You are on page 1of 74

FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO

PRIMEIRA PARTE – APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 1


APRESENTAÇÃO...................................................................................................................................................... 1
PROGRAMA............................................................................................................................................................... 2
PRINCÍPIOS (1952) ................................................................................................................................................... 3
A VERDADEIRA RELIGIÃO (1952) ....................................................................................................................... 5
CARTA ABERTA A TODOS (1933) ........................................................................................................................ 6

SEGUNDA PARTE – A EVOLUÇÃO ESPIRITUAL (1932) .................................................................................. 7


PREMISSA .................................................................................................................................................................. 7
I - OS CAMINHOS DA LIBERTAÇÃO ................................................................................................................... 7
II - A EVOLUÇÃO ESPIRITUAL NA CIÊNCIA E NAS RELIGIÕES ............................................................. 14
III - O REINADO DO SUPER-HOMEM ............................................................................................................... 19
IV - EXPERIÊNCIAS ESPIRITUAIS .................................................................................................................... 29

TERCEIRA PARTE  VISÕES ................................................................................................................................ 33


O CANTO DAS CRIATURAS (1932) ..................................................................................................................... 33
TRÍPTICO (1928) ..................................................................................................................................................... 33
CÂNTICO DA DOR E DO PERDÃO (1933) ......................................................................................................... 35
TRÍPTICO (1934) ..................................................................................................................................................... 35

QUARTA PARTE – O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO ......................................................................................... 36


O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO (1939) ............................................................................................................... 36
A PSICOLOGIA DA ESCOLA – IMPRESSÕES (1933) ...................................................................................... 39
A ARTE DE ENSINAR E DE APRENDER (1934) ............................................................................................... 40

QUINTA PARTE – PROBLEMAS ATUAIS .......................................................................................................... 42


A HORA DE NAPOLEAO (1939) ........................................................................................................................... 42
O PROBLEMA AGRÁRIO (1939) .......................................................................................................................... 43
O PROBLEMA RELIGIOSO (1939) ...................................................................................................................... 46
URBANISMO E RAÇA (1939) ................................................................................................................................ 47
A EVOLUÇÃO E A DELINQUÊNCIA (1939) ...................................................................................................... 49

SEXTA PARTE – PROBLEMAS ESPIRITUAIS ................................................................................................... 50


AUTO-OBSERVAÇÃO DA MEDIUNIDADE (1933) ........................................................................................... 50
CONSCIÊNCIA E SUBCONSCIÊNCIA (1930) .................................................................................................... 52
POR UMA VIDA MAIOR (1930) ............................................................................................................................ 53
A RECONSTRUÇAO DO TÚMULO DE SÃO FRANCISCO ............................................................................ 54
OS IDEAIS FRANCISCANOS DIANTE DA PSICOLOGIA MODERNA (1927) ............................................ 55
O PROBLEMA DA VIDA E DO ALÉM NO “FAUSTO” DE GOETHE (1931) ............................................... 60
GÊNIO E DOR (1935) .............................................................................................................................................. 62

SÉTIMA PARTE – NOVELAS – EM BUSCA DA JUSTIÇA (Tríptico – 1953) ................................................ 64


I. A JUSTIÇA ECONÔMICA ................................................................................................................................. 64
II. VERDADEIRO AMOR ....................................................................................................................................... 66
III. O ENCONTRO CONSIGO MESMO............................................................................................................... 67

Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)....................................................................................página de fundo


Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 1
as lerdes. E direis irresistivelmente: “É verdade”. E, através dos
FRAGMENTOS DE PENSAMENTO anos, convencerão e arrastarão outras almas, que ao lerem-nas,
E DE PAIXÃO como vós, também dirão irresistivelmente: “É verdade”.
Porque a força que me arrebata também vos arrasta, a paixão
PRIMEIRA PARTE – APRESENTAÇÃO que me inflama também vos incendeia e nos une a todos num só
esforço, numa tensão e num trabalho comuns, em favor do bem.
Como é grande e bela esta felicidade ilimitada de nos sentirmos
Apresentação
todos irmãos, profundamente irmãos, diante dessa maravilhosa
voz que do infinito a todos nos alimenta! Como é doce, diante
Apresento-me como homem.
dela, ensarilhar as tristes armas da rivalidade e da competição
A entidade que me inspira mediunicamente e sobre mim
que pesam sobre nós e nos amarguram a vida. Que grandioso é
exerce autoridade, no pensamento e na ação, deve ter um repre-
sentirmo-nos todos unidos numa só humanidade, num compacto
sentante terreno, alguém que assuma todo o peso da luta e da
organismo; não mais como pobres seres solitários num mundo
responsabilidade; que totalmente se exponha, moral e fisica-
inimigo, mas cidadãos de um grande universo, onde cada ato
mente, aos perigos de uma realização novíssima, ao trabalho
tem um alvo, onde toda vida constitui missão.
que toda grande conquista e todo progresso impõem, à necessá-
ria tensão para ultrapassar todos os obstáculos. A Voz me arrebata neste momento e senhoreia-se de minha
Tal sou e assim me coloco hoje, ao ingressar na vida pública. mão, como o faz sempre que deseja falar por meu intermédio.
Nada possuo além do meu trabalho para viver e da minha Eu a sigo, pequenino, confuso, maravilhado por imensas visões.
obra para triunfar no bem. Dentro de mim e acima de mim, Agora, ela me apresenta o planeta envolto numa faixa de
porém, vibra uma voz que infunde respeito, que me arrasta e luz e me faz ver uma humanidade mais feliz e mais sábia, res-
a todos irresistivelmente arrastará, voz que eu escuto e a que surgindo das ruínas da geração de hoje; mas também a ela
devo obedecer. pertenceremos, e quem houver semeado colherá. Acima de
Já não é mais o momento de dizer: o tempo virá, mas sim de nós que, lutando e sofrendo, semeamos, uma falange de espí-
afirmar: o tempo chegou. Chegou a hora da grande ressurreição ritos puros estende-nos os braços, encorajando-nos e ajudan-
espiritual do mundo. do-nos. Somos os operários de um grande trabalho, do maior
Eis o que sou: o servo desta potência, o servo de todos, a trabalho que o mundo jamais realizou: a fundação da nova ci-
serviço de todos, para o bem de todos. Nada mais me pertence, vilização do Terceiro Milênio.
nem alma nem corpo; pertenço ao bem da humanidade. Deverei Mãos à obra! Levantai-vos. É chegado o momento. A pa-
ser o primeiro no trabalho, na dor, na fadiga e no perigo; e o lavra de Sua Voz encerra uma força misteriosa, intrínseca, in-
primeiro serei nesse caminho e me esgotarei até a última dose visível, mas poderosa; imponderável, mas irresistível, e, por
de minhas energias, até o último espasmo de meu lamento, até a ela sozinha, avança, sabendo por si mesma escolher os meios
última explosão de minha paixão. humanos, solicitando-os a todos, convidando à colaboração
Sou fraco, culpado e indigno; não tenho, porém, mais força todos os homens de boa vontade. Ela avança e atinge os cora-
para sufocar esta voz, que deseja explodir e falar ao mundo, ar- ções; persuade e convence, possuindo e ofertando, a cada
rastar os povos, abalar os poderosos, convencer os doutos e to- momento, de si mesma, uma prova evidente: o fato inegável
dos conduzir a uma vida de bem e de felicidade. Serei conside- de sua automática divulgação.
rado louco, bem o sei. Mas Sua Voz tem um poder a que não Mãos à obra! Espera-me, espera-nos um tremendo trabalho,
mais sei resistir. E eu, o último dos homens, falarei ao mundo mas também uma imensa vitória. Somente sob a direção de um
com palavras novas, num tom altíssimo, de coisas grandes e chefe sobre-humano o mundo poderia empreender uma obra tão
tremendas, em nome de Deus. gigantesca. Temos um chefe no Céu. Ele não traz senão a paz, o
Estremeço e choro ao escrever estas palavras. É o sinal po- amor, o respeito a todas as crenças. Nada tem Ele a destruir do
sitivo de que Ele, o espírito que me assiste, está junto de mim e que seja terreno; a ninguém Ele agride; não toca a forma, que
me faz escrever coisas que são incríveis. não é o essencial: encara a substância. Nada tem Ele a modifi-
Não obstante as almas simples sentem, com um sentido que car do que seja terreno neste mundo; tudo quer vivificar com
a ciência não tem e nunca terá, sentem por intuição de afetos e uma chama de fé, quer tudo aquecer com uma nova paixão de
por penetração de amor, a completa naturalidade e a perfeita amor puro – o amor de Cristo, esquecido.
credibilidade destas coisas incríveis. Nada têm a temer as autoridades nem os organismos huma-
Tão intensamente profunda é essa intuição, que a alma ju- nos. É tão velho e inútil o expediente de modificar as organiza-
venil dos povos do outro hemisfério a sentiu, rápida, vibrante, ções! Não mais criações de sistemas sempre novos e sempre
espontânea, num reconhecimento que dizia: eu sei, em face da velhos, mas criação do homem novo, que tem origem no ínti-
demorada, duvidosa e sofisticada análise científica da velha Eu- mo, onde está a alma, e não no exterior. Toda organização é
ropa. É que a ciência analisa, toca e mede, mas não tem alma, e, boa, quando o homem é bom, e é má, quando o homem é mau.
somente com o cérebro, nada se pode “sentir”. O novo reino não é deste mundo, e jamais se tocará no que
Brasil, terra prometida da nova revelação, terra escolhida para lhe pertence. Não está surgindo um novo organismo humano,
a primeira compreensão, terra abençoada por Deus para a primei- com chefes e subordinados, com cargos e funções, com propri-
ra expansão de luz no mundo! Já um incêndio lá se levanta; ins- edades e direitos. Não. Absolutamente nada disso. Trata-se, eu
tantânea e profunda foi a compreensão. Foi um reconhecimento vos digo, do Reino de Deus, do reino que o mundo ainda espe-
sem análise, de quem sabe porque sente, de quem tem certeza ra, que o mundo ainda invoca: “Veniat Regnum Tuum11”. É um
porque vê. Os humildes, não solicitados, compreenderam e se reino de almas, de amor e de paz; não possui sedes, não tem ri-
afirmaram os primeiros, sem provas, sem discussões, no terreno quezas, nada possui; não tem senão a tarefa do dever, o amor
em que a ciência, que tudo sabe, nunca cessa de exigi-las. do bem, a paixão do sacrifício, a grandeza do martírio. E quem
A profunda emoção que me invade ao falar-vos, o espasmo for o primeiro nesse caminho será o maior nesse reino de Deus.
de paixão que me arrebata, o rasgar-se de meu coração a cada Almas distantes que no Brasil tudo compreendestes, distan-
palavra não se podem medir nem calcular; mas vós o sentis, tes pelo espaço, mas tão perto do coração; que o meu abraço
embora a tão grande distância de tempo e de espaço! As lágri- vos chegue forte, profundo, imenso, como eu o sinto agora, nes-
mas que me comovem enquanto escrevo e caem sobre este pa-
1
pel, destas palavras ressurgirão e cobrirão vossos olhos quando “Venha o Teu Reino” uma das petições da oração dominical. (N. do T.)
2 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
ta solidão montanhosa de Gúbio, no mais alto silêncio da noite, presente no interior das coisas e dos seres, não admite mentiras,
com minha alma nua diante de Cristo, cujo olhar me penetra, porquanto é imanente na consciência; não admite violações
