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IJUÍ (RS)
2008
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IJUÍ (RS)
2008
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BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
ELIANE BUENO
Psicóloga e Especialista em Psicanálise na Cultura: Saber e Ética
_________________________________________________
ANA DIAS
Psicóloga e Mestre em Educação nas Ciências pela Unijuí
__________________________________________________
KENIA FREIRE
Psicóloga e Mestre em Educação nas Ciências pela Unijuí
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AGRADECIMENTOS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................9
1 O CORPO NA HISTÓRIA: UM BREVE OLHAR........................................................11
2 O CORPO NA PSICANÁLISE........................................................................................20
3 CORPO E IMAGEM NA CONTEMPORANEIDADE ................................................33
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................47
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INTRODUÇÃO
Para tal, a pesquisa organiza-se em três capítulos. No primeiro deles, a partir de uma
breve perspectiva histórica, reflete-se sobre o que o corpo significou para cada cultura ou
período histórico, situando as imagens exercidas pelo mesmo em seus diversos aspectos:
corpo belo, corpo sagrado, corpo científico e corpo ideal.
Interrogar os mistérios do corpo é tão antigo quanto investigar o Universo que nos
cerca. Ao decorrer da história, com a finalidade de abordar e compreender os enigmas em
torno do corpo, construíram-se diferentes mitos, crenças, conceitos e teorias. O corpo sempre
apareceu como objeto de estudo abarcando diversos campos do saber e, neste sentido, por
diversos ângulos.
O estudo sobre corpo e as representações feitas dele são importantes para conhecermos
o que este significou para cada época ou período histórico. Segundo Calvacanti (2005), o
corpo é construído historicamente, sendo assim, podemos localizar o significado e a
percepção do que vem a ser o corpo para cada época ou ao longo da história.
No decurso da história da humanidade, o corpo tem sido abordado nas mais diversas
formas. Ao pensarmos no corpo, podemos considerá-lo como um patrimônio universal, sobre
o qual a cultura escreveu e escreve diferentes histórias e concepções. Neste sentido, o corpo é
visto enquanto efeito da cultura, assujeitado às suas tradições e aos seus significantes.
O corpo é uma síntese da cultura, pois ele expressa elementos específicos da sociedade
da qual faz parte. Através do corpo, o homem vai assimilando e apropriando-se de normas,
valores e costumes sociais. O homem institui esse conteúdo cultural em seu corpo,
originando-o no conjunto de suas expressões.
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Cada modelo de corpo é construído de acordo com seu período histórico e cultural.
Assim, cada sociedade tem sua concepção de corpo, e suas características regem cada um de
seus membros, o que envolve seu modo de se expressar, de se comportar e seu estilo de vida,
de acordo com os valores e as crenças da época.
Nesta busca da compreensão do que é o corpo, com base em cada cultura, este ocupou
distintas posições ao passar dos séculos: corpo belo, corpo sagrado, corpo científico, corpo
ideal, entre outros. A partir disso, o corpo é discutido como uma construção cultural, onde
cada período se expressa diferentemente por meio de corpos diferentes. O corpo de cada
sociedade constrói os corpos dos sujeitos a partir de seus padrões, concepções e paradigmas.
De acordo com Romero (1995), o corpo na Antiguidade Clássica era tomado como um
objeto de glorificação. Neste sentido, o povo grego como expoente civilizador dessa época
instituiu competições esportivas, os famosos Jogos Olímpicos, como meio da celebração das
qualidades corporais: “O corpo do atleta olímpico é tão valorizado, a ponto de o vencedor
obter regalias do Estado.” (ROMERO, 1995, p.18). Nestas sociedades, a força e a agilidade
eram extremamente valorizadas como qualidades corporais.
Foi na Grécia Antiga que surgiu a idéia do corpo perfeito conquistado por meio das
atividades físicas. Os homens exercitavam seus corpos em busca do físico ideal e, não se
envergonhavam de exibir-se nus nos jogos, pois gostavam de se admirar. Segundo eles, a
nudez, além de bela, melhorava o desempenho do atleta.
A partir da Idade Média, essa representação do corpo belo da Antiguidade Clássica foi
rompida pelo domínio da interpretação religiosa. “Uma das demandas da idade média foi à
subjugação do corpo pela religião” (NAVARRO, s/a, p.1). Neste período desaparecem,
sobretudo, o esporte e os jogos herdados pelos gregos, os quais cedem lugar a um
desmoronamento do corpo na vida social, potencializando as questões místicas e religiosas.
