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I Fórum Nacional

de Psicologia e
Saúde Pública:

contribuições técnicas e
políticas para avançar o SUS

Brasília, 20, 21 e 22 de outubro de 2006


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Conselho Federal de Psicologia


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sala 4024-A Brasília - DF
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I Fórum Nacional
de Psicologia e
Saúde Pública:

contribuições técnicas e
políticas para avançar o SUS

Brasília, 20, 21 e 22 de outubro de 2006

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Apresentação

2006 foi escolhido pelo Sistema Sistema Conselhos em relação a


Conselhos de Psicologia como o essa política pública. Ao mesmo
“Ano da Saúde”. Isso representa a tempo, o processo de debates do
possibilidade de um certo acerto de Fórum constitui um espaço privile-
contas, com várias pendências, pro- giado para avançarmos no processo
duzidas ao longo da nossa inserção de sistematização das referências
como profissão na saúde, relativas técnicas que devem balizar coleti-
a aspectos políticos, administrativos vamente as nossas práticas profissio-
e técnicos que envolvem a nossa nais no interior deste segmento.
atuação. Ampliar a presença da
psicologia neste campo de práticas Neste caderno, os psicólogos
sociais tão importante, passa a ser encontrarão alguns textos, que mes-
entendido como um dos principais mo quando não estão diretamente
desafios para a nossa profissão, em relacionados com os eixos temá-
sua vocação para a promoção do ticos previstos na pauta do Fórum
bem estar e ampliação da qualidade - como, por exemplo, a questão do
de vida dos indivíduos, dos coleti- financiamento do SUS - tratam de
vos e das instituições. temas que emolduram a compreen-
são acerca das dificuldades e desa-
Nesse contexto, a convocação fios colocados para a transformação
do I Fórum Nacional de Psicologia e das práticas profissionais no seu
Saúde Pública, representa uma im- interior. Elaborados por profissio-
portante possibilidade de participa- nais ligados à área, eles abordam a
ção, ampla e democrática, dos psi- conjuntura do SUS: desafio político;
cólogos, no processo de discussão a prática dos psicólogos no SUS; a
da Saúde Pública brasileira, especi- questão da subjetividade na saúde;
ficamente das problemáticas vividas a questão da formação dos psicó-
pelo Sistema Único de Saúde (SUS), logos para a saúde; financiamento
espaço da presença profissional de do SUS; a relação entre trabalha-
uma parcela significativa da nossa dores e usuário de saúde, a prática
categoria profissional, quando serão dos psicólogos no SUS; realidade
definidas diretrizes da atuação do brasileira: tendências e desafios,
sempre na temática do cuidado e significativa do tema da saúde para
da subjetividade. a Psicologia, presente na percep-
ção de que, em função daquela
Afinal, a psicologia como dis- centralidade das experiências que
ciplina é imbatível na abordagem envolvem a dor, o sofrimento e a
das dimensões da subjetividade e morte, a sociedade desenvolve e
as experiências de saúde e doença institucionaliza múltiplas práticas
são profundamente marcadas por com diferentes registros simbólicos
dimensões subjetivas. Aliada à nossa e técnicos, para abordar o tema da
vocação para a promoção do bem conservação da saúde e da vida,
estar, essa condição nos remete a bem como atenuar as dimensões do
necessidade do aprofundamento sofrimento. Desse modo, toca à Psi-
do debate acerca do estreitamento cologia, nas suas variadas presenças
das relações existentes entre a nossa sociais, dialogar com a incidência
profissão e o campo da saúde, seja desses múltiplos valores, práticas e
enquanto estado vital, seja em suas significados, que estão associados
múltiplas representações e articula- ao tema da saúde.
ções com outras esferas da atividade
humana, marcadamente um ele- Assim, um psicólogo que atua
mento central na vida dos sujeitos. na educação deve estar atento às
dimensões e práticas relacionadas
Desta condição deriva a im- ao tema da saúde que são próprios
portância de que todo psicólogo, das populações assistidas no am-
independentemente da sua área biente educacional, que convivem
específica de atuação, possa estabe- neste cenário. Já o psicólogo que
lecer uma aproximação dos conhe- faz Psicologia Comunitária estará
cimentos relativos à experiência em contato com as práticas sociais
complexa dos processos de saúde e e culturais relativas ao processo
adoecimento, na medida em que, saúde-doença, próprias do grupo
dada a centralidade da mesma, ter- que convive naquela comunidade.
minam por assumir uma importante Da mesma forma, um psicólogo
dimensão ontológica, na própria que atua na área de Psicologia
constituição do sujeito. Organizacional também encontrará
diversos aspectos relacionados com
No mesmo sentido, impor- práticas de promoção, conservação
ta registrar uma outra incidência ou de defesa dos trabalhadores em

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relação à questão do adoecimento. importância do tema da Saúde para
Aliás, a saúde ocupacional é uma toda a Psicologia.
área institucionalizada de múltiplos
e conflitivos interesses relacionados Neste Fórum vamos certamen-
aos aspectos que envolvem a saúde te fortalecer o nosso compromisso
e o trabalho. com a área da saúde em todos os
seus eixos e vertentes, para que
Deste modo, pensada como os Psicólogos possam ser agentes
uma área de interesses amplos para de mobilização e mudança, con-
a Psicologia, a saúde deve deixar de tribuindo para a consolidação e
ser considerada como um obje- ampliação do SUS em nosso país,
to específico daqueles psicólogos locus privilegiado da convergência
vocacionados para uma atuação dos principais desafios sanitários da
nas práticas sanitárias, operadas nos sociedade brasileira.
estabelecimentos típicos - hospitais,
unidades de saúde - para se locali- XIII Plenário CFP
zar como um dos importantes espa-
ços de referenciação do diálogo da
Psicologia com a sociedade.

Assim a aproximação por parte


dos psicólogos, do campo da saúde,
está a exigir uma nova atitude,
inclusive reconhecendo que, para
além dos aspectos conceituais, nor-
mativos, prescritivos, que se fazem
presentes no campo da saúde cole-
tiva, essa é uma área que se cons-
titui concretamente na experiência
vivida dos indivíduos na dinâmica
das práticas sociais em cada contex-
to e momento histórico. Daí de-
corre a importância deste tema nas
preocupações com a formação do
psicólogo, que deve proporcionar
oportunidades para a ampliação da
Sumário

Apresentação ________________________________04

A prática dos psicólogos no Siste- ________________________________08


ma Único de Saúde/SUS

Formação generalista em Psicolo- ________________________________17


gia e Sistema Único de Saúde

As inquietudes do financiamento ________________________________41


da seguridade social e o SUS

Conjuntura brasileira e o SUS: ________________________________60


Tendências e Desafios

O Cuidado é um acontecimento, e ________________________________69


não um Ato

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A prática dos psicólogos no Sistema
Único de Saúde/SUS

Magda Dimenstein1 essa primeira condição: implicação


e compromisso.
Gostaria, inicialmente, de Em segundo lugar, gostaria
agradecer o convite para participar de dizer que as idéias que quero
do Fórum Nacional de Psicologia e compartilhar a respeito da temática
Saúde Pública, especialmente pela proposta não são apenas minhas,
possibilidade de compartilhar idéias, mas pertencem a diferentes atores
interesses e de contribuir com o sociais, e, de tão potentes, merecem
debate acerca de uma temática que tomar parte no diálogo, ou seja,
atravessa toda a minha trajetória são idéias frutos do meu encontro
acadêmica, profissional e pessoal. com diversos interlocutores que se
Portanto, é de um lugar profunda- interrogam sobre a vida e apostam
mente afetado que me situo para incansavelmente na criação de no-
pensar sobre a prática profissional vos modos de existência, de se viver,
do psicólogo em saúde pública. Re- de ter saúde. Esses bons encontros
conheço-me, pois, numa situação, funcionam como um intercessor, tal
como disse certa vez Merhy (2003), como Deleuze o pensa, na medida
na qual “o sujeito que propõe o que em que estão cheios de força para
será conhecido está tão implicado desestabilizar o que já está cristali-
com a situação que, ao interrogar zado e revigorar as nossas escolhas
o sentido das situações em foco, conceituais, metodológicas, enfim,
interroga a si mesmo e a sua própria éticas. Diante disso, as palavras-cha-
significação enquanto sujeito de ves para esse momento são movi-
todos esses processos”. Assim, situo- mento e produção de vida.
me enquanto sujeito interessado e Implicação-movimento, com-
que aposta em certas direções e não promisso-produção de vida. Pensar
em outras, enquanto sujeito que a prática do psicólogo na saúde
ambiciona produzir conhecimentos pública a partir dessa perspectiva é
e sistematizá-los para si e para os meu objetivo neste texto. Mais do
outros. Gostaria, assim, de destacar que isso, é poder contribuir para
duas palavras-chaves que refletem a construção de diretrizes para o
1
Profª do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Doutora em Saúde Mental pelo IPUB/UFRJ. Endereço para correspondência: UFRN, CCHLA, Depto. de Psicologia, Cam-
pus Universitário, Lagoa Nova, Natal/RN. CEP: 59.078-970. Tel: (84) 32153590. E-mail: magda@ufrnet.br
trabalho do psicólogo nesse campo tentativa de fazer avançar questões
ancorado em tais princípios. que até hoje se apresentam como
Não vejo razão aqui para re- problemas de difícil abordagem,
tomar uma discussão acerca do tal como atesta a vasta produção
processo de constituição do SUS, bibliográfica produzida no campo
dos avanços e estancamentos ao da saúde coletiva, dentre as quais se
longo dos últimos anos, mas apenas situam:
reafirmar sua importância no cená- • “Fragmentação do processo de
rio nacional e o lugar fundamental trabalho e das relações entre os
que ocupa na vida de milhões de diferentes profissionais;
brasileiros. Acredito no SUS e o • Fragmentação da rede assistencial,
considero uma das melhores inven- o que dificulta a complementarie-
ções já produzidas no país voltadas dade entre a rede básica e o sistema
ao enfrentamento das iniqüidades de referência;
existentes. Parto, então, das dis- • Precária interação nas equipes e
cussões que vêm se dando mais despreparo para lidar com a dimen-
recentemente no campo da saúde são subjetiva nas práticas de aten-
pública, mais precisamente, das ção;
propostas elaboradas pelo Ministério • Baixo investimento na qualificação
da Saúde, que já tem os problemas dos trabalhadores, especialmente no
do sistema mapeados e investe na que se refere à gestão participativa e
proposição de novas estratégias e ao trabalho em equipe;
ações no intuito de transformá-lo. • Poucos dispositivos de fomento à
Atualmente, o “HumanizaSUS” co-gestão, à valorização e inclusão
apresenta-se como uma dessas dos gestores, trabalhadores e usu-
estratégias para alcançar uma maior ários no processo de produção de
qualificação da atenção e da gestão saúde;
em saúde no SUS. É uma política • Desrespeito aos direitos dos usuá-
nacional que opera transversalmen- rios;
te em todos os níveis do sistema, • Formação dos profissionais de saú-
fugindo da lógica tradicional e de distante do debate e da formula-
burocrática baseada em programas ção da política pública de saúde;
e que tem, na humanização, o eixo • Controle social frágil dos processos
norteador das práticas de atenção e de atenção e gestão do SUS;
gestão em todas as esferas do SUS. • Modelo de atenção centrado na
Trata-se, portanto, de uma relação queixa-conduta” (MS, 2004).

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Diante disso, o Ministério da colocar socialmente em questão as
Saúde vem propondo um conjun- amarras culturais, sociais, políticas
to de princípios e diretrizes com o e econômicas que travam a con-
intuito de enfrentar os problemas quista de novos padrões universais
indicados e orientar o modo de e solidários de qualidade de vida”
operar, as ações e as práticas em to- (p.1348). Ou seja, nossa adesão,
das as esferas do sistema de saúde. nosso compromisso, nossa conexão
Essas propostas visam, em outras com essa rede de humanização em
palavras, à construção de uma rede saúde implica uma participação
comprometida com a defesa da vida em um bloco de forças que tem a
ou, como vem sendo chamada, de potencialidade de romper e gerar
“Rede de Humanização em Saúde/ forças sociais capazes de produzir
RHS” (MS, 2004). O que vem a ser mudanças na ordem estabelecida,
isso? Que direção aponta, em ter- nos modelos de atenção e práticas
mos da nossa inserção profissional profissionais cronificados.
no SUS? De que maneira a Psicolo- Mas, em que consiste a Política
gia é convocada a fazer parte de um Nacional de Humanização? De for-
movimento cuja responsabilidade é ma bastante resumida, segundo os
a produção de saúde e de sujeitos documentos disponibilizados pelo
de modo sintonizado com outras es- MS (2004), trata-se da construção/
tratégias de combate à desigualdade ativação de atitudes ético-estéti-
social e à desqualificação da vida? co-políticas em sintonia com um
Parto do princípio, então, de projeto de co-responsabilidade e
que nosso desafio atualmente reside qualificação dos vínculos interprofis-
em avançar no delineamento do sionais, e destes com os usuários na
que tal política pede de nós e em produção de saúde. É uma rede de
como a Psicologia pode contribuir construção permanente de cidada-
para operar e fazer acontecer tal po- nia, que implica uma mudança na
lítica, pois, a despeito das distintas cultura da atenção aos usuários e da
definições, compreensões, críticas e gestão dos processos de trabalho.
propostas existentes em termos de A política de humanização supõe
humanização na saúde, o que está um novo tipo de interação entre os
em jogo, segundo Puccini e Cecílio sujeitos e nos modos de trabalhar
(2004), “é a finalidade, o potencial em equipe, porque implica estar
e a direção desse movimento para o lidando com a complexidade sem-
enriquecimento humano capaz de pre diferenciadora do viver, implica
produzir uma “cumplicidade” entre duzimos os técnicos que aí operam.
esses atores. Trata-se, portanto, de O psicólogo é um deles. Para esca-
poder olhar cada sujeito em sua par da lógica de produção de atos
especificidade, sua história de vida, de saúde como procedimentos e
mas também de olhá-lo como sujei- “realizarmos no agir diário, junto aos
to de um coletivo, sujeito da história outros, dentro de nossos campos de
de muitas vidas. Nesse sentido, há responsabilidades e competências,
destaque para o aspecto subjetivo processos relacionais comprometidos
presente em qualquer ação huma- com a construção de sujeitos sociais
na, em qualquer prática de saúde, protagonizadores de seus modos de
perspectiva que se afasta daquela caminhar na vida individual e cole-
orientada por uma concepção biolo- tiva e sermos comprometidos com a
gizante e mecanizada da vida. permanente ótica de cuidar dos ou-
Partindo da idéia de que o tros, das relações, de si e do mundo”
modo de operar é indissociável das (Merhy, 2001), é preciso enfrentar
concepções e valores, a implemen- uma série de desafios que vão muito
tação e funcionamento da PNH além dos aspectos burocráticos ou
envolvem uma série de estratégias administrativos e da delimitação de
que objetivam a sua institucionaliza- espaços profissionais.
ção, seja na atenção básica, urgên- Penso que, no campo da saúde
cia e emergência, seja na atenção pública, para fazer avançar uma
especializada e hospitalar, em pelo política cuja lógica está voltada para
menos sete eixos: gestão do traba- a produção do cuidado em saúde,
lho, financiamento, atenção integral, torna-se necessário fazer esco-
educação permanente, informação/ lhas teóricas e metodológicas que
comunicação, acompanhamento e possibilitem a sua concretização.
avaliação da PNH e no eixo das ins- Isso vale para qualquer campo de
tituições, sendo pactuada nos níveis saber, e nos diz respeito diretamen-
estadual e municipal. te. Como diz Deleuze, uma teoria
É possível perceber que mate- é exatamente como uma caixa de
rializar tal política e reconfigurar o ferramentas, é preciso que sirva,
campo assistencial não é simples, que funcione e que funcione para
pois requer um novo tipo de com- outros. Se não tem pessoas que se
petência profissional, mudanças no servem dela, incluindo o próprio
processo de financiamento e gestão, teórico, é que a teoria não vale
no ensino e nos modos como pro- nada. Além disso, vale lembrar “que

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não são quaisquer ferramentas que frentamentos importantes relativos à
permitem agir em um modelo cen- sua base conceitual e ao seu reper-
trado no usuário, que visa a um novo tório de práticas quando se trata da
modo de produzir o cuidado e o for- sua inserção no campo da saúde pú-
jamento de novos sujeitos em ação blica. Alguns pontos podem ajudar
comprometidos radicalmente com nessa discussão, já discutidos na lite-
a defesa da vida individual e coleti- ratura do campo. Primeiro, diz res-
va, dentro de uma ótica de direitos peito aos pressupostos subjacentes
sociais plenos” (Merhy, 2002, p.16). à atenção produzida independente-
Algumas ferramentas apresentam mente do local de atuação: visão de
mais possibilidades do que outras; mundo, valores, crenças, concepção
umas estão mais cheias de força de subjetividade, de saúde/doença,
crítica, de tornar visível a invisibili- de normal/patológico, de neutralida-
dade de forças que nos atravessam, de] etc, que fundamentam o saber e
os saberes e afetos instituídos, de a prática psicológicos; segundo, a al-
nos fazer inventar atos cuidado- gumas marcas presentes no mundo
res. Uma anamnese, por exemplo, psi: o ideário individualista, a fusão
circunscrita à queixa e sintomas para identitária com a psicanálise, a for-
a elaboração de diagnóstico tem mação acadêmica descontextualiza-
funcionado, na maioria dos casos, da, concepção de sujeito/indivíduo,
como uma ferramenta pobre para modelo clínico tradicional, foco nos
fazer emergir a complexidade de referenciais modernos de razão e
fatores envolvidos naquilo que se cidadania etc. (Dimenstein, 1998).
apresenta enquanto necessidade de Tudo isso concorre para a produção
saúde. Portanto, a maneira como de uma cultura profissional, de uma
certas ferramentas são construídas, forma específica de ser psicólogo,
como certas modalidades de inter- de ver o mundo, de organizar seu
venção são pensadas e executadas, trabalho e de relacionar-se com a
já reflete sua dimensão tutelar ou instituição de saúde, por exemplo,
geradora de autonomia, ou seja, é campo que é alvo desse trabalho.
preciso, antes de qualquer coisa, Essa forma específica de se situar
pensar onde essa ou aquela ferra- na vida é caracterizada por alguns
menta pode nos levar. pontos, a saber:
Como isso afeta a Psicologia? 1. Escravização às técnicas,
Essa discussão indica que a Psicolo- refletida na crença na neutralidade e
gia precisa operar uma série de en- na sua eficácia intrínseca (seja indi-
vidual ou grupal). A técnica é o fim venção do SUS, modo que vai sen-
em si. O que importa é saber usar, do gestado ao longo da formação,
aplicar corretamente, desempenhar e a universidade deve responsabili-
a tarefa, é realizar o ideal de atua- zar-se por isso. Não se trata de uma
ção entendido como o emprego da especialização, mas de um modo de
técnica. Não é à toa que uma das ser no exercício profissional.
maiores reclamações dos psicólogos Outro aspecto que gostaria de
inseridos na rede pública de saúde abordar em relação à prática pro-
seja relativa à falta de setting/espaço fissional em saúde pública - (e não
adequado, de possibilidade de estou me restringindo ao psicólogo)
realizar o acompanhamento indivi- - é um desafio presente no cotidia-
dual e de falta de entendimento dos no, mas pouco palpável, porque
gestores sobre o trabalho do psicólo- implica acompanhar movimentos
go bem como dos usuários. invisíveis, não de sujeitos ou de pes-
2. Concepção de liberdade/ soas, mas de “operações estratégicas
autonomia apenas dentro de uma do desejo” (Rolnik, 1989). Considero
ótica privatista, que não tem absolu- que a finalidade por excelência de
tamente a ver com a idéia de liber- qualquer trabalho em Psicologia
dade como ação política, coletiva, seja operar cotidianamente essa
como diálogo no sentido de produ- máquina desejante que articula
zir novas formas de sociabilidade. profissionais, usuários, organizações,
3. Desejos de adaptação, seja tecnologias, encontros de sujeitos,
das técnicas (não se pensa na pro- que produz uma movimentação que
dução de outras alternativas) seja da implica processos cooperativos, po-
diferença, da diversidade humana, tentes, prazerosos ou não, tal como
dentro de modelos pré-estabeleci- relata grande parte dos trabalhado-
dos. Considera-se que grande parte res em saúde. É nesse jogo cotidiano
das teorias e práticas psicológicas que nos inserimos de forma particu-
está norteada pelo princípio da dis- lar com nossos saberes e fazeres.
ciplina, da normatização e cristaliza- Operar essa máquina desejante
ção das referências identitárias, seja é um trabalho árduo, cansativo, sem
em que contexto for. garantias, pois implica perceber que
Nesse sentido, destaca-se a “o desejo investe contra si mesmo e
necessidade de construção de um a favor do fortalecimento do status
modo de fazer Psicologia articulado quo” (Rolnik, 1989). Significa se
aos princípios e estratégias de inter- permitir ser atravessado por uma

