidade anos de idade e com fatores de risco, a doença
hemodinâmica. coronariana aterosclerótica pode estar presente e agra-
É evidente que os portadores de miocardiopatia var os sintomas anginosos.
hipertrófica, pela disfunção diastólica, toleram muito
mal situações que promovem queda acentuada da pré- DISFUNÇÃO SISTÓLICA
carga (hipovolemia) ou aumento brusco da pré-carga
(hipervolemia) bem como freqüência cardíaca eleva- Na miocardiopatia hipertrófica, a função sistólica
da ou perda da contração atrial (fibrilação ou “flutter” é usualmente normal ou supranormal, com alta fração
atrial). A disfunção diastólica pode ser melhorada com de ejeção tanto na forma obstrutiva como na não-
o uso de drogas que reduzem a freqüência cardíaca e a obstrutiva. Entretanto, na evolução tardia da doença,

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Abordagem pré-operatória de pacientes com miocardiopatia hipertrófica

5% a 10% dos pacientes podem desenvolver disfunção hemodinâmicas e elétricas já descritas, esses pacien-
sistólica por fibrose miocárdica decorrente de isquemia tes são propensos a apresentar eventos cardíacos ad-
e microenfartos ou, raramente, pela presença de versos, como insuficiência cardíaca, edema pulmonar,
coronariopatia aterosclerótica associada (1,9) . Chama a hipotensão, isquemia miocárdica e arritmias
atenção, nesses casos, a pequena dilatação da cavida- ventriculares ou supraventriculares, podendo essas
de ventricular, predominando nessa fase, os sintomas complicações surgir na indução anestésica, no intra-
de insuficiência cardíaca congestiva. operatório ou no pós-operatório. Essas complicações
podem ser causadas ou agravadas por anestésicos, ti-
QUADRO CLÍNICO pos de anestesia, oscilações hemodinâmicas, aumento
do consumo de oxigênio, hipoxia, e efeitos de drogas
Os sintomas clássicos referidos pelos portadores adrenérgicas e de vasodilatadores.
de miocardiopatia hipertrófica são: dispnéia de esfor- Em uma revisão sistemática da literatura, encon-
ço, fadiga, dor precordial, palpitações, tontura e sín- tramos apenas duas séries de pacientes portadores de
cope. Esses sintomas são muito variáveis em intensi- miocardiopatia hipertrófica que se submeteram a ci-
dade e não guardam correlação direta com a magnitu- rurgia não-cardíaca, ambas análises retrospectivas.
de ou a presença do gradiente intraventricular (1, 9) . Si- Thompson e colaboradores (16) revisaram os dados de
nais de insuficiência cardíaca congestiva podem ser 35 pacientes submetidos a 56 procedimentos cirúrgi-
encontrados nos pacientes com severa obstrução em cos (24 cirurgias de grande porte), todos com anestesia
repouso e/ou insuficiência mitral importante, disfunção geral. Nessa série, não ocorreram óbitos; entretanto,
diastólica e/ou sistólica importantes e na presença de 15 pacientes (60%) apresentaram complicações. Um
fibrilação atrial. A dor precordial, em geral, é atípica, paciente infartou e um apresentou angina no pós-ope-
e na maioria dos casos não se associa a obstrução ratório. Arritmias supraventriculares estiveram presen-
aterosclerótica coronariana (9) . Na evolução, os pacien- tes em 5 pacientes (bradicardia sinusal severa em 3 e
tes, sem sua maioria, apresentam-se pouco sintomáti- fibrilações atriais em 2). Três pacientes apresentaram
cos e são manuseados satisfatoriamente com tratamen- extra-sístoles ventriculares complexas, e taquicardia
to clínico(13) . Um percentual pequeno de pacientes (5% ou fibrilação ventricular não foram observadas. Cinco
a 10%) mostra-se refratário ao tratamento pacientes desenvolveram hipotensão severa, requeren-
farmacológico, e esses pacientes são candidatos a tra- do o uso de vasoconstritores. Em uma série mais re-
tamento invasivo com marcapasso dupla câmara, cente, Haering e colaboradores (17) revisaram os dados
alcoolização da artéria septal ou miomectomia cirúr- de 77 pacientes com miocardiopatia hipertrófica que
gica(14, 15) . A morte súbita é a mais imprevisível e de- foram submetidos a cirurgia não-cardíaca. Nessa sé-
vastadora complicação da miocardiopatia hipertrófica, rie, 35 (45%) pacientes foram submetidos a cirurgia
ocorrendo mais freqüentemente em pacientes jovens de grande porte e 42 (55%) sofreram intervenções
(dos 10 a 30 anos). São preditores de morte súbita a menores, 62 pacientes (81%) foram operados com
história pregressa da mesma na família, os episódios anestesia geral, 10 (13%) com bloqueios
sincopais e a presença de arritmia ventricular comple- raquimedulares e 2 com bloqueios tronculares. Nessa
xa(2) . A presença de outros sintomas, mesmo que in- série, não se verificaram óbitos, porém 31 pacientes
tensos, e a presença de gradiente intraventricular não (40%) apresentaram eventos cardíacos adversos.
são preditores de morte súbita. Doze tiveram isquemia miocárdica (um com infarto
transmural), 20 apresentaram insuficiência cardía-
COMPLICAÇÕES PEROPERATÓRIAS ca, 14 com hipotensão arterial severa e 25 apresen-
EM PORTADORES DE MIOCARDIOPATIA taram arritmia cardíaca estável. Nessas séries, a
HIPERTRÓFICA presença de gradiente intraventricular e sintomas
prévios à intervenção não se correlacionaram com
Devido à pouca freqüência da doença e pelo predomí- maior risco de eventos adversos. Encontramos mais
nio da mesma em pacientes mais jovens, são poucas as in- seis relatos de casos isolados, todos com algum
formações disponíveis sobre os riscos de intervenções cirúr- evento cardíaco adverso e um óbito decorrente de
gicas não-cardíacas em portadores de miocardiopatia hiper- infarto intra-operatório. Acompanhamos três casos
trófica. Não existem dados de avaliação prospectiva, nessa de portadores de miocardiopatia hipertrófica, todos
população, com relação a risco cirúrgico, complicações e com gradiente em repouso, que foram submetidos
manejo anestésico. a cirurgia não-cardíaca, e não observamos compli-
Pelas características anatômicas, funcionais, cações (não publicado).

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Abordagem pré-operatória de pacientes com miocardiopatia hipertrófica

CARDIOMIOPATIA HIPERTRÓFICA E GESTAÇÃO complementares:


1) Anamnese — informação sobre morte súbita na fa-
As alterações fisiológicas que acompanham a gra- mília, presença de síncope, taquiarritmias, grau e tipo
videz tendem a ser potencialmente danosas para as de dispnéia, características da dor precordial e clas-
pacientes com miocardiopatia hipertrófica. Tem-se sificação funcional.
observado, freqüentemente, a piora dos sintomas du- 2) Exame físico — tipo de ritmo, presença e intensidade
rante a gestação e raros casos de morte têm sido docu- do sopro, manobras provocativas de gradiente, ava-
mentados (18, 19) . A elevação da volemia na gestação liação da insuficiência mitral, sinais de hipertensão
aumenta o volume diastólico final do ventrículo es- pulmonar e presença de congestão pulmonar.
querdo, com tendência à redução do gradiente 3) Eletrocardiograma — quase sempre está alterado, com
intraventricular. Por outro lado, as reduções da resis- sinais de sobrecarga atrial, ventricular, alteração de
tência vascular sistêmica e do retorno venoso pela com- repolarização e ondas Q patológicas (↑ força elétri-
pressão da veia cava inferior pelo útero resultam em ca septal). Permite a caracterização do ritmo e pode
aumento do gradiente. sugerir isquemia mais significativa.
Durante o trabalho de parto, o aumento da ativida- 4) Radiografia de tórax — a área cardíaca usualmente é
de adrenérgica, da taquicardia e a manobra de Valsalva, normal ou pouco aumentada. Podemos avaliar sinais
no período expulsivo, tendem a agravar a obstrução de congestão pulmonar ou hipertensão pulmonar.
na via de saída, aumentando a insuficiência mitral e 5) Ecocardiograma — é o exame fundamental, que per-
favorecendo a congestão ou mesmo o edema pulmo- mite definir a presença da doença, sua caracteriza-
nar. Hipotensão grave pode ocorrer em conseqüência ção anatômica e o grau de hipertrofia; com o Dop-
de resposta vasodilatadora anormal, vasodilatação pelo pler, avaliamos o gradiente na via de saída e o grau
bloqueio anestésico e perda sanguínea. de refluxo mitral, o tamanho do átrio esquerdo e a
Na revisão da literatura, encontramos descrição presença ou não de trombo atrial (transesofágico).
detalhada da evolução de 33 gestações em portado- 6) Holter — é um exame importante, principalmente para
ras de miocardiopatia hipertrófica(18-20) . Há consen- os pacientes com história de morte súbita precoce
so entre os autores de que os sintomas se agravam em familiares ou que apresentam síncope ou pré-sín-
ao longo da gestação e 23 pacientes necessitaram cope ou palpitações recorrentes. O Holter seriado
de betabloqueador durante a gestação. A via de parto permite a documentação de fibrilação atrial paroxís-
foi vaginal em 20 pacientes e cesárea em 13, sendo tica e taquicardia ventricular não-sustentada.
a maioria por indicação obstétrica. Houve predo- 7) Teste ergométrico ou ergoespirométrico — utilizado
mínio de anestesia geral em relação aos bloqueios para avaliação mais objetiva da classe funcional, da
peridural ou raquimedular, tendo sido documenta- isquemia miocárdica e de arritmias induzidas pelo
dos casos de hipotensão severa, atribuídos ao blo- esforço. A identificação de resposta vasodilatadora
queio simpático dado pela anestesia peridural. As anormal ao exercício, com queda da pressão arterial,
complicações mais freqüentes foram insuficiência indica maior risco de morte súbita(26) .
cardíaca, edema de pulmão, hipotensão e arritmias 8) Cateterismo cardíaco — não é necessário para avalia-
supraventriculares (18-25) . Três pacientes tiveram mor- ção anatômica ou funcional, na maioria dos pacien-
te súbita durante a gestação(18, 19) . tes. A coronariografia está indicada para pacientes
com mais de 45 anos de idade, com fatores de risco
AVALIAÇÃO PRÉ-OPERATÓRIA para doença coronária ou com isquemia miocárdica
bem documentada em testes não-invasivos (cintilo-
A avaliação desses pacientes, visando à interven- grafia miocárdica). O eco-estresse com dobutamina
ção cirúrgica, tem como objetivo a estratificação não deve ser realizado, por aumentar ou provocar
criteriosa dos pacientes, com maior potencial para com- gradiente intraventricular.
plicações, principalmente em cirurgias de grande por-
te. Essa avaliação irá fornecer dados para a discussão MEDICAÇÃO PRÉ- OPERATÓRIA
com o anestesista, intensivista, cirurgião e obstetra
sobre o potencial de eventos adversos e traçar uma li- Os pacientes sintomáticos ou com gradiente em
nha de atuação conjunta para se evitar ou reduzir as repouso ou induzido devem receber betabloqueadores
principais complicações. no pré-operatório para reduzir a freqüência cardíaca e
Essa avaliação deve ser pautada nos dados de o gradiente, melhorar o enchimento ventricular e re-
anamnese detalhada, exame físico detalhado e exames duzir ou controlar as taquiarritmias; nos pacientes com

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Abordagem pré-operatória de pacientes com miocardiopatia hipertrófica

predomínio dos sintomas anginosos, pode ser associ- essa técnica anestésica(29,30). Na literatura, observa-se
ado verapamil. clara preferência pela anestesia geral, com o argumento
A amiodarona deve ser administrada para pacien- de menor possibilidade de quedas bruscas na pré- e na
tes com fibrilação atrial paroxística e para aqueles com pós-carga e variação do gradiente. Os anestésicos ina-
arritmia ventricular documentada (TVNS ou TV). Para latórios halotano e fluroxene parecem melhorar a he-
os pacientes recuperados de morte súbita, além da modinâmica cardiovascular desses pacientes. Para boa
amiodarona, parece ser obrigatória a utilização de des- condução anestésica, é necessária a ação conjunta do
fibrilador implantável(27) . cardiologista e do anestesista, valorizando os sinto-
mas e os dados anatômicos e hemodinâmicos obtidos
MONITORIZAÇÃO INTRA- OPERATÓRIA pelo ecocardiograma bidimensional. Para os pacien-
E PÓS -OPERATÓRIA tes mais graves ou nas cirurgias de grande porte, pare-
ce bastante razoável a recomendação de monitoração
Para os pacientes mais graves, para os severamen- invasiva com cateter de Swan-Ganz e até mesmo a uti-
te sintomáticos ou para aqueles que vão ser submeti- lização do ecocardiograma no intra-operatório. É fun-
dos a cirurgia de grande porte, parece bastante razoá- damental o controle da freqüência cardíaca e a manu-
vel a utilização de monitoração hemodinâmica invasi- tenção do ritmo sinusal com o uso sistemático de be-
va com cateter de Swan-Ganz para aferição contínua tabloqueador. Na vigência de instabilidade hemodinâ-
das pressões de enchimento ventriculares, débito car- mica, deve-se reduzir a contratilidade (betabloquea-
díaco e resistência vascular sistêmica. A monitoração dor) e evitar drogas inotrópicas positivas, como digi-
de isquemia miocárdica com eletrocardiograma, tálicos, dopamina e dobutamina, sendo preferíveis para
CKMB ou troponina deve ser considerada em situa- tratamento da hipotensão as drogas alfa-1 agonistas,
ções de instabilidade elétrica ou hemodinâmica. como fenilefrina ou metaraminol(31, 32) . Na ocorrência
de instabilidade elétrica atrial ou ventricular, deve-se
MANEJO ANESTÉSICO NA CARDIOMIOPATIA empregar a amiodarona.
HIPERTRÓFICA No pós-operatório, devemos evitar a dor e ansie-
dade que estimulam a atividade adrenérgica e podem
Existem controvérsias em relação ao melhor tipo provocar arritmias, aumento do gradiente e isquemia
de anestesia para os portadores de miocardiopatia hi- miocárdica.
pertrófica(28) . Nessa doença, são fundamentais a ma- As medidas listadas na Tabela 2 são preconizadas
nutenção da pré-carga, do ritmo sinusal e da freqüên- para o melhor manejo intra- e pós-operatório desses
cia cardíaca para otimizar o enchimento do ventrículo pacientes.
hipertrófico e rígido. Bom enchimento ventricular, re-
dução do inotropismo e manutenção ou elevação da CONCLUSÃO
resistência periférica são responsáveis pela redução do
gradiente intraventricular. Portanto, o manejo anesté- A heterogenicidade da doença, a variabilidade e a
sico dessa condição deve estar voltado para a manu- labilidade das alterações hemodinâmicas, e a susceti-
tenção dessas variáveis, procurando-se evitar drogas bilidade das complicações hemodinâmicas e elétricas
ou medidas que provoquem aumento do gradiente su- dificultam o manejo dos pacientes com miocardiopa-
baórtico e redução excessiva da pré-carga, fatores es- tia hipertrófica. A pouca experiência com essa doença
ses associados a queda do débito cardíaco, aumento e a falta de dados prospectivos seguros sobre os riscos
do consumo de oxigênio e redução da perfusão coro- cirúrgicos desses pacientes dificultam a interpretação
nariana. dos dados da literatura sobre o melhor manejo anesté-
A anestesia peridural ou raquianestesia determi- sico. Esses pacientes são mais propensos a apresentar
nam bloqueio simpático, com vasodilatação arterial e complicações como instabilidade hemodinâmica, in-
venosa e redução considerável da pré- e da pós-carga, suficiência cardíaca, edema pulmonar, isquemia mio-
com conseqüente aumento do gradiente intraventricu- cárdica e arritmias. A ação conjunta de especialistas, a
lar. Esses efeitos são argumentos para vários autores, monitoração adequada e a adoção sistemática de me-
que desaconselham esse tipo de anestesia para os por- didas para evitar ou tratar as complicações têm possi-
tadores de miocardiopatia hipertrófica(23-25) , embora bilitado boa evolução da maioria dos pacientes sub-
existam vários relatos de casos bem-sucedidos com metidos a intervenções cirúrgicas.

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Abordagem pré-operatória de pacientes com miocardiopatia hipertrófica

Tabela 2. Medidas preconizadas para o manuseio cirúrgico dos pacientes com miocardiopatia hipertrófica.

— Manter o uso de betabloqueador ao longo da gestação para as pacientes sintomáticas.


— Evitar o uso de digital ou drogas simpaticomiméticas ou vasodilatadores.
— Manter volemia adequada durante o trabalho de parto, durante a cirurgia e no pós-operatório imediato;
monitorar a pressão venosa central ou a pressão capilar pulmonar nos casos mais graves ou em cirurgias de
grande porte.
— Durante o trabalho de parto, manter a paciente em decúbito lateral, para evitar a redução do retorno venoso
pela compressão da veia cava pelo útero.
— A indicação de parto cesáreo fica condicionada às indicações obstétricas ou para os casos com insuficiência
cardíaca descompensada.
— Encurtar o segundo estágio do parto, com fórceps de alívio, reduzindo e minimizando as manobras de
Valsalva.
— Usar betabloqueadores endovenosos para controle da taquicardia e amiodarona para as arritmias ventriculares
e supraventriculares.
— Usar fenilefrina ou noradrenalina para correção de hipotensão grave.
— Parece haver maior estabilidade hemodinâmica com anestesia endovenosa em relação aos bloqueios peridural
ou raquimedular.
— Deve-se realizar profilaxia antimicrobiana pelo risco de endocardite bacteriana.