Segundo Romero (1995), toda e qualquer preocupação com o corpo foi proibida. Com
a influência dos preceitos religiosos o corpo foi tomado enquanto sagrado e profano, cuja
principal preocupação constituía-se na ocultação do mesmo, contrariando as tradições e
valores da Antiguidade Clássica.
Foi na Idade Média mais precisamente nos mosteiros e conventos que surge o
pensamento que norteará todo esse período histórico – de que o corpo deveria ser
odiado e negado, de que trazia estampado em si a evidência do pecado e a
necessidade de se retirar do mundo para um local de contemplação como negação da
finitude presente no corpo e no mundo como conseqüência do pecado original.
(DELUMEAU, 2003, p. 34).
A moral cristã proibia qualquer manifestação criativa e toda prática corporal que
visasse o culto ao corpo. Os homens eram submetidos a ordens rígidas, as quais
impossibilitavam qualquer tipo de ascensão social. As manifestações sociais mais ostensivas,
assim como as exposições mais íntimas do corpo, foram amplamente reprimidas.
O corpo foi tomado pelo ideal de beleza greco-romana, onde as imperfeições não
deviam influir em suas representações. Estes tentaram idealizar a forma humana de maneira
com que foi exposta na perfeição e na pureza do físico, com expressões e personalidades
únicas.
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Freud (1895), em seu texto “Estudos sobre a histeria”, ressaltou que o corpo da
histérica só poderia ser definido se fosse considerada não somente sua anatomia, mas a
condição da representação corporal presente no imaginário social. Em seu trabalho com as
histéricas, Freud percebeu que a fala afetava o corpo na estrutura histérica. Desta forma, o
corpo da histérica, pelo fenômeno da conversão sintomática expressava o psíquico,
obedecendo a lei do desejo inconsciente e, inaugurando assim, a distinção entre o corpo
biológico e o corpo psicanalítico.
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Foi na prática clínica com as histéricas, que Freud começou a pensar o estatuto do
corpo na Psicanálise. Assim, ele abriu uma ruptura com a Medicina ao delinear uma nova
leitura sobre a corporeidade. Enquanto na Medicina o corpo era estruturado como um
organismo puramente biológico, que obedecia às leis da distribuição anatômica dos órgãos, o
corpo para a Psicanálise foi tomado como um corpo subjetivo, estruturado pela linguagem e
marcado por desejos inconscientes e, muitas vezes utilizado como instrumento de expressão
da vida emocional e psíquica, ultrapassando o somático e se constituindo em funcionamento
com a história do sujeito.
Com o acelerado progresso das ciências, a partir do século XVII, o homem passou a
considerar a razão como único instrumento válido de conhecimento, distanciando-se
de seu corpo, visualizando-o como um objeto que deve ser disciplinado e
controlado. Fragmentado em inúmeras ciências, o corpo passou a ser um objeto
submetido ao controle e à manipulação científica. Com a visão positivista, o mundo
físico, observável, mensurável tornou-se a única realidade. (p.20).
2 O CORPO NA PSICANÁLISE
Segundo a Psicanálise, para que haja a constituição é necessária uma outra estrutura
subjetiva para sua sustentação, isto é, só há desenvolvimento do sujeito à medida que este for
inserido em um contexto cultural, constituído pela linguagem e, portanto, atravessado pelo
desejo1. Para Levin (1997), o ser humano por si mesmo e em si mesmo não estabelece laço
social, ou seja, em outras palavras, o ser humano não possui condições suficientes para
produzir uma estrutura subjetiva, ficando a mercê de alguém, representado pelas figuras
parentais, que com suas marcas significantes2 possam nomear e criar as condições de
possibilidade da inserção do ser humano nesta ordem cultural.
1
DESEJO: Falta inscrita na palavra e efeito da marca significante sobre o ser falante. (CHEMAMA, 1995, p.42).
2
SIGNIFICANTE (S): Elemento do discurso, referível tanto ao nível consciente como inconsciente, que
apresenta e determina o sujeito. (CHEMAMA, 1995, p.197).
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Para que o sujeito possa se constituir é necessário entrar em uma ordem social e
cultural, a partir da família ou de seus substitutos (pais adotivos, orfanatos, etc.). Lacan
(1949), ao questionar-se sobre a “prematuração específica do nascimento do homem” (p.100),
considera o ser humano como o único ser vivo que necessita de um outro semelhante para se
constituir enquanto sujeito, pois além das necessidades fisiológicas das quais o bebê demanda,
há uma impossibilidade simbólica 3de sobrevivência.