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indagação spinozana: Por que as Entretanto, o que é mais impor-
pessoas lutam por sua própria opres- tante é que essa cultura manicomial
são como se estivessem lutando por não está restrita a um campo especí-
liberdade? Por que produzimos mo- fico de práticas, ou seja, a fabricação
dos de existência tiranos que fazem desses modos de existência captu-
com que a hierarquia e a exploração rados em sua força de invenção, de
sejam desejadas? Por que costura- devires fascistas que se voltam, em
mos tantas burcas, mesmo de cores nome da razão, à correção de tudo
e tecidos variados, mas sempre o que escapa à normalidade, à vigi-
fôrmas-prisões? lância ininterrupta para não sairmos
Esses questionamentos nos indi- da ordem, à produção de práticas
cam que somos capturados constan- e tecnologias de disciplinarização,
temente pela tentação do conforto é algo que perpassa o cotidiano,
das formas e dos equilíbrios; indicam que alimenta os modos pelos quais
também que empreendemos, a todo circulam as pessoas nos espaços
momento, processos de instituciona- sociais, nos nossos atos e formas de
lização da vida, que ajudamos a mo- pensar. Portanto, não é algo produ-
dular os sistemas de saberes-poderes zido especificamente no contexto da
que nos atravessam e a conservar saúde ou próprio de nossa categoria
as redes invisíveis de subjetivação profissional, mas são movimentos
moral que sabotam as forças vivas da que atravessam o socius, o tornar-se
vida, a potência do novo, do desco- humano contemporâneo. Isso quer
nhecido, do inusitado, da diferença. dizer que ela envolve todos nós; está
Chamamos isso “desejos de mani- dentro e fora dos muros das institui-
cômio”. É uma lógica, são marcas ções de saúde.
invisíveis que produzem formas de Nesse sentido, mesmo sabendo
subjetivações. Segundo Machado e que não há receitas prontas e defini-
Lavrador (2001), essa lógica se ex- tivas, penso que talvez a especifici-
pressa “através de um desejo em nós dade do nosso exercício profissional
de dominar, de subjugar, de classifi- seja produzir certa disposição para
car, de hierarquizar, de oprimir e de construir problemas nos espaços
controlar. Esses manicômios se fazem por onde circulamos, nos coletivos
presentes em toda e qualquer forma de trabalho, entre usuários e para
de expressão que se sustente numa nós mesmos. Que nosso foco seja
racionalidade carcerária, explicativa e interrogar sobre como ocupamos as
despótica” . cenas, como as produzimos: en-
quanto interditores ou produtores saúde, desde a atenção básica até o
de vida? Que nosso agir seja lutar nível terciário de atenção, passan-
contra o ímpeto da prescrição de do pelo planejamento e gestão dos
modos de existir no mundo, o que serviços. Em cada um desses níveis,
nos faz técnicos da correção e da atuar como aprendiz, construindo
modelagem. rede com outros saberes, produzin-
Entendo que a PNH, política do escutas-intervenções que alar-
que tem um compromisso com esse guem os sentidos e as possibilidades
debate, convoca-nos a recusar o de criação e transformação do
ideal de homem e a enfrentar as re- cotidiano, essa é a nossa missão na
des invisíveis de subjetivação moral saúde pública.
bem como as resistências afetivas Gostaria de finalizar com um
que bloqueiam nossa capacidade de poema de Clarice Lispector, que
inventar maneiras de ser antimani- nos serve de alerta para o caráter
comial. Ela nos pede para jogar esse transgressor, desviante e revolucio-
jogo e colocar nossa capacidade de nário que pequenos movimentos
explorar o funcionamento paradoxal que operamos no dia a dia podem
dessa rede em saúde construindo ter; basta termos coragem e não nos
estratégias provisórias, “uma políti- deixarmos calcificar.
ca de invenção na qual se mantém “Eu sei que a gente se acostuma.
vivo o aprender a aprender, em que Mas não devia.
o saber aprendido não se separa de A gente se acostuma a morar em
repetidas problematizações....uma apartamentos de fundos
prática do tateio e de experimen- e a não ter outra vista que não
tação, composição e recomposição as janelas ao redor.
incessante” (Lazzarotto, 2004). E porque não tem vista, logo se
O problema é que não há recei- acostuma a não olhar para fora.
tas de como inventar. E, certamente, E porque não olha para fora,
não se faz sozinho. Precisamos de logo se acostuma a não abrir de
intercessores, de estar num campo todo as cortinas.
“que sustente essa inquietação e os E porque não abre as cortinas,
movimentos intensivos do pensa- logo se acostuma a acender cedo a
mento-ação para produzir uma ou luz.
muitas respostas” (Matos, 2004). E à medida que se acostuma, es-
Cotidianamente, estamos inseri- quece o sol, esquece o ar, esquece a
dos em vários setores do sistema de amplidão”.

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Referências

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to, C. A. T et al (orgs). Psicologia e
Políticas Públicas: experiências em
Formação generalista em Psicologia e
Sistema Único de Saúde

Jefferson Bernardes2 analisados alguns dos principais itens


das diretrizes curriculares da Psico-
Este texto possui o objetivo de logia e suas relações com retóricas
dialogar sobre algumas questões da técnico-científicas e lógicas neoli-
formação em Psicologia e suas rela- berais que marcaram a profissão ao
ções com o Sistema Único de Saúde longo dos tempos, principalmente
(SUS). Para isso, vai ao encontro do aquelas voltadas para a problema-
objetivo geral do projeto das oficinas tização da formação generalista. A
da Associação Brasileira de Ensino terceira parte apresenta o princípio
em Psicologia (ABEP), qual seja, o de da integralidade3 e alguns pontos de
“contribuir para o processo de mu- encontros e articulações com a for-
dança na graduação da Psicologia, mação em Psicologia. Assim, tenta-
articulada no processo de implemen- mos estabelecer alguns paralelos (às
tação da integralidade na atenção vezes são paralelos que desafiam as
à saúde, mantendo a dimensão lógicas geométricas e se encontram,
de uma formação generalista”. Em outras vezes se afastam) entre os
função disso, o texto está organizado conceitos de formação generalista e
em dois eixos: primeiro, orientado integralidade.
para a problematização da formação Sabemos que o conceito de for-
generalista em Psicologia e, segundo, mação generalista está banalizado,
as articulações dessa formação com impedindo avanços para sentidos
um dos princípios do SUS, o da inte- que possam ser mais interessantes
gralidade na atenção à saúde. para a formação. Diante disso, nos-
Para explorar tais eixos, dividi- so argumento central é afirmar que
mos o texto em três partes: a pri- a formação em Psicologia jamais
meira parte apresenta uma breve foi generalista, no sentido que será
problematização sobre reformas construído aqui, e que ainda temos
curriculares; a segunda diz respeito muito trabalho a fazer para promo-
às características, historicamente ver as articulações com os princí-
produzidas, da formação em Psi- pios do SUS, principalmente o da
cologia. Nela serão apresentados e integralidade.
2
Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e professor da Universidade
Federal de Alagoas.

17
18
Para isso, três pontos são consi- de Psicologia é o próprio Fórum
derados fundamentos para prosse- Nacional de Educação das Profis-
guirmos: em primeiro lugar, con- sões da Área da Saúde (FNEPAS),
sideramos a Psicologia como uma que tem por missão potencializar as
prática social, ou seja, sujeita ao reformas na graduação a partir da
que, na etnometodologia (Garfinkel, reflexão coletiva sobre as diretrizes
1967; Coulon, 1987), chamamos de curriculares.
princípio da reflexividade. Citando
Ibáñez: “hemos descubierto que 1) Reformas curriculares
la ciencia también está hecha de Apesar de este texto explorar a
la carne y huesos de sus represen- questão da formação mais vincula-
tantes, carne y huesos que están da à graduação, estamos longe de
formados de historicidad, de cultu- querer reduzi-la à mesma. Levando
ra, de lenguaje, de socialidad y que isso em consideração, delimitamos
todo ello no remite sino a la contin- formação em sua relação com a
gencia y a la finitud del ser humano” cultura. Partimos do argumento que
(Ibañez, 2001, p. 222). a formação produz cultura (e vice-
Em segundo lugar, o texto versa). A escola é percebida como
orienta-se por uma perspectiva “máquina de produção” (e, não
pragmática, ou seja, volta-se para simplesmente, reprodução social).
os usos e efeitos das diretrizes cur- A cultura influencia a formação
riculares na formação em Psicologia profissional: ela constrói, molda e
e em suas articulações (ou ausência formata os sujeitos. Tal formação
delas) com os princípios do SUS, e, é produzida, para além de outros
em terceiro, destacamos a impor- elementos, por meio do próprio
tância das interanimações dialógi- currículo e dos processos que levam
cas (Bakhtin, 1994; Spink, 1999), à sua organização.
isto é, além dos posicionamentos, Veiga-Neto (1995), por exem-
endereçamentos etc, o texto possui plo, argumenta que o ponto nodal
várias vozes que o compõem. Pre- na relação entre cultura e formação
tende, dessa forma, fazer parte do é o currículo. Para esse autor, a
debate que produz a implantação Educação não é vista somente como
das diretrizes curriculares. uma tarefa técnica de processamen-
De imediato, é importante lem- to de informações ou de aplicações
brar que um dos protagonistas nessa de determinadas teorias de apren-
articulação entre o SUS e os cursos dizagem nas salas de aula, sequer
3
Embora saibamos que outros princípios do SUS (universalidade, eqüidade, controle social e descentralização) relacio-
nam-se diretamente com a formação em Psicologia, por ausência de tempo, não tivemos condições de analisá-los.
como resultado de exames de mercado, da formação para habili-
rendimento centradas no indivíduo. dades e competências cuja defini-
Portanto, nesse processo complexo, ção não passa por um debate social
o currículo é visto como a porção amplo” (Chassot, 1998, p. 11).
da cultura - em termos de conteú- Nesse sentido, a escola tende
dos e práticas (de ensino, avaliação, à produção de valores culturais
etc.) - que, por ser considerada dominantes, por exemplo, por meio
relevante num dado momento his- da perspectiva da lógica neoliberal,
tórico, é trazida para a escola, isso hegemônica na atualidade, asso-
é, é escolarizada (Williams, 1984). ciada a concepções conservadoras
De certa forma, então, um currícu- de Educação e de aprendizagem;
lo guarda estreita correspondência o currículo é compreendido quase
com a cultura na qual ele se organi- sempre como meio, instrumento,
zou, de modo que, ao analisarmos via de acesso a determinados fins.
um determinado currículo, pode- Essa concepção minora o valor dos
remos inferir não só os conteúdos currículos, transformando-os em
que, explícita ou implicitamente, são ferramentas manipuláveis de acordo
vistos como importantes naquela com os objetivos (conservadores)
cultura, como também de que ma- que se quer estabelecer, desqua-
neira aquela cultura prioriza alguns lifica e descola a relação entre a
conteúdos em detrimento de outros, formação e a cultura, tentando
isto é, podemos inferir quais foram transformar o currículo em uma
os critérios de escolha que guiaram peça técnica, neutra, apolítica.
os professores, administradores, cur- Em decorrência disso, a reforma
riculistas etc, que montaram aquele curricular é quase sempre perce-
currículo. Esse é o motivo pelo qual bida como simples mudança de
o currículo se situa no cruzamento disciplinas comumente observada
entre a escola e a cultura (Veiga- nos corredores e salas dos depar-
Neto, 1995, p. 1). tamentos: PSI 30001 - Psicologia
A maioria das políticas curricula- Social I é substituída por PSI 30002
res oficiais não problematiza co- - Introdução à Psicologia Social. Ou
nhecimento e cultura como campo PSI 20001 - Psicologia Geral, por
plural de conflitos e acordos (campo PSI 20002 - Introdução à Psicologia.
de relações dialógicas), fazendo, Geralmente, a troca de disciplinas
assim, com que a função cultural da fica à mercê dos ditames do merca-
escola fique “submetida à lógica do do, na carona do conteúdo que está

19
20
mais em voga no momento. Moreira, 1995). Além disso, claro,
Nesse sentido, por exemplo, as há questões internas aos departa-
dimensões do que se chama (equi- mentos; por exemplo, nas institui-
vocadamente, diga-se de passagem) ções de ensino privadas, ao modifi-
de clínica psicológica encontra ter- car a disciplina de algum professor,
reno fértil para as propostas: saem em realidade estaremos mexendo
de cena os fenômenos relacionados diretamente em seu salário. As re-
à tristeza, melancolia etc, e entra a sistências para mudanças, portanto,
depressão. Estresse, toxicomanias, são grandes.
síndrome do pânico, dentre outras, Mas a compreensão de currí-
fazem sucesso nas propostas de culo como uma peça técnica não
alterações curriculares. Focada em possibilita pensarmos reformas
conteúdos, as síndromes e trans- curriculares como um processo em
tornos de plantão junto à mídia que se mesclam relações de poder,
medicamentosa impulsionam as redes e jogos de interesses, fruto de
reformas, promovendo trocas de negociações de sentidos e rela-
disciplinas (ou de conteúdos das ções dialógicas entre seus variados
disciplinas), mercantilizando o cur- participantes. Ora, reformas curri-
rículo e a formação profissional. Há culares são produções políticas e
uma enxurrada de novas síndromes coletivas, caso contrário estaremos
apresentadas diariamente. A lógica vivenciando processos de privatiza-
conteudista, na maioria das vezes, ção e de apropriação indébita de
caminha lado a lado com posi- perfis formativos. Exemplo disso: a
cionamentos pouco críticos para enorme distância entre as diretri-
reformas. zes curriculares para os cursos de
Sabemos que as estratégias neo- Psicologia e as políticas públicas em
liberais retiram o debate da Educa- geral e, em especial, as da saúde no
ção da esfera pública e submete-o País. O documento das diretrizes
às regras do mercado, e isso, nos curriculares sequer, ou pouco, toca
dizeres de Silva (1995), não significa nessa questão.
maior liberdade e menor regulação, Em se tratando de definições
ao contrário, transforma a Educação nas políticas educacionais, se são
num objeto de consumo individual, produções coletivas, estamos sem-
e não de discussão pública, organi- pre no campo da ética e da política.
zando processos de maior controle É fundamental a participação de
da vida cotidiana escolar (Silva e vários atores nesse processo, não
somente professores e alunos, mas trução de uma proposta político-pe-
também usuários dos serviços apli- dagógica que produza uma relação
cados ao curso, supervisores locais, visceral com as políticas públicas,
trabalhadores do sistema de saúde e ou seja, que não reduza essa rela-
interessados em geral. ção a uma ou duas disciplinas. A
Este é um primeiro ponto: pura e simples inclusão de discipli-
reformas curriculares não podem nas de políticas públicas em saúde
ser reduzidas à troca de disciplinas. nas grades curriculares dos cursos
Não se resolve nada dessa forma. não garante, efetivamente, nenhum
Não é trocando a disciplina de tipo de mudança com as reformas.
Psicologia clínica por políticas pú- A sugestão é que os princípios este-
blicas em saúde que resolveremos a jam contemplados (e coletivamente
questão da própria política pública acertados na comunidade acadê-
em saúde. Aliás, se a troca é nesse mica, constituindo um compromis-
nível, ou seja, introduzir o conteúdo so de todos) na própria proposta
ou o profissional em Psicologia na político-pedagógica do curso.
rede de atenção pública à saúde, Diante dessa questão, passamos
realizando as mesmas atividades ao segundo tópico: caracterizações
que sempre realizou, estabelecendo da formação em Psicologia.
com o sistema o mesmo modelo de
atuação que caracteriza a formação 2) Algumas características da
em Psicologia, possivelmente tere- formação em Psicologia
mos, por conseqüência, ao menos A formação em Psicologia, no
dois processos: maior afastamento Brasil, há tempos é alvo de muitos
da área em relação aos princípios estudos e pesquisas. Apesar disso,
do SUS e a constituição de uma desde a aprovação da resolução
perigosa dicotomia entre uma Psi- que estabelece o currículo mínimo
cologia para ricos (privada) e uma para os cursos de Psicologia4, data-
Psicologia para pobres (pública). da de 1962, nenhuma mudança foi
Caso continue com o mesmo mo- materializada em termos documen-
delo que caracterizou a formação tais. Nesses 42 anos, muitas ex-
em Psicologia no Brasil, preferimos, periências locais e pontuais foram
então, que sequer permitamos que construídas e vivenciadas, algumas
o profissional psi entre nessa rede. com sucesso e outras nem tanto.
O ponto nodal, em se tratando Apesar de a nova Lei de Diretrizes
de reformas curriculares, é a cons- e Bases da Educação, aprovada em
4
Resolução de 19 de dezembro de 1962, do antigo Conselho Federal de
Educação, que fixou o currículo mínimo para os cursos de Psicologia.

21
22
1996, extinguir todas as resoluções científicas com lógicas neoliberais),
referentes ao currículo mínimo no desde seus primórdios, jamais foi
país, somente agora foi possível a uma formação generalista. Ao con-
construção de uma nova resolu- trário, foi, desde sempre, marcada
ção5, baseada nas Diretrizes Gerais por ser uma formação fragmentada,
Curriculares, para a definição de reducionista, liberal, individualizan-
novos parâmetros para os cursos de te e com especialização precoce.
graduação em Psicologia. Decorre Vale destacar que não temos
dessa constatação uma primeira nenhuma pretensão em sentar pé
pergunta: o que atravancou, por numa definição de generalista e
tanto tempo, a implementação de afirmar que essa é a mais verdadei-
novas propostas curriculares? ra ou a mais correta. Ao contrário,
É compreensível afirmar que apresentaremos um sentido que,
as diretrizes curriculares, homolo- cremos, pode trazer algumas possi-
gadas em 2004 pelo Ministério da bilidades interessantes de se pensar
Educação, foram fruto de negocia- a formação em Psicologia.
ções e de relações de poder. Esse Frente a isso, foram seleciona-
processo é eminentemente político dos quatro itens das diretrizes cur-
e implica negociações de sentidos riculares considerados centrais para
a todo momento. O documento a implantação das reformas. Dois
das diretrizes curriculares atuais foi deles são permanências de mode-
o possível de ser realizado nesse los que já existiam na formação
momento e foi originário de um em Psicologia e os outros dois são
trabalho sério e sistematizado de novidades. Apesar das permanên-
um grande número de pessoas e cias, acreditamos que seja possível
entidades. Estamos lidando com estabelecer uma reforma que possa
posicionamentos políticos, em que romper com tradições mais con-
as distintas psicologias também servadoras. Os itens são: ênfases
participam ativamente, claro, nem curriculares e currículo por com-
sempre de forma igualitária, assim petências (não são novidades) e nú-
como nem sempre com os avanços cleo comum e eixos estruturantes
que alguns de nós desejamos. (estes, sim, promovem novidades
O argumento central desse nas diretrizes curriculares). A idéia
texto é de que a formação em é tentar remontar algumas formas
Psicologia no Brasil (marcada por de se lidar com esses conceitos que
encontros entre retóricas técnico- escapem do lugar comum a que a
5
Parecer n° 0062/2004, do Conselho Nacional de Educação, que teve como relatora a Profª Marília Ancona-Lopez, ho-
mologado pelo Ministro da Educação, por meio de publicação no Diário Oficial da União, no dia 12/04/2004.
Psicologia, por quase um século, se psicólogo no País podem constituir
vê destinada. ponto de partida para a definição
de ênfases curriculares, sem prejuí-
a) Ênfases curriculares: zo para que, no projeto de curso, as
O Parecer do Conselho Na- instituições formadoras concebam
cional de Educação nº 0062/2004 recortes inovadores de competên-
define ênfases curriculares como cias que venham a instituir novos
“um conjunto delimitado e articu- arranjos de práticas no campo”.
lado de competências e habilidades O receio que temos é que, ao
que configuram oportunidades de estarem abertas, para os domínios e
concentração de estudos e estágios as inovações em Psicologia, a defi-
em algum domínio da Psicologia”. nição de ênfases, sem reflexões so-
Mais adiante, as diretrizes salientam bre as origens do próprio conceito e
que “as ênfases devem ser sufi- diante das resistências às mudanças
cientemente abrangentes para não (em função de diversos fatores), os
constituírem especializações, mas movimentos de reformas tendam à
assegurar o respeito às singularida- manutenção do que já existe, como
des institucionais, às vocações es- já apontam alguns estudos e pesqui-
pecíficas e aos contextos regionais, sas recentes.
atendendo à abertura proposta pela Voltando ao parecer: “cada
nova LDB”. curso poderá definir e criar outras
Já na Resolução, as ênfases são ênfases atendendo a abrangência
definidas, principalmente, por dois da área e as inúmeras possibilidades
artigos: de avanço do conhecimento e ação
“Art. 11: Parágrafo 1º. A defi- psicológicos.” Tentaremos explorar
nição das ênfases curriculares, no exatamente essa possibilidade de
projeto do curso, envolverá um abertura que o parecer nos apresen-
subconjunto de competências e ta. Antes, porém, apresentaremos
habilidades dentre aquelas que nossa compreensão das origens das
integram o domínio das competên- ênfases.
cias gerais do psicólogo, compatível Argumentamos que as ênfases
com demandas sociais atuais e/ ou curriculares da Psicologia possuem
potenciais, e com a vocação e con- duas raízes distintas: por um lado,
dições da instituição”. a herança da Psicologia aplicada
“Art. 12 - Os domínios mais con- (Weber e Carraher, 1982; Martins,
solidados de atuação profissional do 1999; Mancebo, 1999), originária