me envolve e me vence. nem fugas, pois se situa no mais íntimo do espírito humano.
Humildemente, como o último dos homens que sou, eu vos Eis a absoluta novidade deste movimento na história de
suplico, pela compaixão que pode inclinar-vos para o mais frá- todas as experiências humanas. Dele são excluídos: comando,
gil e abatido dos seres: ajudai-me a compreender este mistério riqueza, força. Ele é construção eterna e não pode, por isso,
tremendo que em mim se processa, ajudai-me a cumprir esta usar senão materiais eternos. Cada empreendimento é uma
obra imensa, cujos limites não alcanço. construção cuja durabilidade depende dos materiais utilizados.
Gúbio (Itália), na noite de 6 de fevereiro de 1934. Quem usar da espada pela espada perecerá; quem usar da vio-
lência pela violência perecerá, pois os meios usados como
Programa causa recaem depois, por força da lei eterna, inexoravelmente,
“Ama a teu próximo como a ti mesmo” como efeito, sobre seu agente.
Se o movimento não atender a estes princípios, será ilusó-
Depois do escrito anterior, Apresentação, importa de imedi- rio e caduco, como todas as coisas humanas. E qualquer ele-
ato precisar os conceitos, para evitar mal-entendidos, falsas in- mento humano que nele introduzirdes ser-lhe-á como um ca-
terpretações, transposição de metas e de princípios. runcho destruidor, uma força lenta continuamente em tensão
O conceito de Sua Voz é claro e exato. Aqui, o exponho para a destruição.
com o menor numero possível de palavras, cristalino e adaman- Como movimento social, inspira-se, portanto, em princípios
tino, qual o sinto explodir em mim, para que resista a todo cho- nunca usados pelo homem na história do mundo. Por estas ca-
que e a qualquer desvio. racterísticas, reconhecereis que ele vem do Alto, de um mundo
O princípio e o conteúdo do movimento são estrita e ex- não vosso, porque nenhum elemento vosso nele é introduzido
clusivamente evangélicos. Tudo aquilo que não pode perma- nem nele está contido; ao contrário, é cuidadosamente excluído.
necer no Evangelho de Cristo não pode igualmente permane- A imediata consequência prática desta claríssima tomada de
cer neste movimento. Não é possível distorcer em nenhum posição diante do mundo é a seguinte: se todos são admitidos,
sentido estas palavras. contanto que puros e honestos de coração, automaticamente são
As consequências são de igual modo simples e evidentes. excluídos aqueles que assim não são. Depuração, portanto, por
O movimento e quantos dele participam devem manter-se força íntima da realidade.
dentro do princípio fundamental do Evangelho: “Ama a teu Vós, da Terra2, acostumados como sois a vos mover constan-
próximo como a ti mesmo”. Não existe outro caminho possí- temente num mundo de imposição e de força, sem nada poderdes
vel. Quem não puder assimilar este princípio espiritual natu- obter sem estes meios, dificilmente vos inteirais da intervenção
ralmente estará excluído. de quais forças sutis, invisíveis e íntimas, poderosíssimas e invio-
O movimento, qual o Evangelho, é apolítico e supranacio- láveis, seja feito este movimento. Destes princípios, aqui enunci-
nal. É simplesmente humano em sua universalidade. É interior ados, emana imediatamente esta consequência prática e evidente:
e espiritual, não externo nem material, a não ser em suas últi- não podem tomar parte neste movimento os inaptos.
mas e inevitáveis consequências, as quais não tocam, de modo Por ser ele alicerçado sobre aqueles princípios, os ganancio-
algum, as normas humanas, absolutamente fora de seus objeti- sos de riqueza, de mando, de glória e poder, sempre prontos e à
vos e de qualquer discussão. espera para fazer especulação de tudo, até das coisas de Deus,
Assim sendo, o movimento é também suprarreligioso, pois não encontrarão alimento algum, o mínimo ponto de apoio e,
não atinge nenhuma expressão religiosa, mas as respeita todas, por si mesmos, se afastarão.
antes de tudo reconhecendo-as, tanto que as envolve todas num Obtém-se, então, automaticamente, sem demora, sem gas-
único amplexo. Assim faz do dividido pensamento humano to de energia, o afastamento da primeira ameaça que surge
uma potência de concepção unitária; das separadas e multifor- em qualquer movimento humano: a possibilidade de desfrute.
mes crenças, um ímpeto concorde de fé, de esperança e de pai- Evita-se que o mal possa aninhar-se nele e obtém-se ainda
xão para um Deus que deve ser o mesmo para todos, e uma sua imediata eliminação. Vede qual potência contém o im-
verdade que deve ser a mesma para todos. ponderável fator moral também nas organizações humanas.
Como tal, o movimento a todos convoca para que todos se Esse poder é tal que pode substituir esplendidamente, se ge-
unam em colaboração. Eis porque não existirão, como já se dis- nuíno, todos os vossos exércitos, as vossas complexas transa-
se no precedente escrito, nem chefes, nem subordinados, nem ções econômicas, todo esse tremendo equipamento de obri-
cargos, nem funções, nem propriedades, nem direitos, nem se- gações e vínculos que demonstram não vossa força, mas vos-
des, nem riquezas. A edificação deve efetuar-se, para cada um, sa fraqueza. E, por caminhos assim tão simples, conseguireis
no intimo da própria alma, qual obra e construção sua. Indistin- vantagens e uma perfeição que nenhuma organização humana
tamente, todos são chamados à colaboração, para que cada um pode alcançar. Aqui não existem atritos, pois não há luta nem
seja o criador, no próprio coração, do Reino de Deus. força, nem pode haver traição, porquanto não existe mentira.
Os meios humanos são, portanto, todos excluídos, porque O inimigo é externo: o mal; porém o mal não se vence com
não necessários. O novo reino deve nascer não nas organizações outro mal, mas sim com o bem.
humanas, mas no coração dos homens. E cada um deve realizar As rodas sobre as quais avança este organismo são: altruís-
essa criação antes de tudo em si mesmo, tornando-se melhor. mo (e não egoísmo), pobreza, dever, amor, sacrifício e, se ne-
Não é, pois, preciso outro chefe senão Deus, nem outro co- cessário for, o martírio. Ante o perfume destas grandes coisas,
mando exceto a voz justa da consciência. Dir-me-eis, porém: as almas perversas fogem, e, numa atmosfera assim rarefeita, os
Isto não basta para fazer uma religião. E eu vos digo: Não se indignos sufocam e velozmente se afastam para nunca mais se
trata de uma religião, mas de uma força que deve reavivar todas aproximarem. Eis as bases. Eis o tesouro que vos dará alimento
as religiões existentes. e poder, eis o exército que vos defenderá.
Para quem discordar, não existe qualquer dispositivo de co- É esta, pois, uma cruzada de homens honestos, simples-
erção como nas normas humanas, senão a perda automática da mente honestos. Não importa ciência, nem riqueza, nem pode-
posição privilegiada de seguidor de Cristo – a perda da prote-
ção da lei justa de Deus. Isso significa uma rendição à feroz 2
Aqui, o pensamento da entidade espiritual Sua Voz se substitui impre-
lei terrestre da luta e da força sem justiça. A lei Divina, sempre vistamente ao do autor. (N. do A.)
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 3
rio. Disso não temos necessidade. Atrás do justo existe uma O mundo louco arma-se contra si mesmo, com perspectivas
força tremenda: a lei Divina, que o protege. Não vos preocu- sempre mais desastrosas, de recursos tremendos em face dos atu-
peis se não perceberdes essa lei. Ela é a mais profunda realida- ais progressos científicos. Uma conflagração bélica não deixará
de da vida. Não temais se esta realidade permanecer sufocada mais nenhum homem salvo sobre a Terra, se a loucura humana
em vosso baixo mundo de dor, encoberta pela vossa densa at- não se detiver a tempo. Onde o homem assim procede, não existe