A partir de sua chegada ao mundo, o bebê, devido a esta sua dependência fisiológica e
simbólica, exige a intervenção de um “alguém”, ou seja, de um Outro4, o qual venha
interpretar as manifestações de seu corpo, necessárias a sua sobrevivência. O estado de
desamparo original do bebê coloca-o, desde seu primeiro momento de vida, em uma
dependência absoluta deste Outro primordial, para que este garanta a satisfação de suas
necessidades. “A essa condição Freud deu o nome de desamparo fundamental (Hilflosigkeit)
do ser humano, que exige a intervenção de um adulto próximo (Nebenmensch) que perpetre a
ação específica necessária à sobrevivência do ser humano desamparado.” (Elia, 2004, p.39).
Mas quem é este Outro do qual a criança depende? Lacan (1955) utiliza-se da
categoria de Outro, com “o” maiúsculo, para designar aquele que ocupa uma posição
simbólica nos cuidados do bebê, na medida em que investe no mesmo, supondo um
entendimento acerca deste. É o Outro primordial, ou seja, a mãe ou aquele que desempenhe
seu papel, que introduz e inscreve os significantes, um conjunto de marcas simbólicas, a partir
das quais o sujeito será chamado a se constituir. O Outro é um ser da linguagem, o qual
atende à necessidade do bebê através da linguagem, tornando-se o personagem fundamental
para a constituição do sujeito.
Lacan propõe a categoria de Outro (com “o” maiúsculo) para designar não apenas o
adulto próximo de que fala Freud mas também a ordem que este adulto encarna
para o recém-aparecido na cena de um mundo já humano, social e cultural [...] O
Outro não é apenas, portanto, uma pessoa física, um adulto [...] chamaremos de
mãe, porquanto em nossas sociedades seja esta a categoria que designa a função de
cuidar dos bebês e também toda a ordem simbólica que a mãe introduz no seu ato
de cuidar do bebê. (ELIA, 2004, p. 39-40).
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SIMBÓLICA (S): Funções complexas e latentes que envolvem toda atividade humana, comportando uma parte
consciente e outra inconsciente ligada a função da linguagem e, mais especificamente à do significante.
(CHEMAMA, 1995, p.95).
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OUTRO: Lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que, anterior e exterior ao sujeito,
não obstante o determina. (CHEMAMA, 1995, p.156).
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Conforme Levin (1995), o Outro de quem a criança depende, tem a função, através da
linguagem, de apresentar o corpo à criança. O desejo do Outro materno, através de seu
discurso e de suas palavras marca e mapeia o corpo do bebê. A partir das manifestações
corporais do mesmo, a mãe responde aos seus apelos e sinais fazendo interpretações, à
medida que realiza um investimento nomeando ao bebê as partes, as funções e sensações
deste corpo.
[...] o tônus é tomado e atravessado pela linguagem, que “diz” ao tocar e ao ser
tocado (diálogo tônico que se inscreve num sujeito desde o seu nascimento a partir
do desejo do Outro que, numa primeira instância, é encarnado por sua mãe, ou por
aquele que cumpra esta função). Deste modo, estas inscrições, estas demarcações,
ficarão gravadas no inconsciente e determinarão o sujeito enquanto tal, quer dizer,
inscrito pelo desejo do Outro no universo simbólico. (LEVIN, 1995, p. 46-47).
Ao se questionar sobre o que leva o seu bebê a chorar, a mãe decodifica uma ação,
fazendo isto através da linguagem, de forma que, o corpo puramente carnal comece a ter
significação. A linguagem vai significar, dar um sentido e uma forma a experiência corporal
para o bebê, sendo esta a condição de todo o corpo humano. Assim, na Psicanálise, a
linguagem não é considerada um mero instrumento de comunicação, mas o que estrutura o ser
humano em sua condição de sujeito.