23
24
da Psicologia brasileira, marcada outras áreas) a perspectiva individu-
por uma retórica técnico-científica. alizante e curativa como modelo de
A formação em Psicologia é marca- atuação, orientada para o diagnósti-
da por determinadas características, co e o ajustamento dos indivíduos.
dentre outras, a hegemonia da Isso fica claro desde o início da
Psicologia aplicada (consolidando área, com a fundação do primeiro
uma perspectiva tecnicista, com laboratório de Psicologia Aplicada à
especialização precoce e fragmen- Educação no Brasil, o Pedagogium,
tação da formação) e centrada em instituído no Rio de Janeiro, em
uma perspectiva individualizante 1890, e do laboratório da Escola
enquanto modelo de atuação. Essa Normal de São Paulo, inaugurado
perspectiva individualizante inicia- em 1914. Contribuiu para isso, tam-
se, num primeiro momento, na bém, o rápido desenvolvimento do
escola, depois se expande para as ensino da Psicologia nos programas
fábricas e para o universo do traba- do ginásio nacional e das escolas
lho e consolida-se na clínica. normais (Brozek e Massimi, 1998).
A outra raiz é oriunda das estra- Na área da Psicologia Organiza-
tégias e lógicas neoliberais, presen- cional, a atuação dos psicologistas
tificadas por meio das chamadas (como inicialmente eram chamados
habilitações no debate sobre a os profissionais psi), sempre foi
formação em Psicologia (Bernardes, orientada para funções de recruta-
2004). Ao final da década de 1990, mento, seleção, orientação e treina-
essas duas raízes se encontram nos mento de pessoal para a crescente
primeiros debates e documentos indústria brasileira (vale lembrar a
das diretrizes curriculares. mudança na matriz econômica no
Na compreensão da primeira país, durante a década de 1930, de
raiz das ênfases, argumenta-se que uma base agrária para industrial) as-
a Psicologia aplicada é, em grande sim como para a abertura de postos
parte, responsável pela fragmenta- públicos de trabalho.
ção da formação em Psicologia em Exemplar disso é a afirmação
distintas áreas (Psicologia Clínica, de Mancebo sobre o Instituto de
Psicologia Escolar, Psicologia Orga- Seleção e Orientação Profissional
nizacional etc). (ISOP), ao argumentar que foi re-
Segundo Patto (1984), na esfera ferencial para muitos profissionais.
da Psicologia Educacional, destaca- Para ela, o ISOP:
se (embora possa ser estendida para Com suas práticas, difundiram a
profissão, divulgaram-na, construí- Lei n° 3.825, de 1958, (primeiro
ram o clima necessário à regulamen- projeto a ingressar no Congresso
tação da Psicologia e imprimiram Nacional visando a regulamentar a
sua marca na Lei que regulamentou Psicologia como profissão) ao falar
a profissão de psicólogo (Mancebo, das funções do psicologista, diz o
1999, p. 100). seguinte:
A influência da Psicologia Não poderão os licenciados de
aplicada na regulamentação da uma ou outra modalidade (da Psi-
profissão e na formação é também cologia) responder pela organização
destacada por Martins: e direção de serviços de Psicologia
O primeiro anteprojeto de clínica, os quais requerem a direção
profissionalização foi criado pelo de médico devidamente capacitado;
ISOP e pela Associação Brasileira de poderão, entretanto, nesses servi-
Psicotécnica, dos quais Mira y López ços, exercer funções de assistentes
era diretor e secretário geral, respec- técnicos.
tivamente. A presença dos psico- Os psicólogos, dessa forma, ao
técnicos nos mais variados setores encontrar brechas na legislação da
da vida pública nacional acarretou época para exercer, como profissio-
a necessidade de se estabelecer nais liberais, a Psicologia Clínica, o
algum mecanismo que normalizasse fazem dando continuidade ao mo-
a proliferação desses profissionais delo de atuação individualizante,
(Martins, 1999, p. 305). hegemônico até então no país, por
Em relação à clínica, o exercício meio da Psicologia Aplicada. Con-
clínico entre os psicólogos sempre figura-se aí, portanto, um processo
teve seus limites claramente esta- que reduz clínica à relação dual
belecidos6: o psicólogo, historica- (em determinado setting asséptico e
mente, foi concebido como auxiliar influenciado pelas escolas teóricas
do médico, podendo, no máximo, norte-americanas) e vincula-o a
exercer funções de orientação e certas concepções de Psicoterapia.
acompanhamento clínico. Funções A clínica naturaliza-se e inicia um
ou exercícios vinculados a cargos processo de psicologização das re-
de direção de estabelecimentos e lações cotidianas, a cultura psi, que
instituições de saúde eram exclusi- terá duras conseqüências para a
vos da classe médica. Como exem- Psicologia (visto seu aproveitamento
plo, a disputa com a Medicina, que, pela ditadura militar), como pode-
no art. 11, inciso III, do Projeto de mos ver nos trabalhos de Coimbra
6
Tentativas de limites e proibições que ainda perduram: vide o Parecer
Alcântara-Cabernite (1973), o Projeto Julianelli (1980), e, atualmente, o
conhecido Ato Médico (Projeto de Lei Substitutivo n° 25/2002).

25
26
(1995) e Figueira (1988), dentre de atuação que se encontram na
outros. formação (Psicologia Clínica, Psico-
Mas, retornando à nossa ques- logia Escolar e Psicologia Organi-
tão central, a formação em Psicolo- zacional, principalmente), divisão
gia no Brasil é originária da Psicolo- que pode cristalizar-se e renovar-se,
gia Aplicada, que se consolidou nas atualmente, com o conceito de
três áreas tradicionalmente institu- ênfases curriculares. A maioria dos
ídas: Psicologia Escolar, Psicologia cursos de Psicologia no país adota,
Organizacional (ou do Trabalho) e desde a implantação do currículo
Psicologia Clínica. A instituciona- mínimo, a divisão oriunda da Psico-
lização desse processo está na lei logia Aplicada. Assim, corremos o
n. 4.119/62, que regulamenta a risco de ver as reformas curriculares
profissão do psicólogo. Ali, o art. 16 substituírem “Psicologia Clínica” por
apresenta que: “As faculdades que “Psicologia e Processos Clínicos”;
mantiverem cursos de psicólogo “Psicologia Escolar” por “Psicologia
deverão organizar serviços clínicos e Processos Educativos” etc.
e de aplicação à educação e ao Reduzir as ênfases às áreas da
trabalho (...)”. Psicologia Aplicada é dar um passo
Esse processo de fragmentação atrás. Isso em um duplo sentido:
da Psicologia ainda se encontra primeiro se estabelece o continuís-
em franca expansão. Atualmente, mo como princípio organizador da
são inúmeras as especialidades da reforma. Aí, perguntamos: o que
Psicologia. Esse processo estabelece iremos reformar? Se o eixo principal
repercussões diretas na graduação da reforma não se modifica... Em
em Psicologia, por exemplo, os cur- segundo, a diferença entre a matriz
rículos recortados e “entupidos” de formativa anterior e a nova é que,
tantas disciplinas de distintas áreas em boa parte dos cursos, os alunos
quanto a formação dos professores percorriam as três áreas distintas,
permite, disciplinas sem nenhuma, configurando sua formação dessa
ou pouca, proposta de articulação maneira. Com o novo modelo,
entre si e isoladas da proposta polí- o curso pode manter as distintas
tico-pedagógica do curso. aplicações, e o aluno opta por uma
Mas, ao naturalizar e cristalizar delas, reduzindo sua participação
o fenômeno da Psicologia Apli- e vivência no processo de forma-
cada, a retórica técnico-científica ção. As ênfases podem provocar a
transforma em inevitáveis as áreas radicalização da especialização da
6
Qualifica como exclusivamente dos médicos várias atividades relacionadas à saúde e subordina a maioria das profis-
sões da saúde à Medicina.
formação em Psicologia já na gradu- Além de tornar os cursos mais
ação. Em termos de formação, isso baratos7, as distintas habilitações
representaria o que Certeau (1996) eram preocupações de alguns
caracteriza como o empobrecimen- profissionais psicólogos acadêmi-
to da experiência, tão comum no cos que trabalhavam no campo da
cotidiano, ao se referir aos limites pesquisa. Dessa forma, poderiam,
impostos às pessoas em função de rapidamente, dar conta de suprir
políticas neoliberais, seja no campo a lacuna da pesquisa psicológica
do trabalho, seja no da educação. no país, por isso o bacharelado em
Outra fragmentação a ser Psicologia ser uma habilitação com
superada origina-se de uma certa carga horária menor que em relação
lógica liberal. Diz respeito às antigas à formação de psicólogos.
habilitações: bacharéis, licenciados Atualmente, apesar de não
e psicólogos. A Lei nº 4.119/62 e haver mais referências diretas (com
a Resolução de 19/12/1962, que exceção de que a licenciatura em
definem o currículo mínimo para Psicologia será remetida às diretri-
os cursos de Psicologia, são claras: zes das licenciaturas), é aqui que
existem três cursos de Psicologia: as duas raízes se encontram: a
bacharel, licenciado e formação do estratégia neoliberal (das habilita-
psicólogo. Em 1977, com o parecer ções) encontra-se com a retórica da
n. 12/77, do antigo Conselho Fede- Psicologia Aplicada (fragmentação
ral de Educação (contrariamente ao da Psicologia) por meio das ênfases
parecer do ano anterior, nº 1.677/ curriculares. É comum não somente
76), os distintos cursos são forjada- percebermos que os cursos estão
mente interpretados como habilita- provocando um certo continuísmo
ções. A implicação disso é que, des- no perfil formativo do psicólogo ao
sa forma, possibilitava-se a criação reeditar as áreas tradicionais, mas
de cursos mais curtos e baratos por também escutarmos as tentativas de
parte das universidades particulares. construção de ênfases em pesquisa.
O contexto de aprovação desse pa- Aliás, o próprio documento deixa
recer coincide com o momento do isso claro, quando relaciona como
boom das universidades particulares sugestão de ênfase em primeiro
no país. Vale lembrar que o número lugar a “Psicologia e os processos
de cursos de Psicologia durante a de investigação científica”. Será que
década de 1970, no Brasil, cresceu pesquisa é algo a ser deixado para a
assustadoramente. ênfase? Isso implica o fato de que o
7
É importante deixar claro que defendemos o ensino público, gratuito e de
qualidade. Tornar os cursos mais baratos é uma estratégia de mercantiliza-
ção da educação e que nem sempre é associada à qualidade na formação.

27
28
psicólogo que não fizer essa ênfase atuação. Também não trabalhamos
não será um pesquisador? E aquele com definições para formação gene-
que fizer essa ênfase não poderá ser ralista que estabelece a possibilidade
um psicólogo, no sentido estrito do de o profissional atuar em distintas
termo? Por que ainda a manutenção áreas ou campos, recolhendo um
dessas fragmentações? pouquinho da experiência de cada
Trata-se, portanto, da reedição uma delas; tampouco como um
da lógica das habilitações no inte- profissional eclético, que conhece
rior das ênfases. Os processos de um pouco de cada coisa, estabele-
pesquisa são importantes e devem cendo vôos panorâmicos pelas esco-
estar presentes no núcleo comum e las psicológicas; menos ainda aquele
serem estendidos para todas as ên- que fica com sua formação somente
fases. O abandono da idéia de que no núcleo comum... Formação bási-
formaremos um psicólogo ou um ca é outra coisa.
pesquisador ainda é um dos maiores São muitos os sentidos produ-
entraves nos processos de reforma zidos para definir formação gene-
curricular. Queremos um psicólo- ralista. Não pretendemos elaborar
go pesquisador e um pesquisador uma definição única, mas contribuir
psicólogo simultaneamente. com novos sentidos que talvez
Assim, como superar essas duas falem mais das possibilidades de
fragmentações: das áreas clássicas a Psicologia brasileira articular-se
oriundas da Psicologia Aplicada e visceralmente com seus contextos e
das habilitações oriundas da lógica poder trabalhar a favor de um plano
liberal? Como superá-las traba- civilizatório mais humano, solidário
lhando com uma perspectiva que e ético.
almeja uma formação generalista? Como afirma Eizerik: “Não é o
Como trabalhar com uma formação lugar que define a postura de um
generalista por meio das chamadas profissional - embora nem todos
ênfases curriculares? pensem assim - é antes a capaci-
Essas respostas são construções dade de refletir criticamente sobre
coletivas, dialógicas e de longo teorias, métodos e práticas, avalian-
prazo, mas algumas pequenas ques- do resultados e pensando acerca das
tões estão mais claras: trabalhamos necessidades do país em que nos
com uma concepção de formação encontramos” (Eizerik, 1988, p.33).
generalista que não se reduz à área Preferimos trabalhar no sentido
de conhecimento ou ao campo de de que formação generalista diga
respeito ao perfil do pensamento ênfases por meio de um processo
crítico e de levar em conta a com- lingüístico, o oxímoro, que é a figura
plexidade do que chamamos de de linguagem em que se combinam
realidade. Trata-se de uma moda- palavras de sentido oposto que pa-
lidade de formação que permite a recem excluir-se mutuamente, mas
articulação de distintos temas oriun- que, no contexto, reforçam a expres-
dos das áreas clássicas, indepen- são, ou seja, é a junção de termos
dentemente do local de atuação ou contraditórios entre si; por exemplo,
do referencial teórico utilizado pelo “pensar o impensável” ou “comparar
profissional, mas sempre sensível ao o incomparável”. Assim, no campo
seu contexto. da formação em Psicologia, como
Em uma escola (campo de construir uma ênfase ampla?
atuação), por exemplo, várias áreas Na tentativa de construção de
estão presentes e não somente a uma ênfase ampla, é necessária a
Psicologia Escolar: Psicologia Clí- ruptura com a retórica técnico-cien-
nica, Psicologia Organizacional tífica e também com as demandas
ou do Trabalho, Psicologia Social, neoliberais. Não se deseja mais um
Psicologia Comunitária, Psicologia psicólogo pela metade, fragmenta-
jurídica, Psicologia do Esporte etc. do, reduzido a concepções psicolo-
As possibilidades são infinitas. Mas gicistas. O processo de adjetivação
podemos avançar, pois as articula- da Psicologia (Psicologia Clínica,
ções não são entre as áreas, e, sim, Psicologia Escolar, Psicologia Orga-
entre o que deriva delas: sofrimen- nizacional etc) não sustenta mais a
to, processos e relações de trabalho, formação na graduação. As ênfases
relações comunitárias, familiares não podem ser reduzidas às áreas
etc. É uma concepção de formação de conhecimento, tampouco aos
generalista, portanto, que rompe campos de atuação; também não
com a fragmentação da Psicologia. podem ser reduzidas quando de sua
É aquela que consegue dar conta da materialização em um estágio ou a
complexidade que é a articulação uma ou outra disciplina.
entre os distintos temas ou questões Para a construção de ênfases
que derivam de um campo ou área amplas, sugerimos a construção de
qualquer. ênfases substantivas, por exemplo:
Mas, como fica isso quando saúde. Não se trata da Psicologia da
tratamos da implantação de ênfases saúde, mas saúde enquanto substan-
curriculares? Podemos pensar as tivo. O processo de substantivar as

29
30
ênfases se dá por meio de questões põem um curso ou uma ênfase?
centrais na vida em sociedade; no Talvez, para isso, a premissa
caso do exemplo saúde, é estabele- sugerida por Ibáñez (2001) seja
cer articulações com os processo de necessária: que “los criterios que
saúde e adoecimento das pessoas, definen la utilidad de la Psicología
os processos de ensino-aprendiza- son criterios que no pueden estar
gem, as novas tecnologias, as redes en manos de los psicólogos sino que
de atenção, as comunidades, o pertenecen a un debate donde lo
consumo, a diversidade organizacio- que está en juego son las opciones
nal, a gestão do trabalho, o traba- éticas, normativas y políticas de la
lho formal e o informal, o trabalho población” (Ibañez, 2001, p. 245).
infantil etc. Sua sugestão é abrir a Psicologia a la
Ainda como desafios para os irrupción de la gente. Aí, qualquer
cursos na construção da reforma em lógica corporativa, seja nos espaços
geral e, em especial, das ênfases, acadêmicos seja nos espaços profis-
outras indagações são importantes: sionais, cai por terra.
que demandas focam a existência Vale lembrar que o argumento
desse curso? Qual é a história da de Ibáñez já era defendido por bra-
região e do curso? Que profissio- sileiros durante a década de 1980,
nal está sendo formado para essas como, por exemplo, por Carvalho,
demandas? Que perfil formativo é o quando afirma que:
mais interessante no atendimento/ É necessário criar mais canais
transformação dessas demandas? A de retroalimentação para os cursos:
que visam os cursos? Que proposta tornar o contato entre o curso e a
político-pedagógica está aí cons- sociedade mais concreto e mais dire-
truída? Trata-se de uma proposta to (não depender apenas de leis, por
construída coletivamente? exemplo). Acho que isso pode ser
Enfim, que vocações (vozes, no feito de várias formas: pelo contato
sentido bakthiniano) compõem esse com condições concretas em que
curso? Que diferentes posições e psicólogos estão atuando, principal-
negociações (no campo político) são mente aquelas que, de alguma for-
engendradas na composição dos ma, fujam às atuações convencionais
cursos? Vale lembrar que a palavra e representem uma expansão nas
ênfase vem do latim emphàsis,is, e modalidades de atuação; pela pes-
significa “força enunciativa”; portan- quisa sobre necessidades que efetiva-
to, que enunciados ou vozes com- mente poderiam ser atendidas pelos
psicólogos, e desenvolvimento de de, é o cidadão o único responsável
instrumentos para esse atendimento, pela sua própria miséria; na clínica,
e até pela simples conscientização é o sujeito o único responsável por
dos alunos sobre as relações entre a seu sofrimento etc. Em suma, é um
profissão e a sociedade (Carvalho, conceito que naturaliza as relações
1982, pp. 16-17). depositando no indivíduo a respon-
Dessa forma, a construção de sabilidade pelos acontecimentos.
ênfases amplas, substantivas e, por- No campo da formação, trata-se
tanto, temáticas pode ser um bom de um conceito que foi, diríamos,
caminho, um caminho que rompe psicologizado. Centrado no indi-
com a lógica da Psicologia aplicada víduo, marcado em seu corpo (ou
e com as estratégias neoliberais. As psiquismo), qualifica-o ou não para
políticas públicas, em geral, apresen- um determinado saber-fazer. Retira-
tam temas que podem ser explora- se, portanto, o caráter político da
dos nessa perspectiva. Os princípios formação, creditando exclusividade
do SUS, por exemplo, estabelecem ao indivíduo pela responsabilidade
uma excelente oportunidade para da formação. Esse posicionamento
as rupturas que se desejam, como reforça o caráter tecnicista marcante
veremos mais adiante. na formação em Psicologia. Afas-
ta o psicólogo do campo político,
b) Currículo por competências: dialógico e crítico. Retira-se, dessa
A questão central das competên- forma, a possibilidade de realização
cias é que elas podem acirrar o dis- de leituras que levem em conta a
curso individualizante na Psicologia, complexidade disso que chamamos
ou seja, a noção de competências realidade.
compreendida como capacidades, Presenciamos, dessa forma, uma
habilidades ou atitudes do indivíduo sobrevalorização do indivíduo que,
aprofunda a lógica de que os suces- simultaneamente, resgata e repo-
sos e os fracassos são de exclusiva tencializa os ideais liberais. Uma
responsabilidade do próprio indi- implicação imediata disso para a
víduo. Nesse sentido, na escola, a Psicologia é que os objetos que
criança fica como única responsável compõem a realidade psicológica
pelo fracasso escolar; no universo são lidos como originários de uma
do trabalho, é o trabalhador o res- suposta natureza humana, nas quais
ponsável pelo adoecimento ou pelo já estariam naturalmente preestabe-
acidente do trabalho; na comunida- lecidos. Podemos perder, por exem-