PREOPERATIVE APPROACH OF PATIENTS WITH HYPERTROPHIC CARDIOMYOPATHY


BEFORE NON CARDIAC SURGERY

DIRCEU RODRIGUES ALMEIDA , C LEÓPATRA MEDINA AREOSA, ROSIANE Z. DINIZ, ADAUTO CARVALHO, R UY
FELIPE M. VIÉGAS, ANTONIO C. C ARVALHO, ANGELO A. V. DE PAOLA

Patients with hypertrophic cardiomyopathy are prone to develop some complications because there are
many troubles in cardiovascular physiology during the anesthesia, the surgery and the postoperative periods.
The problems in the preload, afterload, myocardial contractility and heart rate can worse the ventricular outflow
obstruction, so patients can develop severe hypotension, heart failure, pulmonary edema, ischemic
cardiomyopathy and cardiac arrhythmias. A clinical evaluation in order to assess the anatomic and hemodynamic
status in the preoperative period joined with an anesthesia and monitorial programs can be used together to
diagnose early complications and with these steps we can predict a better evaluation to the majority of patients
submitted to a non cardiac surgery.
Key words: hypertrophic cardiomyopathy, anesthesia, operative complications.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:383-91)


RSCESP (72594)-992

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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 391
ABORDAGEM PRÉ-OPERATÓRIA DE PACIENTES
COM DISTÚRBIOS DA CONDUÇÃO E DO RITMO CARDÍACO

MÁRCIO JANSEN DE O LIVEIRA FIGUEIREDO, CLAUDIO PINHO, LUIZ ANTÔNIO K. BITTENCOURT

Ritmo Cordis — Campinas


Endereço para correspondência: Rua Visconde de Taunay, 421 — conj. 71 — CEP 13023-200 — Campinas — SP

Os autores abordam, de maneira prática, o manu- pré-operatória mais utilizados na prática diária. Abor-
seio de pacientes com arritmias cardíacas ou com dam, com destaque, o assunto da fibrilação atrial, além
transtornos da condução constatados no período pré- de discutir as bradiarritmias e a necessidade do uso de
operatório. Discutem a importância da arritmia como marcapasso profilático para cirurgias não-cardíacas.
preditor de risco de eventos cardiovasculares adver- Descritores: arritmia cardíaca, cuidados pré-ope-
sos, com uma visão crítica dos escores de avaliação ratórios, cirurgia não-cardíaca.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:392-6)
RSCESP (72594)-993

I NTRODUÇÃO to de arritmias antes desses estudos era que toda arrit-


mia deveria ser tratada e, se possível, suprimida. Hoje,
A detecção de distúrbios do ritmo cardíaco no perío- conceitos modernos dão conta de que a análise da tríade
do pré-operatório não é infreqüente(1-3) , e tal achado des- arritmia-isquemia-função miocárdica pode ser mais im-
perta a preocupação de cirurgiões e anestesistas para um portante que esses fatores isolados. A maioria dos paci-
possível risco aumentado de complicações cardiovascu- entes sem cardiopatia estrutural e assintomáticos não
lares durante ou imediatamente após uma cirurgia. precisa de tratamento. Mesmo em pacientes com cardi-
No entanto, “arritmia cardíaca” é um conceito am- opatia, o tratamento antiarrítmico pode ser mais deleté-
plo, que envolve qualquer tipo de anormalidade do rit- rio que sua falta. Ainda assim, os escores calculados por
mo cardíaco e não pretende definir, por si só, um prog- meio dos trabalhos clássicos sobre os múltiplos fatores
nóstico ou necessidade de tratamento. A arritmia pode de risco em cirurgia não-cardíaca indicam que a presen-
estar relacionada com doenças cardíacas graves, anor- ça de arritmias no pré-operatório continua sendo fator
malidades eletrolíticas ou o uso de drogas (cardiovascu- de mau prognóstico.
lares ou de outro tipo), mas pode também estar presente O assunto é complexo, e não está detalhadamente
em pacientes sem cardiopatia estrutural. estudado na literatura. Dada a complexidade do tema, o
A detecção da arritmia pode variar de acordo com o presente artigo enfocará uma visão geral do problema e,
método empregado para o diagnóstico (exame clínico, de maneira mais aprofundada, as questões que parecem
eletrocardiograma de 12 derivações, monitorização ele- ser mais freqüentes na prática clínica diária.
trocardiográfica ambulatorial de 24 horas ou mais). Es-
tudos como o CAST(4) , que demonstrou que sob deter- ARRITMIAS COMO FATOR DE RISCO
minadas condições o tratamento antiarrítmico pode ser INDEPENDENTE PARA COMPLICAÇÕES
prejudicial, e o trabalho de Kennedy e colaboradores (5) , NO PÓS- OPERATÓRIO
que mostrou prognóstico favorável em pacientes sadios
com arritmias, puseram em cheque a necessidade de tra- A ocorrência de arritmias no pré-operatório e sua
tar qualquer tipo de arritmia. O paradigma do tratamen- correlação com o prognóstico tomou impulso com os

392 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
FIGUEIREDO MJO e cols.
Abordagem pré-operatória de pacientes com distúrbios da condução e do ritmo cardíaco

estudos multifatoriais de risco, evoluindo para estu- arritmias durante monitorização eletrocardiográfica de
dos específicos para o tema. longa duração em 44% dos pacientes. Os achados de-
Goldman e colaboradores (1) , no estudo considera- monstraram não haver correlação entre a presença de
do pioneiro e até hoje muito utilizado como referên- arritmias no pré-operatório e eventos adversos (morte
cia, observaram que vários distúrbios do ritmo esta- cardíaca ou infarto do miocárdio não-fatal).
vam relacionados com complicações fatais e não-fa- Em conclusão, não há consenso, atualmente, so-
tais no pós-operatório de 1.001 pacientes. Nesse tra- bre o papel deletério de arritmias detectadas no pré-
balho, o escore contempla a presença de arritmias com operatório. Existem poucos estudos específicos sobre
peso desfavorável, contando muitos pontos negativos. o tema disponíveis na literatura e muitas variações
Ainda que muito importante, se observarmos o artigo metodológicas (uso de drogas, função miocárdica) e
sob o ponto de vista da arritmia, observamos alguns conceituais (tratar ou não a arritmia), que impedem a
problemas. Primeiro, 157 pacientes estavam em uso comparação adequada dos trabalhos publicados até o
de digital, droga sabidamente pró-arrítmica, o que pode momento sobre o assunto. No entanto, o bom senso,
indicar a presença de cardiopatias graves nos pacien- com base nos conhecimentos disponíveis, sugere que:
tes estudados. Vale lembrar que 48 dos 1.001 pacien- 1) Na presença de arritmias ventriculares, devem ser
tes estavam em fibrilação atrial no pré-operatório. Es- adotadas estratégias para a detecção e a
ses autores também relatam que 44 pacientes apresen- quantificação de doença cardíaca subjacente, o que
tavam história de mais que 5 extra-sístoles ventriculares pode, em última análise, determinar o prognósti-
por minuto, dos quais 43 também apresentavam evi- co, principalmente se coexistirem com isquemia e
dências de doença cardíaca com importante compro- má função do ventrículo esquerdo. Existem várias
metimento da função contrátil. Isso demonstra que a estratégias que podem ser utilizadas (8) .
arritmia não foi procurada de maneira sistemática, 2) Na presença de arritmias supraventriculares, devem
podendo haver um viés com tendência a observar ser investigadas, também, a presença e a gravida-
arritmias nos pacientes mais graves e com maior risco de de doenças pulmonares subjacentes, como su-
de complicações. Comentam, ainda, que a presença blinhado por Goldman e colaboradores (1) .
de arritmia ventricular pode ser um indicador da gra- 3) Em qualquer dessas situações, deve-se buscar e, se
vidade da cardiopatia subjacente(2) . for o caso, procurar corrigir distúrbios metabóli-
Em outro estudo, Cooperman e colaboradores (6) cos ou toxicidade medicamentosa.
avaliaram complicações no pós-operatório de cirurgia 4) O estresse a que o paciente é submetido no pré-
vascular periférica em 627 pacientes. Esses autores operatório imediato pode provocar o aparecimen-
encontraram aumento nas complicações em pacientes to de arritmias, como extra-sístoles ventriculares
com arritmias (atriais ou ventriculares) em compara- isoladas. Muitas vezes, essa ocorrência depende da
ção com pacientes em ritmo sinusal (33% “versus” 9%, ação do sistema nervoso simpático e, na maioria
p < 0,001). Em uma análise multivariada, o impacto dos casos, não tem gravidade suficiente para con-
negativo da presença de arritmia foi maior que o da tra-indicar a realização do ato cirúrgico. Casos ex-
angina e semelhante ao da presença de infarto do cepcionais devem ser avaliados isoladamente, le-
miocárdio pregresso. No entanto, notamos que o raci- vando-se em conta o quadro clínico e a opinião da
ocínio clínico na época levava em conta que toda equipe médica envolvida.
arritmia deveria ser tratada, e que o índice clínico não 5) Finalmente, é preciso ter cuidados especiais ao se
levava em conta dados de função miocárdica, como indicar terapia medicamentosa para as arritmias no
fração de ejeção do ventrículo esquerdo ou presença período pré-operatório. Os casos devem ser anali-
de cardiomegalia à radiografia, nem a relação com o sados cautelosamente. Pacientes sem cardiopatia
uso de drogas (digitálicos, antiarrítmicos) potencial- estrutural, assim como alguns pacientes com do-
mente pró-arrítmicas, além de considerar arritmias enças cardíacas, podem não necessitar de tratamen-
cardíacas complicações pós-operatórias, sem especi- to específico.
ficar que tipo de arritmia (extra-sístoles, fibrilação Deve-se esclarecer que as considerações acima são
atrial, episódios de taquicardia ventricular). pertinentes em casos de arritmias ventriculares ou
Mais recentemente, O’Kelly e colaboradores (7) es- supraventriculares não-sustentadas. Os pacientes com
tudaram 230 pacientes do sexo masculino, sabidamente episódios sustentados de arritmias em muitos casos já
coronariopatas ou com elevado risco para recebem algum tipo de tratamento, medicamentoso ou
coronariopatia, que foram submetidos a cirurgia não- não. As equipes cirúrgica e de anestesia devem ser in-
cardíaca. Nessa população, os autores encontraram formadas da natureza da arritmia e de seu tratamento,

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 393
FIGUEIREDO MJO e cols.
Abordagem pré-operatória de pacientes com distúrbios da condução e do ritmo cardíaco

seja ele paliativo (drogas ou dispositivos como o ou menos graves do sistema de condução do coração.
desfibrilador automático implantável) ou definitivo Kunstadt e colaboradores (10) relataram os achados
(como a ablação com radiofreqüência). clínicos e eletrofisiológicos em 39 pacientes com blo-
Pacientes com intervalo PR curto e onda delta no queio bifascicular. Vinte e quatro desses pacientes fo-
eletrocardiograma basal também costumam chamar a ram submetidos a 38 cirurgias, das quais 13 foram re-
atenção em avaliações pré-operatórias. Normalmente, alizadas após a inserção de marcapasso temporário
em pacientes assintomáticos, não recomendamos ava- profilático. Nenhum paciente desenvolveu bloqueio
liação mais detalhada, mas orientamos a equipe cirúr- atrioventricular total transitório ou permanente durante
gica e anestésica para a possível ocorrência de arritmias o ato cirúrgico ou na primeira semana de pós-operató-
supraventriculares que podem requerer terapia duran- rio. Os autores concluíram que não há necessidade de
te o ato cirúrgico. Os pacientes sintomáticos podem uso de marcapasso profilático nesses pacientes.
ser candidatos a tratamento definitivo da arritmia, que Rooney e colaboradores(11), em estudo publicado em
hoje é feito por meio de ablação com radiofreqüência 1976, relataram 27 pacientes com bloqueio completo do
em ocasião oportuna. ramo direito e desvio do eixo do vetor do QRS para a
esquerda que foram submetidos a 44 procedimentos ci-
FIBRILAÇÃO ATRIAL rúrgicos. Os autores observaram bradicardia no intra-
operatório em 4 pacientes, e todos os casos responde-
A fibrilação atrial tem sua importância no contex- ram à administração de atropina intravenosa. Com esses
to da cirurgia não-cardíaca, dada sua elevada achados, os autores não recomendam o uso de
prevalência e correlação freqüente com a presença de marcapasso provisório profilático nesses pacientes.
cardiopatias ou de alterações senis. No entanto, há Venkataraman e colaboradores (12) estudaram o as-
poucos dados na literatura sobre o impacto dessa sunto, de maneira retrospectiva, em 38 pacientes com
arritmia na cirurgia não-cardíaca. variados distúrbios de condução, submetidos a diver-
No estudo de Goldman e colaboradores (1) , 48 paci- sos tipos de cirurgia. Alguns pacientes haviam recebi-
entes apresentavam fibrilação atrial. Essa população, do marcapasso provisório profilático. Em apenas um
como detalhado em outro trabalho (2) , não apresentou deles (uma paciente de 93 anos com bloqueio
risco maior de complicações cardiovasculares. atrioventricular de segundo grau tipo 2:1) foi necessá-
Mesmo assim, achamos conveniente salientar al- rio o uso de marcapasso no pós-operatório imediato.
guns pontos: Os autores concluíram que, com exceção de bloque-
1) Na presença de fibrilação atrial, deve-se, insisten- ios desse grau, aparentemente não haveria necessida-
temente, buscar e quantificar cardiopatia de de marcapasso profilático em casos de bloqueios
subjacente. no eletrocardiograma.
2) A reversão para o ritmo sinusal antes da cirurgia ou Pastore e colaboradores (13) estudaram, prospecti-
o uso de drogas para o controle da freqüência vamente, 44 pacientes com bloqueio completo do ramo
ventricular são questões que quase sempre se fa- direito e desvio do eixo do QRS para a esquerda, que
rão presentes nessa situação, e não há resposta pa- foram submetidos a 52 cirurgias. Em apenas um caso
drão. A conduta deve ser escolhida após criteriosa houve necessidade do uso de marcapasso profilático,
avaliação de cada caso. que foi indicado no pré-operatório em 6 pacientes.
3) Dado que muitos pacientes com fibrilação atrial, Os autores concluem que o marcapasso temporário
com ou sem valvulopatia, são tratados com profilático é raramente requerido por esse tipo de pa-
anticoagulantes, devem-se seguir normas específi- cientes.
cas para o ajuste de doses no pré-operatório (9) . Assim, parece que existe, hoje, segurança para indi-
car um marcapasso profilático em poucos casos. Enten-
BRADIARRITMIAS de-se que o paciente que necessita de marcapasso provi-
sório durante uma cirurgia é aquele que se enquadra nas
Outro assunto freqüente no capítulo de arritmias indicações de marcapasso definitivo (14,15). Nessa situa-
no paciente cirúrgico é o da necessidade de marcapasso ção, então, poder-se-ia indicar o implante definitivo an-
“profilático”. tes da cirurgia eletiva, com antecedência de um mês, se
Esse dilema seguramente não é novo. Anestesistas, possível. Nos casos duvidosos, pode-se lançar mão do
cirurgiões e cardiologistas, há vários anos, vêm estu- marcapasso temporário transvenoso (cuja inserção é re-
dando a necessidade do implante de marcapasso, mes- lativamente fácil, porém não isenta de complicações) ou,
mo que provisório, em pacientes com distúrbios mais se disponível, de marcapasso transcutâneo.

394 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
FIGUEIREDO MJO e cols.
Abordagem pré-operatória de pacientes com distúrbios da condução e do ritmo cardíaco

PREOPERATIVE APPROACH OF PATIENTS WITH CARDIAC ARRHYTHMIAS AND


CONDUCTION DISTURBANCES

MÁRCIO JANSEN DE OLIVEIRA FIGUEIREDO, C LAUDIO PINHO, LUIZ ANTÔNIO K. B ITTENCOURT

The authors review, in a practical manner, the approaches in preoperative care of patients with cardiac
arrhythmias or conduction disturbances. They discuss the importance of cardiac arrhythmias as a predictor of
adverse cardiovascular events, with a critical analysis of the scores most commonly used in clinical practice.
Atrial fibrillation has a special attention, and the need of a prophylactic pacemaker before noncardiac surgery
is discussed.
Key words: cardiac arrhythmias, preoperative care, noncardiac surgery.

