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Memória
fitou o líquido com tristeza. A luz amarelada do bar, que ficava bem à frente da mesa
onde se sentara, atravessava o copo de tal maneira que dava à bebida um brilho muito
diferente de sua opacidade comum. Ficou a olhar o copo por longos minutos, durante o
qual lhe passava, como numa película autobiográfica, alguns daqueles momentos que
nos definem a vida. Durante essa recapitulação forçada, não podia deixar de se indagar,
antes de cada nova cena vir à sua mente, como tinha chegado naquele ponto. Logo ele...
- Dinheiro, mulheres... pouquíssimas coisas são capazes de deixar um homem
nesse estado.
A voz firme ecoara no ouvido de Daniel, fazendo-o despertar de seu devaneio.
Olhou para o lado de sobressalto, como alguém que, ainda sonolento, acorda pela
manhã sem saber exatamente onde se encontra. O velho senhor, que há algum tempo
passara a observar atentamente a cena dramática da mesa ao lado, interpelava-o como se
pensasse em voz alta.
- Ahn? – disse Daniel de maneira fria, ainda meio aturdido pela recente
divagação.
- Dizem que só há dois assuntos capazes de fazer incendiar o coração de um
homem: o dinheiro e as mulheres.
- Não sei do que fala! – replicou Daniel de maneira seca, enrugando a face e
olhando o interlocutor de soslaio.
- Digo que só há dois motivos para que um homem em plena forma, bem
vestido, aparentando classe, embora com o olhar carregado de amargura, adentre um
local como esse, a essa hora da noite, e permaneça longos minutos fitando sem
esperança um copo de conhaque sobre a mesa.
Daniel olhou-o com ar de reprovação, franzindo levemente a testa, incomodado
com o fato de um estranho intrometer-se de tal modo em sua vida. Ainda mais, um
pobre diabo como aquele. O velho, porém, fingindo não perceber o descontentamento,
insistiu, após ameaçar e desistir de mais um gole em sua bebida:
- Estou errado, senhor...?
- Daniel.
- Então, estou errado, senhor Daniel?
Não, acho que não – respondeu lacônico depois de alguns segundos, enquanto
apanhava o copo entre as mãos.
A conversa se desenrolava entrecortada pelo barulho do dono do bar, que lavava
as louças na pia atrás do balcão e, de frente para as mesas, mas sem levantar a cabeça,
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tentava ouvir o que diziam os clientes, como que para se distrair daquele serviço
enfadonho. O velho trouxe seu copo novamente à boca, e tomou o resto da cachaça
numa só golada, como se quisesse compensar o tempo que ficara sem saboreá-la por
conta da tentativa de diálogo. Daniel, por sua vez, retornou a cabeça para frente, e
finalmente começou a tragar o conhaque. O gosto amargo da bebida, certamente de
qualidade inferior a que seu paladar se acostumara, fez seu rosto enrubescer de chofre, e
seus olhos lacrimejarem timidamente. Numa espécie de ritual de auto-flagelo, deu ainda
mais um grande hausto, antes que fosse novamente interpelado pela voz que vinha da
outra mesa.
- Sabe, quando se está assim, como o senhor, pode ser útil externar os
pensamentos. Dizem aqueles especialistas que volta e meia aparecem na televisão, que o
primeiro passo para resolver um problema é enunciá-lo em voz alta. Eu, ao menos...
Desistira de completar a frase. Daniel mostrava-se inquieto com a curiosidade
daquele senhor, embora soubesse da consistência do que acabara de ouvir. Era um
homem cultivado, já tinha lido muito e, por força dos negócios, também bastante
viajado. Mas, por alguns instantes, sucedidos de um outro sorvo no conhaque, decidiu-
se por perder o olhar pelo ambiente. Só então resolveu responder. Parecia a melhor
opção. Ou a única, dada a situação em que se encontrava.
- Vinte anos dediquei-me aos negócios. Agora, estou falido, a esposa me deixou,
enfim... motivos suficientes para estar aqui.