31
32
plo, a possibilidade de, no debate terização de um professor de “com-
atual sobre formação em Psicologia, petências” (Machado, 2002, p, 139).
competências e habilidades não se- O desafio é claro: como pode-
rem compreendidos como conceitos mos dar significado, de outras for-
derivados de relações dialógicas. mas, ao que venha a ser competên-
Boa parte dos sentidos produ- cia? Como produzir outros sentidos
zidos para designar competências que possam tornar complexas as
deriva das chamadas pedagogias relações de ensino-aprendizagem e
pedagógicas (Varela, 1991). A lógica proporcionar uma leitura crítica da
dos currículos por competência, relação entre cultura e formação?
quando competência é reduzida Como podemos desnaturalizar esse
às pedagogias psicológicas, possui, conceito?
por conseqüência, a permanên- Propomos que a construção
cia da lógica conteudista herdada do perfil formativo por meio das
do currículo mínimo. Bernardes competências leve em consideração
(2004) argumenta que o repertório uma perspectiva etnometodológica,
lingüístico utilizado para o debate ou seja, uma proposta de pensar
sobre a formação em Psicologia “competência” como uma relação
modificou-se ao longo dos tempos dialógica, um processo de reflexão
(principalmente após a entrada da compartilhado, em que várias ques-
nova LDB, em 1996), porém seus tões estão em jogo: a compreensão
sentidos permaneceram os mesmos, dos percursos realizados pelos alu-
ocorrendo uma substituição na nos e alunas; a busca de interven-
seguinte ordem: “matérias” foram ções pedagógicas favoráveis à apren-
substituídas por “competências”; dizagem de todos; a compreensão
“disciplinas”, por “habilidades”; da sala de aula como um espaço
“ética”, por “atitudes e condutas”; dialógico; a reflexão constante sobre
“conteúdos”, por “conhecimentos”; o cotidiano; a realização de traba-
ou seja, a lógica disciplinar é ainda a lhos coletivos e solidários; o saber
sustentadora das relações de ensino- e o não saber como simultâneos e
aprendizagem. Segundo Machado: complementares; a busca da dife-
A organização da escola é, e con- rença em função do enriquecimento
tinuará a ser, marcadamente discipli- do processo de ensino-aprendi-
nar; os professores são, e continuarão zagem; a negociação cotidiana; a
a ser, professores de disciplinas, não memória das instituições envolvidas
havendo qualquer sentido na carac- e seus contextos; a possibilidade de
construção de projetos coletivos de formação, definido por um conjun-
ação em âmbito político e social, to de competências, habilidades e
etc. A idéia é ampliarmos o conceito conhecimentos.
para uma competência relacional Art. 7º - O núcleo comum da
ou, em outros termos, uma compe- formação em Psicologia estabelece
tência dialógica, e não reduzi-la a uma base homogênea para a for-
uma lista de capacidades individuais mação no país e uma capacitação
e psicológicas (habilidades), mas dar básica para lidar com os conteúdos
condições para a dialogia e, a partir da Psicologia, enquanto campo de
daí, perguntar o que, na proposta conhecimento e de atuação.
político-pedagógica do curso, pode- Justificando a introdução da
mos avançar para garantir as condi- noção de núcleo comum nas dire-
ções de dialogia. trizes, a Resolução nº 0062/2004
Por exemplo, ao definirmos as afirma que:
competências para o trabalho po- “A identidade do curso de
líticas públicas em saúde, é impor- Psicologia no País, por sua vez, é
tante que tais definições se dêem a garantida por um núcleo comum,
partir do diálogo entre professores, que assegura uma base homogênea
supervisores acadêmicos, alunos, para a formação e para a capacita-
representantes do curso, superviso- ção para apreender e lidar com os
res locais, trabalhadores, usuários conhecimentos da área.
e familiares daquele campo em O núcleo comum é definido
especial. Não se trata mais de uma por um conjunto de competências
competência circunscrita a um feixe básicas que se reportam a desempe-
de habilidades que o aluno possa vir nhos e atuações iniciais requeridas
a desenvolver, mas de ressignificar o do formando em Psicologia e visam
próprio sentido de competência e, a garantir ao profissional o domínio
por conseguinte, da formação. de conhecimentos psicológicos e a
capacidade de utilizá-los em dife-
c) Núcleo comum: rentes contextos que demandam
Dois artigos tentam definir o a investigação, análise, avaliação,
núcleo comum nas diretrizes curri- prevenção e intervenção em proces-
culares; são eles: sos psicológicos”.
Art. 6º - A identidade do curso A primeira questão, portan-
de Psicologia, no país, é conferida to, parece ser não reduzir núcleo
através de um núcleo comum de comum a conteúdos básicos. Os

33
34
conteúdos básicos são parte da São apresentados, a partir daí,
trajetória do aluno em seu curso e seis eixos estruturantes:
fazem parte do núcleo, mas não se . Fundamentos epistemológicos e
encerram nele. Talvez seja interes- históricos;
sante trabalhar núcleo comum como . Fundamentos teórico-metodo-
um acordo, no campo dialógico, lógicos;
entre distintos cursos do país ou de . Procedimentos para a investiga-
uma determinada região. Ganha ção científica e a prática profissional;
relevo, assim, o campo político para . Fenômenos e processos psico-
a constituição da formação. lógicos;
Dessa forma, temos também a . Interfaces com campos afins do
possibilidade de articulações entre conhecimento;
distintos cursos em uma mesma . Práticas profissionais.
região ou localidade. Esse diálogo é
fundamental e aqui há um grande O trabalho com os eixos pos-
espaço de trabalho entre os repre- sibilita construir a estrutura e a
sentantes dos cursos e entidades organização curricular, com pos-
como a ABEP. sibilidade de escapar da lógica
disciplinar. O curso pode, a partir
d) Eixos estruturantes: daí, ser pensado de várias formas,
Assim como o núcleo comum, por exemplo, lógicas modulares
os eixos também são diferenciais das atravessando e sustentando toda a
diretrizes em relação às propostas proposta curricular.
educacionais anteriores. A idéia é que os eixos sejam
As diretrizes definem os eixos transversais ao curso, estabelecendo
estruturantes como: articulações horizontais entre os mó-
“Tais eixos têm por finalidade dulos ou disciplinas e articulações
garantir a congruência dos cursos, verticais entre o núcleo comum e as
que devem explicitar seus pressu- ênfases.
postos e fundamentos epistemológi-
cos e históricos, teórico-metodoló- 3) Algumas possibilidades
gicos, de procedimentos, interfaces de articulações entre o SUS e os
e práticas e garantir a assimilação cursos de Psicologia.
de conhecimentos já sedimentados Esse segundo tópico problema-
no campo da Psicologia” (Parecer n° tiza algumas possibilidades (ou não)
0062/2004, p. 2). de articulações entre os princípios
do SUS e os cursos de Psicologia. usuários, gestores dos serviços de
Vale lembrar que jamais (ou pouco) saúde, conselhos, sindicatos, etc.
a formação em Psicologia orien- Uma das possibilidades de
tou-se para as políticas públicas. Ao articulações, nesse momento, se dá
contrário, a formação orientou-se (e por meio de experiências locais,
ainda se orienta) para produzir um regionais, específicas e pontuais que,
profissional liberal e para estabelecer interligadas com outras, constru-
relações de privatizações com os am uma rede de diálogos e ações,
espaços públicos - vide o que ocorre ampliando-se cada vez mais, com
em grande parte das clínicas-escola experiências que sejam reflexivas,
nos cursos de Psicologia, em que, críticas e que possam romper com
além de existirem profissionais que alguns mitos relacionados à produ-
pouco contato ou interesse possuem ção de conhecimento psicológico,
com as políticas públicas, são isola- por exemplo, o próprio lugar da Psi-
das dos cursos e distantes de suas cologia tendo o significado de uma
propostas político-pedagógicas. prática social como qualquer outra
O documento das diretrizes cur- e a problematização de seus usos
riculares possui algumas potências e efeitos no cotidiano. Uma dessas
que podem ser bem exploradas, por discussões pode ser pela problemati-
exemplo, abre margens para possí- zação do que venha a ser a clínica.
veis cursos de Psicologia com ênfases Em nosso entendimento, a aca-
curriculares em questões derivadas demia está muito distante de preo-
de políticas públicas. Para que isso cupações com essa articulação. Em
ocorra, claro, não basta somente a contrapartida, parece que o Ministé-
inclusão de uma ou outra discipli- rio da Saúde começou a movimen-
na na grade curricular do curso. A tar-se ao afirmar querer chegar à:
articulação entre a formação em “Construção de relações de
Psicologia e as políticas públicas cooperação entre o SUS e as institui-
poderia, nesse sentido, ser orgânica ções formadoras, o que deve resultar
e perpassar toda a proposta pedagó- em melhor integração dos serviços,
gica dos cursos de Psicologia, estar maior produção de conhecimento
diretamente vinculada às próprias dirigida às necessidades do sistema
diretrizes curriculares. Para que e, sobretudo, intensificação dos
isso ocorra, não basta a mobiliza- processos de mudança na formação
ção entre professores e alunos, mas de graduação dos profissionais de
também entre supervisores locais, saúde.”8
8
Documento coletado em 03/09/2004 no site: http://portal.saude.gov.br/
saude/area.cfm?id_area=386

35
36
Já o documento “Políticas de integralidade. Esse conjunto realiza
Formação e Desenvolvimento para duras críticas à fragmentação da
o SUS: caminhos para a educação Medicina e ao seu reducionismo
permanente em saúde”, da Secre- biologicista. Estabelece, a partir daí,
taria de Gestão do Trabalho e da uma perspectiva de que tanto a frag-
Educação na Saúde e do Depar- mentação quanto o reducionismo
tamento de Gestão da Educação são conseqüências da formação a
na Saúde, do Ministério da Saúde, que os profissionais em saúde são
propõe como metas nas mudanças submetidos.
dos cursos de graduação as seguin- Esse conjunto delimita a integra-
tes questões: lidade como quase exclusivamente
- Desenvolver a orientação ao centrada a uma atitude do profis-
Sistema Único de Saúde e a pers- sional da saúde, que poderia ser
pectiva da multiprofissionalidade e trabalhada no período de formação
transdisciplinaridade sob o conceito do sujeito. É a atitude dos médi-
de clínica ampliada de saúde (o tra- cos de não reduzir o paciente ao
balho em equipe e a integralidade da aparelho ou sistema biológico que,
atenção à saúde) (grifos nossos). supostamente, produz o sofrimento.
Os pontos convergentes en- Essa atitude, para esse conjunto de
tre uma formação generalista e o sentidos de integralidade, deveria
princípio da integralidade do SUS ser produzida nas escolas médicas.
são apresentados tomando por (Mattos, 2001).
base o trabalho de Mattos (2006). Ora, no caso da formação em
O autor, em busca de uma defini- Psicologia, a fragmentação do saber
ção para integralidade, argumenta em áreas de conhecimento autô-
que esse conceito é polissêmico, nomas e distintas produz efeitos
pleno de sentidos os mais diversos, próximos. Os reducionismos psico-
sem uma definição única, mas com logicistas, depositando no indivíduo
uma proposta política claramente a responsabilidade por todos os
estabelecida. acontecimentos da vida, são pen-
Mattos (2001) traz, ao menos, samento corrente em nossa área, e,
um conjunto de sentidos distintos por fim, a crítica de que esses pro-
para a compreensão do conceito blemas são originários da formação,
de integralidade: o primeiro con- já é lugar comum.
junto é oriundo do leque que vai O segundo conjunto vem da
da Medicina integral à prática da saúde coletiva e estabelece um
novo foco para críticas: descentra equipe de saúde e de seus processos
a questão da formação, ou curricu- de trabalho (Mattos, 2001).
lar, e orienta-se para as relações de Há ainda, um terceiro conjun-
trabalho. São elas que devem ser to de sentidos para integralidade.
modificadas, pois a prática médica Trata-se de determinadas configu-
está calcada em um modelo liberal rações de políticas específicas que
de atuação, e presenciamos, cada tentam dar conta de um problema
vez mais, o assalariamento dos de saúde em especial. Geralmente,
médicos. são respostas governamentais aos
Outro foco problematizado pela problemas de saúde. São as políticas
saúde coletiva é a crescente medi- especiais, cuja característica prin-
calização da sociedade, sustentada cipal é não reduzir os sujeitos de
principalmente pela racionalidade suas políticas a objetos descontex-
médica. Para além de provocar o tualizados. O movimento feminista
afastamento entre a saúde coletiva e foi um dos principais organizadores
a Medicina, essas questões tornaram dessa perspectiva, pois recusava-se
mais complexas o conceito de inte- a reduzir as políticas de atenção à
gralidade, trazendo para dentro das saúde da mulher a um conjunto de
práticas de saúde o foco da questão. órgãos ou sistemas característicos do
Em outras palavras, a fragmentação sexo em questão.
e o reducionismo não são originários A partir desses conjuntos, a inte-
somente das escolas profissionais gralidade, portanto, passa a ser não
mas também da própria forma como somente uma questão de formação,
se organizam as relações de trabalho mas um modo de organização do
entre os profissionais. trabalho que busca uma apreensão
Assim, por enquanto, o concei- ampliada das relações entre saúde
to de integralidade varia de uma e doença, ou seja, a integralidade
atitude de certos profissionais à emerge como um princípio organi-
marca da prática profissional. Mattos zador do processo de trabalho nos
propõe a articulação entre as distin- serviços de saúde e da ampliação
tas concepções, pois, para o autor, a das possibilidades de apreensão das
postura dos profissionais é algo fun- necessidades de saúde da popula-
damental para a integralidade, mas, ção. Nesse sentido, Mattos (2004;
em muitas situações, a integralidade 2001) argumenta que a relação
só se realizará com incorporações dialógica é princípio básico para o
ou redefinições mais radicais da exercício da integralidade.

37
38
Resumidamente, Mattos (2001), supervisores dos cursos? Os profis-
ao estabelecer pontos comuns para sionais da rede de atenção à saúde
os vários sentidos de integralidade, participam das reformas nos cursos?
propõe pensarmos como uma impli- São convidados?
cação a recusa à fragmentação e ao Acreditamos que, pelo caminho
reducionismo, recusa à objetificação da formação, a questão seja res-
dos sujeitos e uma afirmação para a pondida em parte, ou seja, recusa à
abertura ao diálogo. fragmentação do saber psicológico,
Ampliando a questão para a recusa ao reducionismo psicologicis-
Psicologia, o que nós, psicólogos, te- ta, individualizante e objetificador,
mos a oferecer às políticas públicas ampliação das possibilidades de
em geral e às de saúde em particu- modos de atuação que não somente
lar? Claro, não há possibilidade de as centradas no profissional liberal,
pensarmos as reformas curriculares abertura e sensibilidade às compe-
de forma isolada ou afastada das tências e relações dialógicas. Dessa
práticas dos profissionais em Psico- forma, acreditamos que os sentidos
logia da rede de saúde. Ora, boa de formação generalista possam ser
parte dos locais de estágios dos cur- minimamente articulados aos prin-
sos de Psicologia dá-se exatamente cípios do SUS e, em especial, ao de
na rede pública de saúde! Claro, a integralidade.
relação ainda é quase exclusivamen-
te locatária dos cursos em relação
às instituições, mas, independente-
mente disso, como é organizado o
exercício de estágio com os alunos?
Que possibilidades de organiza-
ção de processos articuladores de
teorias e práticas existem aí? Que
compromissos são estabelecidos?
Que acompanhamentos existem?
Como é a relação com os superviso-
res locais (quando existem) com os
alunos? E essa mesma relação com
a equipe profissional da instituição?
Como são os contatos e trabalhos
conjuntos com os professores e
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As inquietudes do financiamento da Seguri-
dade Social e o SUS

Áquilas Mendes9 brasileira presenciou uma trajetória


em que a área social manteve-se
As grandes conquistas da política refém da econômica, sofrendo a
social existente no Brasil - o Sistema redução de um sistema de proteção
Único de Saúde (SUS), a Previdên- social inspirado no princípio da uni-
cia Social Pública, o Seguro Desem- versalidade e na solidariedade entre
prego e o Benefício de Prestação as áreas que integram a seguridade.
Continuada (BPC), concedido pela O objetivo deste artigo é recons-
assistência social ao idoso de baixa truir o processo de institucionali-
renda e aos portadores de deficiên- zação do financiamento do SUS e
cia - são herança direta da demo- destacar os conflitos existentes com
cratização do país e da chamada a política econômica dos anos 1990
Constituição Cidadã. Todas elas e 200010. O artigo está dividido em
fazem parte da Seguridade Social, duas partes. A primeira parte aborda
desenho institucional da proteção o percurso em que, ao longo dos 17
social brasileira. anos de institucionalização do SUS,
Para aqueles que vêm acompa- foram afetados a noção e os aspec-
nhando, por exemplo, a institucio- tos da política pública de saúde
nalização do financiamento dessas universal, ancorada nos princípios
políticas, ao longo dos últimos 17 da Seguridade Social consolidados
anos, e suas tensões com a política na Constituição de 1988. A segunda
econômica, têm assistido quase parte destaca os conflitos provoca-
que o abandono, principalmente dos pelo Governo Lula, com ênfase
por parte do Governo Federal, do na forma com que sua equipe eco-
conceito de Seguridade Social, em nômica considera e trata os recursos
geral, e da saúde, em particular, tais da Seguridade Social.
como concebidos na Constituição,
e, por conseqüência, de suas bases 1. O tenso percurso do finan-
de financiamento. Em outras pala- ciamento da Seguridade Social e
vras, trata-se de reconhecer que, ao do SUS
longo desse período, a sociedade No tocante às políticas sociais,
9
Professor de Economia da FAAP/SP, vice-presidente da Associação Brasilei-
ra de Economia da Saúde e coordenador de Gestão de Políticas Públicas
do Centro de Estudos de Pesquisa de Administração Municipal/SP.