(Rev Soc Cardiol Estado de SãoPaulo 2000;3:392-6)


RSCESP (72594)-993

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396 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
PROCEDIMENT OS CIRÚRGICOS EM PACIENTES PORTADORES
DE DISPOSITIVOS CARDÍACOS IMPLANTÁVEIS

EDUARDO J. V. SANCHO

Fundação Jean-Yves Neveux


Endereço para correspondência: Rua Proença, 991 — ap. 111 — CEP 13026-121 — Campinas — SP

Novos dispositivos cardíacos implantáveis têm volvimento de estratégias que permitam prevenir e
sido desenvolvidos com o avanço da tecnologia mé- minimizar essa interação são fundamentais para a
dica. Paradoxalmente, esses dispositivos têm intera- criação de ambientes e dispositivos compatíveis e para
gido de maneira crescente com as interferências ele- o aprimoramento da segurança dos pacientes.
tromagnéticas presentes em diferentes ambientes e Descritores: cirurgia não-cardíaca, cuidados
apresentado respostas erráticas e imprevisíveis. A pré-operatórios, dispositivos cardíacos implantá-
identificação das fontes de interferência e o desen- veis.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:397-405)
RSCESP (72594)-994

I NTRODUÇÃO O propósito deste trabalho é apresentar considera-


ções práticas sobre a realização de procedimentos ci-
O desenvolvimento tecnológico considerável que rúrgicos em pacientes portadores de dispositivos car-
vem ocorrendo na área médica tem permitido a utili- díacos implantáveis, identificando as fontes potenci-
zação de dispositivos implantáveis mais adaptados à ais de interferências eletromagnéticas em ambiente
fisiologia cardíaca(1) . O funcionamento desses dispo- hospitalar e desenvolvendo estratégias para minimizar
sitivos incorpora componentes cada vez mais comple- seus efeitos sobre o estado hemodinâmico dos pacien-
xos, mas, embora sofisticados em sua proteção e tes. Não abordaremos as cirurgias cardíacas e os dis-
filtragem de sinais espúrios, as possibilidades de positivos de assistência circulatória, restringindo nos-
interação com as interferências eletromagnéticas pre- sa análise às cirurgias não-cardíacas e aos marcapassos
sentes no meio ambiente continuam numerosas, e cardioversores desfibriladores implantáveis.
erráticas e imprevisíveis (2-4) .
O portador de dispositivo cardíaco implantável que DISPOSITIVOS CARDÍACOS IMPLANTÁVEIS
necessita de procedimento médico-hospitalar, seja di-
agnóstico ou terapêutico, clínico ou cirúrgico, é um Marcapassos
paciente de risco, visto que as interferências eletro- O implante de marcapasso é o procedimento cirúr-
magnéticas presentes nesse ambiente podem pertur- gico cardíaco mais freqüentemente realizado e suas
bar, em graus variados, o bom funcionamento do equi- indicações e modos de estimulação têm sido motivo
pamento(5). de publicações e revisões periódicas, com o estabele-
As alterações e modificações possíveis resultantes cimento dos assim denominados consensos (1, 7) . Anu-
dessa interação devem ser de conhecimento pleno dos almente, cerca de 14 mil marcapassos são implanta-
profissionais de saúde que interagem com esses paci- dos em nosso meio e 175 mil nos Estados Unidos (8) .
entes, de forma a prevenir e minimizar os eventos re- A partir de 1952, com a introdução da estimulação
sultantes, que podem dar origem a acidentes potenci- cardíaca por meio de geradores externos, por Zoll, a
almente fatais (6) . tecnologia dos marcapassos não cessou de evoluir. Os

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 397
SANCHO EJV
Procedimentos cirúrgicos em pacientes portadores de dispositivos cardíacos implantáveis

marcapassos modernos tornaram-se dispositivos ex- Quando apenas uma câmara (átrio ou ventrículo) é
tremamente complexos, ao incorporar progressivamen- estimulada, é denominado monocameral. Já quando
te, com o desenvolvimento da tecnologia, os eletrodos as duas câmaras cardíacas são estimuladas (átrio e
transvenosos, a estimulação atrioventricular ventrículo), é denominado bicameral ou dupla câma-
seqüencial, as baterias de lítio de maior durabilidade, ra(8, 9) .
a miniaturização dos componentes, as múltiplas fun- Alguns marcapassos possuem biossensores capa-
ções de programabilidade e os biossensores, entre ou- zes de detectar a atividade física do paciente e deter-
tros. Mais recentemente, a capacidade de minar, como conseqüência, o aumento da freqüência
autoprogramação também se tornou disponível, per- de estimulação, de forma a fazer face às necessidades
mitindo ajustes automáticos na estimulação, de acor- metabólicas. Diversos tipos de sensores estão dispo-
do com as necessidades fisiológicas do paciente(9-11) . níveis, entre os quais sensores de vibração,
O sistema de marcapasso compreende, basicamen- acelerômetros, pH, temperatura, volume sistólico e
te, dois componentes: o gerador de pulso e o(s) respiração, entre outros. Esses marcapassos,
eletrodo(s). Dentro da caixa de titânio hermeticamen- freqüentemente, são denominados responsivos (8,11) .
te fechada, que compõe o gerador de pulso, localizam- Quanto ao modo de estimulação, os marcapassos
se a bateria e os diferentes circuitos eletrônicos de podem ser classificados em função da câmara estimu-
estimulação, sensibilidade e tempo. As baterias atuais lada, câmara detectada, resposta à detecção,
de lítio têm como característica a diminuição gradual programabilidade, modulação de freqüência e função
de energia, permitindo a detecção precoce da depleção antitaquicardia (8) .
e a troca eletiva do marcapasso(10) . As Associações Norte-Americana e Britânica de
Uma das maneiras de se classificar os marcapassos Eletrofisiologia e Marcapasso (North American Soci-
é quanto ao tipo de circuito eletrônico. Quando os ety of Pacing and Electrophysiology/British Pacing and
marcapassos oferecem apenas uma freqüência fixa, Electrophysiology Group — Generic Pacemaker Code)
sem função de sensibilidade, são denominados propuseram um sistema de classificação, o código
assincrônicos. Por outro lado, quando possuem um NBG. As três primeiras letras desse sistema indi-
circuito de sensibilidade capaz de detectar a atividade cam as funções básicas antibradicardia e as duas
elétrica intrínseca do coração, são denominados últimas, a programabilidade e as funções antitaqui-
sincrônicos(9) . cardia(12) (Tab. 1).
Os marcapassos sincrônicos possuem um disposi- Embora grande número de modos de estimulação
tivo interno ou relê (“reed switch”), que, quando ex- seja possível com a tecnologia atual, podemos conside-
posto ao campo magnético gerado por um ímã, é ca- rar que os mais freqüentes, para fins práticos, são VVI e
paz de desligar temporariamente o circuito de sensibi- VVIR (monocameral), e DDD e DDDR (bicameral).
lidade, adotando o modo de estimulação assincrônico, As indicações de implante de marcapasso permanente
com freqüência de estimulação fixa. Ao se retirar o também têm sido objeto de grande evolução, com a pu-
ímã, a função do circuito de sensibilidade é reabilita- blicação de diretrizes e consensos por parte de diferen-
da(11) . tes organizações e sociedades de especialidade. Basica-
Outra forma de se classificar os marcapassos é mente, essas indicações podem ser categorizadas em sete
quanto ao número de câmaras cardíacas estimuladas. grandes grupos(1,7) , apresentados na Tabela 2.

Tabela 1. Marcapassos — Código NBG.

I II III IV V

O = nenhuma O = nenhuma O = nenhuma O = nenhuma O = nenhuma


A = átrio A = átrio T = deflagração P = programação simples P = estimulação
V = ventrículo V = ventrículo I = inibição M = multiprogramação S = choque
D=A+V D=A+V D=T+I C = comunicação D=P+S
R = modula a freqüência

I = câmara estimulada; II = câmara sentida ou detectada; III = resposta do marcapasso à detecção; IV = programabilidade e
modulação de freqüência; V: funções antitaquicardia.

398 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
SANCHO EJV
Procedimentos cirúrgicos em pacientes portadores de dispositivos cardíacos implantáveis

Tabela 2. Marcapassos — Principais indicações.

— Bloqueios atrioventriculares adquiridos em adultos


— Bloqueios bifasciculares e trifasciculares crônicos
— Bloqueios atrioventriculares associados ao infarto agudo do miocárdio
— Disfunção do nó sinusal
— Prevenção e interrupção de taquiarritmias por meio de estimulação
— Hipersensibilidade do seio carotídeo
— Distúrbios eletrofisiológicos em crianças e adultos

Cardioversores desfibriladores implantáveis — fonte de energia para o funcionamento do sistema e


Os cardioversores desfibriladores implantáveis têm geração de alta energia;
sido utilizados, de forma crescente, para proteger paci- — capacitor para armazenar e descarregar choques de
entes de alto risco de taquicardias ventriculares fatais e alta voltagem, quando necessário.
morte súbita cardíaca(1,13) . Esses dispositivos implantáveis também apresentam
Em 1980, o primeiro implante de cardioversor desfi- um relê (“reed switch”), que, quando ativado, suspende
brilador implantável foi realizado por Mirowski, nos a capacidade de detecção de taquiarritmias e inibe a te-
Estados Unidos. Inicialmente, o procedimento exigia rapia programada(11) .
abordagem cirúrgica por meio de esternotomia media- Existe também o código NBD, para identificação dos
na; mas, com a evolução tecnológica, foram emprega- cardioversores desfibriladores implantáveis (Tab. 3), pro-
das toracotomias menos extensas. Finalmente, em 1986, posto pelas Associações Norte-Americana e Britânica
foi desenvolvido um sistema transvenoso que não mais de Eletrofisiologia e Marcapasso (North American So-
exigia toracotomia, o que contribuiu para o incremento ciety of Pacing and Electrophysiology/British Pacing and
das indicações de implante(11) . Electrophysiology Group — Defibrillator Code) (12) .
Os cardioversores desfibriladores implantáveis apresen- As indicações de implante de cardioversor desfibrilador
tam diferentes componentes, dentre os quais destacam-se(14): implantável têm evoluído rapidamente, tanto em função do
— sistema de eletrodos para “sentir” a atividade elétrica aprimoramento tecnológico como dos resultados de estu-
do coração; dos multicêntricos de pacientes de risco(1,13) . Algumas delas
— circuito de análise dos eventos detectados; podem ser observadas na Tabela 4.

Tabela 3. Cardioversores desfibriladores implantáveis — Código NBD.


I II III IV
O = nenhuma O = nenhuma E = eletrograma O = nenhuma
A = átrio A = átrio H = hemodinâmica A = átrio
V = ventrículo V = ventrículo V = ventrículo
D=A+V D=A+V D=A+V
I = câmara que recebe o choque; II = câmara que recebe a estimulação antitaquicardia; III = detecção de taquicardia; IV =
câmara que recebe estimulação antibradicardia.

Tabela 4. Cardioversores desfibriladores — Principais indicações.

— Sobreviventes de parada cardíaca por fibrilação/taquicardia ventricular conseqüente a causas irreversíveis e


não transitórias
— Taquicardia ventricular sustentada espontânea, mal tolerada, sem alternativa terapêutica eficaz
— Taquicardia ventricular não-sustentada em portador de infarto do miocárdio prévio e com importante disfunção
de ventrículo esquerdo, com indução de taquicardia/fibrilação sustentada no exame eletrofisiológico invasivo
— Síncope de origem indeterminada, com indução de taquicardia/fibrilação sustentada no exame eletrofisiológico
invasivo, com comprometimento hemodinâmico significativo

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 399
SANCHO EJV
Procedimentos cirúrgicos em pacientes portadores de dispositivos cardíacos implantáveis

I NTERFERÊNCIAS ELETROMAGNÉTICAS mentos diagnósticos e terapêuticos, são as interferên-


cias eletromagnéticas médico-hospitalares que adqui-
Os dispositivos cardíacos implantáveis possuem, rem relevância.
em seu interior, um circuito de sensibilidade que per-
mite receber os sinais elétricos provenientes da ativi- Fontes de interferências eletromagnéticas em
dade cardíaca intrínseca do paciente, inibindo a emis- ambiente médico-hospitalar
são do estímulo ao coração (no caso dos marcapassos) No ambiente médico-hospitalar, inúmeras são as
ou deflagrando uma terapia (no caso dos cardioversores fontes possíveis de interferências eletromagnéti-
desfibriladores implantáveis) em função dos sinais cas (5, 12, 15, 16, 18) . Podemos considerar, como princi-
detectados(8, 9) . pais: unidades eletrocirúrgicas (eletrocautério, bisturi
Todavia, em determinadas situações, esse mesmo elétrico); cardioversão; desfibrilação; radioterapia;
circuito de sensibilidade pode “sentir” indevidamente ressonância nuclear magnética; tomografia por emis-
sinais provenientes de outras fontes de energia e são de pósitrons; neuroestimulador medular; neuroes-
interpretá-los, erroneamente, como provenientes do timulador transcutâneo periférico; estimuladores de
coração. Nesses casos, em decorrência da interferên- potencial evocado somato-sensório; eletroneuromio-
cia eletromagnética, temos o desencadeamento de com- grafia; ablação por radiofreqüência; diatermia terapêu-
portamentos erráticos e imprevisíveis dos dispositivos tica; e litotripsia.
cardíacos implantáveis (12) . Além desses equipamentos, casos de interferênci-
as eletromagnéticas sobre marcapasso e cardioversor
Classificação das fontes de interferência desfibrilador implantável provocadas pelo motor elé-
eletromagnética trico da mesa cirúrgica, por placa magnética para ins-
Os aspectos físicos dos campos eletromagnéticos trumentos cirúrgicos e por sistemas internos de comu-
e das interferências eletromagnéticas produzidas são nicação hospitalar também foram descritos (19) .
muito complexos e uma discussão detalhada desses A utilização de unidades eletrocirúrgicas envolve a
tópicos está além do escopo desta revisão. Todavia, passagem de correntes de alta voltagem e alta freqüên-
para fins clínicos práticos, as interferências eletromag- cia (10.000 Hz) através dos tecidos, para a obtenção de
néticas podem ser provenientes de fontes que irradi- corte ou coagulação. Essa corrente pode ser unipolar ou
am ou que conduzem campos eletromagnéticos (15) . bipolar. Nos sistemas unipolares, a corrente flui da pon-
As interferências eletromagnéticas irradiadas ocor- ta do bisturi, através do corpo, para retornar ao equipa-
rem quando o corpo é colocado dentro de um campo mento por meio da placa de dispersão. Nos sistemas bi-
eletromagnético, não sendo necessário nenhum con- polares, a corrente flui através dos dois eletrodos situa-
tato com a fonte emissora. Resultam, mais dos na ponta do instrumento, interagindo com o tecido
freqüentemente, da energia emitida por aparelhos de apenas na região onde é aplicado(12) . Se o bisturi elétrico
comunicação (por exemplo, radares, telefones celula- for utilizado por meio de outro instrumento metálico
res), equipamentos elétricos (por exemplo, motores, (pinça, tesoura cirúrgica), a freqüência da corrente pode
turbinas) e equipamentos médicos (ressonância nuclear variar e diminuir de forma considerável, aumentando
magnética, tomografia por emissão de pósitrons, radi- ainda mais as chances de interferência(12) .
oterapia), entre outros. Alguns equipamentos, tais como ultra-som, ecocar-
As interferências eletromagnéticas conduzidas diograma, teste ergométrico, eletrocardiograma, eletro-
ocorrem quando uma fonte eletromagnética entra em encefalografia, Holter, radiografia convencional, medi-
contato direto com o corpo. São produzidas por equi- cina nuclear, cinecoronariografia, mamografia, tomogra-
pamentos médicos (por exemplo, bisturi elétrico, fia computadorizada, ventilador, oxímetro, capnógrafo,
desfibriladores) e pelo contato direto com equipamen- bomba de infusão, balão intra-aórtico, sistema de circu-
tos elétricos impropriamente aterrados. lação assistida, polígrafo, monitor de débito cardíaco, e
Todas essas interferências variam de acordo com o monitor de pressão e pulso, desde que adequadamente
tipo e a freqüência espectral da energia emitida, e com aterrados e submetidos a manutenções regulares, não
o ambiente no qual a fonte emissora está localizada. oferecem perigo aos pacientes(16) .
Portanto, as interferências eletromagnéticas podem ser
classificadas em quatro grupos, de acordo com o am- Resposta dos dispositivos cardíacos implantáveis
biente(16, 17): doméstico, social, profissional e médico- à interferência eletromagnética
hospitalar. Os efeitos das interferências eletromagnéticas nos
Para o paciente que deve ser submetido a procedi- dispositivos cardíacos implantáveis dependem de inú-

400 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
SANCHO EJV
Procedimentos cirúrgicos em pacientes portadores de dispositivos cardíacos implantáveis

meros fatores (15, 20, 21) . Os principais estão apresenta- — sinal interpretado como taquiarritmia, desencade-
dos na Tabela 5. ando estimulação antitaquicardia ou choque de
Níveis mais elevados de sensibilidade programa- desfibrilação pelo cardioversor desfibrilador
da, eletrodos unipolares e pequenas distâncias das fon- implantável;

Tabela 5. Fatores que influenciam os efeitos das interferências eletromagnéticas.

— Intensidade do campo eletromagnético


— Espectro do sinal
— Distância e posição do paciente
— Duração da exposição
— Características intrínsecas do dispositivo cardíaco
— Configuração do eletrodo
— Posição relativa fonte/gerador-eletrodo
— Parâmetros programados
— Sensibilidade do dispositivo cardíaco
— Modo de estimulação
— Grau de dependência do paciente ao marcapasso
— Suscetibilidade do paciente à estimulação assíncrona
— Suscetibilidade do paciente a ritmos rápidos

tes emissoras, entre outros, elevam a suscetibilidade — sinal interpretado como interferência, com suspen-
do paciente às interferências eletromagnéticas. Da são dos protocolos de detecção de taquiarritmias
mesma forma, sistemas que utilizam mais que um ele- pelo cardioversor desfibrilador implantável, dei-
trodo são mais suscetíveis, visto que os eletrodos fun- xando o paciente desprotegido.
cionam como antenas receptoras de interferências ele- Todas essas respostas são conseqüências diretas da
tromagnéticas(8, 15) . ação da interferência eletromagnética sobre diferen-
As respostas mais freqüentes apresentadas pelos tes componentes do dispositivo cardíaco implantável
dispositivos cardíacos implantáveis aos sinais prove- e podem ser potencialmente catastróficas para a paci-
nientes das interferências eletromagnéticas são (5,12) : ente. Por exemplo, a inibição sustentada da estimulação
— sinal interpretado como intrínseco ao coração, ini- em pacientes dependentes do marcapasso pode deter-
bindo ou deflagrando indevidamente o estímulo do minar, na dependência da duração da inibição,
marcapasso; hipotensão, síncope ou mesmo morte.
— sinal interpretado como interferência, revertendo o
marcapasso ao modo assíncrono de estimulação, ABORDAGEM DO PACIENTE
podendo originar taquiarritmias graves devido ao
fenômeno R sobre T; A conduta a ser tomada depende sempre do tipo e
— sinal interpretado como sinal de programação, ori- da fase do procedimento a ser realizado (5, 12, 15, 16) . Con-
ginando reprogramação inadequada do marcapasso sideraremos, essencialmente, os pacientes que serão
ou cardioversor desfibrilador implantável; submetidos a quatro grupos de procedimentos: cirur-
— condução de uma série de sinais, por acoplamento gias; cardioversão ou desfibrilação; radioterapia; ou-
indutivo, diretamente ao coração, originando tros procedimentos.
fibrilação atrial ou ventricular;
— altos níveis de energia conduzidos de forma con- Cirurgias
centrada à ponta dos eletrodos, levando a lesões Os pacientes portadores de marcapasso ou cardio-
térmicas e danos permanentes da interface tecido- versor desfibrilador implantável, que necessitam de
dispositivo, com conseqüente aumento dos limia- procedimentos cirúrgicos, devem ser preparados de
res, perda de comando ou perfurações do coração; forma a evitar a ação das interferências eletromagné-
— altos níveis de energia conduzidos ao gerador, levan- ticas e prevenir a disfunção temporária ou permanente
do a danos permanentes dos circuitos eletrônicos; dos dispositivos cardíacos (22,23).