mosfera de culpa. Cada homem a sente no profundo de sua senão uma extrema defesa: o abandono de todas as armas.
consciência, como um instinto incoercível. Mas o justo, tão lo- Dizeis: Mas nós temos o dever de viver.
go haja alcançado os mais altos níveis de vida, de imediato a E eu vos digo: Quando vós, com ânimo puro, disserdes:
encontra e a sente com absoluta confiança e por ela se reco- “Em nome de Deus” – então tremerá a Terra, porque as forças
nhece seguramente amparado. do universo se moverão; quando fordes verdadeiramente jus-
Esta cruzada de homens novos se constitui hoje, no mundo, tos, quando inocentes, se a violência vos ferir, triunfando
para sua salvação. Seus componentes serão recrutados em todas momentaneamente, o infinito precipitar-se-á aos vossos pés
as classes, em todas as crenças, em todos os países. para vos dar a vitória e levantar-vos ao Alto, na condição de
Não se trata de vãs utopias. São possibilidades lógicas e triunfadores na eternidade, bem longe do átimo de tempo em
reais, baseadas sobre forças concretas, embora sejam para vós que a violência venceu.
imponderáveis. ◘◘◘
Uma só coisa basta: ser honesto. E basta sê-lo para sentir-se Eis os princípios que Sua Voz me transmite – desta vez não
irmão e unido aos irmãos honestos. Não vos reconhecereis por mais sob forma afetuosa, mas feitos de poder e conceito.
sinais exteriores, mas somente por essa íntima sensação, que Eis o que Sua Voz pede à alma do mundo. Sua alma coleti-
vos lançará irresistivelmente uns nos braços dos outros. Não va, una e livre como uma alma individual, pode escolher, e des-
vos fatigueis, como sempre tendes feito, a escavar abismos en- sa escolha dependerá o futuro. Sua Voz afasta-se, em silêncio,
tre vós em todos os campos, mas lutai para reencontrar-vos to- de quem não a segue.
dos nesta unidade substancial de espíritos. Ela é urgente, pois Eis o que Sua Voz pede, primeiramente ao Brasil, escolhido
que são iminentes e tremendos os tempos, que a impõem como para a primeira afirmação destes princípios no mundo. E esta
questão de vida ou de morte. afirmação deve ser um imenso amplexo de amor cristão. Será a
◘◘◘
primeira centelha de um incêndio que nos deve inflamar de
Nestas palavras, não minhas, mas de Sua Voz, tudo é cons-
bondade, para dissolver o gelo de ódio e rivalidade que divide,
trutivo. Nunca atacam e, se há alguma coisa para destruir, elas
esfomeia e atormenta o mundo.
com isso não se preocupam, mas a deixam em abandono, para
Este é o espírito dos novos tempos. Somente quando virmos
que caia por si; não existe mais ativo agente de destruição do
este espírito voltar à vida dos povos, é que poderemos dizer que
inútil do que um novo organismo vital em funcionamento.
Cristo voltou outra vez e está presente entre nós.
Se um corpo é velho e moribundo, afadigar-vos-eis em des-
Gúbio (Itália), na noite de 12 de fevereiro de 1934.
truí-lo? O que é verdadeiramente inútil cairá por si mesmo, sem
necessidade de se acionar uma causa de destruição violenta,
que recairia depois inexoravelmente sobre quem a movimentou. Princípios (1952)
Acreditais que, para demolir aquilo que é inútil, seja mesmo in-
dispensável a intervenção do homem, ou que ele seja capaz de O primeiro dever de uma revista que nasce é orientar clara-
guiar e escolher com segurança, e que a Lei não contenha em si mente seu pensamento e declarar com sinceridade seus objeti-
os meios para afastar aquilo que não tem razão de ser? Como vos, estabelecendo uma linha de conduta segundo princípios,
podeis crer seja isso possível num organismo totalmente regido aos quais, depois, deverá permanecer fiel.
por um perfeito equilíbrio, qual é o universo? O escopo desta revista é operar a transformação desses
A condição para ser admitido neste movimento é um sim- princípios em vida vivida, isto é, ajudar a nascer, do homem de
ples exame de consciência perante Deus. Coisa simples, pro- hoje, um tipo biológico mais evolvido, representado pelo novo
funda e imensa, fácil e tremenda. Mas isto nada é, dirá o mun- homem do Terceiro Milênio.
do. Entretanto isto é tudo, diz o espírito. Experimentai seria- Este movimento inicia-se no Brasil, tendo lambem em vista
mente e sentireis que é verdade. É esta coisa simples e tremen- sua futura grandeza como nação.
da que o homem deve hoje fazer, à margem do abismo onde, se Enunciar um princípio aqui significa, pois, vivê-lo.
não se detiver, cairá de maneira terrível. Antes de iniciar o argumento, faz-se necessária uma
E se vós, almas sedentas de ação exterior, de movimento e de premissa.
sensações, quereis evadir-vos desta íntima vida do espírito para O signatário pede desculpas se algumas vezes tiver de pro-
ingressar em vossa exterior realidade humana e trabalhar, clamar, nunciar a palavra eu. Por essa razão, é bom esclarecer e estabe-
conquistar e vencer também com os braços e com a ação, então lecer, desde o princípio, que ele nada pede jamais para si e não
vos digo: “Saí, saí de casa; ide ao vosso inimigo mais cruel, quer absolutamente ser chefe de coisa alguma. Quis, por isso,
àquele que mais vos tem traído e torturado e, em nome de Cristo, que a denominação ABAPU (Associação Brasileira dos Ami-
perdoai-lhe e abraçai-o; ide àquele que mais vos tem roubado e gos de Pietro Ubaldi) fosse substituída pela de ABUC (Associ-
cancelai-lhe o débito, e mais, entregai-lhe quanto possuís; ide ação Brasileira da Universalidade de Cristo)3, para que a ideia
àquele que mais vos insultou e dizei-lhe, em nome de Cristo: Eu se antepusesse a qualquer personalismo. E este é já um princí-
te amo como a mim mesmo, porque és meu irmão”. pio geral para ser vivido.
Direis: Isso é absurdo, é loucura, é desastroso; é impossível Outro princípio geral: o que importa não é a pessoa, mas a
sobre a Terra esta deposição de armas. Mas eu vos digo: Vós ideia.
sereis homens novos somente quando usardes métodos e recur- Estes princípios já definem a posição do subscritor, que de-
sos novos. De outra forma, não saireis nunca do ciclo das ve- verá ser sempre o primeiro a aplicá-los, vivendo-os. Sua posi-
lhas condenações, que eternamente punirão a sociedade das su- ção é de oferecer, apenas oferecer, o produto de sua inspiração.
as próprias culpas. Pela mesma razão pela qual Cristo se ofere- Isto ele já o tem feito ao mundo.
ceu na cruz, hoje a humanidade deve sacrificar-se a si mesma O Brasil, em primeiro lugar, o compreendeu e o aceitou.
por esta sua nova, profunda, absoluta e definitiva redenção.
3
Porque, sem holocausto, nunca haverá redenção. Associação instituída em Campos. RJ, no Natal de 1949. (N. da E.)
4 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
O signatário deseja apenas uma coisa: que isto seja para a Existe outro princípio que se segue a este: sejamos sempre
grandeza desta nação que ele agora aprendeu a amar imensa- construtivos, isto é, operemos em sentido positivo, unitário,
mente. Sua posição, ele o quer, deve ser apenas esta: a daquele como é o bem, e jamais sejamos destrutivos, isto é, nunca aja-
que serve, e não a de quem é servido; a de quem se põe a ser- mos em sentido negativo, separatista, como é o mal.
viço dos outros, e não a de quem os subordina ao próprio orgu- Tudo o que é agressividade é satânico. O Evangelho não o é
lho, domínio ou egoísmo; é a posição daquele que obedece, e nunca.
não a de quem comanda. Seja nossa obra todo um amplexo ao mundo e, unicamente,
Ele serve ao próximo e obedece a Deus – outro princípio um amplexo de amor.
geral para ser vivido. Guerra, jamais, a ninguém, por nenhuma razão. A vitória
Cada ato de nossa vida deve ser inspirado por estes princí- estável e verdadeira obtém-se apenas com a bondade, o amor, o