Para Levin (1995), o corpo para a Psicanálise não é o corpo biológico do qual a
medicina se ocupa: “o corpo de um sujeito é a Letra, é gramática, e é lida pelo outro enquanto
tal [...] lê-se o sentido [...] necessita de um Outro que inscreva um dizer no corpo [...] que o
metaforize em seu “toque significante” (p.47). A estrutura subjetiva é irredutível à lógica do
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biológico, uma vez que ela obedece a outras leis, quer dizer, somos sujeitos falantes, sujeitos
do desejo, pois somos constituídos na e pela linguagem. Nas palavras de Levin (1995): “o
corpo humano é efeito da linguagem e não ao contrário, sustenta-se enquanto tal pela
linguagem, são suas leis que o sustentam, o atravessam e o regem. É a linguagem que cria um
sujeito e, com ele, seu corpo e sua motricidade” (p.81).
Mas do que estamos falando quando nos referimos ao sujeito do desejo? Conforme
Chemama (1995), o sujeito em Psicanálise é o sujeito do desejo, o qual Freud descobriu no
inconsciente. Este sujeito distingue-se do indivíduo biológico por estar submetido às leis da
linguagem que o constituem, as quais manifestam-se na formações do inconsciente. Neste
sentido, para que um sujeito do desejo possa emergir, é necessário que haja a sua inscrição no
campo da linguagem a partir do Outro.
É preciso que o Outro suponha na criança um sujeito de desejo. É este Outro quem dá,
desde o início, as palavras para que o sujeito possa desejar. Quando o bebê tem uma
necessidade, a mãe responde a esta com gestos ou palavras, e esta satisfação passa a
transformar a necessidade em desejo. A partir deste momento, a criança poderá desejar, mas
sempre através de uma demanda dirigida ao Outro. Assim, é o Outro que nos inscreve no
mundo da linguagem e o que nos torna desejantes.
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Se prestarmos atenção à atitude dos pais afetuosos para com seus filhos, temos de
reconhecer que ela é uma revivência e reprodução de seu próprio narcisismo, que
de há muito abandonaram [...] Ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago
da criação – ‘Sua Majestade o Bebê’. (FREUD, 1914, p. 107-108 ).
O Eu Ideal se traduz pelo fato de o sujeito tomar a si mesmo como seu próprio ideal,
se caracterizando pela fantasia de onipotência, onde o sujeito pode tudo, ou seja, pode ser
completo. A este estado, Freud (1914) também denominou de auto-erotismo, que é postulado
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como a fase inicial da libido5, ou seja, da energia sexual que ainda não tem objeto
diferenciado. Neste estado, a criança procura no próprio corpo uma forma de satisfação, sendo
designado de auto-erotismo por ser um momento onde a criança encontra prazer em si mesma.
No narcisismo primário, por sua vez, o corpo começa a ser elevado à condição de si
pela sua própria erotização. Inicialmente, as zonas erógenas estão num registro dispersivo no
corpo, que posteriormente será unificado, constituindo um corpo totalizado. Essa totalidade se
ordena em torno de uma imagem que é denominada de imagem corporal, sendo a partir do
Outro que a unidade corpórea é antecipada.
Freud (1914) adere ao termo narcisismo, utilizado anteriormente por Paul Nacke em
1899 – ao qual designava aquilo que seria amar seu próprio corpo como se ama os objetos
externos de cunho sexual, buscando através dele a obtenção de prazer –, para pensar a questão
5
LIBIDO: Energia psíquica das pulsões sexuais, que encontram seu regime em termos de desejo, de aspirações
amorosas, e que, para Sigmund Freud, explica a presença e a manifestação do sexual na vida psíquica.
(CHEMAMA, 1995, p. 126).
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do corpo em Psicanálise. Ele argumenta que o narcisismo deve “ser atribuído a toda criatura
viva” (p. 9.), fazendo parte do desenvolvimento e da constituição psíquica de todo o sujeito.
Em seu texto “Sobre o narcisismo: uma introdução”, Freud (1914) diz que:
[...] uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo;
o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram
desde o início sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-
erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo. (p. 93).
Lacan (1949) retoma a obra de Freud em seu texto “O estádio do espelho como
formador da função do eu”, reformulando o conceito de narcisismo e denominando este
momento como “estádio do espelho”. Denomina-se de “estádio” justamente por não ser um
momento passageiro, mas por permanecer durante toda a vida do sujeito como reelaboração
das identificações.
Situado em torno dos seis e dezoito meses de vida da criança, o estádio do espelho é a
expressão cunhada por Lacan (1949) para designar a experiência psíquica na qual a criança
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antecipa um domínio sobre sua unidade corporal, dando-se através de uma identificação com
a imagem do Outro, e assim, da percepção de sua própria imagem no espelho.