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 401
SANCHO EJV
Procedimentos cirúrgicos em pacientes portadores de dispositivos cardíacos implantáveis

No período pré-operatório, as principais medidas modo bipolar;


a serem adotadas são: — desativar os programas de terapia antitaquicardia
— identificação da doença cardíaca que levou à indi- nos cardioversores desfibriladores implantáveis;
cação de implante; — evitar a utilização do bisturi elétrico a menos de 15
— realização de avaliação completa do sistema (24,25), cm do marcapasso/cardioversor desfibrilador im-
identificando marca, modelo, data do implante, plantável;
modo de estimulação, polaridade dos eletrodos, — posicionar a placa do bisturi elétrico (eletrodo de
parâmetros programados; dispersão) o mais distante possível do marcapasso
— corrigir fatores predisponentes de isquemia mio- ou cardioversor desfibrilador implantável e o mais
cárdica e hipoxemia; próximo possível da caneta do bisturi, de forma
— corrigir distúrbios eletrolíticos; que o caminho da corrente adote posição perpen-
— considerar técnicas alternativas, como a utilização dicular ao plano formado pelo gerador-eletrodo;
de bisturi e ligaduras convencionais, bisturi ultra- — utilizar, preferencialmente, o bisturi bipolar;
sônico ou bisturi a laser; (26,27) — ao utilizar o bisturi por meio de outros instrumen-
— realizar radiografia do tórax, para verificar a posi- tos metálicos (pinças, tesouras cirúrgicas), ativar o
ção e a integridade dos eletrodos. bisturi apenas após estabelecer contato com o ins-
No período intra-operatório, recomenda-se: trumento;
— aterrar adequadamente todos os equipamentos da — utilizar a menor potência possível, em pulsos cur-
sala cirúrgica e posicionar o paciente corretamen- tos de 1 a 3 segundos, com interrupções de 10 se-
te na mesa cirúrgica; gundos;
— ter disponível um desfibrilador externo; — não utilizar o ímã de rotina.
— ter disponível um marcapasso temporário transto- No passado, recomendava-se a utilização rotineira
rácico, transesofágico ou endocárdico; de ímã durante os procedimentos cirúrgicos, para des-
— ter disponível o programador específico para o ligar o circuito de sensibilidade dos marcapassos e
marcapasso ou cardioversor desfibrilador implan- convertê-los, temporariamente, para o modo assíncro-
tável; no, na tentativa de diminuir os efeitos das interferên-
— ter disponíveis, para uso imediato, drogas inotrópi- cias eletromagnéticas. Todavia, os ímãs podem tornar
cas e cronotrópicas, por causa da possibilidade de os marcapassos atuais mais suscetíveis à reprograma-
disfunção permanente do marcapasso ou cardio- ção, pois os sinais do bisturi elétrico podem ser inter-
versor desfibrilador implantável; pretados, quando o ímã está sobre o gerador, como
— evitar alterações posturais abruptas, perdas exces- sinais para reprogramação. Embora a presença do ímã
sivas de sangue, diminuição do débito cardíaco, na sala cirúrgica possa trazer falsa sensação de segu-
hipotensão; rança, seu uso rotineiro para todos os pacientes não é
— utilizar profilaxia antibiótica contra endocardite, recomendado, podendo mesmo ser extremamente pe-
caso haja infecção ou risco de bacteremia durante rigoso para o paciente(5, 12, 15, 16) .
o procedimento; Finalmente, no período pós-operatório, deve-se:
— instalar, com cuidado, cateteres de Swan-Ganz em — proceder à avaliação completa do sistema;
pacientes com implantes recentes, em decorrência — reprogramar o marcapasso para seus parâmetros
do risco de deslocamento do eletrodo; originais;
— avaliar com atenção as fasciculações produzidas — reprogramar o cardioversor desfibrilador implan-
por relaxantes musculares despolarizantes, pois os tável, reativando as terapias antitaquicardia.
miopotenciais gerados podem inibir os marcapas-
sos; Cardioversão ou desfibrilação
— monitorar continuamente o eletrocardiograma; Antes do procedimento, deve-se:
— monitorar continuamente o pulso, por pressão in- — aterrar adequadamente todos os equipamentos da
vasiva, oxímetro ou manualmente; sala;
— desativar o biossensor nos marcapassos responsi- — ter disponível desfibrilador externo, marcapasso
vos; temporário e programador específico para o mar-
— reprogramar os marcapassos para modo assíncro- capasso ou cardioversor desfibrilador implantável;
no (VOO ou DOO), para evitar assistolia em paci- — ter disponível, para uso imediato, drogas inotrópi-
entes dependentes do marcapasso; cas e cronotrópicas, por causa da possibilidade de
— reprogramar, quando possível, os eletrodos para disfunção permanente do marcapasso ou cardio-

402 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
SANCHO EJV
Procedimentos cirúrgicos em pacientes portadores de dispositivos cardíacos implantáveis

versor desfibrilador implantável; passo ou cardioversor desfibrilador implantável está


— determinar o grau de dependência do paciente; formalmente contra-indicada (33) .
— posicionar as pás no sentido ântero-posterior; A utilização de diatermia, neuroestimulação(34) ,
— se o posicionamento anterior das pás for necessá- eletromiografia e eletroacupuntura deve ser evitada,
rio, colocá-las de forma a adotar uma linha per- por causa da possibilidade de alteração dos dispositi-
pendicular ao plano gerador-eletrodo; vos cardíacos implantáveis pela interferência eletro-
— manter as pás o mais distante do dispositivo; magnética(16) .
— utilizar a menor energia possível. A litotripsia pode inibir ou destruir os circuitos dos
Após o procedimento, realizar avaliação completa marcapassos e cardioversores desfibriladores implan-
do sistema e monitorar o paciente por 24 horas. táveis, devido tanto à geração de campo elétrico como
à ação mecânica do equipamento. Os cuidados gerais
Radioterapia descritos para os pacientes cirúrgicos devem ser em-
Diferentes efeitos do tratamento radioterápico so- pregados nesses pacientes(12,16) .
bre os dispositivos cardíacos implantáveis têm sido A ablação de arritmias por cateter de radiofreqüên-
descritos (28-31) . Os pacientes que necessitam de radio- cia pode ser realizada em pacientes portadores de mar-
terapia deverão ser submetidos a avaliação completa capasso e cardioversor desfibrilador implantável. To-
do sistema antes do início do tratamento. A máxima davia, as mesmas medidas de prevenção e proteção
proteção do dispositivo poderá ser obtida com: utilizadas para os pacientes cirúrgicos deverão ser
— adoção da máxima distância possível entre o dis- empreendidas, para o incremento da segurança do pa-
positivo e o feixe de radiação; ciente(16, 35, 36).
— proteção do dispositivo com chumbo, evitando-se
a irradiação direta; CONCLUSÃO
— reinstalação do dispositivo em outra região, caso
não seja possível proteção adequada. Embora os dispositivos cardíacos atuais tenham evo-
Após o tratamento, recomenda-se a reavaliação luído e possuam sistemas muito mais adequados de pro-
completa do sistema. teção contra as interferências eletromagnéticas, reações
adversas e inesperadas resultantes da interação entre os
Outros procedimentos marcapassos/cardioversores desfibriladores implantáveis
A utilização de ressonância nuclear magnética em e essas fontes de interferência ainda ocorrem, muitas
pacientes portadores de marcapasso e cardioversor vezes colocando em risco a vida do paciente.
desfibrilador implantável tem sido estudada em todo A busca da “compatibilidade eletromagnética” en-
o mundo (32) . Diversos relatos de interações adversas, tre os marcapassos/cardioversores desfibriladores im-
inclusive com a morte de pacientes, têm sido apresen- plantáveis e os equipamentos presentes em ambiente
tados(33) . hospitalar deve nortear as ações dos diferentes segmen-
Três tipos de campos magnéticos (estáticos e al- tos que atuam na área da saúde. Na medida em que o
ternantes) estão presentes durante a realização do exa- número de equipamentos médicos e a tecnologia envol-
me, todos podendo atuar de forma intensa sobre os vida crescem de forma extremamente rápida, a atuação
circuitos internos dos dispositivos cardíacos. De for- preventiva depende da possibilidade de acesso às nor-
ma resumida, podemos considerar que a ressonância mas de proteção e interações indesejáveis já relatadas.
nuclear magnética pode determinar: deslocamento do A utilização de informações disponíveis na literatu-
gerador e/ou eletrodo; destruição dos componentes ra, bem como na Internet, pode diminuir o tempo entre a
eletrônicos; alteração da programação original; aque- descrição de interferências potencialmente graves e a
cimento dos componentes metálicos; e aquecimento adoção efetiva de medidas adequadas na prática clínica.
dos eletrodos, com possibilidade de lesão térmica do Como exemplo, a base de dados do Center for Devices
miocárdio. and Radiological Health: Medical Device Reporting
A possibilidade de lesão térmica do miocárdio deve (URL: http://www.fda.gov/cdrh/mdr.html) é uma ferra-
ser considerada mesmo nos pacientes que tiveram o menta extremamente importante para o profissional
gerador explantado, sem a retirada dos eletrodos. Essa médico.
lesão pode levar a aumento dos limiares, perfuração Os cuidados e protocolos aqui apresentados podem
miocárdica ou fibrose, com subseqüente arritmogêne- tornar os procedimentos cirúrgicos eletivos não-cardía-
se. Portanto, a realização de exames de ressonância cos mais seguros em pacientes portadores de marcapas-
nuclear magnética em pacientes portadores de marca- so e cardioversor desfibrilador implantável.

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 403
SANCHO EJV
Procedimentos cirúrgicos em pacientes portadores de dispositivos cardíacos implantáveis

SURGICAL MANAGEMENT OF THE PATIENT WITH IMPLANTED CARDIAC DEVICES

EDUARDO J. V. SANCHO

Medical technology evolution has been responsible for the continuous flow of new implantable cardiac
devices. Paradoxically, an increasing interaction between these devices and the environmental electromagnetic
interference have produced unpredictable and dangerous situations. The precise identification of the sources of
electromagnetic interference and the development of strategies to minimize and prevent these interactions are
essential for an electromagnetic compatible and safe environment for the patient.
Key words: non-cardiac surgical procedures, preoperative care, cardiac devices.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:397-405)


RSCESP (72594)-994

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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 405
AVALIAÇÃO DE RISCO CARDIOVASCULAR PARA
PROCEDIMENTOS ODONT OLÓGICOS
ROBERTO A. FRANKEN, MARCELO FRANKEN

Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo


Endereço para correspondência: Av. Angélica, 2466 — cj. 132 — CEP 01227-200 — São Paulo — SP

O tratamento dentário em pacientes cardiopatas é onadas aos cuidados com hipertensos, coronarianos
motivo de preocupação da equipe de profissionais e pacientes com arritmias. Como e quando usar anti-
envolvida no processo. Dividimos os riscos em infec- bióticos, como manipular vasoconstritores e anticoa-
ciosos, hemodinâmicos, arrítmicos e aqueles relacio- gulantes, anestesiar ou não, e quando internar são
nados ao uso de medicamentos usados pelos pacien- questões habituais discutidas e respondidas no texto.
tes ou pelo dentista, assim como interferência em Descritores: doença dentária e cardiopatia, cirur-
marcapassos. São descritas as recomendações clássi- gia dentária e cardiopatia, cirurgia oral e cardiopa-
cas para prevenir endocardite infecciosa, e as relaci- tia, cirurgia odontológica e cardiopatia.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:406-13)
RSCESP (72594)-995

I NTRODUÇÃO anaeróbias, e contém os patógenos peridentários.


Pacientes com infecções peridentárias sofrem in-
As complicações e riscos cardiovasculares das do- vasão bacteriana da circulação ao realizar atos do dia-
enças dentárias e procedimentos odontológicos são as- a-dia, como mastigar ou escovar os dentes. Em indiví-
sunto do âmbito da Cardiologia, da Clínica Médica e duos saudáveis, a bacteremia não tem, de modo geral,
da Odontologia. Como e quando tratar os dentes de qualquer conseqüência, porém em doentes
pacientes cardiopatas, quais os riscos e como prevenir imunocomprometidos ou valvulopatas ou, ainda, aque-
são preocupações para os profissionais envolvidos no les portadores de próteses cardíacas, as conseqüênci-
processo. as podem ser graves.
Para fins didáticos, classificamos os riscos em in- Desconhece-se ainda o significado a longo prazo
fecciosos, hemodinâmicos, eletrofisiológicos e aque- de invasões bacterianas e/ou de produtos derivados das
les dependentes do uso de medicamentos usados por bactérias, durante anos, na circulação de indivíduos
cardiopatas e nos procedimentos odontológicos. saudáveis, sofredores de periodontites. Levantamen-
tos epidemiológicos sugerem que pode haver relação
RISCOS INFECCIOSOS entre infecção dentária e doença ateroesclerótica(1, 2) .
Paunio e colaboradores (3) observaram paralelismo en-
Doenças peridentárias e cáries são, provavelmen- tre perda dentária (expressão de infecção dentária) e
te, as mais comuns das doenças infecciosas crônicas doença isquêmica do coração em 1.384 homens entre
do homem. 45 e 64 anos de idade. A relação entre infecção crôni-
A placa supragengival em geral é aderente e com- ca e doença ateroesclerótica tem sido descrita desde
posta, principalmente, por bactérias Gram-positivas os anos 80(4) . De Stefano e colaboradores (5) estudaram
sacarolíticas, anaeróbias facultativas e cariogênicas. 9.760 indivíduos sem doença coronária diagnosticada,
A placa subgengival é composta, predominantemen- acompanhados por 14 anos. Periodontite e má higiene
te, por bactérias Gram-negativas assacarolíticas, oral foram considerados risco isolado e independente

406 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
FRANKEN RA e col.
Avaliação de risco cardiovascular para procedimentos odontológicos

para mortalidade e doença coronária, especialmente 3) O terceiro mito é o de que as normas da Associação
em jovens com menos de 50 anos de idade. Em paci- Norte-Americana de Cardiologia protegem contra
entes com infecção dentária, foi descrito aumento do todas as formas de endarterite infecciosa. Essa
fator de von Willebrand(6) , aumento do número de acertiva não é verdadeira. São descritos casos de
leucócitos e fibrinogênio(1) , e aumento da atividade germes resistentes, assim como o uso prévio de
plaquetária. Esses fenômenos foram induzidos por antibióticos pode tornar germes banais resistentes
bactérias envolvidas no processo inflamatório a antibióticos usados habitualmente ou privilegiar
periodental(7) . Produtos microbianos são descritos ain- o desenvolvimento de cepas resistentes.
da como indutores da disfunção endotelial (8, 9) , adesão 4) Outro mito afirma que os antibióticos devem ser
de monócitos, atividade dos macrófagos (10) , coagula- prescritos em qualquer procedimento dentário
ção sanguínea (11) e metabolismo lipídico(12) . Todos es- acompanhado de sangramento. Não há unanimi-
ses fatores citados estão, por outro lado, envolvidos dade em relação ao assunto, não estando, por exem-
no processo ateroesclerótico e de trombose arterial. plo, indicado na simples infiltração anestésica,
Outro risco infeccioso relacionando doença exceto se interligamentar.
cardiovascular e manipulação e/ou doença dentária é 5) Se o paciente estiver em uso de antibiótico, não é
a endocardite ou endarterite infecciosa, classicamente necessário mudar a dose ou o antibiótico antes do
descrita por Osler. A relação fisiopatológica clássica é procedimento dentário. Essa afirmativa também é
a bacteremia induzida pela manipulação dentária e a incorreta. Os guias indicam que as doses pré-pro-
proliferação bacteriana sobre o endotélio doente. A cedimento devem ser mais altas que as doses habi-
Associação Norte-Americana de Cardiologia, basea- tuais, e, ainda, pelo risco de resistência, que anti-
da nesse fato, recomenda a profilaxia da endocardite bióticos alternativos devem ser usados em associ-
em pacientes submetidos a determinados procedimen- ação na prevenção da endarterite infecciosa.
tos dentários e sofredores de algumas formas de 6) Discute-se o risco do antibiótico contra o risco da
cardiopatia. Observa-se, porém, que as bases dessa endarterite infecciosa. Os problemas induzidos pelo
profilaxia são conceitos fisiopatológicos e não estu- uso de antibióticos não podem ser ignorados, como
dos controlados, devido a problemas éticos evidentes. episódios alérgicos, superinfecção e outros efeitos
Saliente-se, no entanto, que publicações têm discuti- colaterais.
do o uso indiscriminado de profilaxia nesses pacien- 7) O uso de antibiótico parenteral é preferível ao uso
tes sem evidências clínicas concretas, considerando o oral em algumas situações de alto risco. Na reali-
risco e o custo do uso dos antibióticos. (13,14) dade, os fatos indicam que o uso oral é adequado
Apesar de simples, os guias da Associação Norte- na prevenção da endarterite infecciosa.
Americana de Cardiologia são de baixa adesão entre 8) Todos os pacientes com prolapso da válvula mitral
clínicos e dentistas (15) . devem receber profilaxia com antibiótico. O cor-
A seguir estão apresentados os mitos que cercam a reto é que a indicação de profilaxia se restringe a
profilaxia da endocardite infecciosa, conforme descri- pacientes com prolapso e regurgitação mitral.
tos por Wahl (16) : 9) O uso de antibiótico pode, em caso de complica-
1) A suposição de que médicos e dentistas estejam bem ção, levar a processos judiciários. A discussão do
orientados é desmentida por vários trabalhos. Os risco-benefício de qualquer procedimento deve ser
médicos, em geral, orientam mal seus pacientes em levantada. O uso de antibiótico em procedimento
relação a sua doença e desconhecem as normas de baixo risco é inadequado; por outro lado, a com-
publicadas, aplicando antibióticos inadequados em plicação advinda do procedimento adequado é o
doses impróprias. A adesão dos dentistas também risco do uso de qualquer medicamento. É recomen-
é baixa. dado ater-se às normas clássicas indicadas pelas
2) Pensa-se que a maioria dos casos de endarterite in- associações médicas credenciadas, evitando-se,
fecciosa seja relacionada a procedimentos orais. desse modo, questionamentos judiciais.
Na realidade, a maioria deve-se às más condições A profilaxia para endarterite infecciosa está indi-
de higiene oral. São baixos os índices de endarte- cada na vigência de determinadas cardiopatias. Segun-
rite infecciosa que se seguem a procedimento den- do a Associação Norte-Americana de Cardiologia (19) ,
tário(17, 18) . A profilaxia, portanto, deve ser orienta- estas podem ser classificadas em doenças cardíacas
da no sentido de se fazer higiene oral adequada no com alto risco, moderado risco ou baixo risco para
dia-a-dia, especialmente em valvulopatas e porta- endarterite infecciosa, como mostra a Tabela 1. Os
dores de próteses valvares cardíacas. pacientes com cardiopatias de alto risco e de modera-