41
42
a Constituição de 1988 significou de Formação do Patrimônio do Ser-
uma inflexão no tratamento até vidor Público - PIS/Pasep), o lucro
então concedido pelo Estado. Os líquido das empresas (contribuição
constituintes, certos da necessidade nova introduzida na Constituição,
de se construir caminhos seguros em denominada Contribuição sobre o
relação ao resgate da imensa dívida Lucro Líquido - CLL) e a receita de
social brasileira herdada do regime concursos e prognósticos (loterias).
militar, procuraram instituir, na Cons- Além dessas fontes, a Segurida-
tituição, direitos básicos e universais de Social contaria com recursos
de cidadania, assegurando o direito à de impostos da União, Estados e
saúde pública, definindo o campo da Municípios. Ao mesmo tempo, os
assistência social, regulamentando constituintes preocuparam-se em
o seguro-desemprego e avançando definir que esses recursos fossem
na cobertura da previdência social. exclusivos da proteção social, porém
Essas conquistas foram incorporadas nenhum governo que se seguiu à
em capítulo específico - o da seguri- Constituição de 1988 cumpriu tal
dade social, consolidando a solida- determinação.
riedade entre a saúde, a previdência Também houve a preocupação
e assistência social. em definir que o tratamento dos
Para responder às exigências do recursos da seguridade social não
volume de recursos necessários a poderia ser distinto de seu concei-
esse tipo de proteção social, am- to de proteção, significando que,
pliados no conceito de Seguridade no seu interior, não teria sentido a
Social, e também para tornar o vinculação de recursos. Esperava-se
financiamento menos dependente que, a cada ano, quando da discus-
das variações cíclicas da economia são do orçamento, fosse definida a
(principalmente do emprego junto distribuição do conjunto de receitas
ao mercado formal de trabalho), previstas para as diferentes áreas.
os constituintes definiram que seus A única vinculação prevista ficou
recursos teriam como base várias para os recursos do PIS/Pasep, isso
fontes. Dentre elas, destacam-se: o porque dizem respeito ao programa
salário (contribuições de emprega- seguro-desemprego e ao pagamento
dos e empregadores), o faturamento do abono PIS/Pasep, sendo que 40%
(trazendo para seu interior o Fundo de sua arrecadação são destinados a
de Investimento Social - Finsocial11 empréstimos realizados pelo BNDES
e o Programa de Integração Social e às empresas.
10
Esta parte apóia-se no artigo elaborado por Áquilas Mendes e Rosa Marques (2005).
11
O Finsocial deu lugar, em 1991, à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social(Confins).
Após 17 anos de promulgação de Social não poderiam ser alocados
da Constituição de 1988, não foram para outros fins que não aqueles da
poucos os embates ocorridos no Previdência, da saúde e da assis-
interior da Seguridade Social. Para tência, e que, ao mesmo tempo,
alguns, as tensões havidas na im- não haveria vinculação das fontes
plementação da Seguridade Social aos diferentes ramos12, entre 1989
deixaram claro a impossibilidade de e 2004, isso foi sistematicamente
sua existência administrativa - na desrespeitado.
medida em que a legislação ordiná- O primeiro conflito ocorrera já
ria separou as três áreas - e financei- em 1989, quando o então Finsocial
ra, uma vez que, na prática, ocorreu contribuiu como fonte de recur-
uma progressiva especialização das sos importante para a despesa de
fontes. encargos previdenciários da União,
Em que pesem os vários embates que não integra a Seguridade Social.
provocados pelos constrangimentos Esse desvio de finalidade repetiu-
econômicos, o modelo de Segurida- se em 1990. No final desse ano,
de Social criado demonstrou capa- com a aprovação da Lei Orgânica
cidade de resistência às conjunturas da Saúde, o Governo Federal não
mais problemáticas. O exemplo aplica e desconsidera, no período
maior dessa resistência foi dado pelo posterior, o disposto no art. 55 do
movimento pela universalização da Ato das Disposições Transitórias da
saúde, no seu percurso de constru- Constituição, que assegurava pelo
ção do Sistema Único de Saúde. menos 30% do total dos recursos
A questão financeira da área da da seguridade social para a saúde,
saúde tem sido condicionada pelo com exceção da arrecadação do
tratamento concedido à Previdência PIS/Pasep, de uso exclusivo do FAT.
no interior da Seguridade Social, Mesmo assim, o Ministério da Saúde
de um lado, e, de outro, a política recebeu, em 1991, 33,1% do total
de austeridade fiscal implementada das contribuições. Um ano após,
pelo Governo Federal nas políticas essa participação foi reduzida para
sociais, decorrente de seu objetivo 20,95%.
de promover o equilíbrio orça- O segundo conflito ocorreu em
mentário com elevados superávits 1993, quando o Executivo federal
primários. desrespeitou a Lei de Diretrizes
Embora os constituintes tenham Orçamentárias (LDO), que deter-
definido que os recursos da Segurida- minava o repasse, para a saúde, de
12
Com exceção do PIS/PASEP, que é destinado ao Fundo de Amparo do
Trabalhador (FAT).

43
44
15,5% da arrecadação das contri- ções sobre a folha de salários. Dessa
buições de empregados e empre- forma, o constrangimento financeiro
gadores, obrigando o Ministério assumido pela saúde não encontra-
da Saúde a solicitar cerca de três va paralelo na sua história recente.
empréstimos consecutivos junto ao Na tentativa de encontrar fontes
FAT. A partir, então, desse ano, essas alternativas de recursos, o Conselho
contribuições tornaram-se exclusi- Nacional de Saúde e a Comissão de
vas da área da Previdência, medida Seguridade Social da Câmara busca-
que se legaliza posteriormente na ram soluções transitórias por meio
reforma previdenciária do governo da criação, em 1994, do Imposto
Fernando Henrique Cardoso. Um Provisório sobre a Movimentação Fi-
terceiro e importante embate no nanceira (IPMF). Na prática, essa so-
financiamento do SUS e da Seguri- lução veio vigorar a partir de 1997,
dade Social ocorreu em 1994, com sob a denominação de Contribuição
a criação do Fundo Social de Emer- Provisória sobre a Movimentação
gência (posteriormente denominado Financeira (CPMF). No entanto,
Fundo de Estabilização Fiscal e, o novo volume de recursos da
atualmente, Desvinculação das Re- CPMF no financiamento da saúde,
ceitas da União - DRU), quando foi que alcançou R$ 10,0 bilhões em
definido, entre outros aspectos, que 2003 (IGP-DI/FGV de dezembro de
20% da arrecadação das contribui- 2003), correspondendo a 32,4% do
ções sociais seriam desvinculadas de total das fontes no gasto total do Mi-
sua finalidade e estariam disponíveis nistério da Saúde, foi compensado
para uso do Governo Federal. pela redução das contribuições da
Nesse cenário de deterioração seguridade social - COFINS e CSLL.
da situação financeira da Previdên- Como mencionado anteriormente,
cia, em que a baixa arrecadação trata-se de reconhecer o avanço da
das contribuições sociais era reflexo previdência, como também o uso
do não crescimento da economia, do mecanismo da desvinculação de
com altas taxas de desemprego e o parte dos recursos da Seguridade
crescimento do mercado informal Social.
do trabalho, o setor da Previdência Observa-se, nos anos que se
incorporou como fonte de recursos seguiram, o crescimento dos proble-
os demais recursos que integram a mas financeiros da área da saúde.
Seguridade Social, além de já utili- Três questões explicitam a fragilida-
zar, de forma exclusiva, as contribui- de do esquema de financiamento
do SUS. Em primeiro lugar, nota-se ceito de seguridade social definido
que o gasto líquido – excluindo na Constituição de 1988 e não fosse
a dívida e o gasto com inativos e utilizado o mecanismo de desvincu-
pensionistas – realizado pelo Minis- lação dos 20% do antigo Fundo de
tério da Saúde (MS) entre 1995 e Estabilização Fiscal e atual DRU, o
2003, diminuiu em 7,0%, passando orçamento da Seguridade contaria
de R$ 30,2 bilhões para R$ 28,1 com superávits de R$ 26,64 bilhões
bilhões. Para se ter uma idéia, o (2000), R$ 31,46 bilhões (2001),
gasto federal per capita foi reduzido R$32,96 bilhões (2002), R$ 31,73
de R$ 190,10, em 1995, para R$ bilhões (2003) e R$ 42,53 bilhões
158,90, em 2003, tudo a preços de (2004), todos em valores correntes.
dezembro de 2003 (IGP-DI/FGV)13. Esses recursos excedentes, segundo
Em segundo lugar, verifica-se um a Associação Nacional dos Fiscais da
sistemático crescimento da irre- Previdência, foram alocados no pa-
gularidade no fluxo de execução gamento de gastos fiscais ou conta-
orçamentária do MS, especialmente bilizados diretamente no cálculo do
a partir da segunda metade dos superávit primário (Anfip, 2005).
anos 1990. Por fim, destaca-se um Para se ter uma idéia, a Anfip
aumento significativo do saldo a calcula que, em 2004, a desvin-
pagar da rubrica Restos a Pagar do culação das contribuições sociais
Ministério da Saúde, principalmente (Cofins, CSLL, CPMF) autorizaria o
entre 2001 e 2004, passando de Governo Federal a gastar, fora da Se-
R$ 9,2 milhões para R$ 1,8 bilhões guridade Social, R$ 24,9 bilhões. Os
(dados da Comissão de Orçamento recursos restantes (R$ 17,63 bilhões)
e Finanças, do Conselho Nacional deveriam ser aplicados no sistema.
de Saúde, relativos a julho de 2005). Contudo, essa situação não foi
Se, por um lado, o país atravessa possível de ser verificada. De acor-
um período de retração econômica, do com a Anfip, essa não foi uma
com reflexos negativos no mercado peculiaridade de 2004. Entre 2000
de trabalho, por outro lado essa e 2004, foram utilizados R$ 165
situação não apresenta impacto bilhões da Seguridade Social para
negativo nas contas da Seguridade contribuir com o superávit primário.
Social ao longo dos anos 2000. Logo E o que é pior, desse montante, R$
após o penoso quadro financeiro da 76,84 bilhões teria excedido o limite
década de 1990, caso fosse respei- permitido para desvinculação das
tado pelo Governo Federal o con- contribuições. Dessa forma, a Anfip
13
Dados extraídos de estudo do Ipea; ver Ribeiro et all. (2005).

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46
adverte que, “tendo em vista o total e Waldir Pires, foi formulada em
comprometimento do orçamen- 1993, quando o Ministério da Saúde
to fiscal com as necessidades de solicitou o primeiro empréstimo
financiamento da dívida pública, os junto ao FAT. Depois disso, várias
superávits são alcançados através outras propostas de vinculação
do orçamento da seguridade social” foram elaboradas e discutidas no
(Anfip, 2005, p.31). Congresso Nacional, mas nenhu-
Chama, ainda, a atenção o fato ma delas sustentava a idéia original
de que esse resultado positivo não de vinculação tanto no âmbito das
alterou a posição do Governo Fede- contribuições sociais (30%) como no
ral, que, durante todos esses anos, orçamento de cada nível de gover-
manteve acesa a idéia de defesa no. A última proposta de vinculação
do déficit da Previdência, descon- dos recursos para a saúde restringiu-
siderando, assim, a sua vinculação se aos recursos orçamentários da
ao orçamento da Seguridade So- União, dos estados e municípios,
cial. Interessante observar que essa materializando-se na EC 2914.
atitude contribuiu para a aprovação A Emenda Constitucional nº 29
de reformas na previdência, seja no estabeleceu que estados e municí-
governo FHC seja no governo Lula pios devem alocar, no primeiro ano,
(Marques e Mendes, 2004). pelo menos 7% dessas receitas, sen-
A situação de incerteza e in- do que esse percentual deve cres-
definição dos recursos financeiros cer anualmente até atingir, para os
para a área da saúde levou à busca estados, 12%, no mínimo, em 2004;
de uma solução mais definitiva, e, para os municípios, 15%, no
qual seja: a vinculação dos recursos mínimo. Em relação à União, a EC
orçamentários das três esferas de 29 determina que, para o primeiro
poder. A história de construção de ano, deveria ser aplicado o aporte
uma medida de consenso no âmbito de, pelo menos, 5% em relação ao
da vinculação de recursos levou sete orçamento empenhado do período
anos tramitando pelo Congresso até anterior; para os seguintes, o valor
a aprovação da Emenda Constitu- apurado no ano anterior é corrigi-
cional nº 29 (EC 29), em agosto de do pela variação do PIB nominal.
2000. Cabe ressaltar que, quanto à União,
A primeira Proposta de Emenda a EC 29 não explicita a origem dos
Constitucional (PEC 169), de au- recursos e, em relação à Segurida-
toria dos deputados Eduardo Jorge de Social, foi omissa, como se não
14
Para o conhecimento das propostas de vinculação de recursos para o financiamento da saúde, ver Marques e Mendes
(1999).
houvesse disputa por seus recursos, ções da Cofin/CNS, o valor mínimo
como mencionado anteriormente. da aplicação com ações e serviços
Pode-se perceber, portanto, que de saúde em 2005, levando em
esses conflitos por recursos estavam consideração a última revisão do
presentes antes e após o estabeleci- PIB, deveria ser de R$ 37,1 bilhões,
mento da EC 29. Salienta-se que o enquanto o valor apresentado pelo
texto da emenda deu origem à acir- Ministério da Saúde (atualizado até
rada discussão entre os Ministérios 31.07.2005) foi de R$ 36,5 bilhões,
da Saúde e da Fazenda. Segundo constituindo-se numa diferença a
interpretação do primeiro, o ano- ser suplementada pelo orçamen-
base para efeito da aplicação do to do MS de R$ 641,4 milhões15.
adicional de 5% seria o de 2000, e Convém salientar que ainda há uma
o valor apurado para os demais anos diferença de aplicação de anos ante-
deveria ser sempre o do ano ante- riores, acumulada em R$1,6 bilhão,
rior, ou seja, calculado ano a ano. calculada nos termos da Resolução
Já para o Ministério da Fazenda, o nº 322/2003, do Conselho Nacional
ano-base seria o de 1999, somente de Saúde, a partir de 2000.
acrescido das variações nominais Os conflitos por recursos legal-
do PIB ano a ano. Essa diferença mente determinados pela EC 29
de interpretação teve implicações não se restringem à União. Nos anos
de R$ 1,2 bilhões no orçamento de que se seguiram à promulgação da
2001, o que levaria, por exemplo, Emenda Constitucional, o descum-
a dobrar os recursos do Programa primento, por parte dos estados,
Agentes Comunitários em relação ao tem sido verificado. Em 2003, 16
ano anterior. Sabe-se que a Advoca- estados não cumpriram o mínimo
cia Geral da União (AGU) acatou a exigido pela EC 29. São eles: Alago-
fórmula de cálculo do Ministério da as, Ceará, Maranhão, Paraíba, Per-
Fazenda, porém essa discussão es- nambuco, Piauí, Espírito Santo, Mi-
tende-se pelos anos seguintes, sem nas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná,
uma resolução definitiva. Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Além dos problemas de inter- Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso
pretação do texto, prejudicando o do Sul e Mato Grosso. Isso significa,
financiamento da saúde, a EC 29 para esse ano, o descumprimen-
apresentou também dificuldades no to de R$ 1.782,2 milhões (dados
tocante à sua implementação. Para SIOPS). Contudo, convém lembrar
se ter uma idéia, segundo informa- que, no caso dos estados, esse des-
15
Ressalta-se que, a esses recursos, devem ser acrescidos os valores corres-
pondentes a restos a pagar realizados no período de 2000-2005.

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48
cumprimento vem crescendo ano a o Ministério da Saúde, os estados
ano. Se acrescido ao valor de 2003 e seus tribunais de contas, confor-
o passivo de 2000, 2001 e 2002 (R$ me determinados na Resolução nº
3.622 milhões), o descumprimento 322/2003 do Conselho Nacional de
da EC 29 alcança o montante de R$ Saúde, mencionada anteriormente.
5.404,2 milhões. Os conflitos são perceptíveis, uma
Se somados os valores referentes vez que, mediante “artifícios”, os
ao descumprimento da EC 29 pela estados desconheceram esses parâ-
União e estados, após sua promul- metros e incluíram gastos alheios à
gação, o montante diz respeito a saúde para atingirem sua meta de
cerca de R$ 7,0 bilhões (R$ 1,6 da aplicação.
União e R$ 5,4 dos Estados). Em Para os municípios, tanto das
resumo, pode-se dizer que o finan- capitais como do interior, as infor-
ciamento do SUS continua sendo mações do SIOPS indicam que o
contestado ou colocado em dúvida, cumprimento da EC 29 ao longo
constrangendo a saúde dos cidadãos desses últimos anos tem sido res-
brasileiros. peitado. No ano de aprovação da
Por sua vez, chama a atenção o Emenda (2000), o percentual médio
fato de que, dentre os estados que destinado à saúde foi de 13,64% das
apontaram o cumprimento da EC receitas de impostos e transferên-
29 nos anos aqui indicados, alguns cias constitucionais. Em 2001, esse
deles incluíram, como se fossem percentual passou para 14,71%;
gastos em ações e serviços de saúde, em 2002, atingiu 15,97%; e, em
as despesas com inativos, empresas 2003, 17,58%. Isso demonstra que,
de saneamento, habitação urbana, para os municípios, a vinculação de
recursos hídricos, merenda escolar, recursos não alterou o quadro do
programas de alimentação, hospitais financiamento da saúde.
de “clientela fechada” (como hospi- Entretanto, é possível verificar
tais de servidores estaduais e milita- que também alguns municípios
res). Ainda que a Emenda não tenha desconsideraram o conceito de
definido adequadamente o conceito ações e serviços de saúde definido
de ações e serviços de saúde para na Resolução nº 322 e incluíram,
efeito de aplicação dos recursos dos por exemplo, as despesas associadas
três níveis de governo, ao longo des- a inativos da área da saúde. Surpre-
ses últimos anos, foram construídos endentemente, mesmo em gestões
parâmetros claros e acordados entre progressistas, houve um conflito en-
tre a área da saúde e a das finanças. Família e na Comissão de Finanças e
Os secretários de finanças também Tributação, da Câmara. A expectati-
defenderam, interpretando inde- va é que seja aprovado na Comissão
vidamente a Emenda, que os 15% de Constituição e Justiça e siga para
definidos como o mínimo seria exa- votação no Plenário da Câmara.
tamente o percentual que eles apli- Sabe-se que esse “caminho”, no
cariam, mesmo que as necessidades processo legislativo, é constituído de
exigissem gastos maiores. Tal como vários embates e sua aprovação não
no plano macroeconômico, a des- será isenta de conflitos.
centralização da saúde subordina-se
à lógica do “econômico - contábil”, 2. O governo Lula e os recursos
em que os secretários de finanças da Seguridade Social e do SUS
entendem que a contemporânea A persistência dos problemas
“reduzida” receita é que condiciona relativos ao endividamento interno e
a despesa municipal, mantendo a da externo, a manutenção das elevadas
saúde no patamar mínimo constitu- taxas de desemprego e o crescimen-
cionalmente determinado. to do mercado informal do trabalho
Com o objetivo de assegurar o - elementos que ilustram a falta de
cumprimento da EC 29 e respeitar o perspectiva quanto à retomada sus-
consenso construído entre o Conse- tentável da economia -, constituem
lho Nacional de Saúde, o Ministério constrangimentos no caminho da
da Saúde, os tribunais de contas e as garantia da Seguridade Social e da
diversas entidades na área da saúde, universalidade do SUS. Mas, apesar
no tocante à definição de ações e de todas as investidas dos defen-
serviços de saúde, foi elaborada a sores dos princípios neoliberais,
proposta de regulamentação da EC marcados pela diminuição do gasto
29, sob a denominação de Projeto público, as estruturas e instituições
de Lei Complementar nº 01/2003. criadas pelo SUS resistem.
Em 2004, foi dado início ao pro- A luta pela defesa de recursos
cesso de tramitação desse Projeto aparece, contudo, como se a saúde
na Câmara Federal. Após intensos estivesse permanentemente em
debates e conflitos entre os interes- crise. Na verdade, todas as suas
ses do governo federal, contrários ao manifestações apenas refletem os
Projeto de Lei, e a Frente Parlamen- conflitos de interesse em jogo e o
tar da Saúde, o Projeto foi aprovado grau de resistência do movimento
na Comissão de Seguridade Social e pela universalização da saúde públi-

49
50
ca. Nos anos do governo Lula, não da proposta de reforma tributária do
têm sido poucas as suas investidas governo Lula. Isso porque, no mo-
contra o financiamento da Segurida- mento em que a austeridade fiscal
de Social e da saúde. Mas, paralela- é alçada à medida prioritária pelo
mente, o número de manifestações governo - na verdade continuando
contrárias também não se revela a política anteriormente executada
menos importante. -, tal fato se choca diretamente com
No primeiro ano de governo, a o interesse daqueles que pretendem
proposta de reforma tributária san- assegurar a implementação do SUS
ciona o comprometimento atual das como uma política universal. Dito
finanças dos municípios e do Gover- de outra maneira, o SUS univer-
no Federal, mas abre mão de repen- sal encontra-se na contramão dos
sar as condições de sustentação do ditames do FMI, que exige corte nos
conjunto da Seguridade Social, em gastos e superávit primário elevado.
especial da saúde. Além disso, nas Essa atitude é emblematicamente
negociações para a aprovação da registrada na defesa intransigente
reforma, apareceu a possibilidade do governo Lula em manter a CPMF
de mecanismos semelhantes à DRU (mas sem dividir os recursos com os
serem aplicados aos estados e muni- outros níveis de governo, é claro) e
cípios, o que, segundo estimativa da a DRU.
Comissão de Orçamento e Finanças, Nessa dimensão, a discussão
do Conselho Nacional de Saúde, da reforma do Estado, envolvendo
significaria uma redução de R$ 3 bi- alterações substantivas das reformas
lhões em nível dos estados e de R$ previdenciária e tributária, coloca
2,5 bilhões em nível dos municípios, a possibilidade de o próprio siste-
caso a desvinculação de 20% fosse ma de saúde vir a ser modificado.
aplicada à arrecadação prevista Na medida em que forem extintas
para 2003. Numa reação defensiva as atuais fontes de financiamento
daqueles que lutam pela construção do sistema e a escassez relativa
da universalidade da saúde, conse- de recursos determinar apenas a
guiu-se o compromisso do governo manutenção dos cuidados com a
Lula, após intensas mobilizações, da saúde da parcela mais carente da
retirada dessa Proposta no âmbito população, propostas de adoção de
do projeto do Executivo. modelos alternativos de gestão da
O financiamento da saúde está saúde certamente ganharão corpo
longe de estar resolvido no âmbito e importância no debate que está
por vir. Isso pode permitir que se processo de construção da definição
coloque qualquer tipo de sistema de do que sejam ações típicas de saú-
proteção social que não se inspire de, anteriormente mencionado. A
sob o princípio da universalidade. inclusão da alimentação e nutrição e
Uma segunda investida do saneamento básico, atividades pre-
governo Lula contra a saúde mani- vistas para serem financiadas com
festou-se no descumprimento da o Fundo da Pobreza, contrariam o
proposta orçamentária/2004 do § 2º do art. 198 da Constituição,
Ministério da Saúde. Em 31 de julho os art. 5º e 6º da Lei nº 8.080/90 e
de 2003, a saúde foi surpreendida a Resolução nº 322, do Conselho
com o veto presidencial ao § 2º do Nacional de Saúde.
art. 59 da LDO/2004. Por meio des- Além disso, mesmo se fossem
se ato, seriam consideradas como considerados os recursos do Fundo
ações e serviços públicos de saúde da Pobreza, o orçamento do MS
as despesas realizadas com encargos para 2004 não cumpriria o disposto
previdenciários da União (EPU) e na EC 29: no lugar de R$ 32.930
com o serviço da dívida, bem como milhões (orçamento de 2003 mais a
a dotação dos recursos do Fundo de variação nominal do PIB 2003/2002
Combate e Erradicação da Pobre- de 19,24%, segundo as projeções
za. A reação contrária do Conselho do IBGE), foi encaminhada uma
Nacional de Saúde e da Frente proposta de R$ 32.481 milhões, ou
Parlamentar da Saúde resultou na seja, menor em R$ 449 milhões.
mensagem do Poder Executivo ao Somando-se esses R$ 449
Congresso Nacional, criando o § 3º milhões aos R$ 3.571 milhões do
para o art. 59, no qual, para efeito Fundo de Pobreza, o SUS, em nível
das ações em saúde, são deduzidos do Ministério da Saúde, estava
o EPU e o serviço da dívida. Con- sendo (des)financiado em R$ 4.020
tudo, nenhuma menção foi feita ao milhões. Além dos efeitos negativos
Fundo de Combate e Erradicação dessa redução ao orçamento do MS,
da Pobreza, cujos recursos previstos o descumprimento da EC 29 pela
atingiam R$ 3.571 milhões. União abria precedente para que
No momento em que o Fundo estados atuassem da mesma forma,
da Pobreza é considerado como isto é: considerar como despesas em
ações de saúde, não só a saúde dei- saúde outros itens que não se refe-
xa de contar com os recursos a ele rem a “ações típicas de saúde”.
destinado como é desrespeitado o Ao final de setembro de 2003,