É na relação com o Outro materno que é possível a unificação do próprio corpo, isto é,
uma antecipação da imagem do corpo como unidade. Mas de que maneira se dá a relação com
o Outro especular?
Quando a criança olha para a mãe, o que enxerga é a si própria, ela se vê no rosto
materno. Assim, o olhar funciona como um espelho e como um lugar no qual se iniciam as
primeiras trocas significativas com o mundo exterior.
A relação inicial da criança com o Outro materno também é marcada por uma
dependência total, onde a mãe, a partir de seus cuidados, garante a sobrevivência do filho.
Nesta experiência dos primeiros cuidados, o Outro fornece elementos à criança pela via
significante e discursiva, para que ela assuma, por via da identificação, a imagem de si
mesma. Desta forma, é mãe como personagem principal da história da criança, que possui a
função de apresentar o corpo a ela (criança), falando das partes deste corpo e, desta maneira, o
marcando, passando a lhe dar uma imagem unificada. É assim que o Outro materno se faz de
espelho para a criança.
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Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando,
ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu
próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição,
procura recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de
si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual
ele era o seu próprio ideal. (FREUD, 1914, p. 111).
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A este momento, em contrapartida do Eu Ideal, Freud (1914) designa esta nova forma
de ideal de Ideal do Eu, já atravessada pelos valores culturais, morais e críticos, forma através
da qual o sujeito procura recuperar a perfeição narcísica de que teria outrora desfrutado. O
Ideal do Eu seria, desta forma, o que o sujeito projeta diante de si como sendo seu ideal. Neste
sentido, o Ideal do Eu marca para o sujeito aquilo que precisa alcançar para reencontrar o Eu
Ideal, aquela sensação de completude perdida. Assim, a noção de Ideal do Eu remete a uma
perspectiva futura, e em oposição a este, o Eu Ideal remete a uma ilusão de reencontro
consigo mesmo, como houvera no passado.
Sua constituição depende de que ele ascenda à esta posição de desejo, mas, para se
tornar um ser desejante, a falta terá que lhe ser inscrita. Ela deve vir pelo Outro, como um
efeito do significante transmitido pela linguagem. O sujeito se presentifica lá onde existe o
significante da falta, e é esta falta, carregada de significação que é onde se manifesta o desejo.
Assim, o sujeito passa a ser um vazio marcado pela falta, sendo esta constitutiva do desejo de
ser e ter aquilo que jamais terá ou será. É a partir disto que o sujeito sai em busca de sua
“completude imaginária” perdida, através da realização de seus desejos e de suas
identificações.
A falta se instala no sujeito como uma resposta à perda de seu estado inicial de
completude – posição de Eu Ideal, onde sua imagem era sustentada pelo olhar da Outro
materno. Não havendo mais essa completude ele passa a se haver com a falta, e para
contemplá-la, passa a demandar. É a mãe quem “ensina” a criança, através do campo da
linguagem, a convocar o Outro para aplacar a sua demanda e dessa forma realizar seu desejo.
Para Lacan (1949), “é esse momento que decisivamente faz todo o saber humano bascular
para a mediatização pelo desejo do Outro.” (p.101), desta forma ligando-se ao social e
remetendo-se a busca do Ideal do Eu.
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[...] é o corpo “coisa”, esse impossível que no dizer de Lacan “não cessa de não
inscrever-se”. Puro corpo-“coisa” que está sempre no mesmo lugar, sem alcançar o
nível da representação. O corpo no real é este corpo não ligado, não investido, esse
resto não articulado à combinatória significante, portanto não tem realidade para o
sujeito, já que esta supõe o registro imaginário e simbólico em jogo. Essa pura
existência do corpo no real, essa pura “coisa”, é o impossível, o não representável.
(p. 65).
Já o corpo sob o ponto de vista do simbólico, está relacionado à interação entre corpo-
linguagem. Este registro representa o lugar do código fundamental da linguagem, o lugar da
lei, onde fala a cultura, a voz do grande Outro. Segundo Lacan (1953), em seu texto “Função
e Campo da Fala e da Linguagem”, o corpo marcado pelo simbólico diz respeito ao corpo
transgredido pela linguagem, no qual suas partes podem servir de significantes, ou seja, ir
para além de sua função de corpo-carne. É a partir do simbólico que há o advento do sujeito,
sujeito do próprio desejo, tal como citado anteriormente.
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Assim como para Levin, Jerusalinsky (1989) postula que o sujeito é efeito da
linguagem, do simbólico, com tal antecipa-se no discurso parental. Através disto, a criança é
vinculada à inserção na ordem familiar e social.