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FRANKEN RA e col.
Avaliação de risco cardiovascular para procedimentos odontológicos

do risco têm a profilaxia indicada, quando subme-


Tabela 1. Cardiopatias associadas com endocardite.
tidos a determinadas intervenções odontológicas
(Tab. 2).
Profilaxia recomendada
O regime antibiótico recomendado pela Associa-
Alto risco para endarterite infecciosa
ção Norte-Americana de Cardiologia é o de dose úni-
— Prótese valvar cardíaca
ca, pré-operatória, suficiente para manter concentra-
— Endocardite bacteriana prévia
ção sérica adequada durante e após o procedimento.
— Cardiopatia congênita cianótica
Consegue-se desse modo, maior adesão dos médicos
— “Shunt” sistêmico pulmonar cirúrgico
e pacientes, evita-se superinfecção e diminui-se o ris-
Risco moderado
co dos efeitos colaterais. Anteriormente, recomenda-
— Outras malformações cardíacas congênitas, que não
va-se 3 g de amoxicilina antes do procedimento e 1,5
acima ou abaixo
g seis horas depois. Recentemente, e também de acor-
— Disfunção valvar adquirida (febre reumática, por
do com a Associação Britânica de Quimioterapia
exemplo)
Antimicrobiana, a recomendação é a de dose única de
— Cardiomiopatia hipertrófica
2 g de amoxicilina antes do procedimento. Para paci-
— Prolapso de valva mitral com regurgitação e/ou fo-
entes alérgicos à penicilina, a eritromicina não é mais
lhetos espessados
indicada, em decorrência de seus efeitos colaterais
Profilaxia não-recomendada
gastrointestinais. A indicação, nesses casos, recai so-
Baixo risco (risco igual ao da população geral)
bre 600 mg de clindamicina ou, como outras opções,
— Comunicação interatrial tipo osteum secundum iso-
azitromicina, claritromicina ou cefalosporina (20) . Com
lada
esse esquema, a cobertura é adequada, pois a
— Após cirurgia para correção de comunicação
bacteremia não dura mais que 15 minutos e os níveis
interatrial, comunicação interventricular ou persistên-
séricos de antibióticos mantêm-se bactericidas após
cia do canal arterial (sem “shunt” residual após 6 me-
10 horas da aplicação. (21)
ses)
Para os britânicos, a profilaxia para endarterite in-
— Revascularização miocárdica prévia
fecciosa é recomendada apenas para extrações ou ci-
— Prolapso de valva mitral sem regurgitação
rurgias envolvendo a gengiva, inclusive a limpeza
— Sopro cardíaco inocente, fisiológico ou funcional
dentária. Nos outros procedimentos, a bacteremia não
— Doença de Kawasaki ou febre reumática prévias,
seria maior que aquela observada à mastigação ou à
sem disfunção valvar
escovação dentária.
— Marcapasso cardíaco (intravascular ou epicárdico)
e desfibriladores implantáveis
RISCOS HEMODINÂMICOS

A exemplo do que ocorre na hipertensão do aven-


tal branco, a simples menção de próximo tratamento a seringa é colocada na boca do paciente mas a agulha
dentário provoca aumento discreto da pressão arterial não toca a mucosa(25) .
e da freqüência cardíaca, que é mais acentuado em Foi observado, (26) em pacientes normotensos e
pacientes fóbicos de dentistas. O aumento da pressão hipertensos, que os níveis de pressão arterial são mais
sistólica foi estimado em 13 mmHg e da diastólica em elevados no início do procedimento que no fim.
5 mmHg(22) antes de iniciado o tratamento, ainda na O uso de vasoconstritores (epinefrina 1/100.000)
sala de espera. acentua as modificações hemodinâmicas. A fre-
Durante o tratamento dentário, a resposta qüência cardíaca cai imediatamente após o uso de
hemodinâmica está relacionada, além da ansiedade, à anestésico sem vasoconstritor, porém mantém-se
presença ou não de dor. A dor é um potente mecanis- aumentada em 2 a 10 batimentos por minuto com o
mo acionador do sistema nervoso simpático. A res- uso de vasoconstritor(27. Se forem usadas doses
posta pressórica e de freqüência cardíaca é maiores de vasoconstritor, a freqüência cardíaca
marcadamente superior em pacientes cujo procedimen- será ainda maior(28) . A pressão arterial sistólica au-
to é acompanhado de dor (23,24). menta discretamente durante a infiltração anestési-
Imediatamente antes da injeção do anestésico lo- ca e volta ao normal imediatamente depois(29) . Com
cal, ocorre aumento da freqüência cardíaca e da pres- o uso de vasoconstritor, a pressão arterial sistólica
são arterial, tendo sido observada resposta semelhante mantém-se pouco elevada(28, 29) (8 mmHg, em mé-
com injeção salina e mesmo na pseudo-injeção, onde dia), sendo mais marcado com o uso de doses mais

408 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
FRANKEN RA e col.
Avaliação de risco cardiovascular para procedimentos odontológicos

anestesia local com vasoconstritor (epinefrina 1/


Tabela 2. Procedimentos dentários e endocardite.
100.000). No grupo cardiopata, foi constatada depres-
são isquêmica do segmento ST, especialmente na fase
Profilaxia recomendada
inicial, durante o procedimento anestésico e, menos
— Extrações dentárias
freqüentemente, durante o procedimento cirúrgico,
— Procedimentos periodontais, incluindo cirurgia,
indicando a influência do vasoconstritor no episódio
raspagem e aplainamento radicular, e sondagem
isquêmico. Dionne e colaboradores (32) observaram que
— Colocação de implante dentário ou reimplante de
o uso de diazepínicos previamente ao procedimento
dentes avulsionados
dentário diminuía os níveis de catecolaminas
— Tratamento endodôntico (canal), somente a partir
circulantes em jovens adultos. Esse efeito não é, po-
do ápice
rém, observado quando se usa epinefrina 1/100.000.
— Colocação subgengival de fibras ou tiras com anti-
Sugere-se, pois, em doentes coronarianos, o uso de
bióticos
sedação e anestésico sem vasoconstritores.
— Colocação de bandas ortodônticas nos tratamentos
O uso de norepinefrina ao invés de epinefrina acen-
iniciais de ortodontia (mas não a de Brackts)
tua ainda mais as modificações hemodinâmicas, daí
— Anestesia local intraligamentar
ter se tornado seu uso obsoleto em odontologia.
— Limpeza profilática dos dentes ou implantes, onde
Concluímos que os procedimentos dentários em
o sangramento é previsto
pacientes normotensos não trazem variações
Profilaxia não-recomendada
hemodinâmicas significativas. Em pacientes
— Dentística restauradora – incluindo obturações de
hipertensos, porém, as variações serão maiores ou
dentes cariados ou confecção de próteses – (operativa
menores, dependendo da resposta individual ao estresse
e protética), com ou sem o uso de cordão restaurador
e do uso ou não de vasoconstritor. A epinefrina é fator
(o uso de antibiótico pode ser indicado em circunstân-
de risco e o uso de tranqüilizantes diazepínicos, fator
cias em que sangramentos são previstos)
protetor. O uso de anestésico é um fator protetor, pois
— Injeção de anestésicos locais
a falta de anestesia aumenta as alterações pressóricas
— Tratamento endodôntico via intracanal (acesso pela
e da freqüência cardíaca. Em pacientes compensados
coroa do dente), colocação de núcleos intra-radiculares
e não coronarianos, acreditamos que o uso de epinefrina
— Colocação de isolamento de borracha
1/100.000 esteja autorizado; no entanto, em hipertensos
— Remoção das suturas pós-operatórias
não-controlados e em coronarianos, seu uso deve ser
— Colocação de aparelhos de próteses ou ortodônticos
evitado.
removíveis
Em relação aos pacientes coronarianos, recomen-
— Moldagens
damos:
— Tratamentos com flúor
1) O dentista deve conhecer a história de doença
— Radiografias orais
coronária do paciente e ser capaz de reconhecer os
— Ajuste de aparelho ortodôntico
sintomas durante o tratamento.
— Esfoliação de dentes de leite
2) O paciente deve manter sua medicação habitual pre-
viamente ao tratamento dentário (ácido acetilsali-
cílico, nitratos, betabloqueadores, etc.).
elevadas de epinefrina(28) . 3) Em doentes com angina de esforço, o uso de nitrato
O tratamento dentário feito sem anestesia traz efei- sublingual previamente ao tratamento está indicado.
tos hemodinâmicos mais acentuados que aqueles rea- 4) Sedação e evitar o uso de vasoconstritores.
lizados com anestésico e vasoconstritor, devido à dor, 5) Evitar dor por meio de anestesia adequada.
que funciona como desencadeador das modificações 6) Em pacientes gravemente enfermos, os procedimen-
hemodinâmicas(30) . tos deverão ser hospitalares, para pronto atendi-
Em pacientes hipertensos, a reposta da pressão mento em caso de emergência.
sistólica ao tratamento dentário é mais acentuada, com 7) Os profissionais dentistas deveriam estar treinados
ou sem o uso de anestésicos(28,29) . no Suporte Básico de Vida e seus consultórios,
O procedimento dentário acompanhado das mais adequadamente aparelhados. É responsabilidade do
acentuadas modificações na freqüência cardíaca e na profissional dentista o adequado atendimento em
pressão arterial é a extração dentária. casos de emergência, assim como a transferência
Hasse e colaboradores (31) estudaram 37 pacientes dos pacientes para atendimento especializado,
(18 cardiopatas) durante tratamento dentário com quando necessário.

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 409
FRANKEN RA e col.
Avaliação de risco cardiovascular para procedimentos odontológicos

RISCO ELÉTRICO díacos. Miller e colaboradores (39) , em 1998, sugerem


que tanto pacientes como dentistas que usem
O risco de aparecimento de arritmias durante tra- marcapasso evitem o contato com unidades
tamento dentário deve ser avaliado, especialmente, em eletrocirúrgicas (cauterizador), banhos ultra-sônicos e
doentes coronarianos, miocardiopatas e idosos. cureta ultra-sônica magnética, bem como o uso de
Arritmias cardíacas foram descritas mesmo em indi- aparelhos de telefone celular nos consultórios
víduos normais durante tratamento dentário. As odontológicos. Por outro lado, amalgamador, broca
arritmias ocorrem principalmente durante o período dentária, aparelho elétrico para teste de vitalidade
pré-operatório e durante o ato cirúrgico, sendo geral- pulpar, aparelho de luz halógena polimerizador de re-
mente do tipo supraventricular(33) . O encontro de sinas, unidade radiográfica portátil, escova de dentes
arritmias em geral no pré-operatório ou durante o ato elétrica e cureta sônica não interferem no bom funcio-
mas não durante a aplicação do anestésico com namento de marcapasso cardíaco.
vasoconstritor tira, em parte, a responsabilidade do
agente adrenérgico como causador isolado da arritmia. RISCOS DEPENDENTES DO USO
Admite-se, como seguro, doses de epinefrina de até DE MEDICAMENT OS
0,04 mg em pacientes cardiopatas (34) . Descrevem-se
episódios arrítmicos durante o procedimento dentário Anticoagulantes orais
em idosos, mesmo que clinicamente normais. (35) O tratamento dentário em pacientes submetidos a
A anestesia local é um fator protetor contra as anticoagulação oral é ainda muito controverso, uma
arritmias, com resultados melhores que a anestesia vez que devem ser pesados os riscos de sangramento
geral(36, 37) . Worthington e colaboradores (38) , em edito- que esses pacientes apresentam e os riscos de
rial de 1998, discutem a morte súbita na cadeira do tromboembolismo que os mesmos possam vir a apre-
dentista relacionada a procedimentos com anestesia sentar em caso de suspensão do tratamento, especial-
geral utilizando halotano. O fator desencadeante seria mente em portadores de próteses valvares mecânicas.
o estímulo simpático via quinto par craniano em pa- Alguns autores recomendam a manutenção da tera-
ciente em uso de halotano. A incidência de arritmias, pia; outros, sua suspensão; e outros, ainda,
nesses pacientes, varia de 18% a 75%. Com o uso de hospitalização e substituição do tratamento por
eflurano, a incidência é de 9,8% e de isoflurano, de heparina. (40-44)
14%. A arritmia geralmente observada com halotano Dados atuais de literatura têm demonstrado que o
é a extra-sístole ventricular. O risco de arritmias nesse risco de sangramento após procedimentos dentários
tipo de paciente e, especialmente, o risco de morte pós- em pacientes anticoagulados, dentro da faixa terapêu-
arritmia em pacientes jovens e clinicamente normais tica (INR 2,0 a 3,0 em todas as condições, exceto
impedem que a anestesia geral seja aplicada em con- próteses valvares mecânicas com INR 2,5 a 3,5), é
sultório não aparelhado para ressuscitação e sob su- mínimo, podendo ser controlado por meio de medidas
pervisão médica habilitada. Esse tipo de atendimento locais adequadas (43,44). Devem, ainda, ser levados em
deve ser hospitalar. conta os riscos de tromboembolismo, após a retirada
O significado das arritmias durante tratamento da anticoagulação oral(44) , considerando-se também os
dentário é assunto ainda em aberto, deixando médi- riscos de “trombose rebote” após a suspensão do
cos, dentistas e pacientes inseguros em relação ao pro- anticoagulante oral (42) .
blema. Quem são os pacientes em risco? Quais os pro- Recomendamos, portanto, a manutenção da
cedimentos de risco? É seguro o uso de anestésicos anticoagulação oral em pacientes que serão submeti-
com vasoconstritores? Existe interação entre medica- dos a procedimentos odontológicos, quando estes se
mentos de uso cardiovascular e os medicamentos usa- encontram dentro da faixa terapêutica. Entretanto, ape-
dos durante o procedimento dentário? No momento, a sar de controverso, em pacientes de alto risco para
literatura indica que os procedimentos são, em geral, sangramento e com prótese metálica cardíaca, reco-
seguros, e que o número de acidentes é pequeno mes- mendamos internação do paciente, substituição do
mo em pacientes cardiopatas, o que, porém, não exi- anticoagulante oral por heparina endovenosa, manu-
me o dentista da responsabilidade do atendimento de tenção do tempo de tromboplastina parcial ativada 1,5
emergência e transporte do paciente, se necessário. a 2,0 vezes do padrão basal, suspensão da heparina
Deve-se lembrar, ainda, a interferência que apare- seis horas antes do procedimento e reintrodução da
lhos dentários elétricos ou outros presentes no gabi- heparina e anticoagulante oral imediatamente após. Tal
nete dentário podem exercer sobre marcapassos car- conduta tem sido adotada até que grandes estudos nos

410 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
FRANKEN RA e col.
Avaliação de risco cardiovascular para procedimentos odontológicos

tragam evidências da melhor conduta a ser tomada. cedimentos odontológicos (0,04 mg).
No que diz respeito a demandas judiciais após com-
plicações hemorrágicas em pacientes que tiveram sua Antidepressivos
terapia mantida, Wahl(44) considera que na literatura O efeito pressor da epinefrina aumenta cerca de
existem evidências de que o risco de sangramento nes- duas vezes quando associada a antidepressivos tricí-
ses pacientes é mínimo, enquanto não existe isenção clicos e inibidores da monoaminoxidase (IMAO). (45)
de riscos de tromboembolismo após suspensão do tra-
tamento. Fenotiazidas
Esse grupo farmacológico age como alfabloquea-
Antiagregantes plaquetários dores, podendo causar hipotensão postural, o que teo-
Embora, na literatura, alguns autores ainda defen- ricamente pode se acentuar com o uso da epinefrina,
dam a suspensão da terapia com antiagregantes por meio de sua ação beta-estimulante.
plaquetários (aspirina, dipiridamol ou ticlopidina) uma
semana antes de procedimentos dentários(42) , no nosso Cocaína
entender a manutenção da terapêutica não apresenta A injeção intravascular inadvertida de epinefrina
riscos aumentados de sangramento durante e após tais em pacientes que fizeram uso de cocaína nas 24 horas
procedimentos. que precederam tal procedimento acentua o efeito
hipertensivo e cronotrópico da droga. (46)
Betabloqueadores Acreditamos que, de modo geral, os procedimentos
Os efeitos pressóricos da epinefrina podem ser odontológicos sejam seguros, mesmo em pacientes car-
aumentados por drogas que bloqueiam os efeitos va- diopatas gravemente enfermos, desde que as recomen-
sodilatadores dos receptores ß2, como propranolol (45) . dações de cuidados pré-, intra- e pós-operatórias sejam
Esse efeito é descrito quando a dose utilizada de epi- seguidas. Não se deve excluir a necessidade de o ato
nefrina é muitas vezes maior que as utilizadas em pro- cirúrgico ser realizado com o paciente internado.