51
52
a governadora do Estado do Rio de os serviços da dívida e a parcela das
Janeiro propôs ao Supremo Tribunal despesas do Ministério financiada
Federal uma Ação Direta de Incons- com recursos do Fundo de Combate
titucionalidade (ADIN) com pedido e Erradicação da Pobreza não sejam
de medida cautelar em razão da considerados como ações e serviços
Resolução do Conselho Nacional públicos de saúde. O segundo diz
de Saúde nº 322, de 08 de maio respeito ao Projeto de Lei Com-
de 2003, especialmente para sua plementar de Regulamentação
invalidação e suspensão imedia- da Emenda Constitucional nº 29,
ta dos seus efeitos. Dito de forma que se encontra em tramitação na
direta, a governadora questionava Câmara Federal, como mencionado.
particularmente a diretriz da Resolu- Espera-se que a aprovação dessa
ção que define as despesas a serem regulamentação, ancorada nas defi-
consideradas como ações e serviços nições da Resolução CNS nº 322/
públicos de saúde. Os motivos, 2003, possa estabelecer as bases
todos sabem, são para incluir gastos legais necessárias para que a União
na saúde que são vedados na Reso- e também que os estados cumpram
lução. Além desse questionamen- o disposto na EC 29.
to, a ADIN indaga sobre o caráter Mas a continuidade da institu-
deliberativo do Conselho Nacional cionalização do SUS universal exige,
de Saúde para determinar as formas no curto prazo, a derrota da ADIN
de aplicação do gasto com ações e da governadora do Rio de Janeiro e,
serviços públicos de saúde. mais no longo prazo, a redefinição
No plano nacional, contudo, da posição econômica e política
ocorreram dois importantes fatos, assumida pelos governos Federal e
resultado das negociações realiza- estaduais, o que implicará o aban-
das para superar o impasse entre a dono das “estratégias” econômi-
institucionalização do SUS e a aus- cas ortodoxas adotadas por esses
teridade fiscal perseguida pela área governos.
econômica do governo. O primeiro As investidas do governo Lula
refere-se à Lei nº 10.777, de 25 de contra o financiamento do SUS
novembro de 2003, que reintroduz não pararam em 2004. O mesmo
o conteúdo do parágrafo 2º do art. mecanismo de desconsiderar o
59 da LDO/2004, vetado pelo pre- conceito de saúde, construído sob
sidente, assegurando, assim, que os o consenso das entidades do setor,
encargos previdenciários da União, foi adotado pelo governo federal
quando do encaminhamento da Nacional de Saúde, a Frente Parla-
LDO de 2006 ao Legislativo. De mentar de Saúde e o Ministério do
acordo com o projeto encaminhado, Planejamento, a Procuradoria Geral
as despesas com assistência médica da República emitiu parecer contrá-
hospitalar dos militares e seus de- rio a tal inclusão. Somente a partir
pendentes (sistema fechado) serão desse parecer, o presidente Lula ex-
consideradas no cálculo de ações cluiu o Fundo de Combate à Pobre-
e serviços de saúde. Dessa forma, za da fórmula de cálculo do piso de
os recursos destinados ao Ministé- gastos federais com os serviços de
rio da Saúde serão diminuídos em saúde. A história parece repetir-se.
cerca de R$500 milhões, de acordo Fica a indagação: então o Governo
com a estimativa da Comissão de Federal não só não aprendeu com
Orçamento e Finanças do Conselho o Fundo da Pobreza como agiu de
Nacional de Saúde (CNS). Tendo em modo pior, insistindo no descumpri-
vista o projeto de lei enviado pelo mento do conceito de saúde univer-
Governo Federal à Câmara, o Con- sal, ao considerar ações e serviços
selho Nacional de Saúde decidiu para um sistema fechado (militares)
manifestar-se publicamente contrá- não disponível para os demais ci-
rio, repudiando o teor do projeto, dadãos brasileiros? A principal lição
isto é, os serviços prestados aos do descumprimento da proposta
militares não se caracterizam como orçamentária 2004 do MS foi a de
de acesso universal e, portanto, não que não se deve desconsiderar o
podem ser considerados ações e conteúdo da Resolução nº 322 do
serviços públicos de saúde. Sabe-se CNS, que especifica as despesas a
que os conflitos são e serão intensos serem consideradas como ações e
nesse entendimento. serviços públicos de saúde.
Não é a primeira vez que o Ao utilizar esses gastos para
Conselho manifesta-se contrário ao cumprir o limite mínimo de aplica-
Projeto de Lei da LDO do governo ções em ações e serviços de saúde,
Lula, inclusive em relação ao conte- determinado pela Emenda Constitu-
údo desse mesmo art. 59, parágrafo cional nº 29, o Governo Federal está
2. Como mencionado, a proposta diminuindo, na prática, as dotações
da LDO de 2004 incluía o Fundo do MS. É importante atentar para o
de Combate à Pobreza (Fome Zero) fato de que, além desses efeitos ne-
como ações de saúde. Após os gativos dessa redução ao orçamento
embates políticos entre o Conselho do MS e, conseqüentemente, ao

53
financiamento do SUS, o des- Bolsa-alimentação, constante
cumprimento da Resolução nº do Orçamento do Ministério
322 do CNS pela União abre da Saúde. A Cofin/CNS tem
precedente para que estados advertido que tramita no Con-
atuem da mesma forma, isto é: gresso Nacional projeto de lei
considerar como despesas em referente à suplementação do
saúde os gastos com assistência Bolsa Alimentação no valor de
médica a servidores, como os R$ 1,2 bilhões, cuja fonte de
integrantes da Polícia Militar e recursos é 179 - Fundo de Po-
do Corpo de Bombeiros. breza. Sabe-se que tal despesa
Os ministérios do Planeja- não pode ser considerada no
mento e Saúde quase nunca se cômputo da aplicação mínima
entenderam sobre a definição com ações e serviços públicos
do piso de aplicação em ações de saúde, porém a Lei Orça-
e serviços de saúde, desde o mentária autoriza a troca de
governo FHC até o governo fonte pelo Ministério do Orça-
Lula. As divergências decor- mento, Planejamento e Gestão.
rem do fato de que, até hoje, Nunca é demais lembrar que a
a Emenda Constitucional 29 Cofin/CNS posiciona-se contrá-
não foi regulamentada e não ria a uma possível mudança de
se aceita a Resolução nº 322 fonte.
do CNS como instrumento Tanto a manobra do gover-
legal que define o que pode no Lula em incluir assistência
ser considerado como ações médico-hospitalar dos militares
e serviços públicos de saúde. como atividade do Ministério
Acredita-se que esse embate da Saúde bem como a incerte-
se resolva com a aprovação do za do item Bolsa-alimentação
PLC nº 01/2003, mas, como no orçamento do MS indi-
mencionado anteriormente, cam que o Governo Federal
as tensões entre os diferentes não tem muita disposição em
ministérios são historicamente aumentar sua participação no
significativas. gasto com saúde e tampouco
Ainda outro problema em definir fontes exclusivas
recente chama a atenção para para seus custeios.
os que defendem o financia- Uma outra importante
mento do SUS universal: o item investida do governo Lula
contra a área da saúde refere-se à planeja preparar um estudo sobre as
recorrente tentativa de adoção da implicações das vinculações seto-
desvinculação dos seus recursos. A riais...” (op. cit, p. 3). Mesmo que
primeira tentativa ocorre por meio esse objetivo não seja atingido, sua
da correspondência do governo declaração de intenção denuncia
com o FMI, em 2003, e a segunda a investida contra o “núcleo duro”
integra a proposta do déficit nomi- das políticas sociais que permeia a
nal zero, sugerida pelo ex-ministro condução do governo Lula.
Delfim Neto (PP-SP) ao Governo A intenção do Governo Federal,
Federal em 2005 - lançada no auge como se sabe, era colocar um fim
da crise política recente. aos preceitos constitucionais que
Em relação à primeira investida obrigam União, estados e municí-
a favor da desvinculação dos re- pios a gastarem um percentual de
cursos, o Governo Federal, ao final todo o dinheiro arrecadado para
de 2003, encaminha uma corres- os setores de educação e saúde.
pondência ao FMI16 atestando sua Particularmente, na área da saúde,
intenção de modificar radicalmen- deixariam as três esferas de poder
te o quadro em cima do qual são de ser obrigadas a aplicarem os
desenhados os orçamentos, sejam dispositivos legais estabelecidos na
eles da União, dos estados ou dos Emenda Constitucional nº 29/2000.
municípios. No item “Criando um Ao propor mudanças dessa
ambiente para o desenvolvimento”, magnitude, o governo Lula tinha a
desse documento, é mencionada intenção de colocar em marcha um
a flexibilização da alocação dos movimento duplo com relação ao
recursos públicos como uma entre orçamento. O primeiro consiste na
várias ações que seriam necessárias desvinculação propriamente dita
para “trazer o País para uma trajetó- dos recursos destinados aos gastos
ria de crescimento”. De acordo com sociais em saúde e educação. O
o documento,” menos de 15% das segundo movimento refere-se ao
despesas primárias são alocadas de uso que seria feito dos recursos
forma discricionária pelo governo, assim liberados: além de engrossa-
criando uma rigidez orçamentária rem o pagamento da dívida externa,
que muitas vezes inibe de manei- poderiam ser destinados à realiza-
ra significativa uma alocação mais ção de investimento, provavelmente
justa e eficiente dos recursos pú- na linha do projeto Parceria Público
blicos”. E ainda diz:... “o governo Privado (PPP).
16
Carta de intenção do governo brasileiro dirigida a Köhler, referente ao
novo acordo com o FMI, datada de 21 de novembro de 2003 (Ministério
da Fazenda, 2003).
55
56
Esse é o primeiro governo, após do PIB e, portanto, um aumento de
a Constituição de 1988, que, sem 1% na taxa de juros básica ocasio-
nenhum constrangimento, tem a na o adicional de custos com juros
“coragem” de propor uma medida anuais equivalente a R$ 10 bilhões,
como essa: institucionalizar, pro- o que fragiliza o padrão atual de
movendo mudança no texto da lei, ajuste das finanças públicas para
o fato de o pagamento do serviço sustentar a dinâmica de “financeiri-
da dívida preceder a preocupação zação” da riqueza. Diante disso, a
de realizar os atuais níveis de gastos proposta do Deputado Delfim Neto
sociais, quanto mais de ampliá-los. ao Governo Federal busca zerar o
No caso da saúde, isso significaria déficit nominal nas contas públicas
direcionar o gasto para algo do tipo (receita menos despesas, incluindo
cesta básica, ao estilo do que é pro- os juros da dívida), proporcionando
posto pelo Banco Mundial, abando- o equilíbrio fiscal a partir do aumen-
nando a idéia da universalização das to brusco do superávit primário de
ações e serviços públicos em saúde. 4,25% para 7,85% do PIB - estimati-
A universalização do acesso à va de despesas com juros para 2005
saúde a partir da Constituição de (Pochmann, 2005). Entende-se que,
1988 pode ser considerada uma das dessa forma, o superávit primário
mais inclusivas políticas sociais no seria suficiente para financiar a tota-
país, uma vez que incorpora cerca lidade da despesa com os juros do
de 135 milhões de brasileiros antes endividamento público17.
sem cobertura. No entanto, os cons- Por outro lado, a proposta
trangimentos econômicos e con- déficit nominal zero relaciona a
flitos políticos vividos no processo importância de dobrar a Desvincu-
de institucionalização do SUS vêm lação da Receita da União (DRU)
dificultando sua viabilidade. de 20% para 40%, acrescida de
A segunda defesa da desvincu- um relevante corte nos gastos com
lação dos recursos sociais reaparece pessoal e nas demais contas públicas
com o lançamento da proposta do operacionais. Assim, a adoção do
“déficit nominal zero” pela visão significativo aumento do superávit
ortodoxa fiscal, recepcionada a primário para 7,85% do PIB teria
contento pelo presidente Lula e sua impactos negativos no conjunto dos
equipe econômica. Sabe-se que, gastos sociais. Com a desvinculação
atualmente, o estoque da dívida pú- de 40% dos recursos federais, os
blica corresponde a cerca de 50,0% gastos sociais sofreriam uma queda
17
Para se ter uma idéia, embora o país tenha obtido um dos mais elevados superávits primários em 2004 (4,58% do PIB),
constata-se ainda um déficit nominal de 2,68% do PIB, o que resultou da elevação dos gastos com juros.
entre 2004 e 2005, passando de to sustentado”18. O que não fica
13,5% do PIB para 11,1%, o que claro é como seria possível falar em
geraria uma contenção de R$ 42,5 desenvolvimento sustentável com a
bilhões (2,4% do PIB). Por conta adoção da socialização perversa do
disso, o superávit primário social custo social dessa proposta, em que
passaria de 34% do total dos gastos seriam prejudicados 145 milhões de
com juros, em 2004, para atingir usuários do SUS bem como 21 mi-
61% em 2005. lhões de beneficiários da Previdên-
Por sua vez, os maiores itens da cia Social, a totalidade dos funcioná-
atual composição da despesa social rios públicos federais e outras áreas
federal - previdência, benefícios a governamentais. Por outro lado, o
servidores públicos e saúde - seriam governo Lula nem comenta que o
altamente prejudicados pela pro- objetivo de déficit público nominal
posta de alcançar a nova meta de zero pode também ser adotado por
superávit primário. Para se ter uma outros percursos. Trata-se de reco-
idéia, a proposta do déficit nominal nhecer a importância de se adotar
zero implicaria o corte, por exem- um novo compromisso em torno do
plo, da Previdência Social, em R$ crescimento econômico com redu-
19,7 bilhões; dos servidores públi- ção considerada da taxa de juros, o
cos, em R$ 8,5 bilhões; e da saúde, que significaria o rompimento com
em R$ 5,7 bilhões, todos a valores o atual ciclo de “financeirização” da
correntes de 2004 (Pochman, 2005). riqueza, responsável principal pelo
Como bem salientou o autor da endividamento público nacional.
proposta, deputado Delfim Neto,
para tornar exeqüível essas medidas, Considerações finais
o Governo Federal deve, por meio Vários são os aspectos que evi-
de uma emenda constitucional, es- denciam as iniciativas e medidas que
tabelecer a eliminação, até 2009, do foram desvalorizando a aplicação
déficit nominal do setor público e do conceito de Seguridade Social ao
adotar a desvinculação propriamen- longo dos governos que se seguiram
te dita dos recursos destinados aos à Constituição de 1988. Dentre elas,
gastos sociais em saúde e educação, ressaltam-se: o uso de parte dos re-
permitindo a redução “necessária” cursos da Seguridade Social para fins
dos seus recursos e a viabilidade alheios às áreas que a integram em
do déficit nominal zero para a 1989 e 1990; a especialização da
“estabilidade com desenvolvimen- fonte contribuições de empregados
18
A equipe econômica do governo, especialmente o presidente do Banco
Central, Henrique Meirelles, viu a proposta como uma boa saída para con-
tribuir para a política monetária e para assegurar a responsabilidade fiscal
57
em tempos de elevada crise política e debilidade por qual passa o governo
Lula (Folha de São Paulo, 1/07/2005).
58
e empregadores para a Previdência universal e gratuito, agrava-se a crise
Social; a institucionalização de me- fiscal e financeira do Estado, levando
canismos que permitiram o acesso a que os governos Federal e estadual
da União aos recursos da Seguridade limitem o aporte de recursos para a
Social e, portanto, o seu uso indevi- Seguridade Social e para a saúde.
do; as modificações nos critérios de O grande problema do financia-
acesso aos benefícios previdenciá- mento da saúde é que, mesmo com
rios, especialmente da aposentado- a vigência da Emenda Constitucional
ria; a inclusão, no plano da análise e nº 29, assiste-se ao descumprimento
da discussão pública, do regime dos da aplicação dos recursos da União
servidores, em claro rompimento ao e de grande parte dos estados, apro-
art. 194 da Constituição. fundando o seu frágil esquema de
A tentativa de recuperar esse financiamento. Tanto as manobras
desmonte torna-se fundamental do governo Lula em incluir itens
para enfrentar o frágil consenso de que não se associam ao conceito de
que a Seguridade Social constitui-se saúde universal, como atividades
em capítulo constitucional impor- do Ministério da Saúde, bem como
tante de nosso sistema de proteção a recorrente tentativa de propor a
social. Além disso, deve-se identificar desvinculação dos recursos destina-
como, no país, as políticas sociais dos às ações e serviços públicos de
são permanentemente subordinadas saúde indicam que o Governo Fe-
aos ditames da ordem econômica. A deral não tem muita disposição em
Constituição de 1988, ancorada pela aumentar sua participação no gasto
valorização da democracia e do res- com saúde e tampouco em definir
gate da então chamada dívida social, fontes exclusivas para seu custeio.
foi um daqueles raros momentos em Admite-se que somente com a apro-
que a insubordinação das políticas vação do projeto de regulamentação
sociais esteve presente. da EC 29, ancorada nas definições
Como vimos neste texto, o per- da Resolução CNS nº 322, possam
curso do financiamento da Seguri- ser estabelecidas as bases legais
dade Social em geral e do SUS, em necessárias para que a União e tam-
particular, tem sido consideravel- bém os estados cumpram o disposto
mente complicado. Pode-se obser- na Emenda. Porém, não se deve
var que, ao mesmo tempo em que desconhecer que a aprovação da
se implanta o SUS, com base nos regulamentação será marcada por
princípios de um sistema público, disputas e grandes embates.
Deve-se, por fim, identificar que a ruptura da já antiga (anos 90) e
as possibilidades de valorização do atual lógica da política econômica.
financiamento da Seguridade Social Porém, não se deve apenas reduzi-
e do SUS podem ser alcançadas por las a esse fator. Uma possibilidade
outros percursos, mas condiciona- concreta seria buscar a construção
das por novos compromissos em de consensos em relação às políti-
torno da recuperação e do cresci- cas e instituições responsáveis pelas
mento econômico, o que implicaria políticas universalistas.

Referências

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Sociais do IPEA, 2005. Mimeo.
Científica do V Encontro Latino-
americano de Economistas Políticos,
Cidade do México, outubro de
2005.