Ao estar inserido na cultura, ou seja, tendo como referência o Outro cultural, com um
discurso em constante transformação, o sujeito e seu corpo passam a seguir e a responder as
demandas sociais que se modificam com o passar do tempo. O Outro cultural oferece e
demanda certas referências corporais, as quais, de alguma forma induzem o sujeito a
respondê-las.
Como visto nos capítulos anteriores, o corpo tem sido alvo de diferentes
representações e valores nos distintos momentos histórico-culturais. No entanto, até pouco
tempo, o corpo magro foi sinônimo de pobreza e/ou de doença. Homens e mulheres buscavam
combater a magreza e almejavam corpos robustos, os quais remetiam-se a corpos saudáveis.
Porém, este padrão foi modificando-se com o tempo, e os valores atribuídos ao corpo magro e
ao corpo gordo adquiriram outros significados.
Nesse início de século 21, o padrão estético de corpo caracteriza-se pelo biótipo
longilíneo e magro, como aqueles vistos em campanhas televisivas, na mídia escrita
e em outdoors. O corpo, para ser bonito na atualidade, deve seguir a regra do
padrão estético culturalmente difundido e disseminado. Ou seja, é fabricado um
padrão visual estético pré-estabelecido que deve ser buscado e consumido pela
sociedade. (ZÓBOLI, 2008, p.10).
Como diz o autor, o corpo, para ser bonito e bem representável, deve estar dentro deste
padrão estético proferido pelo social. O corpo magro, nos dias de hoje é sinônimo de ser belo,
ser sensual, ser valorizado, ser saudável e estar na moda, acabando por tornar-se um símbolo
de felicidade.
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Percebe-se também em torno disto a grande influência da mídia, que é algo que está
presente na vida de praticamente todos os sujeitos com fácil acesso, e que possui a capacidade
de tomar conta do imaginário dos mesmos. Visto que ela tornou-se parte de nossas vidas, de
nosso cotidiano, ela passou a ser uma de nossas maiores referências. Segundo Kehl (2004), a
mídia tomou conta das subjetividades dos sujeitos, impondo uma “subjetividade
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industrializada”, imaginariamente programada para ser seguida por todos. Para ela, o que
passa a ser transmitido é o desejo do Outro, que com sua opinião, o sujeito passa a seguir,
imaginando que assim poderá ser valorizado.
Kehl (2004), em seu texto “Com que corpo eu vou?”, frisa o quanto somos
convocados a responder as demandas que vem pelo discurso da mídia. Incentivados pela
publicidade e pela indústria cultural, os sujeitos reduzem-se a produção de corpos que estejam
dentro dos padrões estéticos, corpos estes que serão apresentados no espelho do Outro
cultural, o qual determinará o seu reconhecimento e sua felicidade ou não.
Conforme Kehl (2004), a cultura do narcisismo tem na imagem corporal a sua questão
central, sendo que o que o espelho do Outro cultural nos refletir é o que definirá se estamos
incluídos neste ideal, se seremos felizes ou não. O corpo é a imagem que o sujeito oferece ao
Outro, do qual espera a garantia de reconhecimento e aceitação. A partir da leitura de Kehl
(2004), supõe-se que os sujeitos buscam atingir este padrão estético corporal crendo que ele
lhes trará felicidade, pois isto faz parte do discurso social da cultura que estão inseridos.
Conforme Zóboli (2008), para garantir um reconhecimento, isto é, para ser visto e
valorizado nesta esfera social, deve-se estar dentro do padrão estético tido como referência
pela cultura. Segundo ele, “só nos reconhecemos como “belos” se nossos corpos se refletirem
no espelho social” (p.10).
Assim como para Zóboli, Kehl (2004) frisa que para ser aceito socialmente e para
certificar-se de sua existência nesta cultura contemporânea, “o sujeito é compelido a agir,
respondendo a uma demanda do Outro. Para existir diante desse Outro, para não desaparecer
– porque uma imagem desvanece no momento em que ela não está sendo vista -, para
comparecer no campo do Outro, ele é compelido a agir” (p.100), ou seja, o sujeito necessita
adaptar sua imagem corporal de acordo com as atuais referências.