pios e pelos que exporemos depois. exemplo, a convicção.
Aquele que está em posição mais elevada, mais deverá vivê- Que o Evangelho, tão pouco vivido até hoje, se transforme
los, mais é responsável diante de Deus e dos homens. na forma de vida do homem novo, num novo método de viver,
Com tudo isto, estamos recordando que todos nós temos o que penetre cada ato nosso, demonstre que somos evolvidos e
dever do exemplo, o primeiro dever, somente com o qual se po- se manifeste com nosso exemplo a cada momento.
dem pregar quaisquer princípios, demonstrando, antes com fa- Que no terreno filosófico, político, religioso, isso signifi-
tos que com palavras, que eles podem ser vividos. De outra que tolerância. Não, porém, uma tolerância raivosa, na atitude
maneira, não se tem o direito de pregar – outro princípio geral. de quem suporta com desdém o erro alheio; ao contrário, uma,
O leitor vê como, desde a primeira enunciação, os princí- tolerância que busca os pontos de contato, os pontos comuns,
pios aqui se apresentam não teóricos e abstratos, mas numa e se alegra quando pode dizer: “Mas, então, concordamos em
forma vivida ou para viver. muitas coisas! Não estamos, pois, tão distanciados quanto nos
Quem quiser buscar-lhes a justificação sistemática e racional parecia. Podemos entender-nos um pouco e não há necessida-
poderá aprofundar-se em seu estudo nos volumes do subscritor, de de contenda”.
também oferecidos ao mundo para que aqueles que amam o co- Em sua saudação, repetida em quase todas as conferências
nhecimento aprendam, saciando a inteligência. Ele apenas ofere- no Brasil, o signatário afirmou seus dois princípios fundamen-
ce, por uma convicção espontânea, sem jamais impor. tais: universalidade e imparcialidade.
Eis-nos diante de outro princípio geral para ser vivido: ofe- Que significam eles?
recer, e nunca impor a verdade. Eis o patrimônio espiritual de São o emblema do homem novo.
cada consciência. Nunca introduzir-se na alma alheia com a vi- Sua Voz, já na primeira Mensagem do Natal, em 1931, esta-
olência da argumentação, numa guerra de ideias, para subjugar belecia estes princípios fundamentais, que são, depois, desen-
o semelhante; antes, procurar todos os meios de comunicação volvidos em toda a obra:
que conduzem à compreensão. “Falo hoje a todos os justos da Terra e os chamo de todas as
É lei vital que a época dos absolutismos, dos dogmatis- partes do mundo, a fim de unificarem suas aspirações e preces
mos, dos imperialismos ideológicos, hoje se vá superando e numa oblata que se eleve ao céu. Que nenhuma barreira de reli-
eliminando. gião, de nacionalidade ou de raça os divida, porque não está
A nova era é da bondade na compreensão recíproca; da longe o dia em que somente uma será a divisão entre os ho-
convicção de todos no seio de um mesmo Deus; é a era do mens: justos e injustos... Minha palavra é universal... Uma
amor. O princípio é: procurar o que une e evitar o que divide. grande transformação se aproxima para a vida do mundo...”.
Sendo dever nosso viver tudo isto, conclui-se que, aqui, será Brevemente, o mundo se organizará sobre um princípio no-
sempre evitado o espírito de polêmica, pois este é considerado vo, que não será dado por um imperialismo religioso, isto é, pe-
como expressão da psicologia de um tipo biológico atrasado, la vitória de uma religião que, por absolutismo, se imponha a
que está sendo cada vez mais superado pela evolução. todas as outras. Não é por este caminho que se chegará à unida-
Nosso método, portanto, é de nunca oferecer aos ávidos de de, a saber, um só rebanho e um só pastor.
polêmica a resistência de outra polêmica, isto é, o mau exemplo O único pastor será Cristo, e o único rebanho será formado
de luta e guerra. por uma humanidade em que as várias religiões não se comba-
Seja nosso método o do Evangelho. tam e não se condenem mais reciprocamente; ao contrário, se
Este é o método dos evolvidos, ao passo que o outro é o mé- compreendam e coordenem, fazendo dos homens todos filhos
todo que logo revela o involuído, biologicamente atrasado. É o diante de um único Deus, um só Deus, pai de todos.
único método que vence, pois, enquanto ambas as partes se di- Esta compreensão e coordenação é a primeira forma em que
laceram na luta, ganhando apenas em ferocidade e perversida- se revelará o amor em sua era, que está para surgir – a nova ci-
de, com nosso método o antagonista, não encontrando alimento vilização, o Reino de Deus.
para seu espírito de agressão, por si mesmo se desarma e cai. Como aplicaremos este princípio? Fraternizando. Se os ou-
Como se vê, os nossos princípios não são uma novidade, tros condenam, perdoemos e amemos.
pois que são os conhecidíssimos princípios do Evangelho. Pro- Como respondeu Cristo aos agressores? O seu método seja o
pomo-nos apenas a vivê-los seriamente, convencidos de que nosso método. Aos ataques, às polêmicas, às condenações, res-
disso pode nascer hoje o homem novo e, com ele, uma nova ge- pondamos com o exemplo da compreensão. Demonstremos com
ração e uma grande nação. os fatos que o homem novo possui um novo método de vida e
Este deve ser o método usado, pois é o que revela a própria abandonemos o velho método ao homem do tipo do passado.
natureza, o próprio tipo biológico de evolvido ou involuído, a Este vive mais no exterior que no interior. Suas inclinações
própria superioridade ou inferioridade. se dirigem, de preferência, às manifestações exteriores da fé:
A ideia de vencer esmagando o adversário revela imediata- seguir determinada escola, igreja ou grupo, dar-se a certas prá-
mente o involuído. Ainda quando isto se faça em nome de ver- ticas visíveis.
dades absolutas e assim se justifique, na realidade exprime bio- Aquele que compreende e tem a força de renunciar às mani-
logicamente instintos de agressão. festações, indispensáveis aos primitivos, recolha-se o mais que
Compreendamos que a verdade é relativa e progressiva, puder na religião de substância, que é interior, sozinho quando
portanto nos foge em seu aspecto absoluto. Nós, relativos, não for necessário, para eliminar ataques e dissídios da religião de
podemos possuí-la senão por progressivas aproximações. forma, que é exterior.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 5
A maioria não sabe pensar senão fisicamente, com movi- ção. Outros deles, porém, embora verbalmente se confessassem
mentos do corpo e da boca. O evolvido, porém, sabe que a reli- e, nas práticas religiosas, se manifestassem perfeitamente orto-
gião de substância, mãe de todas as religiões, está acima da doxos, não viviam inteiramente seus princípios, demonstrando,
forma e de toda manifestação sensória; é uma religião mais pro- com fatos, que, em realidade, neles não acreditavam de modo
funda, sentida e vivida, feita de alma e de ação, não de práticas absoluto. Isso me encheu de tristeza.
materiais, na qual todas as religiões encontram lugar. Achei-me, depois, entre os protestantes e os observei. Mui-
Esta, verdadeiramente, é a religião. tos deles eram sinceros e convictos e viviam aplicando, real-
As religiões têm três fases. A primeira, a mais antiga, é a ter- mente, os princípios de sua religião. Sua verdadeira fé me en-
rorista, feita de um Deus vingativo, que se faz obedecer inexora- cheu de admiração. Outros deles, porém, embora verbalmente
velmente, punindo com a lei de talião. A segunda, mais recente, é se confessassem e, nas práticas religiosas, se manifestassem
a ético-jurídica, feita de uma codificação de normas de vida. perfeitamente ortodoxos, não viviam inteiramente seus princí-
É o evolver da natureza humana inferior que pode permitir pios, demonstrando, com fatos, que, em realidade, neles não