- Compreendo – disse o outro freguês com satisfação, ao ver sua teoria
confirmada. – Mas ainda é um homem novo, logo as coisas hão de melhorar –
prosseguiu, tentando transmitir confiança no que acabava de dizer.
- Não creio.
- Por quê?
Daniel lançou um olhar ameaçador à mesa ao lado. “Não te interessa!” pensou
em responder, mas desistiu a tempo de dizer as palavras em voz alta. Como se o velho,
porém, não demonstrasse nenhuma reação, viu que seria obrigado a continuar, não sem
alguma impaciência, ainda incomodado que estava de ver-se impelido a contar sua
história para um desconhecido.
- Veja bem, tenho 45 anos – disse em tom sério e um pouco áspero. – Mais da
metade da minha vida foi consumida por negócios que naufragaram... e, para piorar,
agora estou sozinho e...
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econômicas”, e, por tantas vezes, ouvira – com a mesma atenção de agora – aquele tipo
de lamento.
- Toda minha vida tem sido uma prova de resistência – continuou o velho. –
Muitos em meu lugar já teriam desistido. Aliás, vi muitos desistirem, se enveredarem
pela vida fácil ou simplesmente darem um fim covarde à própria vida. Eu não. Eu posso
dizer com orgulho que, mesmo com muita dificuldade, venci. Melhor dizendo,
sobrevivi. Quem nasce como eu não vive, sobrevive. Essa é a lei. Apesar de tudo, um
dia serei levado por ela, mas não me incomodo. Minha vida está feita e posso dormir em
paz.
- Por ela quem? – indagou Daniel sem demonstrar grande interesse, apenas com
a intenção de confirmar uma resposta já sabida.
- Ora, por quem mais? Pela morte, oras! Tudo nessa vida é passageiro, como se
diz. Só há uma coisa que dura para sempre: a morte.
Daniel fez um gesto com a sobrancelha, e esboçou um irônico sorriso de
superioridade. O velho, contudo, não se fez de rogado, e curvando um pouco as costas,
estendendo o braço esquerdo sobre a mesa, continuou no tom de quem está prestes a
contar um segredo.
- Olha só que curioso: embora todo mundo saiba que apenas a morte é para
sempre, essa banalidade segue incompreensível para a maioria da gente. Por exemplo,
conheço o senhor há poucos minutos. Mas me pareceram suficientes para perceber sua
aflição. Dedicou grande parte da vida a acumular bens e fortuna. Agora, isso está
perdido, e então se sente desorientado. Padece do mal de muitos homens nesses tempos:
crêem na eternidade de suas posses, de seu poder. Veem aí o único sentido de sua
existência. E se esquecem de que nada neste mundo dura para sempre. Quer dizer, nada,
exceto a morte. Essa, depois que vem, não volta mais. Mas, para aqueles homens que
vivem sem compreender esse dado simples, basta que alguém lhes tire seus bens, que se
vejam sem seu dinheiro, para se sentirem como se na verdade alguém lhes tivesse tirado
a própria vida!
- Sim, pode ser – limitou-se dizer Daniel, cabisbaixo, como se preparasse um
contra-argumento para defender-se. Quando fez menção de avançar, porém, foi
antecipado.
- Tua mulher, se te abandonou por isso, como imagino, é porque padecia do
mesmo mal. Ou se preferir, da mesma ilusão, não?
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memória dos outros. Ou pode já estar morto, mesmo de corpo presente, se não for capaz
de ter lugar na memória, no coração de alguém.
Indubitavelmente mais afetado pelo que estava ouvindo, e talvez desarmado do
preconceito inicial por conta do efeito da forte bebida, que ele voltara a tomar, Daniel
começava a sentir pouco a pouco as palavras do homem invadirem seus pensamentos.
Ao mesmo tempo em que o desconcertava, aquele discurso tão direto, e ao mesmo
tempo tão improvável, absorvia-o pouco a pouco, num conflito intermitente, uma
mistura angustiante de curiosidade e pavor.