59
60
A Conjuntura Brasileira e o SUS: tendências
e desafios

Gastão Wagner de Sousa Campos19 a saúde de cada pessoa em par-


ticular. Para tornar realidade essa
I- Saúde é de interesse privado concepção, construíram-se grandes
ou público? sistemas públicos de saúde, financia-
No século XIX, a resposta a essa dos pelo orçamento estatal, ordena-
questão era simples. Havia a saúde dos segundo a lógica da eficácia e
pública, que cuidava dos problemas eficiência sem considerar interesses
coletivos, a saber, das epidemias corporativos que, tradicionalmente,
e da vigilância e regulamentação haviam se incorporado ao mercado
de aspectos da vida econômica e da saúde. Os princípios ordenadores
social que interessassem à dinâmica desses sistemas eram:
econômica e social, como eram os - Integralidade do atendimento
casos dos alimentos, remédios, meio ofertado à população, com a valori-
ambiente, entre outros aspectos. A zação de programas de promoção à
doença e o seu atendimento eram saúde e de prevenção de doenças.
considerados assuntos privados e, Prioridade para ações de saúde
portanto, ficava sob a responsabili- pública;
dade de cada pessoa, família ou em- - Hierarquização e regionali-
presa prover atendimento aos seus zação do atendimento: o sistema
necessitados. A atenção aos pobres organizar-se-ia por regiões sanitárias
e desvalidos organizou-se como em um sistema de acesso por níveis
sistema de filantropia. de complexidade. O primeiro nível
No século XX, instalou-se uma era denominado Atenção Primária
polêmica que, em alguma medida, à Saúde, e era composto por uma
ainda prossegue. Países de socialis- rede de centros de saúde, localiza-
mo real e outros que escolheram dos em bairros, que deveriam en-
distribuir renda e construir bem- carregar-se de 80% dos problemas
estar social por meio de políticas de saúde sem ajuda dos hospitais.
públicas passaram a considerar a Depois estaria a atenção secundária,
saúde como de interesse público, composta por hospitais gerais, de
fossem problemas coletivos, fosse urgência e centros de especialidade
19
Doutor em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e mestre em medicina preventiva pela
Universidade de São Paulo (USP).
Cada conjunto desses se ligar-ia a II- Sistema Único de Saúde:
um conjunto de centros de saúde uma Política Pública Brasileira
localizados em um dado território, A reforma sanitária brasilei-
formando um distrito sanitário. ra pode ser considerada tardia.
Finalmente, haveria alguns hospitais Quando já havia um declínio das
de alta complexidade, que seriam concepções socialistas ou de esta-
referência para populações maio- do de bem-estar em todo o mun-
res, originárias de vários distritos ou do, houve, no Brasil, o apogeu do
municípios. reformismo em saúde. Em todo o
Esse desenho espalhou-se pelo mundo, falava-se e praticava-se o
mundo, demonstrando-se uma neo-reformismo liberal, e aqui, no
alternativa racional para estender campo da saúde, firmou-se, políti-
o atendimento com custos supor- ca e gerencialmente, o que viria a
táveis. Inglaterra, Suécia, Austrália, constituir-se em um sistema público
Canadá, a extinta URSS, Cuba e de saúde com várias características
uma série de outros países adota- consideradas ultrapassadas e incapa-
ram variações desse modelo. Uma zes de assegurar eficiência e eqüida-
exceção a essa regra foi os EUA, de ao sistema de saúde.
que insistiram em manter a separa- Argumentava-se a favor de bus-
ção entre saúde pública e mercado car-se a focalização dos programas
médico. sociais, e o SUS, pretendia-se, de
O Brasil adotou esse modelo a abrangência universal. Recomenda-
partir de 1988, com a nova Consti- va-se a delegação da responsabili-
tuição. O Sistema Único de Saúde dade pelo atendimento à população
foi regulamentado pela lei nº 8080, ao setor privado ou a organizações
de 1990. não-governamentais, e a implanta-
Ao final do século XX, essa ção do SUS aumentou o número de
polêmica se reacendeu. Com a crise servidores e de serviços públicos em
e a derrocada dos regimes ditos todo o país. Reservava-se ao Estado
socialistas e com evidentes sintomas o papel de regular o mercado e a
de ineficiência e ineficácia em vários prestação de apenas alguns serviços
sistemas públicos em países de mer- considerados estratégicos, em geral
cado, gerou-se uma série de críticas no campo antes denominado de
às políticas sociais, iniciando-se um saúde pública, e o SUS avocava a si
período de desmonte desses siste- a busca da integralidade da atenção.
mas em vários países. Foi um descompasso com o discurso

61
62
liberal hegemônico que empolgou públicos de saúde - a busca da
distintos atores sociais, tornando universalidade, da prestação integral
viável e factível o que parecia im- de atenção e da eqüidade, bem
possível. como a organização de uma rede
Vários autores consideram a hierarquizada e regionalizada de
Reforma Sanitária brasileira bem-su- serviços−, no Brasil acrescentaram-se
cedida por haver instituído um novo dois outros princípios que podem ser
padrão de intervenção do Estado na considerados inovadores em rela-
saúde, buscando garantir direito uni- ção a essa ortodoxia. Tratava-se da
versal e atenção integral à saúde por determinação de se criar formas de
meio de um sistema descentralizado democracia direta e de gestão par-
e com importante grau de demo- ticipativa, reforçando-se a idéia de
cratização quando da formulação e controle social da ação governamen-
execução de políticas. tal por segmentos da sociedade civil;
Entretanto, não havia como não o outro foi o de descentralização.
pagar um preço à época e à sua No entanto, a descentraliza-
cultura e aos seus costumes, e esse ção, no caso da Reforma Sanitária
preço vem sendo pago ao longo dos brasileira, procurava modificar o
últimos vinte anos, obrigando o SUS desenho e a lógica de um sistema
a explicar-se a cada dia, como se es- público sem que necessariamente
tivesse sempre começando de novo, ocorresse privatização da prestação
como se estivesse obrigado a justifi- de serviço ou sem que se abdicasse
car o porquê de adotar um figurino do papel de gestor e de prestador
tão démodé quando a maioria dos direto do Estado. Imaginou-se um
convivas já aderiu ao novo modo de sistema que procurasse se sobre-
ser e proceder considerado coetâ- por à racionalidade do mercado,
neo e adequado ao terceiro milênio. provendo atenção segundo neces-
Na realidade, a doutrina que sidades e demandas da população,
fundamentou a construção do SUS independentemente da capacidade
reconheceu a existência de limites das famílias e das pessoas pagarem
e de dificuldades no funcionamento pelo atendimento oferecido.
dos sistemas de saúde realmen- Ao invés de se conceber um
te existentes, e, em função dessa sistema de caráter nacional, como
perspectiva crítica, além de diretrizes o inglês e o cubano, ou mesmo
que podem ser consideradas típi- um provincial, como o canadense,
cas à tradição dos grandes sistemas optou-se por descentralizar, para os
municípios, a responsabilidade pela lo de atenção, cuidando, ao mesmo
organização e gestão dos sistemas tempo, de demonstrar a viabilidade
locais de saúde. Observe-se que, no da universalidade e da integralidade
caso brasileiro, a descentralização da atenção à saúde. Listo algumas
oficial deteve-se no município, a alternativas que me parecem meios
menor instância com poder formal para garantir esse movimento de
na República, não chegando até mudança:
cada unidade prestadora de servi-
ço, ou seja, até hospitais, equipes 1- Estimular a constituição de
especializadas ou de atenção básica, um poderoso e multifacetado movi-
que estariam todas sob a gestão mento social e de opinião em defesa
única do dirigente municipal. Op- do bem-estar e da instituição de po-
tou-se também por não se realizar líticas de proteção social no Brasil. A
a estatização de serviços privados, luta pelo sistema de saúde deveria
filantrópicos ou não-governamentais juntar-se à peleja pela distribuição
que prestassem assistência ao antigo de renda, por políticas de recupe-
Sistema Previdenciário ou público. ração de moradias e de espaços
Para integrá-los em rede única, de- urbanos degradados, pela educação
legou-se aos municípios, ou even- e segurança públicas. Deve ser tra-
tualmente aos estados, a função de zida ao debate a cifra que poderia
realizar contratos e convênios com migrar do setor de serviço da dívida
esses prestadores autônomos, acom- e pagamento de juros para o campo
panhando o seu desempenho. social (Pochmann, 2004).
À instância federal e às esta-
duais, caberia a coordenação e o 2- Se há insuficiência de re-
apoio sistemático a essa miríade de cursos para o SUS, há também
sistemas municipais, procurando-se, problemas na sua utilização e
com isso, assegurar o caráter único e gerenciamento. Além de buscar-se
nacional a essa rede descentralizada. alternativa para ampliar o finan-
ciamento - a principal fonte, sem
III - Mudanças estratégicas dúvida, seria diminuir o superávit
para a consolidação do SUS primário e alterar a política de juros
As forças interessadas no avanço que interfere no cálculo de par-
do SUS estão, pois, obrigadas a en- te substancial da dívida -, haveria
frentar esses obstáculos políticos, de também que se reformular, com
gestão e de reorganização do mode- rapidez, o modelo de repasse de

63
64
recursos aos estados, municípios e restrita à Vigilância Epidemiológi-
serviços (Mendes e Mendes, 2003). ca e Sanitária. Essa característica é
Talvez fosse possível adotar-se um obstáculo ao desenvolvimento
um modelo misto: transferência de do SUS, uma vez que impõe um
uma parte dos recursos com base padrão de gastos inadequado às
na capacidade instalada, população necessidades de saúde e ao movi-
e encargos sanitários, e outra com mento de reforma do sistema.
base em contratos de gestão ela-
borados entre os entes federados e 4- Dentro dessa linha de mudan-
que especificassem metas e compro- ça de modelos, há uma diretriz que,
missos de cada gestor. Essa mesma se adotada, teria grande possibilida-
modalidade de financiamento pode- de de ampliar a eficiência, eficácia e
ria ser utilizada entre gestor local e humanização do sistema. Trata-se da
prestadores de serviços (Porto et al., criação de mecanismos organizacio-
2003; Andrade et al., 2004). nais que tornem clara e bem estabe-
lecida a responsabilidade sanitária
3- A sustentabilidade e a legiti- dos entes federados, dos serviços e
midade do SUS dependem também das equipes de saúde.
de um processo de mudança do Instituir arranjos que garantam
modelo de atenção realizado de clareza na responsabilização im-
maneira progressiva, mas que tenha plicará uma verdadeira revolução
um grau importante de concomi- cultural e uma real alteração dos
tância em todo o país. Já existem padrões de gestão contemporânea,
diretrizes para essa reorganização; balizando, com dados concretos,
em geral, são aquelas originárias da o planejamento, os contratos de
tradição dos sistemas públicos de gestão e o acompanhamento per-
saúde. manente de sistemas locais e de
O modelo de atenção brasileiro serviços de saúde.
passa por um período de transição, Poder-se-ia, para fins analíticos e
em que ainda predominam restos de gestão, classificar a responsabili-
do antigo modo de organizar a aten- dade em macro e microssanitária.
ção, muito semelhante ao norte- A responsabilidade macrossani-
americano, centrado em hospitais, tária volta-se para a regionalização
especialistas, com pequeno grau de do sistema, buscando a definição
coordenação e de planejamento da precisa do que compete a quem.
assistência e com uma saúde pública Para isso, seria fundamental a
criação de um organismo em cada Aquela teria, como alvo, a inscrição
região de saúde (à semelhança das de clientela com uma determinada
câmaras bipartites), com poder para equipe interdisciplinar e também
estabelecer planos regionais, acom- a constituição de sólidos vínculos
panhando e avaliando a gestão re- terapêuticos entre essa equipe de
gional. Isso significa definir que mo- referência e pacientes com seus
dalidade e que volume de atenção familiares.
caberia a cada município. Dentro de Esse tipo de organização precisa
cada cidade, estabelecer do que se atingir todos os serviços do SUS,
encarregará cada serviço hospitalar, guardando-se as especificidades de
de especialidades ou de urgências. cada local. Caberia a todas essas
Criar responsabilidade macrossanitá- equipes de referência a responsabi-
ria é tornar efetivo e transparente o lidade pela abordagem integral de
encargo sanitário de cada cidade e cada caso em seu nível de respon-
de cada organização do sistema, e, sabilidade. Durante o período de
com base nesse encargo, estabelecer tempo em que esteja encarregada
compromissos de co-financiamento do projeto terapêutico de determi-
entre os entes federados bem como nada pessoa, deverá mobilizar re-
possibilitar a gestão do acesso, de cursos e rede de apoios necessários
maneira que todos os necessitados para a recuperação e aumento da
de cada região tenham acolhimento capacidade de autocuidado (efei-
equânime. to Paidéia) das pessoas e famílias
No caso de excesso de deman- envolvidas.
da, a adoção de critérios de risco Não é difícil compreender essa
para assegurar acesso a exames diretriz - a da responsabilidade
complementares ou a outros pro- sanitária -, tampouco é complicado
cedimentos é medida importante organizarem-se arranjos que a façam
e complementar à programação de funcionar no cotidiano (pactos de
novos investimentos para a correção gestão, contratos com definição de
dessas distorções. encargos, programas clínicos ou pre-
Há ainda a responsabilidade ventivos com caráter vinculatório).
microssanitária, que depende da O difícil é sustentá-los ao longo do
reorganização do trabalho em tempo, pois esses arranjos alteram
saúde quer na atenção primária, as relações de poder entre usuários,
nas enfermarias, nos ambulatórios, profissionais de saúde e gestores.
quer nos centros de especialidades. A reforma do sistema hospitalar

65
66
e do atendimento especializado de- magem. No Brasil, em função de
pende centralmente de sua reorga- algumas especificidades de nossa
nização segundo regras de vínculo e história, influência norte-americana
de acordo com um sólido processo (atenção primária focal e voltada
de pactuação de responsabilidades para programas preventivos ou de
em cada uma das regiões de saúde promoção) quando da definição do
do Brasil. conceito de centro de saúde e de
atenção primária, e em decorrência
5- Outro projeto de reforma em da importância da doutrina do cam-
andamento, mas com ritmo e re- po da saúde coletiva na constituição
sultados ainda insuficientes, é o do do SUS, tendemos a valorizar a
Programa de Saúde da Família. Pelo função de saúde pública na atenção
menos 80% dos brasileiros necessita- primária em detrimento da ação
riam estar matriculados em equipes clínica. Não seria por outro motivo
de atenção primária. Pela teoria dos que nosso programa oficial de aten-
sistemas de saúde, uma atenção pri- ção primária - o Programa de Saúde
mária que se responsabilize por 80% da Família (Ministério da Saúde,
dos problemas de saúde de uma 1996) - estipula a maior e mais com-
população e que resolva 95% deles plexa equipe entre todos os sistemas
constitui condição fundamental para públicos atualmente existentes.
a viabilidade, inclusive financeira, Toda essa confusão epistemoló-
dos sistemas públicos de saúde. gica e doutrinária, mais uma série
Com essa finalidade, as equipes de de inconsistências na política e
atenção primária necessitam operar gestão desse programa, produziram
com três funções complementares: uma lentidão na constituição do
a clínica, a de saúde pública e uma Programa de Saúde da Família ou
de acolhimento (atendimento ao similares no Brasil, e isso tem com-
imprevisto e atenção à demanda). prometido o SUS como um todo.
No Brasil, temos valorizado a O financiamento aos municípios é
dimensão de saúde coletiva e subes- insuficiente - sustentar essa equipe
timado as duas outras. Na Europa, mínima, além de medicamentos e
observa-se tradição distinta, com outras despesas, custa bem mais do
predomínio da função clínica, o que que os repasses. Os municípios não
se reflete na própria composição das têm conseguido resolver comple-
equipes, em geral reduzidas a um xos entraves na gestão de pessoal
médico geral e técnicos de Enfer- devido ao apoio tímido dos estados
e do Ministério da Saúde. A rede de exigida na execução orçamentária,
saúde da família vem sendo criada o emperramento na administração
de maneira desarticulada com o de pessoal, a excessiva interferência
restante do sistema, havendo pouca político-partidária, tudo isso tem
relação entre Atenção Primária e levado grande número de serviços
especialidades ou hospitais. públicos à burocratização e mesmo
à degradação organizacional. Ao
6- Outro ponto essencial na longo dos anos, gestores inventaram
reforma da reforma é a revisão do “remendos” para contornar parte
modelo de gestão ainda emprega- dessas dificuldades, ressaltando-se
do no SUS, tanto aquele utilizado a criação de autarquias, agências e
para administrar os serviços próprios fundações de apoio com a função
quanto o vigente na relação com de facilitar a gestão financeira e de
prestadores privados ou filantrópi- pessoal. Recentemente, apareceu
cos. Há que se considerar os limites a alternativa de delegar a gestão
de qualquer reforma gerencial ou desses serviços a entidades civis pri-
do modelo de gestão; em geral, vadas, criando-se leis e normas que
o desempenho das organizações permitiram a existência de organiza-
depende de um complexo de fato- ções sociais (Ibañez, 2001), ou OS-
res, entre eles, o contexto político, CIPS, integradas à rede do SUS. Essa
econômico e cultural, e não so- última linha de mudança indica uma
mente de alterações tecno-geren- desistência da Administração Dire-
ciais, ainda que estas interfiram no ta, já que investe em modalidades
desempenho dos serviços. Mesmo de gestão com base em contratos
assim, é importante complementar- entre o gestor - restrito ao papel de
se a Lei Orgânica da Saúde, criando regulador - e entes privados sem fim
novas modalidades de organização lucrativos. Essa alternativa tem ante-
para os serviços próprios do Estado cedentes no país, uma vez que, há
e nova forma de relação entre entes anos, existem convênios entre o SUS
federados e prestadores privados ou e santas casas, com problemas que
filantrópicos. se acumulam tanto em decorrência
Acumulam-se evidências sobre da insuficiência de financiamento
a inadequação do modelo atual- como de problemas gerenciais,
mente vigente na Administração ocorrendo também inúmeros casos
Direta para a gestão de hospitais e de degradação organizacional.
serviços especializados. A rigidez Essa discussão sobre o mode-

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68
lo de gestão para o SUS tem sido leis fundadoras do sistema: deve-se
marcada por posições polares de respeitar o fato de que esses serviços
defesa do status quo da administra- fazem parte de um sistema público,
ção pública (estatistas) ou de priva- hierarquizado e que devem funcio-
tizações em diferentes modalidades nar em rede com outros serviços.
(privatistas), com fundamentação Deste trabalho, poderia sur-
bastante ideológica e principista. Há gir um desenho do que seriam os
necessidade de se construir pro- hospitais do SUS. Com isso, poder-
posta com amplo consenso, forte o se-ia criar as organizações do SUS
suficiente para romper a inércia da sob gestão municipal, estadual ou
última década. Seria conveniente in- federal. Esse novo desenho para a
verter-se essa lógica, construindo-se Administração Direta deveria resol-
um modelo indutivo, isto é, compor ver alguns dos entraves já identifica-
um desenho organizacional a partir dos decorrentes da atual legislação,
de um conjunto de características que simplesmente estendeu para o
consideradas importantes para o SUS o modelo de gestão do Estado
bom desempenho de hospitais e dos brasileiro sem considerar as especi-
centros especializados do SUS, isso, ficidades do campo da saúde e do
óbvio, composto por diretrizes e SUS em particular.