uma manifestação de Deus e fazer transparecer cada vez mais acreditavam de modo absoluto. Isso me encheu de tristeza.
Sua bondade. Achei-me, também, entre os espíritas e os observei. Muitos
Somente hoje, a maturação humana pode permitir que, sem deles eram sinceros e convictos e viviam aplicando, realmente,
o perigo de abusos, antes temíveis, seja possível passar à tercei- os princípios de sua doutrina. Sua verdadeira fé me encheu de
ra fase, da compreensão, na qual as religiões são livres e con- admiração. Outros deles, porém, embora verbalmente se con-
victas, cada vez mais transformadas da forma, em que lutam os fessassem e, nas práticas formais, se manifestassem aderentes à
interesses, em substância, que é amor. sua doutrina, não viviam inteiramente seus princípios, demons-
Elas se sucedem, não porque sejam sancionadas por penali- trando, com fatos, que, em realidade, neles não acreditavam de
dades (inferno), mas porque se compreende que significam o modo absoluto. Isso me encheu de tristeza.
nosso bem. Achei-me, depois, entre os teosofistas, os maçons, os mao-
Nesta fase, cai e perde a significação o terror de um Deus metanos, os budistas etc., e observei o mesmo fenômeno.
vingativo. Encontrei-me até entre ateus, materialistas convictos. Não
Assim, por evolução, do conceito de um Deus todo força, o obstante, entre eles, encontrei os que procuravam viver segun-
senhor com o azorrague, como era o homem com seus escra- do superiores princípios de retidão. Senti respeito por eles.
vos, árbitro absoluto de tudo conforme seu capricho, passa-se Qualquer convicção vivida com retidão merece respeito. O que
ao Deus justo, que respeita completamente a lei estabelecida me encheu de tristeza foi ver o ateu materialista, animalesca-
por Ele próprio, assim como o homem moderno deve respeitar mente involuído, somente animado de instintos egoístas para
as leis que ele cria para si mesmo no Estado. prejudicar o próximo.
Desse modo, por evolução, passa-se agora ao conceito de ◘◘◘
um Deus não só justo, mas também bom, que nos ama para a Observando-os todos, perguntei a mim mesmo então: a di-
nossa felicidade, como o homem civilizado e compreensivo de
visão real, verdadeira, é entre homens de uma religião, doutrina
amanhã amará seu próximo nas grandes unidades sociais do fu-
ou crença, ou é, antes, entre os homens sinceros e honestos e os
turo. Assim, por lento transformismo, o terror, na progressiva
homens falsos e desonestos, que se encontram no seio de todas
reabsorção do mal, operada pela evolução, desfaz-se na justiça,
as religiões, doutrinas e crenças? Apesar das várias divisões
e esta se aperfeiçoa e se enriquece no amor.
humanas, em cada uma delas, sempre encontrei esta outra divi-
Hoje se passa da segunda à terceira fase. Ainda se funde e
são universal entre bons e maus.
se confunde o útil com a verdade. O interesse predomina, por-
Perguntemos a nós mesmos então: não será esta a verdadei-
que predomina a forma. O rebanho, para ser apascentado, a que
ra distinção, muito mais real que a outra, em que tanto se insis-
tanto aspiram as religiões, tem sido transformado muitas vezes
em rebanho para mungir, propriedade do pastor. te? Pertencer ao primeiro tipo de homem, antes que ao segun-
Pelo princípio das grandes unidades, a evolução leva à do, não será muito mais importante e decisivo do que pertencer
unificação e guia hoje o mundo em todos os campos – logo, a um determinado agrupamento religioso? Que importa perten-
no religioso também – à fase orgânica, em que não há luta de cer a esta ou aquela religião, quando não se é sincero nem ho-
rivais, mas colaboração de irmãos. Penetra-se na fase do nesto? Não é isto o fundamental em qualquer campo? E não é,
amor. O mundo se distancia cada vez mais da primitiva fase então, esta a mais importante entre todas as divisões humanas,
caótica, e a ordem se faz sempre mais compreendida, convin- muito mais do que a atualmente aceita? Não será essa a divisão
cente, espontânea. que Deus mais assinala, de preferência à outra, que se refere,
O Brasil, dentre suas qualidades, tem, sobretudo, a da tole- mais do que à bondade do homem, aos interesses humanos que
rância recíproca: ausência de intransigência, de absolutismos, em torno dela se agrupam?
de racismo. É, pois, acima de tudo, a terra do amor, ainda que Qual é o fato mais decisivo para a edificação do homem (is-
este esteja, muitas vezes, apenas em suas manifestações mais so constitui o objetivo de todas as crenças): conhecer os por-
elementares. Já é, contudo, amor e pode subir. menores dogmáticos e doutrinários na ortodoxia da letra, ou
Como representa a fusão das raças, também representa a ca- haver compreendido o simplicíssimo princípio do bem e do
pacidade de fusão de ideias. Esta capacidade do Brasil, de amar mal, princípio universal, existente em todas as religiões, inscri-
em todos os níveis, se for desenvolvida em direção ao espírito, to no espírito humano, e, sobretudo, viver esse princípio?
poderá amanhã fazer do Brasil a nação mais capaz de compre- A verdadeira distinção, nesse caso, não é a atualmente vigo-
ender, representar e divulgar no mundo aquilo que aqui cha- rante em nosso mundo, entre católicos, protestantes, espíritas,
mamos religião, isto é, a religião de substância, que é a religião teosofistas, maçons, maometanos, budistas etc., mas sim entre
do exemplo, da bondade e do amor. justos e injustos. Esta é a distinção substancial, que tem valor
diante de Deus, muito mais importante que a outra, que pode
A Verdadeira Religião (1952) ser apenas formal. Pode-se mentir na segunda, que é fictícia,
mas nunca na primeira, que é real.
Encontrei-me, viajando pelo mundo, em todos os ambientes. Por que, então, tantas lutas religiosas e doutrinárias? Não
Achei-me entre católicos e os observei. Muitos deles eram têm elas outro valor senão a defesa do patrimônio conceptual
sinceros e convictos e viviam aplicando, realmente, os prin- do grupo e os interesses que dele dependem? Por que, então,
cípios de sua religião. Sua verdadeira fé me encheu de admira- não reduzir todas as crenças a esse seu denominador comum,
6 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
que é a sua substância, em que todas se encontram, além de to- o mal tudo que está fora de seu eu, do seu grupo ou hierarquia,
das as divisões? E por que não achar nessa substância a ponte nem condena em defesa própria. Não se faz representante de
que as une todas numa característica comum, em lugar de pro- Deus para dominar com sua personalidade, mas reconhece em
curar as especulações sutis que podem dividi-las? Por que não Deus o Pai de todos.
parar e insistir no que importa acima de tudo: a bondade e a O homem está evolvendo, e a religião dos justos será a reli-
evolução do homem? gião unitária que a todos entrelaçará. O estado até hoje vigente
Tudo isso é importantíssimo para a fusão das almas no ca- corresponde à fase caótica do mundo. Ele caminha, porém, para
minho da unificação, que é o futuro do mundo em todos os a fase orgânica, na qual os relativos pontos de vista, em todos
campos. Daí nasceria um grande respeito recíproco, uma nova os campos, se coordenarão numa verdade universal.
possibilidade de compreensão, um superior espírito de fraterni- A religião una será a substancial, a religião do bem e dos
dade. O cioso amor à ortodoxia, justificável em outros tempos, bons, que se compreenderão, por serem evolvidos. Para essa
excitado até ao ponto de preferir a letra ao espírito, pode signifi- compreensão, os involuídos ainda não estão maduros, pois só
car uma satânica falsificação da fé na psicologia farisaica, en- podem crer que a salvação depende apenas da filiação a esta