Durante toda a vida do sujeito, desde sua constituição, o olhar do Outro está sempre
presente. Na medida em que é este olhar que certifica a existência, ele passa a ser a referência
para a imagem corporal ideal que o sujeito buscará atingir. Destarte, na cultura
contemporânea, assim como em outras épocas, é a partir deste olhar que acredita-se poder
obter um reconhecimento, ao tempo que é este quem serve de referência para o modo como o
sujeitos tratam seu corpo e imagem.
Desde a origem do sujeito, é o olhar do Outro primordial, o olhar da mãe que vai
intermediar a relação com a criança e a relação da criança com o mundo. Há um jogo de troca
de olhares entre a mãe e a criança, no entanto, estes olhares não se completam totalmente,
pois a criança pressente que o desejo do Outro materno está sob a insígnia da falta, assim
como o dela mesmo. O olhar da mãe não está todo tomado, o qual além da criança olha em
outras direções. No entanto, ao sentir-se amada, a criança tenta ilusoriamente desmentir a
experiência de separação que instala a descontinuidade entre ambas. E o olhar, mais do que se
referir a um órgão de visão, passa a ser um dos objetos privilegiados de troca com o Outro,
que nada tem de natural, é produzido e se torna signo do amor e do investimento. Assim, o eu
e o corpo se definem como efeitos do olhar, sendo este quem garante uma presença para o
sujeito.
Este investimento, naquilo que é “o primeiro esboço do eu”, tomado como unidade,
formaliza o que conhecemos como o Eu Ideal, que se traduz pelo fato de o sujeito tomar a si
mesmo como o seu próprio ideal e que se caracteriza pela fantasia de onipotência, onde o
sujeito pode tudo, ou seja, pode ser totalidade novamente.
Embora tomada de amor pela suposta totalidade de si mesma, a criança segue marcada
pela falta que a constituiu e que jamais vai ser preenchida. Falta esta que se inscreve no ato
mesmo da identificação com a imagem do espelho.
Desde muito cedo o sujeito fica alienado à ilusão oferecida pela imagem tecida no
espelho, a qual o acompanhará por toda a vida. O sujeito acredita ser esta imagem que ele
mesmo elaborou de si e “corre” atrás dela pelo resto de sua vida. No entanto, como ele nunca
coincide totalmente com ela, ele sempre irá procurar reafirmar-se e voltar a reconhecer-se, ou
seja, o sujeito nunca estará completamente satisfeito com sua imagem corporal, buscando
sempre a completude imaginaria perdida. Esta imagem, a qual ele busca reafirmar é então o
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Eu Ideal, seu ideal de perfeição a ser alcançado, o qual ele não é mas pretende ser, é uma
configuração egóica correspondente à maneira pela qual o sujeito quer ser reconhecido.
Em “Sobre o narcisismo: uma introdução”, Freud (1914) apresenta pela primeira vez a
distinção entre Eu Ideal e Ideal do Eu. Para ele, o Eu Ideal é o representante da perfeição, é
aquilo em direção a que surge o narcisismo do sujeito. Neste sentido, o eu se constitui como
tal tendo em face esta imagem de perfeição e completude, fruto, adverte Freud, do próprio
narcisismo dos pais. Já o Ideal do Eu, é uma nova forma de ideal, marcada por valores
culturais, é a forma através da qual o sujeito busca recuperar a perfeição narcísica desfrutada
do tempo do Eu Ideal.
[...] permite ao homem situar com precisão a sua relação imaginaria e libidinal ao
mundo em geral. Esta aí o que lhe permite ver no seu lugar, e estruturar, em função
39
desse lugar e do seu mundo, seu ser [...] O sujeito vê o seu ser numa reflexão em
relação ao outro, isto é, em relação ao ideal do eu. (p.148).
se encontra no lugar do Outro, um lugar simbólico onde o sujeito adquire sua consistência
imaginária e no qual pode se ver como capaz de ser amado.
No entanto, com a entrada no social, o sujeito passa a ocupar a posição de Ideal do Eu,
buscando sempre resgatar a plenitude de satisfação narcísica, a qual encontrava na posição de
Eu Ideal. Para isto, o sujeito, estando alienado ao Outro, procura responder a demanda do
mesmo, sendo este quem determina a posição que o sujeito ocupa. O Ideal do Eu é uma
instância psíquica com a qual o sujeito busca corresponder à expectativa e a demanda deste
Outro. Então, no caso da imagem corporal, remete-se a uma questão imaginária, onde a
demanda vem pelo registro do imaginário.