ASSESSMENT OF THE CARDIOVASCULAR RISK FOR ODONTOLOGICAL PROCEDURES

ROBERTO A. FRANKEN, MARCELO FRANKEN

Dental treatment in cardiac patients is a cause of apprehension of the professional team. The risks are:
infectious, hemodynamics, arrhythmics and those related to the use of drugs by the patients or drug used during
the dentistry treatment as well as interference with artificial cardiac pacemaker. The classic recommendations
to prevent bacterial endocarditis and precaution with hypertensive, arrhythmic, and coronary patients are
discussed. When to treat, how to treat, when to use antibiotics, how to use vasoconstrictors and anticoagulants,
to anesthetize or not, when to hospitalize are usual questions answered in this review.
Key words: dental disease and coronary heart disease, dental surgery and coronary heart disease, oral
surgery and coronary heart disease, odontological surgery and coronary heart disease.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:406-13)


RSCESP (72594)-995

R EFERÊNCIAS atherosclerosis. Atherosclerosis 1993;103:205-11.


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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 413
PARADA CARDÍACA NO CENTRO CIRÚRGICO

ANTONIO C ARLOS M UGAYAR BIANCO, ARI TIMERMAN

Seção de Emergência e Terapia Intensiva — Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia


Unidade de Terapia Intensiva — Hospital Municipal Dr. Arthur Ribeiro de Saboya
Endereço para correspondência: Av. Dr. Dante Pazzanese, 500 — CEP 04012-180 — São Paulo — SP

A parada cardíaca em qualquer cenário repre- rência, estando alguns fatores, como superdosagem
senta um evento grave e potencialmente fatal, com anestésica, hipotensão arterial, depressão e isque-
riscos de seqüelas futuras, principalmente neuro- mia miocárdica, intimamente relacionados com a
lógicas. mesma.
Durante as intervenções cirúrgicas, geralmen- A parada cardíaca exige abordagem rápida, co-
te, encontra-se relacionada com as condições clí- ordenada e eficaz, fatores de fundamental impor-
nicas do paciente e com a complexidade do proce- tância para obtenção de sucesso em sua reversão e
dimento. para minimizar a ocorrência de seqüelas.
A anestesia geral assim como o bloqueio espi- Descritores: parada cardíaca, sala de cirurgia,
nhal poderão ser responsáveis diretos por sua ocor- anestesia.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:414-22)
RSCESP (72594)-996

I NTRODUÇÃO detendo-se, prioritariamente, nos sistemas de alto ris-


co, sem contudo neglicenciar os demais.
A avaliação detalhada do paciente antes do proce- Assim, foram criados vários índices de risco,
dimento cirúrgico deve ser realizada pelo cirurgião, objetivando a avaliação detalhada de sistemas com-
pelo anestesista e pelo clínico que o assiste. Serão de- prometidos. Entre outros, podem ser citados os índice
finidos: riscos, cuidados e estratégias a serem segui- de risco cardíaco, pulmonar, hepático e renal, que es-
das. Isso será de importância fundamental na preven- tão claramente indicados nos pacientes sintomáticos.(1)
ção de complicações perioperatórias. A classificação clínica distribui os pacientes em
O risco cirúrgico está ligado basicamente a três fa- quatro grupos, de acordo com a gravidade da doença
tores: (Tab. 1).
— classificação clínica do paciente;
— aspectos ligados ao procedimento cirúrgico; ASPECTOS LIGADOS AO PROCEDIMENTO
— complicações durante o procedimento anestésico.(1) CIRÚRGICO

CLASSIFICAÇÃO CLÍNICA DO PACIENTE Classificação das cirurgias quanto ao tempo de


avaliação e preparo
No universo dos procedimentos cirúrgicos, 3% a Eletiva
10% são passíveis de algum tipo de morbidade, sendo Dispõe-se do tempo necessário e suficiente para
a maioria de origem pulmonar, cardíaca ou infeccio- diagnóstico completo, avaliação e preparo; sem inter-
sa.(1) ferência na evolução e na história natural da doença.
A avaliação pré-operatória concentra-se no levan- Representa a maioria dos atos operatórios, sendo ha-
tamento clínico das reservas funcionais do paciente, bitualmente indicada em doenças benignas. (1)

414 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
BIANCO ACM e col.
Parada cardíaca no centro cirúrgico

Tabela 1. Classificação clínica do paciente cirúrgico. (1)

— Paciente hígido, sem qualquer afecção orgânica ou psíquica, com as funções preservadas
— Paciente com afecção leve ou moderada, sem maiores disfunções orgânicas (por exemplo, hipertensão arte-
rial sistêmica leve)
— Paciente com enfermidade sistêmica declarada, com disfunção clara e evidenciada (por exemplo, cardiopatia
isquêmica sintomática)
— Paciente com doença grave, com descompensação funcional grave, que coloca em risco a vida (por exemplo,
insuficiência cardíaca congestiva não-compensada)

Urgência absoluta ou emergência grave, como peritonite generaliza;


Ocorre em situações clínico-cirúrgicas que colo- — urgências de grande porte, sem o devido preparo
cam em risco a integridade ou a vida do paciente. Não prévio, em situações como aneurisma roto de aorta
se dispõe de tempo suficiente para a realização de cor- e revascularização miocárdica em vigência de
reta e minuciosa avaliação pré-operatória . O grande síndrome isquêmica aguda. (1)
exemplo dessas cirurgias são os sangramentos agudos Cirurgias de risco proibitivo
e os traumatismo, como a ruptura de aneurisma de aorta Como o nome indica, são as que, pelo comprome-
e os ferimentos penetrantes graves. (1) timento sistêmico ou por doenças associadas, geram
Urgência relativa mortalidade proibitiva, justificando sua contra-indica-
Nesses casos, há tempo suficiente para avaliação e ção.(1)
preparo do paciente, sem se postergar por muito tem-
po o procedimento cirúrgico; como exemplos, temos COMPLICAÇÕES DURANTE O
obstrução intestinal mecânica, hemorragia digestiva PROCEDIMENTO ANESTÉSICO
alta moderada e abdome agudo inflamatório. (1)
Parada cardíaca resultante da anestesia foi defini-
Classificação das cirurgias quanto ao risco da como a cessação da atividade cardiovascular, ocor-
inerente ao procedimento rendo em uma das fases do procedimento anestésico
Cirurgias de baixo risco (pré-intubação, indução, manutenção, recuperação e
São as de pequeno ou médio porte, realizadas em período pós-anestésico), situação em que a anestesia
pacientes hígidos (por exemplo, jovem hígido que de- foi a responsável direta ou importante fator contribu-
verá ser submetido a herniorrafia inguinal). (1) inte.
Cirurgias de risco intermediário Nos pacientes com risco cirúrgico proibitivo, a
São as cirurgias eletivas, de porte médio, pratica- anestesia em si, embora possa agir como fator coadju-
das em pacientes portadores de ligeiras alterações or- vante, não é tida como causadora da parada cardíaca.
gânicas, com pequena ou média repercussão funcio- A parada cardíaca primária compreende:
nal; impõem investigações e cuidados além dos roti- — isquemia miocárdica com irritabilidade de área
neiros (por exemplo, as cirurgias realizadas em idosos isquêmica, levando a fibrilação ventricular; (2)
e as urgências de médio porte, sem preparo prévio). (1) — assistolia secundária à cardiopatia.
Cirurgias de alto risco A parada cardiorrespiratória, geralmente associa-
Pertencem a essa classe os procedimentos de porte da a asfixia, perda de sangue ou de líquido, choque ou
avantajado, efetuados em portadores de enfermidade ação de medicamentos, (2) compreende:
grave, com repercussão funcional acentuada, como, — hipoxemia, que tem como causas inalação de mis-
por exemplo: turas hipóxicas, obstrução respiratória,
— esofagogastrectomia por carcinoma de esôfago em pneumopatia, baixo débito cardíaco, hipoventilação
paciente debilitado; e apnéia resultante de lesão ou ação de medica-
— doenças associadas à principal, que comprometam mentos no sistema nervoso central; (2)
o estado físico geral, como as cirurgias abdomi- — hipovolemia de qualquer causa, que reduza a pré-
nais em pacientes diabéticos (insulino-dependen- carga a valores insuficientes, levando à
tes); hipoperfusão; (2)
— fases tardias de doenças com repercussão sistêmica — hipotensão ligada ao próprio procedimento anes-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 415
BIANCO ACM e col.
Parada cardíaca no centro cirúrgico

tésico (medicamento) ou secundária a tampo- entes submetidos a cirurgia; se não forem abordados e
namento cardíaco, pneumotórax hipertensivo, corrigidos de maneira rápida e eficaz, esses efeitos
obstrução de cavas, anafilaxia e septicemia; (2) poderão trazer sérias conseqüências, inclusive com o
— depressão miocárdica secundária a doses tóxicas estabelecimento de parada cardíaca. Dentre esses efei-
de anestésicos inalatórios, antiarrítmicos, medica- tos, salientam-se:
mento inotrópico negativo (betabloqueadores e Hipotensão: secundária ao seqüestro de sangue na pe-
bloqueadores de canais de cálcio) e distúrbios riferia, com diminuição do retorno venoso para o co-
eletrolíticos. (2) ração, associada a decréscimo na resistência vascular
As condições clínicas do paciente, a urgência, o sistêmica. Os fatores que predispõem à queda na pres-
porte do procedimento cirúrgico e o próprio procedi- são arterial são alto nível de bloqueio simpático e ida-
mento anestésico estão relacionados à morbidade e à de. (6-12) Quando o nível de bloqueio simpático é abaixo
mortalidade cirúrgicas. de T4, ocorre vasoconstrição compensatória nas ex-
Durante o procedimento anestésico, a hipotensão, tremidades superiores, que contrabalança a queda da
a bradicardia e a hipoxemia são os fatores prognósti- resistência vascular sistêmica nas extremidades infe-
cos mais significativos da parada cardíaca. (2) riores. Em níveis mais altos de bloqueio, esse meca-
nismo compensatório está ausente. (6-12) O mecanismo
Procedimentos anestésicos pelo qual a idade aumenta o risco da ocorrência de
Anestesia geral hipotensão não está totalmente definido, mas decrés-
A parada cardíaca, durante anestesia geral, é cimo na reserva cardíaca e disfunção autonômica po-
freqüentemente precedida por bradicardia, que pode deriam estar implicados. (7-12)
ocorrer em conseqüência de superdosagem de anesté- Bradicardia: acredita-se que a bradicardia seja devida
sico ou de ventilação pulmonar inadequada. (2-5) a duas causas principais, bloqueio das fibras simpáti-
Superdosagem anestésica: divide-se em: cas cardioaceleradoras e decréscimo do retorno veno-
— Superdosagem relativa: corresponde a aproxima- so. Nível de bloqueio sensitivo alto durante a aneste-
damente 40% dos casos. Ocorre durante a indução sia espinhal, acima de T5, interferiria na inervação
de pacientes que se encontram hemodinamicamen- cardíaca, por meio do bloqueio das fibras cardioacele-
te instáveis, nos quais a administração de doses radoras. O principal mecanismo implicado na ocor-
usuais de anestésicos culmina com o estabeleci- rência da bradicardia, entretanto, seria o reflexo de
mento da parada cardíaca. Como exemplo, citam- Bezold-Jarish paradoxal. O reflexo de Bezold-Jarish é
se os pacientes com insuficiência ventricular es- a estimulação, por estiramento ou por substâncias quí-
querda e aqueles com sepse por Gram-negativos. micas, de mecanorreceptores e quimiorreceptores, lo-
Esse tipo de complicação ocorre, principalmente, calizados na porção ínfero-posterior do ventrículo es-
com o uso de anestésicos por via endovenosa. (2-5) querdo, levando ao aumento da atividade parassimpá-
— Superdosagem absoluta: ocorre em aproximada- tica. Normalmente, há decréscimo na atividade desses
mente 60% dos casos, sendo secundária a dose receptores em resposta à diminuição do volume ven-
inalatória elevada do agente anestésico. Deve-se à tricular esquerdo. Entretanto, nessa circunstância, em
má utilização do ventilador, gerando altas concen- decorrência da rápida diminuição do volume ventri-
trações de gases anestésicos. As crianças menores cular, secundária a hipovolemia, ocorreria vigorosa
(com menos de 12 anos de idade) são particular- contração ventricular contra a câmara ventricular es-
mente propensas a esse tipo de complicação. Ocor- querda vazia. Isso produziria um reflexo de Bezold-
re, principalmente, com o uso de anestésicos Jarish paradoxal, resultando em bradicardia e até as-
inalatórios. (2-5) sistolia. (6-13) A presença de disfunção autonômica pré-
Ventilação pulmonar inadequada: ocorre, geralmente, via (como em idosos, diabéticos ou atletas) e o uso de
de modo acidental, em circunstâncias como incapaci- medicações bradicardizantes (como betabloqueadores)
dade em intubar ou ventilar o paciente, má aumentam a intensidade e a ocorrência de bradicar-
posicionamento da cânula endotraqueal (intubação dia. (14-16)
esofágica ou seletiva), desconexão acidental do venti- Isquemia miocárdica: o mecanismo potencial para
lador, broncoespasmo grave e pneumotórax explicar a isquemia coronariana inclui doença arterial
hipertensivo. (2-5) coronariana subclínica, redistribuição e fluxo
Anestesia espinhal coronariano, aumento de catecolaminas secundário ao
A anestesia espinhal tem alguns efeitos colaterais procedimento anestésico, e desequilíbrio entre as for-
que interferem intimamente na homeostase dos paci- ças vasoconstritoras e vasodilatadoras. (17,18) O espas-

416 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
BIANCO ACM e col.
Parada cardíaca no centro cirúrgico

mo coronariano, intimamente relacionado com a ins- — administrar oxigênio a 100%;


talação da isquemia, é atribuído a desequilíbrio no tono — assegurar ventilação pulmonar adequada, verifican-
simpatovagal, com predominância da atividade sim- do a ventilação pulmonar bilateral nos pacientes
pática, principalmente durante a fase de recuperação intubados, e ventilar inicialmente os pacientes não-
do bloqueio anestésico (quando o paciente começa a intubados, nos casos de anestesia espinhal, por
esboçar movimentos nos membros inferiores). (17,18) AMBU com máscara, e, posteriormente, proceder
Assim, tanto a anestesia geral como o bloqueio à intubação endotraqueal;
regional cursam com alterações no sistema nervoso — assegurar volemia adequada, que é um ato de gran-
autônomo, vasodilatação periférica, diminuição de re- de importância, pois os pacientes submetidos a
torno venoso e seqüestro volêmico, os quais, isolada- anestesia têm seqüestro volêmico periférico, estan-
mente ou em associação com limitações funcionais do do quase que invariavelmente com hipovolemia
paciente e/ou efeitos colaterais de medicamentos, po- central. (2)
dem gerar hipoxemia, hipovolemia, hipotensão e
bradicardia, e, eventualmente, proporciar a instalação Socorro básico na parada cardiorrespiratória
da parada cardíaca, sendo a assistolia a modalidade Vias aéreas
mais comum. Nos pacientes sob efeito anestésico e ainda não
A parada cardíaca em fibrilação ventricular, du- intubados, é de grande importância a retificação e a
rante o procedimento anestésico, pode estar relacio- desobstrução das vias aéreas, com dorsoflexão do pes-
nada com a ocorrência de isquemia miocárdica, de- coço e elevação do mento, além da aspiração de secre-
pendente de lesões coronarianas graves e/ou ções. Nos pacientes intubados, deverá ser realizada
vasoespasmo. Pode, ainda, em raras ocasiões, ser se- aspiração de secreções endotraqueais e da cavidade
cundária ao prolongamento do segmento QT (anesté- oral.(20, 21)
sicos) ou a graves distúrbios eletrolíticos. (17-19) Respiração
Devido ao fato de se dispor de material para a rea-
Diagnóstico da parada cardíaca lização do socorro especializado, a ventilação boca-a-
É fundamental dar início ao tratamento imediata- boca raramente é necessária, sendo efetuada rotinei-
mente, mas deve-se ter o cuidado de afastar proble- ramente a ventilação AMBU-a-máscara, antes que a
mas técnicos, que possam confundir e levar a diag- intubação endotraqueal seja efetuada. (20,21)
nóstico errôneo, como, por exemplo, nos casos de Nos pacientes intubados, a ventilação deve ser ini-
desconexão de eletrodos do eletrocardiógrafo. A au- ciada imediatamente. Deve-se verificar, cuidadosamen-
sência de pulso em artéria de grosso calibre (carótida te, o correto posicionamento da cânula endotraqueal,
ou femoral) é diagnóstico de parada cardíaca, deven- por meio da ausculta do abdome (epigástrio) e do
do ser confirmada antes de ser dado início às mano- hemitórax (esquerdo e direito). A presença de acentu-
bras de ressuscitação. ada resistência ao fluxo aéreo durante a ventilação é
Os seguintes sinais são altamente sugestivos: sinal de alerta para a presença de oclusão na cânula
— pressão arterial zero (esfigmomanômetro ou endotraqueal ou de distúrbio mecânico, como
invasiva); pneumotórax hipertensivo. (20,21)
— assistolia, fibrilação ventricular ou taquicardia ven- Os aparelhos de ventilação mecânica não são apro-
tricular evidenciada pelo monitor eletrocardiográ- priados para utilização durante a compressão torácica
fico; externa, pois a compressão do esterno pode deflagrar
— bulhas cardíacas inaudíveis; ciclos inspiratórios dos mesmos, além do fluxo (“flow-
— cianose e/ou movimentos respiratórios agônicos; rate”) ser inadequado e insuficiente para ventilações
— perda súbita de consciência; intercaladas às compressões.(20,21)
— dessaturação intensa identificada pela oximetria de Circulação
pulso. (2) Deve-se estabelecer circulação artificial com a
compressão torácica externa. Para realizá-la, deve-se
Tratamento da parada cardiorrespiratória colocar a região tenar de uma das mãos no esterno,
Confirmado o diagnóstico da parada cardiorrespi- dois dedos acima do apêndice xifóide, e apor a outra
ratória durante a anestesia, é obrigatório dar início, mão sobre a primeira, com os dedos entrelaçados. O
imediatamente, às medidas de ressuscitação: paciente deve ficar em decúbito dorsal sobre superfí-
— interromper a administração de agentes anestési- cie firme, com a cabeça no mesmo nível do coração.
cos; Comprimir o tórax, fazendo pressão com os ombros e