fermidade de todos os tempos e de todas as religiões. Pode, en- ou aquela forma da verdade, sem cuidar da substância, que
tão, acontecer que se faça da religião o que sempre se tem feito pode estar em todas as formas. Tudo isso, porém, será fatal-
do amor à pátria, que, embora santo em si, se transforma em mente superado.
agressividade e guerras contra outras pátrias. Ora, assim como É lei de evolução que o dualismo em que se dividiu nosso
esse tipo de amor nacional, hoje em vias de desaparecimento, universo se vá reconstituindo gradativamente, em todos os
está superado pela vida, que caminha para a unificação social, campos, em sua originária unidade, de que o espírito caiu na ci-
também será superado nas religiões o espírito de absolutismo e a são, na forma, na matéria. É fatal lei de evolução que chegue
intransigência, pois a vida se dirige para a unificação religiosa. finalmente à Terra a tão esperada realização do Reino de Deus.
É necessário, assim, abandonar o espírito separatista de do-
mínio em nome de absolutismos, por uma verdade que, na Ter- Carta Aberta a Todos (1933)
ra, para o homem, não pode deixar de ser relativa e progressiva,
isto é, em função de sua capacidade evolutiva.
Completam-se, hoje, dois anos desde que Sua Voz começou
A vida, hoje, caminha para a colaboração por compreensão
a falar. É Noite de Natal, e eu me afasto por um momento da
em todos os campos, e os imperialismos, políticos ou religio-
reunião familiar, para meditar e escrever.
sos, pertencem a fases que estão sendo superadas. Os imperia-
Este é um exame público de consciência, que efetuo na hora
lismos espirituais retardam a unificação, que se situa justamente
solene em que se aguarda para comemorar, uma vez mais, o
no campo das convicções e das consciências e não pode ser ob-
nascimento do Salvador do mundo.
tida com o espírito de absolutismo e de domínio.
Não sei qual imenso espanto me invade nesta hora solene,
◘◘◘
na qual o homem é vencido pela maravilhosa voz de Cristo. Ex-
Qual é, pois, a religião de substância em que poderão paci-
ficar-se todas as distinções humanas, encontrando-se em seu tasio-me na visão de um mundo regenerado por essa voz e nela
denominador comum? detenho-me, buscando descanso. É a noite encantada na qual o
A religião de substância é somente uma. A ela pertencem grande signo do amor adquire realidade também sobre a Terra.
todos os honestos que creem sinceramente e vivem suas cren- Cristo está aqui conosco esta noite, para nossa paz.
ças, sejam católicos, protestantes, espíritas, teosofistas, maçons, Amanhã terei que volver a empreender a caminhada sozi-
maometanos, budistas etc. nho, exausto, com uma imensa visão na alma, uma febre inces-
Estão, ao contrário, fora da religião todos os falsos, os injus- sante no coração, um estalido de paixão em cada pensamento.
tos, os que interiormente não creem (embora formalmente em Sinto-me oprimido pela minha debilidade e pela imensidão do
seus lugares), os que não vivem suas crenças, sejam católicos, programa. Quem sou eu para me atrever a tais tarefas? Haverá
protestantes, espiritistas, teosofistas, maçons, maometanos, bu- alguém mais aterrorizado e mais aniquilado do que eu? Cum-
distas etc. Estes então se igualam, pois representam a traição à prirei totalmente com o meu dever e haverei de cumpri-lo no
ideia que professam. futuro? Terei forças suficientes para fazê-lo? Vou mendigando
Na “Mensagem de Natal” de 1931, diz Sua Voz: “... não está um consolo a todas as almas boas, para que me sirvam de
longe o dia em que somente uma será a divisão entre os ho- apoio à minha debilidade. Se Sua Voz me abandonasse, eu me
mens: justos e injustos”. Na Terra, em todos os campos, exis- sentiria completamente arruinado.
tem sempre dois tipos humanos: o evoluído e o involuído. En- Entretanto, hoje se completam dois anos que essa voz re-
contram-se em todas as filosofias, governos, religiões, hierar- tumba no mundo e o mundo a escuta. Nada me havia causado
quias e povos. jamais tanto assombro como esta afirmação decisiva, sem pre-
O involuído vive sempre no nível animal, é animado pelo paração alguma de minha parte, nem vontade, num mundo on-
espírito de dominação e é, por isso, intransigente e agressivo; de, com frequência, as coisas mais sabiamente preparadas e
fecha-se na forma, desprezando a substância; é mais ligado à mais intensamente queridas não obtém êxito.
Terra que ao céu; julga-se, em todos os campos, sempre com a Como pode avançar tudo isso com a abstração da minha de-
posse da verdade e da parte de Deus, julgando todos os outros bilidade e hesitação? Como pode produzir efeito e arrastar meu
como situados no erro e da parte de Satanás. Tende à egocêntri- pensamento, que deveria ser sua causa? Que força convincente
ca monopolização da Divindade. reside naquelas palavras escritas improvisadamente, sem que
O evolvido tem características opostas. Vivendo num nível delas eu me desse conta, para conseguir o assentimento de tan-
mais alto, é animado pelo espírito de fraternal compreensão; tos? Que sensação de infinito desperta e abala os espíritos?
tolera e auxilia; fala com o exemplo, dando, e não dominando; Tremo e, no entanto, avanço. Quisera resistir por um instin-
é mais aderente à substância que à forma, mais unido ao céu to de objetividade, e me vejo arrastado. Quem é, então, que me
que à Terra. Não julga nem condena. Tende a anular seu eu em guia? E quem, por mim, conhece a estrada e o futuro? Sofro de-
Deus e no amor ao próximo. Não se faz paladino da verdade salentos terríveis, no entanto, apesar disso, tudo prossegue do
para exigir virtude dos outros, mas começa por praticá-la ele mesmo modo. Que sou eu diante do imenso torvelinho de for-
mesmo; ilumina, não impõe, pois respeita as consciências. Não ças que me rodeiam? Que outro grande mundo existe além des-
pretende ser o único que tem Deus consigo. Não identifica com te que todos veem e creem ser o único?
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 7
Parece indubitável que meu trabalho faça parte de um cada recôndita dor da experiência, tornou-se mais clara. Assim
grande programa de renovação mundial, que ignoro e que não foi aumentando, completando-se num organismo ideológico, so-
pode deter-se. Rebelar-me ou vacilar seria em vão. Isto já é to- lidificando-se sob o fogo das provas. Depois do largo aprendi-
da a minha vida. Não conheço o futuro, mas sei muito bem que zado na escola da experiência, em contato com a realidade, in-
todo movimento iniciado não se poderá deter, a menos que te- vadiram minha psique racional e humana e agora, depois da total
nha completado sua trajetória. assimilação, dominam-na, conferindo-lhe, ante os mais graves e
Nesta Noite de Natal, todos vós, homens de boa vontade, intrincados problemas do pensamento humano, a segurança que
que sentis uma fé viva, uma paixão de bondade, uma alma aber- somente pode outorgar a visão direta. Não mais, pois, vãs ideo-
ta às palavras de Cristo – não importa como a sintais e a mani- logias, porém sim a sabedoria expressa pela luta e pela dor; a
festeis, desde que essa paixão arda dentro de vós em substancia experiência provada e concluída com objetividade, mesmo
– ajudai-me a orar junto ao berço para que o Santo Menino nos quando pessoal, controlada e direta; não mais uma abstração,
faça compreender esta sublime maravilha que desceu do céu senão – o que é mais interessante – um caso vivido.
sobre a Terra: o amor fraternal. O leitor se encontrará, portanto, diante da realidade de um
Parece-me ver o Grande Rei, que veio à Terra por amor, ir drama e senti-lo-á, se lograr ler profundamente, ultrapassando o
mendigando de porta em porta, por este nosso triste mundo, sentido superficial, lógico e racional que precisei escolher para a