Neste sentido, ao ocupar esta posição de Ideal do Eu, estando remetido constantemente
ao Outro, o sujeito contemporâneo, conforme Kehl (2004), “é tentado a “aparecer”, exibir o
brilho fálico da imagem, que atesta: “eu sou” (porque o Outro me vê)” (p.150). Assim, o
sujeito busca atingir a imagem corporal tomada como referência, como forma de responder a
esta demanda imaginária do Outro cultural, podendo desta maneira obter reconhecimento e
ser amado e valorizado por este.
Diante disto, não há como ignorar o papel dos meios de comunicação na produção de
imagens que não cessam de nos modelar, exercendo sempre um papel decisivo nas referências
da imagem corporal. A mídia pode ser considerada um “espelho” da sociedade, na medida em
que as imagens que ela reflete são respostas às próprias demandas sociais. Ela passa a ser um
instrumento de transmissão de cultura. Assim sendo, o que a mídia apresenta, são referências
de imagens corporais ideais para a cultura, as quais respondem ao ideal que traduz
perfeitamente o que o Outro cultural demanda.
Segundo Kehl (2004), o Outro na contemporaneidade mantém esta função, esta função
de reconhecimento através do olhar, a partir do qual os sujeitos buscam responder sua
demanda imaginária. O que cabe destacar, é de que forma os sujeitos respondem esta
demanda do Outro cultural, a qual, na maioria das vezes, aparece como um imperativo.
A cultura contemporânea, muitas vezes, passa a tomar isto como uma ordem, um
imperativo para inserir-se no espelho social, excluindo aqueles que não responderem à
estética corporal proposta. Neste sentido, os sujeitos buscam permanecer ou pelo menos se
aproximar desta referência como forma de responder a demanda imaginária do Outro, e desta
maneira ser reconhecido perante o social e fazer-se ver no espelho deste.
O espelho que importa para o sujeito é o olhar do Outro. Neste sentido, sabendo que a
imagem do sujeito é marcada a partir deste olhar, e a partir da referência do padrão estético de
corpo difundido e disseminado especialmente pela mídia, a cultura contemporânea acaba
remetendo os sujeitos a buscar constantemente o testemunho deste espelho, na busca de um
reconhecimento. Trata-se sempre de uma imagem na busca de reconhecimento.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A demanda de uma estética corporal difere nas determinadas épocas e culturas por
tratarem de diferentes discursos, mas sempre sendo o corpo tomado como um tema de
bastante expressão. As referências e os ideais corporais culturais se modificam pois os
significantes da cultura são reflexos das demandas dos sujeitos inseridos em determinado
momento histórico.
contemporâneo, fascinado pela estética, acaba levando os sujeitos cada vez mais à tendência a
investir em seu corpo, a fim de torná-lo conforme as atuais referências de beleza. A ênfase
nos cuidados com o corpo, em dietas alimentares e exercícios físicos diários, fazem hoje mais
do que nunca, parte quase que obrigatória dos procedimentos para a “construção” de um
corpo tido como referência de ideal contemporâneo, o qual é tomado como responsável pela
captura do olhar do Outro.
Nesta cultura atual, os sujeitos são convidados a focalizar, de certa forma, a atenção na
aparência corporal. Cada vez mais, homens e mulheres, gordos ou magros buscam
acompanhar os padrões de aparência que condizem a uma imagem ideal proposta como
referência, a qual acreditam ser fundamental para a obtenção de reconhecimento social e do
olhar do Outro. Vive-se em uma época onde os sujeitos são fortemente influenciados pela
preocupação com a imagem corporal, uma vez que faz parte dos padrões da sociedade
contemporânea tornar-se visível.
Nesta cultura contemporânea o corpo possui um lugar de destaque, ao tempo que este
representa o sujeito e a cultura e/ou sociedade em que vive. Hoje, mais do que em outras
épocas, tem-se a impressão de que o corpo e seus adereços nos representam no mercado dos
olhares e das relações sociais.
próprio rosto, é apenas mirando-se no Outro enquanto espelho que o ser humano se reconhece
enquanto tal.
A busca da imagem corporal proposta como referência pelo discurso social, seria uma
forma do sujeito responder a demanda imaginária e ao desejo do Outro, pois é a falta
instaurada por este (Outro) que permite ao sujeito uma constituição subjetiva, a qual leva ao
encontro a uma possibilidade de corresponder a um ideal, a um padrão que jamais poderá ser
alcançado.
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Acesso em: 25 set 2008.