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 417
BIANCO ACM e col.
Parada cardíaca no centro cirúrgico

os braços, mantendo os cotovelos rígidos. No adulto, compressão abdominal é realizada na segunda metade
a compressão do esterno deve deprimi-lo 3 cm a 5 cm, da fase de relaxamento da compressão torácica, após
sendo mantida por um período correspondente a 50% a ventilação. Justifica-se por dois efeitos: de modo si-
do ciclo compressão-relaxamento. milar ao do balão intra-aórtico, a compressão da aorta
Ressuscitação com um socorrista: deve-se comprimir abdominal, durante sua realização, aumenta a pressão
o precórdio com freqüência de 80 a 100 vezes por diastólica aórtica e a pressão de perfusão coronariana;
minuto, alternando a cada 15 compressões duas seu segundo efeito seria o aumento do retorno venoso,
insuflações pulmonares. com aumento na velocidade do fluxo anterógrado na
Ressuscitação com dois socorristas: comprimir o veia cava inferior. Na parada durante a anestesia, onde
esterno com freqüência de 80 a 100 vezes por minuto, a hipovolemia tem importante implicação, a realiza-
alternando, a cada cinco compressões torácicas, uma ção das compressões abdominais teria justificativas
insuflação pulmonar. fisiológicas inequívocas, merecendo investigações clí-
Uma técnica alternativa é a realização de compres- nicas em decorrência de seu efeitos benéficos. (20-22)
sões abdominais interpostas a compressão torácica ex- Nos pacientes que apresentam parada cardíaca na
terna (caso o procedimento cirúrgico o permita). A vigência de toracotomia ou nos pacientes politrauma-
tizados e com pneumotórax hipertensivo, nos quais a
drenagem não surtiu efeitos
imediatos, deverá ser realizada
Assistolia compressão cardíaca interna,
havendo necessidade de o paci-
Manter manobras de ressuscitação cardiopulmonar ente estar intubado. (20,21)
Intubação + acesso venoso (se não presentes) Fibrilação ventricular
Confirmar assistolia em mais de uma derivação Nos casos de fibrilação ven-
tricular ou na ausência do des-
↓ fibrilador, deverá ser realizada
Considerar a causa: desfibrilação imediata. Quando
Hipoxia a fibrilação ocorre na vigência
de toracotomia, a desfibrilação
Hipercalemia
elétrica direta deve ser realiza-
Hipocalemia da, com as pás-eletrodo aplica-
Acidose preexistente das sobre o coração. (20,21)
Intoxicação por drogas
Socorro especializado na
Hipotermia
parada cardiorrespiratória
↓ O socorro especializado na
Considerar marcapasso transcutâneo de imediato parada cardiorrespiratória está
explicado nos três algoritmos
(medida aceitável e possivelmente útil) apresentados a seguir (Figs. 1 a
↓ 3).
Epinefrina — 1 mg, EV, em bolus
Medicamentos
(repetir a cada 3 a 5 minutos) Oxigênio
↓ Deve ser administrado o
mais rapidamente possível, de
Atropina — 1 mg, EV, a cada 3 a 5 minutos preferência a 100%, para au-
(dose total = 3 mg) mentar a tensão arterial de
oxigênio, a saturação da he-
↓ moglobina e a oxigenação tis-
Considerar término dos esforços sular. (20, 21)
Fluidos endovenosos
A hiperglicemia gera pior
Figura 1. Algoritmo para tratamento da assistolia. (20,21) prognóstico neurológico nos

418 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
BIANCO ACM e col.
Parada cardíaca no centro cirúrgico

Agonistas alfa-adrenérgicos puros pare-


Fibrilação ventricular e taquicardia ventricular sem pulso
cem ser tão eficazes quanto a epinefrina
Desfibrilar
em restaurar a circulação espontânea
Sepersistir®200J,200-300J,360J
sem produzir isquemia miocárdica me-

diada por efeito beta-adrenérgico. Em-
Continuararessuscitaçãocardiopulmonar
bora o efeito beta-adrenérgico possa au-
Intubação+acessovenoso(senãopresentes)
mentar a produção de lactato do

miocárdio, esse efeito também parece
Epinefrina—1mg,EV,acada3a5minutos
melhorar o fluxo sanguíneo no sistema

nervoso central. (20,21)
Se persistir
A epinefrina produz redistribuição de

fluxo sanguíneo da periferia para a cir-
Desfibrilar (360 J)
culação central durante a ressuscitação
(dentro de 30 a 60 segundos)
cardiopulmonar. A elevação da pressão

de perfusão coronária secundária à ad-
Se persistir
ministração de epinefrina é benéfica em

todas as formas de parada cardiorrespi-
Lidocaína — 1,0-1,5 mg/kg, EV, a cada 3 a 5 minutos
ratória. A epinefrina é uma substância
(dose total = 3 mg/kg)
vasoativa e inotrópica, útil em determi-

nados pacientes com choque circulató-
Se persitir
rio refratário, por exemplo, após circu-

lação extracorpórea. (20,21)
Procainamida — 30 mg/minuto
Está indicada na parada cardíaca em
(total = 17 mg/kg)
fibrilação ventricular ou taquicardia

ventricular sem pulso, que não respon-
Se persistir
de aos choques elétricos iniciais,

assistolia e atividade elétrica sem pulso.
Bretílio — 5 mg/kg, EV, em bolus. Repetir em 5 minutos — 10 mg/kg
A infusão de epinefrina pode também ser
(dose total = 35 mg/kg)
usada para tratar pacientes com

bradicardia intensa e sintomática, e
Desfibrilar com 360 J, 30-60 s após cada dose de medicação
assistolia.(20, 21)
O padrão deve ser medicamento-choque, medicamento-choque
Bicarbonato de sódio
Figura 2. Algoritmo para tratamento da fibrilação ventricular e da Particular ênfase tem sido dada à
taquicardia ventricular sem pulso. (20,21) adequada ventilação pulmonar e à rápi-
da restauração do fluxo sanguíneo para
os órgãos vitais, que contrabalança a
pacientes que sobrevivem à parada cardíaca, deven- acidemia hipercárbica e metabólica por eliminação de
do-se dar preferência à utilização de soro fisiológi- CO2 e metabolização de lactato. Portanto, nas fases
co. (20, 21) iniciais da ressuscitação cardiopulmonar, agentes tam-
Epinefrina pões são em geral desnecessários.(20,21)
É uma catecolamina natural com atividade Em certas circunstâncias, como na acidose meta-
adrenérgica, tanto alfa como beta. O efeito benéfico bólica preexistente, hipercalemia ou intoxicação com
primário da epinefrina na parada cardíaca é a tricíclicos ou fenobarbital, tem efeito benéfico. Du-
vasoconstrição, que leva à melhora da pressão de rante a ressuscitação cardiopulmonar, a terapêutica com
perfusão coronária e cerebral. Os potentes efeitos bicarbonato deve ser considerada somente após as in-
agonistas adrenérgicos alfa 1 e alfa2 pós-sinápticos me- tervenções bem estabelecidas, como desfibrilação,
lhoram o fluxo sanguíneo cerebral e coronariano, por compressão cardíaca, intubação e ventilação, e só de-
prevenir o colapso arterial e aumentar a resistência pois de mais de uma dose de epinefrina ter sido utili-
vascular periférica. Estudos recentes em animais indi- zada.(20, 21)
cam que o efeito alfa-adrenérgico da epinefrina (e não A administração excessiva de bicarbonato pode
seu efeito beta-adrenérgico) torna a fibrilação alterar a curva de dissociação da hemoglobina oxige-
ventricular mais suscetível ao choque elétrico. nada, inibindo a liberação do oxigênio; induzir

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 419
BIANCO ACM e col.
Parada cardíaca no centro cirúrgico

Atividade elétrica sem pulso — dissociação eletromecânica

Inclui:
Dissociação eletromecânica
Pseudodissociação eletromecânica
Ritmo idioventricular
Ritmo ventricular de escape
Ritmos bradissistólicos
Ritmos idioventriculares pós-desfibrilação

Continuar manobras de ressuscitação cardiopulmonar
Intubar imediatamente + acesso venoso (se não presentes)

Considerar causas possíveis:
Hipovolemia (infusão de volume)
Hipoxia (ventilação)
Tamponamento cardíaco (pericardiocentese)
Pneumotórax hipertensivo (descompressão com agulha)
Hipotermia (manobras específicas de reaquecimento)
Embolia pulmonar maciça (cirurgia)
Intoxicação por drogas como tricíclicos, digital, betabloqueadores,
bloqueadores de canais de cálcio
Hipercalemia
Acidose
Infarto agudo do miocárdio extenso

Epinefrina — 1 mg, EV, em bolus
(repetir a cada 3 a 5 minutos)

Se bradicardia absoluta (< 60 bpm) ou relativa
Atropina — 1 mg, EV
(repetir a cada 3 a 5 minutos)
(dose total = 3 mg)

Considerar cessação de esforços ressuscitatório
Figura 3. Algoritmo para tratamento da atividade elétrica sem pulso. (20, 21)

hiperosmolaridade, hipernatremia e alcalose metabó- taquiarritmias, a administração de sua dose vagolítica


lica; e produzir acidose paradoxal (intracelular) pela total (3 mg) deve ser reservada para a parada cardíaca
liberação de CO 2. em assistolia.(20,21)
Sulfato de atropina Sais de cálcio (gluconato e cloreto)
É um medicamento parassimpatolítico que reduz Empregados anteriormente, com freqüência, na
o tono vagal, melhora a condução atrioventricular e parada cardiorrespiratória, têm hoje sua indicação bas-
aumenta a freqüência cardíaca. Como a atropina au- tante restrita aos casos de hipocalcemia, hipermagne-
menta o consumo de O2 e pode desencadear semia e hiperpotassemia e aos casos de intoxicação

420 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
BIANCO ACM e col.
Parada cardíaca no centro cirúrgico

por bloqueadores dos canais de cálcio. Fora dessas si- Procainamida


tuações, pode ser prejudicial à ressuscitação cardio- Está indicada quando a lidocaína for contra-
pulmonar. (20, 21) indicada ou falhar na supressão de taquicardia e
Lidocaína (xilocaína) fibrilação ventricular recorrentes.
Eleva o limiar de fibrilação ventricular e de A procainamida é um bloqueador ganglionar com
estimulação elétrica dos ventrículos. Não influencia, potente efeito vasodilatador e moderado efeito
em doses terapêuticas, a contratilidade miocárdica e a inotrópico negativo, especialmente em pacientes com
pressão arterial sistêmica. É o antiarrítmico de esco- disfunção de ventrículo esquerdo. Durante sua admi-
lha para o tratamento de extra-sístoles ventriculares, e nistração endovenosa, é importante a monitorização
da taquicardia e da fibrilação ventriculares, que per- eletrocardiográfica, pois pode ocorrer alargamento do
sistem após a desfibrilação e a administração de complexo QRS e alongamento do segmento PR e QT,
epinefrina. (20, 21) assim como distúrbios de condução atrioventricular,
A superdosagem da lidocaína, além de distúrbios incluindo bloqueio atrioventricular total, e mesmo pa-
neurológicos (vertigem, convulsão e perda de consci- rada cardíaca. (20,21)
ência), pode gerar parada respiratória e distúrbios cir- Bretílio
culatórios (hipotensão, choque, bradicardia, bloqueio É uma substância bloqueadora ganglionar
atrioventricular total e parada cardíaca). (20, 21) adrenérgica, que eleva o limiar da fibrilação ventricular,
Sulfato de magnésio estando indicado para o tratamento de taquicardia e
A hipomagnesemia associa-se com arritmias fibrilação ventriculares refratárias a outras terapias,
cardíacas, podendo precipitar fibrilação ventricular incluindo cardioversão elétrica, epinefrina, lidocaína
refratária e dificultar a reposição de potássio e procainamida.
intracelular. Nos casos de fibrilação e taquicardia A hipotensão é seu principal efeito colateral.
ventriculares refratárias, após a plena utilização da Deve ser usado com cautela em pacientes com
lidocaína, seu uso na dosagem de 1 g a 2 g poderá arritmias por intoxicação digitálica, pois as
ser útil. É considerado o tratamento de escolha para catecolaminas liberadas por indução do bretílio
“torsade de pointes”. (20, 21) podem agravar o quadro. (20, 21)

CARDIAC ARREST IN THE SURGERY ROOM

ANTONIO CARLOS MUGAYAR BIANCO, ARI TIMERMAN

Cardiac arrest is, in any scenario, a serious, potentially fatal event, with a risk of future sequelae, especially
neurological.
The occurrence of cardiac arrest during surgical interventions is usually related to the patient’s clinical
conditions and to the complexity of procedure.
Both general anesthesia and spinal block may directly account for the occurrence of cardiac arrest. Some
other factors, such as anesthesia overdose, arterial hypotension, myocardial depression and ischemia, are also
closely related to it.
Cardiac arrest requires a rapid, coordinated and effective approach; these factors are of utmost importance
for its successful reversion and for minimizing the occurrence of sequelae.
Key words: cardiac arrest, surgery room, anesthesia.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:414-22)


RSCESP (72594)-996

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 421
BIANCO ACM e col.
Parada cardíaca no centro cirúrgico

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422 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
ANÁLISE CRÍTICA DAS AVALIAÇÕES PERIOPERATÓRIAS EXISTENTES
E PROPOSTA PARA MODELO PADRONIZADO PARA A SOCESP

BRUNO CARAMELLI, CLAUDIO PINHO

Unidade de Medicina Interdisciplinar em Cardiologia — Instituto do Coração — HC-FMUSP


Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 — CEP 05403-000 — São Paulo — SP

Os autores analisam os diversos algoritmos áveis não presentes em outros algoritmos e do-
de avaliação perioperatória disponíveis e apon- enças com maior prevalência em nosso país.
tam suas falhas. Paralelamente, propõem um es- Descritores: avaliação perioperatória, cirur-
quema de avaliação alternativo, incluindo vari- gia.
(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:423-30)
RSCESP (72594)-997

I NTRODUÇÃO Para os pacientes com doença isquêmica do cora-


ção ou com risco elevado de ter essa doença que irão
Em 1999, segundo os dados do SUS, ocorreram ser submetidos a operação, a situação é mais delicada.
2.589.483 internações hospitalares cirúrgicas no Bra- Os fatores de risco mais importantes para morbidade
sil (excluindo-se as obstétricas)(1) . Gerando um custo e mortalidade cardiovasculares são a isquemia mio-
de R$ 1.716.194.533,30 e uma taxa de mortalidade cárdica e o infarto não-fatal na primeira semana após
associada de 2%, essas internações tiveram duração a intervenção. Esses fatores multiplicam o risco de
média de 4,8 dias(1) . Esses dados são alarmantes quan- eventos cardiovasculares nos dois anos que sucedem a
do comparados aos de outros países: nos Estados Uni- intervenção cirúrgica, implicando grandes conseqüên-
dos, essa taxa é de 0,5% (2) . Os números despertam cias para a população e para o sistema de saúde (4) .
maior preocupação se considerarmos que, provavel- Esse panorama, conhecido há muitos anos, foi o
mente, a maior parte desses procedimentos é conside- responsável pelo surgimento de inúmeras estratégias
rada de baixo risco e associada a taxas de mortalidade para a identificação daqueles pacientes com maior ris-
muito pequenas. Embora as informações específicas co de complicações durante o período perioperatório.
não sejam disponíveis, esses dados nos sugerem que, Sob a forma de relatos de casos, revisões ou mesmo
pelo tempo médio de internação relativamente prolon- de diretrizes (“guidelines”), diversos textos foram pu-
gado, a morbidade hospitalar também deve ser eleva- blicados nos últimos anos, sugerindo algoritmos ou
da nessa população. seqüências de condutas para a avaliação perioperató-
Nos Estados Unidos, entre 3% e 10% dos pacien- ria de pacientes (5-23) . De maneira geral, todos eles têm
tes submetidos a intervenções cirúrgicas têm algum problemas. Este artigo tem por objetivo situar as limi-
tipo de complicação, na maior parte das vezes de ori- tações desses algoritmos e propor algumas alternati-
gem cardiovascular. Anualmente, mais de um milhão vas.
de pacientes sofrem complicação cardíaca associada a
procedimento cirúrgico, dos quais 50 mil são vítimas DEFINIÇÃO DE CONCEITOS GERAIS
de infarto do miocárdio. De todas as mortes que ocor-
rem no período perioperatório naquele país, 40% têm A abordagem das doenças cardiovasculares durante
causa cardiovascular(3) . a avaliação perioperatória segue os mesmos conceitos