- A única coisa que deixamos de nossa vida – emendou o velho, percebendo ter
conquistado definitivamente a atenção de Daniel – é a impressão que conseguiremos
deixar no espírito daqueles que ficarem após a nossa morte. A morte... depois que ela
chega, nosso destino está selado. O que será definitivo é a maneira pela qual se
lembrarão de nós. Isso, claro, para aqueles que tiverem a sorte de sê-lo. Muitos homens
não se dão conta de que a morte verdadeira não é a da carne, mas a da memória. Uma
vez esquecidos, e estamos mortos para sempre. Veja bem: o que move a humanidade é
nosso desejo de sermos imortais. Mas a maioria dos homens não consegue perceber o
que isso significa, não consegue perceber que a duração da vida de uma pessoa não se
mede pela extensão de sua existência física, mas pelo tempo que ela habita o coração
das outras; pelo tempo que povoa as lembranças daqueles que a conheceram. Aqueles
que permanecem vivos, mesmo depois de suas carnes virarem alimento para os vermes,
são estes que podemos definir como os grandes homens, as grandes mulheres. Para ser
grande, pouco importa quanto dinheiro ou poder alguém tenha possuído, nem mesmo
quantos anos viveu, mas o que fez, e como fez, e para quem fez... este é o segredo,
entende? este é o segredo.
O velho fez nova pausa, agora para beber, enquanto Daniel o mirava espantado.
Sem floreios, aquela fala ressoava em sua cabeça de maneira atormentadora, mas
certeira, como talvez nenhum filósofo ou poeta conseguisse. De fato, aplicara a maior
parte de seu tempo a procurar riquezas, conforto, poder. E agora que tudo isso lhe
escorria por entre os dedos, sentia como se a própria vida lhe tivesse sido arrancada.
Sentia-se abandonado. Morto. Era vítima de si mesmo, de seu próprio mundo!
Como se procurasse uma forma de desviar sua atenção, depressa dirigiu sua
cabeça ao dono do bar, e pediu então uma nova dose. Entrementes, o velho voltava a
saborear sua bebida barata com visível e, aos olhos de Daniel, inexplicável prazer, antes
de deitar novamente o copo sobre a mesa. Sem demonstrar qualquer pressa, o homem
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então respirou fundo, pôs a mão no queixo enquanto descansava o cotovelo direito
sobre a madeira, e deixou o olhar perder-se pelo bar, como se buscasse inspiração para
continuar sua reflexão. Após alguns instantes em silêncio, que a Daniel pareciam
eternos – se sentia como a criança que espera o pai terminar de contar uma história – o
velho deu uma leve tossida e pôs-se a continuar.
- Olhe o meu caso, por exemplo – disse com o rosto corado pela bebida e pela
empolgação com que passara a pronunciar suas palavras, enquanto o dono servia um
novo conhaque a Daniel. – Nunca tive bens, nem dinheiro, nem nada disso pelo qual a
maioria dos homens inutilmente perde sua vida. Mas hoje, ao deitar-me, sei que se algo
vier a me acontecer, permanecerei bem vivo em sua lembrança, e na de muitas outras
pessoas com as quais pude conviver, no coração das mulheres que tive a oportunidade
de amar... ao fim e ao cabo, é só isso o que importa, pois é só o que fica, percebe? Já no
seu caso, crê que alguém se recordará do senhor, quando não estiver mais aqui? Alguém
lamentará sua ausência, sentirá saudades, desejará que ainda estivesse vivo? Alguém
olhará uma fotografia sua e dirá “este foi um grande homem”?