Referências
IBAÑEZ, Nelson. Organizações So- Secretaria de Assistência à Saúde,
ciais de Saúde: o modelo do estado março/1996.
de São Paulo. Ciência & Saúde Co-
POCHMANN, Márcio. Proteção
letiva, 6(2), 2001, pp. 391-404.
Social na Periferia do Capitalismo:
MENDES, Rosa & MENDES, Áquila. considerações sobre o Brasil. São
Os Des(caminhos) do Financia- Paulo em Perspectiva, 18(2), 2004,
mento do SUS. Saúde em Debate, pp. 3-16.
27(65), 2003, pp.8-25.
PORTO, S. et al. Alocação Eqüitativa
MINISTÉRIO da SAÚDE – BRASIL. de Recursos Financeiros: uma alter-
Saúde da Família: uma estratégia de nativa para o caso brasileiro. Saúde
organização dos serviços de saú- em Debate, 27(65), 2003.
de. Brasília, documento oficial da
O Cuidado é um acontecimento,
e não um ato
Emerson Elias Merhy20 seu acontecer é que as forças, de
fato, existem.
Ofereço como imagem, para Imagine, agora, que dois brin-
poder conversar sobre cuidado cantes encontram-se, como pares
e subjetividade, a figura do brin- de dançarinos, mesmo que tenham
cante. Todos, quando estamos momentos de compassos, passos,
cantando e/ou dançando uma cantos; nos nós de seu encontro,
música qualquer, em particular como uma micropolítica, cada um
marchinhas, cantigas, entre outras, mantém as características descritas
o fazemos em um nó de passagem. anteriormente. Entretanto, como
Há, por ali, forças que se repetem micropolítica, um intervém no
em todos os que cantam e dançam outro. O brincante a dois é um
aquela música em particular; tam- processo que, mesmo contendo
bém há forças que marcam o lugar todas as repetições particulares
do cantar e do dançar na cultura e gerais, só existe no ato do seu
da sociedade que constituímos; po- acontecimento.
rém, há um acontecer que só ocor- Essas figuras dos brincantes,
re ali, em ato, com aquele dançan- tiradas das falas de Suassuna e
te e cantador específico, como um Nóbrega, para mim, são as que
manejo do momento, como um melhor trazem a imagem que gos-
fabricar, ali no cotidiano do acon- taria de ofertar para poder falar do
tecimento, a dança e o canto, que cuidado em saúde.
nenhum outro irá fabricar igual. Vejamos essa situação consi-
Há, por ali, no nó, um passar derando um encontro entre um
para o dentro e do dentro para trabalhador de saúde e um usuário
fora daquele que dança e canta. de seu serviço; essa imagem pode
O seu interior e o seu exterior, no ser ampliada para uma equipe
acontecimento, são inseparáveis, se de trabalhadores e um grupo de
constituem, dobram-se. Esse ali em usuários, e a reflexão que se segue
ato é o puro brincante. Ele é a sín- continua pertinente.
tese em produção no ato de todas Associo os dois a brincantes,
as forças que passam pelo nó. No porém em recortes situacionais
20
Médico sanitarista Professor colaborador na Unicamp e na UFRJ

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bem distintos. Agora, é marcante faz diferença quem está se encon-
do encontro o que caracteriza a trando.
“alma” do campo da saúde: a pro-
messa de que ali é um lugar de en- O cuidado é um acontecimento
contro de atores sociais / sujeitos, produtivo intercessor
no qual uma parte está ali como
expressão e portador de necessi- Quando um trabalhador de saú-
dade de saúde (que emerge sob a de se encontra com um usuário no
figura de qualquer tipo de deman- interior de um processo de trabalho,
da) e uma outra está ali por ser em particular clinicamente dirigi-
identificada como portadora de um do para a produção do cuidado,
certo saber-fazer tecnológico, pro- estabelece-se entre eles um espaço
dutor de cuidado em saúde para o intercessor que sempre existirá nos
outro. Nessa promessa, as imagens seus encontros, mas só nos seus
que cada um produz são distintas: encontros, e em ato. A imagem
o trabalhador coloca-se no lugar de desse espaço é semelhante à da
quem vai cuidar, por ter um con- construção de um espaço comum,
junto de saberes e técnicas, sendo no qual um intervém no outro, por
o efetivo prometedor de que, com isso é caracterizado como processo
isso, vai resolver o problema do intercessor, e não como simples
outro; o usuário coloca-se no lugar intersecção, pois contém, na sua
do objeto da ação do outro, porém constitutividade, a lógica da mútua
supõe que isso vai dar conta de sua produção em ato micropolítico, que
demanda, que, no fundo, carrega o supõe a produção de um no outro.
pedido de ver garantida a recupe-
ração do “seu modo de caminhar 1. Os esquemas mais comuns
a vida”, dentro do que deseja e em processos de trabalho como os
representa como tal. da saúde, que realizam atos ime-
Aqui, como nos brincantes do diatamente de assistência com o
começo deste texto, em cada um usuário, apresentam-se como o do
deles e nos seus encontros, há a diagrama abaixo, que chamo de
presença de linhas de forças que uma “intersecção partilhada”
são muito particulares e gerais, mas
há as muito específicas que garan-
tem que o encontro no ato traz, usuário xxxx trabalhador
dentro de si, a expressão de que:
Os que se constituem nos casos tornando-o, parcialmente, objeto
mais típicos de processos de traba- da ação daquele produtor, mas, sem
lho, como o de um marceneiro que que com isso deixe de ser também
produz uma cadeira, mostram que um agente que, em ato, coloca suas
o usuário é externo ao processo, intencionalidades, conhecimentos e
pois o momento intercessor se dá representações, expressos como um
com a “madeira”, que é plenamente modo de sentir e elaborar necessi-
contida pelo espaço do trabalhador, dades de saúde para o momento do
como uma “intersecção objetal”. trabalho; e
2. que, no seu interior, há uma
marceneiro
busca de realização de um produto/
cadeira usuário finalidade, como, por exemplo,
xxxxx a saúde que o usuário representa
madeira como algo útil, por permitir-lhes
xxxxx estar no mundo e poder vivê-lo, de
um modo autodeterminado, con-
forme o seu universo de representa-
Essa distinção da constituição
ções, e assimilado como um proces-
dos processos intercessores mostra
so distinto pelos agentes envolvidos,
como a dinâmica entre o produtor e
podendo até coincidir.
o consumidor e o jogo entre ne-
Tal fato revela que a análise do
cessidade e satisfação ocorrem em
processo intercessor que se efetiva
espaços bem distintos, e, inclusive,
no cotidiano dos encontros pode evi-
como os possíveis modelos de con-
denciar a maneira como os agentes
figuração dessa dinâmica podem ser
se colocam enquanto “portadores/
mais ou menos permeáveis a essas
elaboradores” de necessidades, no
características.
interior desse processo de “intersec-
ção partilhada”. Os agentes produto-
No jogo de necessidades que se
res e consumidores são “portadores”
coloca para o processo de trabalho,
de necessidades macro e micropoliti-
é possível, então, se pensar:
camente constituídas bem como ins-
1. que, no processo de traba-
tituidores de necessidades singulares
lho em saúde, há um encontro do
que atravessam o modelo instituído
agente produtor, com suas ferra-
no jogo do trabalho vivo e morto ao
mentas (conhecimentos, equipa-
qual estão vinculados.
mentos, tecnologias, de um modo
A conformação das necessidades,
geral), com o agente consumidor,

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portanto, dá-se em processos sociais psicólogo ou um outro qualquer,
e históricos definidos pelos agentes e um usuário, olhando esse en-
em ato, como positividades, e não contro sob a noção das valises que
exclusivamente como carências, de- aquele profissional de saúde utiliza
terminadas de fora para dentro. Aqui, para agir no processo intercessor.
não interessa o julgamento de valor Vou considerar que essas valises
acerca de qual necessidade é mais representam caixas de ferramentas
legítima; esse é um posicionamen- tecnológicas, enquanto saberes e
to necessário para a ação, mas não seus desdobramentos materiais e
pode ser um a priori para a análise, não-materiais, que fazem sentido de
porque o importante é perceber que acordo com os lugares que ocupam
todo o processo de trabalho é atra- naquele encontro e conforme as
vessado por distintas lógicas, que se finalidades que o mesmo almeja.
apresentam para o processo em ato Acredito que o trabalhador, para
como necessidades, que disputam, atuar, utiliza três tipos de valises:
como forças instituintes, suas institui- uma que está vinculada a sua mão e
ções. Como os brincantes. na qual cabe, por exemplo, um es-
Uma análise mais detalhada das tetoscópio, bem como uma caneta,
interfaces entre os sujeitos instituídos, papéis, entre vários outros tipos que
seus métodos de ação e o modo expressam uma caixa de ferramen-
como esses sujeitos se interseccionam tas tecnológicas formada por “tecno-
permite realizar uma nova compre- logias duras”; outra que está na sua
ensão sobre o tema da tecnologia em cabeça, na qual cabem saberes bem
saúde, ao se tomar como eixo nor- estruturados como a clínica ou a
teador o trabalho vivo em ato, que é Epidemiologia ou a Pedagogia, que
essencialmente um tipo de força que expressam uma caixa formada por
opera permanentemente em proces- “tecnologias leve-duras”; e, final-
so e em relações. mente, uma outra que está presente
O cuidado é um acontecimen- no espaço relacional trabalhador–
to no qual há a presença de valises usuário e que contém “tecnologias
tecnológicas múltiplas. leves” implicadas com a produção
Para facilitar o entendimento das das relações entre dois sujeitos, que
questões que trato, agora, proponho só têm existência em ato.
como imagem o encontro entre um Olhando essas valises e pro-
trabalhador de saúde, como um curando entendê-las sob a ótica
médico ou um enfermeiro ou um da micropolítica dos processos de
trabalho, pode-se afirmar que todas centralmente leve que o usuário
expressam processos produtivos real impõe para o raciocínio clínico.
singulares implicados com certos Mesmo que armado, o olhar vai
tipos de produtos. Por exemplo, a se singularizar no ato. Porém, por
valise das mãos, das tecnologias du- mais que sofra essa “contaminação”,
ras, permite processar com os seus dando-lhe uma certa leveza pelo
equipamentos: imagens, dados físi- agir em ato do trabalho vivo - que
cos, exames laboratoriais, registros, não é plenamente capturado pelo
entre outros. Porém, esses produtos, saber tecnológico bem definido,
para serem realizados, consomem, pois tal captura também é disputada
além do trabalho morto das coisas pelo usuário presente em ato nesse
que operam, o trabalho vivo de seu processo -, os produtos realizados
“operador”, com os seus saberes nessa situação produtiva podem ser
tecnológicos, mas de tal modo que circunscritos pela imposição do lado
há uma captura predominante do mais duro desse processo sobre o
momento vivo pela lógica produti- mais leve. Mas o contrário também
va instituída no equipamento, por pode ocorrer. Não há só uma forma
exemplo. de se realizar a clínica.
A outra valise, a da cabeça, per- Essa situação incerta da finalida-
mite processar o recorte centrado de que será cumprida nesse tipo de
no olhar do trabalhador sobre o usu- processo produtivo inscrito na valise
ário, enquanto objeto de sua inter- da cabeça contaminará a valise da
venção, em um processo de captura mão, pois relaciona-se com ela em
do mundo daquele e de suas neces- um processo de dominância. É a
sidades sob uma forma particular de partir desse terreno, o da valise da
significá-lo. Esse olhar é construído a cabeça e de seus processos produ-
partir de certos saberes bem defini- tivos, que os produtos da valise da
dos, expressando-se como trabalho mão adquirem significados como
morto, daí o seu lado duro. Mas, atos de saúde, e o maior endure-
nos momentos de sua concretude, cimento dos processos produtivos
no agir sobre o usuário através de em torno de saberes tecnológicos
seu trabalho vivo em ato, é “conta- muito bem definidos dará maior ou
minado” no seu processar produti- menor interdição à possibilidade do
vo, dando-lhe uma certa incerteza mundo do usuário penetrar também
no produto a ser realizado e des- como capturador das finalidades dos
viando-o de sua dureza pela relação processos produtivos em saúde.

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Os distintos modelos de atenção Esse é um espaço ocupado por
variam nessa situação relacional, processos produtivos que só são
mas, sem dúvida, a valise que, por realizados na ação entre os sujeitos
suas características tecnológicas que se encontram. Por isso, esses
próprias, permite reconhecer na processos são regidos por tecnolo-
produção dos atos de saúde uma gias leves que permitem produzir
situação de permanente disputa em relações, expressando, como seus
aberto de jogos de captura, impos- produtos, por exemplo, a construção
sibilitando que as finalidades e mes- ou não de acolhimentos, vínculos
mo os seus objetos sejam de uma e responsabilizações, jogos transfe-
única ordem, é a valise do espaço renciais, entre outros. A presença de
relacional trabalhador–usuário. Os situações mais duras nesse espaço
processos produtivos em saúde que produtivo é praticamente insigni-
ocorrem nesse espaço só se realizam ficante, pois, mesmo que, para o
em ato e nas intercessões do traba- encontro, também tenha que se ter
lhador e do usuário. É esse encontro uma certa materialidade dura, ele
que produz, em última instância, não é dependente dela. É como se
um dos momentos mais singulares pudesse dizer que o processo de
do processo de trabalho em saúde produção de um certo acolhimento
enquanto produtor de cuidado. realiza-se até na rua ou em qualquer
Entretanto, é um encontro que o outro lugar.
trabalhador também procura captu- Esse momento produtivo, essen-
rar. É só verificar para esse momento cialmente do trabalho vivo em ato,
produtivo a importância que as é aberto à disputa de capturas por
regras sobre a ética do exercício pro- várias lógicas sociais, que procuram
fissional e os saberes sobre a relação tornar a produção das ações de saú-
trabalhador-usuário adquirem para de de acordo com certos interesses
se ter noção do quanto o trabalho e interditar outros. Não perde nunca
vivo em ato do trabalhador também sua tensão de espaço de disputa,
está operando sobre esse espaço, e, mais que isso, não perde nunca
tentando, com a valise da cabe- a demonstração de que as forças,
ça, impor seu modo de significar mesmo interditadas, estão operando
esse encontro e ampliando-a com em ato com sua presença, sempre.
saberes além dos da clínica. Lembra É nesse espaço que a busca captu-
as várias linhas de força atuando no rante do usuário apresenta maior
canto e dança dos brincantes. chance de conquistas para impor
“finalidades” ao trabalho vivo do uma unidade de produção de pro-
trabalhador. cedimentos, como o ato de saúde a
A relação particular que essa vali- ser pretendido. Expressa certos pro-
se adquire com as outras duas define cederes bem definidos, reduzidos
o sentido social e contemporâneo do a meros procedimentos pontuais,
agir em saúde: a produção do cui- subespecializados no plano da for-
dado, como uma certa modelagem mação da competência profissional,
tecnológica (de saúde) de realizar o com os quais os profissionais estabe-
encontro entre o usuário e seu mun- lecem os seus verdadeiros vínculos
do de necessidades como expressão e através dos quais capturam os
do “seu modo de andar na vida”, e usuários e seu mundo.
as distintas formas produtivas (tecno- Mesmo assim, não elimina a ten-
lógicas) de capturar e tornar aquele são constitutiva do conjunto dos atos
mundo seu objeto de trabalho. de saúde enquanto produção do
As diferentes formas de realizar cuidado, e muito menos consegue
os modelos de atenção à saúde, apagar o fato de que o conjunto dos
sob a ótica do trabalho em saúde, procederes em saúde são situações
definindo reestruturações produtivas que buscam a captura do trabalho
no setor, mostram que os arranjos vivo em ato substantivamente.
entre essas valises são estratégicos e O trabalho médico, para se re-
mesmo definidores do sentido dos alizar como uma forma do cuidado
modelos, a partir das configurações em saúde, tem que construir compe-
que adquirem internamente, e entre tência de ação em duas dimensões
si, as valises da cabeça e do espaço básicas das intervenções em saúde
relacional. - uma, a da dimensão propriamente
Na Medicina tecnológica, por cuidadora, pertinente a todos os ti-
exemplo, há um empobrecimento pos de trabalhos de saúde, e a outra,
da valise das tecnologias leves, des- a dimensão profissional centrada,
locando-se o eixo do arranjo tecno- própria de seu recorte tecnológico
lógico para uma articulação especial específico - para compor o seu lugar
entre a valise das tecnologias leve- na organização e estruturação dos
duras com a das tecnologias duras, modelos de atenção. A construção
de um jeito a mostrar uma relação dessas competências é conseguida
cada vez mais focal da competência nos possíveis arranjos que as três
da ação do médico, a ponto de o valises permitem, produzindo uma
mesmo praticamente reduzir-se a intervenção médica tanto focada nos

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procedimentos quanto em certas {nas}cenas sob a perspectiva de
formas cuidadoras. uma micropolítica de encontros.
O cuidado é um acontecimento De posse dessa idéia, da micro-
autopoiético. política de encontros, tentei olhar,
Há, nos processos relacionais de novo, para todas as cenas não
entre sujeitos - individuais e/ou cole- mais sob a ótica de que o presente
tivos - uma micropolítica dos en- era duro e que o futuro seria muito
contros, expressa por vários mapas, mais duro. Procurei olhá-las como
ou melhor, por uma efervescente “lugares”, onde se encontram ou se
cartografia daqueles processos rela- relacionam territórios-sujeitos, em
cionais, que os sujeitos do encontro acontecimentos e aconteceres. E,
operam. aí, todas essas cenas começaram a
Para compreender partes dessa expressar outras possibilidades: ali,
cartografia, lanço mão da noção de existiam sujeitos, territorializados
autopoiese, que me ajuda a com- e em desterritorializações, encon-
preender um pouco mais os vários trando-se nas suas dificuldades,
processos constitutivos das ações nos nas suas comensalidades, nas suas
encontros, como no caso da relação possibilidades, nas suas lutas, o que
entre aquele que cuida e aquele me permitia olhar os encontros de
que é cuidado, dimensão típica do territórios-sujeitos em movimento
campo da saúde. e tentar criar novas categorias para
Por isso, antes de entrar nessa mirá-los e para pensar o que acon-
micropolítica do cuidado como tecia, ou poderia acontecer, nessa
encontro, suas tensões e desafios, micropolítica dos encontros.
retorno a um trecho do texto “A A primeira noção que adotei era
loucura e a cidade, outros mapas” que, ali, aconteciam várias coisas
para partilhar da conceituação de ao mesmo tempo e que não neces-
autopoiese, da qual tiro proveito. sariamente se excluíam. A segunda
Após descrever situações de era que isso permitiria ter uma outra
encontros, nas quais o que se mos- chave para ver “portadores de futu-
trava eram processos relacionais de ro”, tanto quanto a redenção ou a
dominação, exclusão, eliminação, mudança radical do encontro. A ter-
entre outros processos de interdição, ceira era que, na micropolítica dos
escrevi, naquele texto: encontros que ocorriam nas cenas,
“Criei, para mim, dessa manei- havia várias relações de interdições
ra, uma terceira imagem: pensei e fugas.
Nessa micropolítica dos encon- autopoiético, tomo emprestada da
tros, territorializam-se, dentro das Biologia, que a utiliza para falar do
loucuras que ela contém, relações movimento de uma ameba, por
onde territórios e sujeitos interdi- expressar e significar uma imagem
tam outros territórios e sujeitos. Os de que o caminhar de um vivo/vida,
encontros explodem como uma que se produz em vida, expressando
revelação de que agrupamentos de um movimento que tem que cons-
sujeitos colocam-se diante de outros truir o sentido de um viver de modo
agrupamentos, com a vontade e a contínuo, senão a sua característica
ação de interditar o outro, inclusive de ser vivo se extingue. Tem a força
no seu pensamento. Parece que o de representar o movimento da vida
outro, como estrangeiro, é, para ele, que produz vida.
um grande incômodo, não supor- A autopoiese, portanto, é isso,
tando a possibilidade de este existir um movimento da vida produzindo
nem como imaginador, movimento vida, o que me permite ressignificar
que se dá em todos os lados, de um as cenas dos encontros na produção
a outro, sem parar. do cuidado em saúde, que passam
Essas cenas continham esses a ter novos sentidos, para mim: o
pontos, só que continham também mesmo lugar ocupado pela interdi-
outros processos de encontros, ou- ção é também espaço de encontro
tras situações ocorrendo no mesmo autopoiético. Há uma micropolítica
tempo do processo de interdição, inscrita dentro da outra, e é isso que
como outras formas desses mesmos permite a sensação, por exemplo,
agrupamentos-sujeitos processarem de, em uma cena que transmite a
suas micropolíticas, e que chamei, angústia da morte, que pode inclusi-
para minha nova leitura, de en- ve tomar conta dela, de repente, ser
contros autopoiéticos. Como um carregada, preenchida pela possi-
acontecer no outro acontecimento- bilidade da produção da vida no
interdição.” encontro desses viveres.
O que é, então, esse encontro A tutela autonomizadora da pro-
autopoiético, que opera na relação dução do cuidado, no seu modo de
cuidador-cuidado? Seria aquele no agenciar uma libertação a partir de
qual ocorre, micropoliticamente, si, aparentemente em um movimen-
o encontro de duas vidas, de três to paradoxal, no qual, da depen-
vidas, de quatro vidas, de n vidas, dência, procura-se gerar liberação
em mútuas produções. Essa palavra, para não se tornar um mero projeto

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“autocentrado”, tem que cami- um movimento em que o agir vivo
nhar com a produção do processo de um dispara produção de vida no
liberador concomitantemente com outro.
a do processo público de estabeleci- Este é o sentido mais intenso
mento de responsabilizações, que se do cuidado como um acontecer
referem ao momento de as máqui- brincante.
nas desejantes estarem implicadas
com outras, em possíveis processos
cooperativos e contratualizados, em

Referências

Os conceitos-chaves deste texto


estão elaborados nos textos indica-
dos abaixo, produzidos pelo autor:
Capítulos 2 e 4 do livro Saúde: a
cartografia do trabalho vivo, publi-
cado pela editora Hucitec, SP, nova
edição de 2006.
Texto cuidado com o cuidado,
escrito em 2004, que pode ser
obtido no endereço eletrônico: http:
//paginas.terra.com.br/saude/merhy
79
80

www.pol.org.br

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