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 423
CARAMELLI B e col.
Análise crítica das avaliações perioperatórias existentes e proposta para modelo padronizado para a SOCESP

da prática clínica, tendo por base sólidas evidências comenta um estudo sobre avaliação perioperatória em
científicas; isso quer dizer que, de maneira geral, a operações de catarata nos Estados Unidos(24) . Naquele
intervenção cirúrgica proposta não modifica o trata- país, há alguns anos, estabeleceu-se o agendamento
mento que está sendo realizado para aquele paciente. automático de exames laboratoriais perioperatórios
Como exemplo, se, para determinado indivíduo, uma como rotina. Esses exames são responsáveis por um
operação para correção de estenose de uma válvula ou custo anual de 30 bilhões de dólares americanos em
uma angioplastia estão propostas e o paciente neces- todos os tipos de intervenção cirúrgica. Segundo esse
sita também de intervenção como gastrectomia, a in- sistema, na operação de catarata, somente os pacien-
dicação da intervenção cardíaca continua valendo. O tes com exames alterados são encaminhados para ava-
que cabe à equipe que assiste ao doente (cirurgião, liação clínica sob forma de consulta médica. No estu-
cardiologista, anestesista e clínico) é decidir qual a do de Schein e colaboradores (25) , comentado por Roi-
intervenção que deve acontecer primeiro, qual o inter- zen, concluiu-se que é preciso interromper a solicita-
valo a ser observado entre os dois procedimentos e ção de exames laboratoriais de rotina e incrementar a
colocar o paciente nas melhores condições clínicas avaliação clínica por médicos antes da operação, uma
possíveis. vez que não há vantagem em prescrever exames peri-
operatórios como rotina (25) .
DEFINIÇÃO DA POPULAÇÃO Além disso, o editorial lembra que a avaliação ade-
A SER AVALIADA quada, em uma ou mais consultas médicas, não deve
se limitar ao período estrito da intervenção cirúrgica,
A maioria dos algoritmos refere-se a estudos pu- mas incluir estratégias de prevenção primária e secun-
blicados há muitos anos, nos quais foram analisadas dária, que devem ser seguidas a longo termo. A avali-
séries de casos. Essas séries correspondem a grupos ação, muitas vezes a primeira consulta médica cardio-
populacionais selecionados e não comparáveis entre lógica realizada pelo paciente, representa uma opor-
si, pois os pacientes analisados não têm característi- tunidade única para um diagnóstico cardiológico an-
cas clínicas semelhantes, não foram submetidos aos tes desconhecido.
mesmos procedimentos cirúrgicos, pelas mesmas téc-
nicas e nem pelos mesmos operadores. É importante AVANÇOS NO TRATAMENTO DAS DOENÇAS
estabelecer que o algoritmo pode não ter o mesmo valor CARDIOVASCULARES
para uma população diferente, como a dos diabéticos,
a dos idosos ou mesmo de um outro país. Em qualquer A constante evolução das técnicas cirúrgicas e do
uma dessas situações, trata-se de populações com ca- tratamento das doenças cardiovasculares impõe a ne-
racterísticas próprias, para os quais os marcadores de cessidade de atualização freqüente dos algoritmos de
risco podem ser diferentes. avaliação perioperatória. A introdução de novos me-
dicamentos melhorou a sobrevida de pacientes, mas
DEFINIÇÃO DO PROFISSIONAL QUE introduziu, no contexto perioperatório, outras variá-
DEVE AVALIAR veis: efeitos colaterais, complicações da terapêutica,
mudança de conceitos e de marcadores, e melhora de
Cardiologistas, pneumologistas, clínicos gerais, prognóstico de determinadas doenças.
cirurgiões e anestesistas já elaboraram propostas de Todos os algoritmos de avaliação perioperatória não
avaliação perioperatória(5-23) . Em cada uma delas, nota- consideram o fato de que os estudos nos quais estão
se o peso maior para as variáveis relacionadas a cada baseados incluíram pacientes que foram submetidos a
especialidade. Assim, para um mesmo doente, podem tratamentos clínicos e cirúrgicos diferentes, em outra
haver diferentes conclusões e níveis de risco periope- época. Como exemplo, o infarto do miocárdio como
ratório, dependendo de quem realiza a avaliação. fator de risco para complicações perioperatórias é
Em nossa opinião, não importa quem fará a avali- maior quando o mesmo tiver ocorrido nos seis meses
ação nem qual algoritmo utilizará. O importante é que que antecedem a operação. Contudo, esses dados re-
a avaliação seja bem feita, contendo anamnese exten- ferem-se a séries de casos anteriores ao advento do
sa, exame físico completo e relatório claro e legível, tratamento trombolítico, que reduziu a mortalidade e
que compreenda o nome do algoritmo utilizado, para a morbidade dos pacientes com infarto. Provavelmen-
que a linguagem seja familiar a toda a equipe médica te, na era da trombólise, o risco de complicação cardi-
multidisciplinar. ovascular em paciente submetido a cirurgia não-car-
Em um editorial recentemente publicado, Roizen(24) díaca continuará sendo maior, mas, seguramente, por

424 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
CARAMELLI B e col.
Análise crítica das avaliações perioperatórias existentes e proposta para modelo padronizado para a SOCESP

período inferior a seis meses. GRUPOS DE PACIENTES NÃO INCLUÍDOS


Da mesma forma, as arritmias cardíacas até hoje NOS ALGORITMOS EXISTENTES
continuam, em quase todos os algoritmos, como um
marcador de mau prognóstico ou de risco de compli- Por ocorrerem menos freqüentemente ou por terem
cações perioperatórias. Esse fato deve-se às evidênci- sido introduzidas mais recentemente, algumas interven-
as conhecidas na época da elaboração dessas estraté- ções cirúrgicas não aparecem nas estratégias disponí-
gias de avaliação sobre as arritmias cardíacas. Hoje, veis para estratificação de risco perioperatório. É o caso
sabe-se que, na ausência de alteração anatômica es- dos aneurismas de aorta abdominal sem sintomas clíni-
trutural no coração, as arritmias raramente têm impli- cos, da doença arterial coronária assintomática, compro-
cação no prognóstico perioperatório. vada por cinecoronariografia, porém sem antecedentes
Finalmente, houve, nos últimos anos, notável de- de infarto do miocárdio, dos transplantados e da esteno-
senvolvimento no tratamento da doença isquêmica do se mitral. Intuitivamente, todas essas doenças podem ou
coração, a maior causa de morbidade e de mortalidade devem estar associadas a pior prognóstico perioperató-
nos pacientes submetidos a intervenções cirúrgicas rio. No entanto, a magnitude do efeito da presença des-
não-cardíacas. Infelizmente, até o momento, não exis- sas doenças como co-morbidades no ambiente periope-
tem dados sobre o impacto de técnicas invasivas, como ratório e a melhor estratégia para cada situação em par-
angioplastia coronariana com ou sem o uso dos stents, ticular necessitam ser definidas.
sobre os pacientes com alto risco de complicações
perioperatórias ou mesmo quanto tempo devemos es- SOLUÇÕES PROPOSTAS
perar após tal procedimento antes da liberação para
um procedimento cirúrgico eletivo. Trombolíticos, A partir dessa análise crítica, nós nos propusemos a ela-
antiagregantes plaquetários (especialmente os recém- borar um formulário e uma proposta de escore para estrati-
chegados inibidores da glicoproteína IIb/IIIa) e hipo- ficação de risco para pacientes que serão submetidos a inter-
lipemiantes foram agregados ao amplo cardápio à dis- venções cirúrgicas não-cardíacas. A partir dos critérios dos
posição dos médicos para o tratamento dessa doença. algoritmos mais freqüentemente utilizados, elaboramos um
Entretanto, desconhecemos se sua introdução foi ca- esquema alternativo, incluindo questões ainda não estuda-
paz de modificar, em algum ponto, a conduta na avali- das. Esse algoritmo, apresentado a seguir, foi introduzido
ação perioperatória para menor risco. durante o Congresso da SOCESP de 2000 e proposto como
Por outro lado, evidências crescentes apontam para o embrião do método de avaliação perioperatória da Socie-
os betabloqueadores como a grande arma na redução dade. Pretendemos que ele seja obtido pela Internet, na ho-
de complicações perioperatórias, por meio de inter- mepage da SOCESP. Sua utilização em larga escala e o en-
venção farmacológica. Dois estudos recentes, um em vio dos formulários preenchidos são a garantia de que o
operações em geral e outro em cirurgias vasculares, modelo seja continuamente aprimorado. Assim, melhora-
demonstraram o benefício dessas drogas no ambiente mentos serão introduzidos a partir dos dados obtidos dos
perioperatório. No futuro, novas propostas de algorit- cardiologistas do Estado de São Paulo e passarão a ser apli-
mos de intervenção perioperatória devem incluir a cados, pelos próprios médicos, por meio de consulta à pági-
possibilidade de utilização desse tratamento(4,26) . na eletrônica.

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 425
CARAMELLI B e col.
Análise crítica das avaliações perioperatórias existentes e proposta para modelo padronizado para a SOCESP

EMAPO — ESTUDO MULTICÊNTRICO DE AVALIAÇÃO PERIOPERATÓRIA DA SOCESP


Avaliação perioperatória para cirurgia não-cardíaca — SOCESP
(favor preencher com o maior número de informações possível)
Ficha clínica de: Nome: __________________________
Idade: _______ anos Sexo: ( ) M ( ) F

Que será submetido a procedimento cirúrgico, após avaliação clínica foi constatado que o mesmo:
( ) não apresenta cardiopatia clinicamente detectável.
( ) apresenta as seguintes doenças cardiovasculares: ______________________________
______________________________
______________________________
( ) apresenta outras doenças, a seguir relacionadas: ______________________________
______________________________
______________________________
Resultados dos exames previamente realizados:
ECG: _________________________________________________________________________
Ecocardiograma: __________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
Holter: _________________________________________________________________________
Estudo hemodinâmico: ___________________________________________________________
Outros exames cardiovasculares: ____________________________________________________
________________________________________________________________________________

Outros exames: Hb:___ Ht: ___ Glicemia: ___ Uréia: ___ Creatinina: ___ K: ___
TGO: ___ Gasometria arterial: pO2: ___ pCO2: ___
Radiografia do tórax: __________________________________________________________
Outras informações relevantes: ___________________________________________________

Drogas em uso e doses: __________________________________________________________


__________________________________________________________

FATORES DE RISCO — VARIÁVEIS*:


Escores de pontos
Menores:
( ) Paciente inativo e acamado 4 pontos
( ) HAS com HVE e alteração de ST-T 4 pontos
( ) AVCI pregresso há > 3 meses 4 pontos
( ) Diabete melito associado a nefropatia/cardiopatia ou uso de insulina 4 pontos
( ) Cardiopatia isquêmica com testes indutores de isquemia negativos
há < 3 meses 4 pontos
( ) Cirurgia intraperitoneal, intratorácica, de aorta e seus ramos ou ortopédica
de grande porte 4 pontos
( ) Presença de aneurisma de aorta assintomático, sem indicação cirúrgica 4 pontos
( ) Idade maior que 70 anos 5 pontos
( ) IAM há mais de 6 meses 5 pontos
( ) EAP secundário a ICC há mais de 1 semana 5 pontos
( ) FA crônica, taquiarritmias atriais paroxísticas e TVNS documentadas 5 pontos
( ) Condições gerais alteradas: ( ) K< 3,0 mEq/l ou
HCO2 < 20 mEq/l 5 pontos
( ) pO2 < 60 torr ou pCO2 > 50 torr
( ) uréia > 50 mg/dl ou
creatinina > 2,3 mg/dl
( ) AST elevada ou doença hepática ativa

426 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
CARAMELLI B e col.
Análise crítica das avaliações perioperatórias existentes e proposta para modelo padronizado para a SOCESP

Moderados:
( ) IAM há menos de 6 meses e fora da fase aguda 10 pontos
( ) Angina do peito estável na atualidade 10 pontos
( ) Episódio de angina do peito instável há menos de 3 meses, atualmente ausente 10 pontos
( ) EAP secundário a ICC há menos de 1 semana 10 pontos
( ) Taquiarritmias supraventriculares sustentadas com resposta ventricular elevada.
Arritmia ventricular repetitiva sustentada documentada/passado de FV/
episódio de morte súbita abortada há mais de 3 meses/portador de DAI 10 pontos
( ) Canadian Cardiovasc. Society Angina classification — classe III 10 pontos
( ) Cirurgia de emergência 10 pontos
( ) Cirurgia de transplante. Receptor de órgãos vitais: fígado e rim 10 pontos
( ) Estenose mitral grave 10 pontos

Maiores:
( ) Canadian Cardiovasc. Society Angina classification — classe IV 20 pontos
( ) Estenose aórtica grave 20 pontos
( ) ICC classe IV 20 pontos
( ) Fase aguda de IAM 20 pontos
( ) Episódio recente de FV ou MS abortada em não portador de DAI 20 pontos
( ) Cirurgia de transplante. Receptor de órgãos vitais: coração e pulmão 20 pontos

Legenda: HAS: hipertensão arterial sistêmica HVE: hipertrofia ventricular esquerda


IAM: infarto agudo do miocárdio EAP: edema agudo de pulmão
ICC: insuficiência cardíaca congestiva FA: fibrilação atrial
FV: fibrilação ventricular MS: morte súbita
DAI: desfibrilador automático implantável

Total de pontos acumulados: _____ pontos

ÍNDICE DE RISCO CARDIOVASCULAR*:


Total de pontos Tipo de risco Complicações cardíacas esperadas
0 muito baixo < 1%
até 5 baixo < 3%
entre 6 e 10 moderado < 7%
entre 11 e 15 elevado até 13%
maior que 15 muito elevado maior que 13%

ORIENTAÇÕES E SUGESTÕES CLÍNICAS:


( ) Cuidados habituais.
( ) Manter medicação que já utiliza.
( ) Acompanhamento cardiológico conjunto durante a internação para o procedimento.
( ) Iniciar betabloqueador e mantê-lo até o sétimo dia de P.O.
( ) Pós-operatório deverá ser realizado na UTI.
( ) Fazer profilaxia de endocardite infecciosa.
( ) Postergar ato cirúrgico para otimização de tratamento cardiovascular.
( ) Considerar cancelamento ou modificação do procedimento pelo elevado risco.
( ) Necessita de avaliação especializada na área de _________________ por apresentar
quadro de _____________________.
( ) _______________________________________________________________________
Data: _____/_____/_____ ____________________________
Médico responsável pela avaliação
* Modificado de Goldman e Detsky por Pinho e Caramelli.

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000 427
CARAMELLI B e col.
Análise crítica das avaliações perioperatórias existentes e proposta para modelo padronizado para a SOCESP

ANEXO
Nome: ____________________________ Idade: _____ anos Sexo: ( ) M ( )F

FATORES INERENTES AO PROCEDIMENTO QUE PODEM INTERFERIR COM O RISCO:

Procedimento programado: _____________________________________________________


( ) eletivo ( ) urgência ( ) emergência
Tempo de internação: ______ dias
Tipo de anestesia: ( ) local ( ) regional ( ) geral

Tipo de cirurgia: ( ) minimamente invasiva ( ) invasiva ( ) de grande porte

Tempo de cirurgia: ( )<1h ( ) > 1 h/< 2 h ( ) > 2 h/< 4 h ( ) > 4 h

Volume estimado de perda sanguínea: ( ) < 200 ml ( ) > 200 /< 1.000 ml ( ) > 1.000 ml

COMPLICAÇÕES: ( ) ausentes
( ) presentes ( ) indução anestésica
( ) no ato cirúrgico
( ) pós-operatório imediato
( ) pós-operatório tardio

Descrição das complicações:


(Na frente do evento assinalado, referir a doença sob forma de CID-10)
Eventos cardiovasculares: ( ) evento isquêmico: ___________________________
( ) evento arrítmico: ___________________________
( ) evento congestivo: ___________________________
( ) evento embólico: ___________________________
( ) outros eventos CV: ___________________________

Eventos não-cardiovasculares: ( ) pulmonares: __________________________________


( ) metabólicos: __________________________________
( ) outros: __________________________________

Evolução das complicações: ( ) êxito letal


( ) sem seqüela
( ) seqüela com déficit funcional

Existia cardiopatia prévia não-diagnosticada: ( ) sim


( ) não

A cardiopatia prévia foi a responsável direta da complicação: ( ) sim


( ) não

Outras informações importantes a serem relatadas: __________________________________


_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________

Origem dos dados: Nome: ________________________________________________


E-mail: ________________________________________________
Telefone para contato: __________________________________

428 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000
CARAMELLI B e col.
Análise crítica das avaliações perioperatórias existentes e proposta para modelo padronizado para a SOCESP

ANALYSIS OF AVAILABLE SCHEMES FOR PERIOPERATIVE EVALUATION


AND A PROPOSAL FOR A NEW ONE

BRUNO CARAMELLI, C LAUDIO PINHO

The authors analyze the available schemes for perioperative evaluation. An alternative scheme, including
data non obtained by other schemes and diseases more prevalent in Brazil is proposed.
Key words: perioperative evaluation, surgery.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2000;3:423-30)


RSCESP (72594)-997

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430 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 10 N o 3 Mai/Jun 2000

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