Daniel não respondeu. Aquelas perguntas, lançadas como flechas embebidas em
veneno, atingiram de tal maneira o seu peito que o fizeram perder o pouco do chão que
ainda lhe restava. Sentia-se imundo. De fato, nunca se preocupara verdadeiramente com
nada além de suas obrigações profissionais, com seu sucesso, o dinheiro... A mulher,
pensava agora, certamente se recordaria dele, não mais com o afeto e o carinho do
tempo das bodas, contudo, e sim com desgosto, arrependimento. Prontamente percebia
seu débito. Não tinha dúvidas de que a amava, mas também sabia que jamais conseguira
dedicar a ela o tempo e a atenção devida. “Trabalho muito para que tenhamos conforto,
um bom padrão de vida, para que você não passe necessidades. Isso não basta?”, era a
réplica habitual às reclamações da esposa por conta de sua ausência física ou
sentimental. E se não fosse a esposa, quem mais? Aqueles a quem considerava como
amigos foram abandonando-o à medida que seu capital diminuía, e certamente já o
tinham esquecido por completo. Como, era preciso reconhecer, ele também os
esqueceria, se sua sorte fosse inversa. Desolado, chegava sem dificuldade à conclusão
de que havia desperdiçado grande parte de seus anos a troco de nada. Passava pela vida
sem vivê-la. “Alguém se lembrará de mim, quando eu não estiver mais aqui? alguém
terá saudades?”, perguntava-se irrequieto. E a resposta inevitável que vinha à sua cabeça
o atormentava ainda mais: “não, ninguém. Até aqui, foi tudo em vão. Se eu morrer,
ninguém lamentará, ninguém... Será que...?”. Não conseguia completar. Seu estômago
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revirava-se numa angústia crescente, como se quisesse saltar para fora da prisão de sua
carne. Seu coração inflamava o peito, palpitando freneticamente, movido pela gravidade
do que acabava de descobrir. Percebia seu fracasso. Não nos negócios, não no
casamento, como imaginava até então. Na vida.
O velho, notando pelo semblante de Daniel o impacto que causara, e com os
braços estendidos sobre a mesa, baixou os olhos timidamente em direção ao relógio
dourado que trazia no pulso esquerdo, logo após lançar um rápido olhar ao dono do bar,
que permanecia de pé, atrás do balcão, e mirava a cena um tanto quanto ressabiado,
fazendo movimentos com os lábios para um lado e para o outro. Em meio ao turbilhão
de pensamentos que se apoderavam de seu espírito, uma vontade de sair correndo e
gritar desesperadamente logo tomou conta de Daniel. Levantou-se então num salto e,
apressado, pagou o que devia, sem preocupar-se com o troco, mas não sem antes
enroscar tragicomicamente os pés em uma das mesas que apareceram em seu caminho.
A nova dose de conhaque permanecia quase intacta no copo, o que chamou a atenção e
despertou o paladar do velho, tão logo ele percebeu o caso. Daniel apertou os passos
para sair, enrijecendo de tal modo a cabeça que nem mesmo se quisesse poderia tornar a
ver seu contundente interlocutor, que agora o acompanhava com peculiar atenção,
jubiloso por ter a certeza de que suas palavras haviam penetrado aquela alma miserável,
e sem dar importância ao fato de que o outro sequer havia se dado ao trabalho de
perguntar o seu nome. Ao deixar o local, assustado, Daniel sentiu que a chuva havia
aumentado, e insultou os céus em voz alta, como se com isso buscasse se ofender a si
próprio. Seu brado, embora abafado pelo barulho ininterrupto da água, foi alto o
suficiente para ser percebido dentro do bar, tanto pelo inusitado conselheiro que, depois
de também acabar com a bebida deixada para trás pelo outro cliente, já se preparava
para ir embora, quanto pelo dono, que tendo escutado quase todo o diálogo, também se
punha a refletir nas palavras que acabara de ouvir, conquanto buscasse disfarçar seu
propósito.
Daniel entrou no carro com as roupas molhadas, e ainda vagueou algum tempo
pela noite, refletindo cuidadosamente sobre as palavras que tinha ouvido no bar, até
finalmente voltar para casa. Já passava das três. Ao deitar-se na cama desarrumada,
lembrou-se do revólver que tinha deixado no porta-luvas do automóvel mais cedo ao
sair. “Amanhã preciso tirá-lo de lá, antes que alguém o veja”, pensou rapidamente.
Virou-se então para o lado, esboçando um sorriso tímido com o canto da boca, antes de
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fechar os olhos exaustos. A chuva cessara há pouco, mas uma leve brisa persistia nas
ruas há muito adormecidas.
12/2010