implorando-nos por caridade, pelo amor de Deus, um pensa- demonstração e o desenvolvimento da tese. Um drama sobretu-
mento de bondade para os nossos semelhantes. do verdadeiro; um drama que, sem dúvida, existiu também em
Perusa (Perugia, Itália). Vigília do Natal de 1933 muitos espíritos, perdurando ainda em muitos outros, se bem
que encoberto pelo silêncio. Um drama que talvez seja o maior
SEGUNDA PARTE – A EVOLUÇÃO ESPIRITUAL (1932) que a humanidade conheça, porém que poucos o vivem inten-
samente e percebem com clareza. Um drama que deverá ser de-
Premissa senvolvido pela nova filosofia, pelas novas religiões, pela nova
ciência, pela nova arte do futuro, e que poderá ser expresso por
Tratarei, nesta monografia, da evolução espiritual. Fá-lo-ei uma série de argumentações racionais com a magnificência do
em forma de trilogia, com o objetivo de dar equilibro e propor- simbolismo e do rito, ou com a concatenação de fórmulas ma-
ção à estrutura conceptual e nexo lógico ao desenvolvimento do temáticas e em expressão pictórica ou poética das sensações do
tema, tratando: I - Concepção; II - Os meios; III - A Realização subconsciente, ai onde está o futuro da alma e da arte, ou com a
da Evolução Espiritual. orquestração sinfônica, tal como foi concebida por Wagner.
A necessidade de tratar numa única monografia um argu- Wagner vinculou estas concepções ao pensamento coletivo,
mento tão vasto, que não poderia esgotar-se em muitos volu- demonstrando a universalidade das mesmas; concedeu-lhes
mes, impôs-me uma síntese que concluirá sem poder se deter uma importância que excede a minha contribuição pessoal.
nas intermináveis particularidades de uma análise, sem poder Publico-as, induzido por um misterioso, indefinível, mandato
completar-se com o desenvolvimento de questões colaterais, a interior, sob a atração das correntes psíquicas coletivas em via
que tive de renunciar inexoravelmente. de rápida condensação, sob a sensação da madureza dos tempos,
Não obstante este contínuo esforço de condensação de pen- que invocam e reclamam intérpretes. Só o percebe a alma que se
samento, a vastidão do tema nos fará percorrer os campos mais preparou no silêncio e na solidão, sozinha num mundo espiritu-
diversos dos conhecimentos humanos, desde as concepções da almente ausente e alucinado por outras miragens. Grandes tem-
ciência moderna à história comparada das religiões; desde o pestades íntimas, filhas do mistério, junto ao umbral do infinito,
conteúdo espiritual destas e do pensamento dos grandes cam- desenrolaram-se silenciosamente sob a forma exterior da indife-
peões da humanidade até ao estudo psicológico da introspec- rença, em meio a um mundo superficial e absolutamente incapaz
ção, que nos levará às misteriosas profundidades do espírito. De de admitir e compreender tais fatos, que representam sem dúvi-
maneira que, mesmo quando se queira considerar este escrito da um esforço enorme. Uma luta agônica, na qual o homem se
somente sob o ponto de vista cultural, não duvido que possa in- encontra sozinho frente a frente aos maiores mistérios!
teressar às mentalidades maduras, convidando-as ao exame de Se tudo isto reduz o indivíduo a uma vida aparentemente in-
argumentos ultramodernos, interessantes e importantes, por- significante, pois o afasta de toda a afirmação exterior e absor-
quanto constituem o campo inexplorado ao redor do qual traba- ve suas melhores energias, privando-o das vitórias que os ou-
lham a filosofia, as religiões, a ciência e as artes; o campo dos tros podem alcançar, termina, contudo, por acumular nele ta-
futuros descobrimentos e das criações intelectuais e morais. manho caudal de força moral, que um dia lhe criará uma vida
Este escrito, porém, não é tão-somente um ato de estudo e nova, iluminada numa explosão de luz, como uma ressurreição.
investigação, nem apenas um trabalho mental, mas também um Assim, esta monografia poderá interessar também como es-
trabalho de sentimento e de paixão. Nele reside sua maior im- tudo de um caso psicológico e de um determinado tipo de per-
portância. Não se trata da mentira literária de costume, com que sonalidade humana.
frequentemente um escritor prefere mascarar mais do que reve-
lar seu próprio espírito. É coisa bem rara, especialmente hoje, I - Os Caminhos da Libertação
um ato de grande sinceridade.
Os conceitos que exporei, buscados ansiosamente durante Delineamos na primeira parte deste estudo a existência de
vinte anos de estudo (pois que à vida não deve interessar tão uma evolução espiritual, que se manifesta especialmente no
somente a solução dos problemas econômicos, senão também o atual momento histórico, como resultado de dois fenômenos: a
intelectual e moral), foram captados no ambiente das correntes madureza psíquica do organismo humano, que, superando a
espirituais da humanidade passada e presente, e não extraídos animalidade, conduz à transformação biológica do homem em
dos trabalhos de outrem. Achei-os e reconheci-os, qual uma es- super-homem, e a maturidade do pensamento coletivo da hu-
tranha recordação, nos arcanos insondáveis de meu espírito. manidade, que ascende, através da evolução das religiões, para
São, para mim, a revelação de uma recôndita personalidade uma consciência universal.
própria; diria quase de um oculto eu interior, que vive e obra Duas madurezas: madureza de órgãos psíquicos, que deter-
além dos limites da vida e da morte. mina a capacidade de concepções, e madureza de produtos con-
Estes conceitos manifestaram-se para mim gradualmente, ceptuais do pensamento coletivo. Duas madurezas que se pres-
como por uma interna revelação, que, a cada choque da vida, a supõem reciprocamente, se ajustam e se sustêm mutuamente,
8 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
para levantar a humanidade ao plano da linha de evolução espi- gem que desejaria apagar. Submerso em seu próprio egoísmo,
ritual, conduzindo-a a um novo e mais elevado estado de cons- não enxerga mais além do que o espaço que ocupa, e sua miopia
ciência. Na terceira e última parte deste escrito, veremos qual é psíquica o faz acreditar ser possível a separação do bem-estar
esta consciência. Antes de chegar a este ponto, observemos, próprio do bem-estar coletivo. Tão-somente o interesse desperta
nesta segunda parte, quais são os caminhos que conduzem à re- seu desejo, dispondo-o à ação; a miragem do lucro o impulsiona,
alização da evolução espiritual. lançando-o à conquista. Deste modo, ele projeta, ensaia, exercita
Denominei-os, ex-professo4, “caminhos da libertação”, para e tempera suas forças, progredindo quando vence e sucumbindo
indicar de quantas qualidades humanas e subumanas devemos, quando perde. É o sistema da seleção, que premia o mais forte,
como almas em expiação, libertar-nos antes de alcançarmos o graduando a recompensa em proporção à força. Existe uma jus-
reino do super-homem. Grandiosa ascensão humana, que, par- tiça também nos mundos inferiores, e, mesmo quando seja por
tindo do inferno da animalidade (o mundo da besta), atravessa o meios ferozes, dignos por certo de quem os escolhe, também os
purgatório da dor, que redime (o mundo humano), para chegar seres deste nível podem realizar um progresso.
ao paraíso da realização do divino (o mundo super-humano). A Há, pois, uma lei, e, nesta lei, uma série de princípios: da
lembrança da trilogia dantesca e da fé na ascensão espiritual – involução deriva a ignorância; desta, o egoísmo; do egoísmo, o
que não pertence somente ao poeta, mas a toda a Idade Média e sistema da força; desta, a seleção e o progresso, de um lado, e
à maior religião do Ocidente – nos fará uma boa companhia o mal e a dor, do outro.
neste estudo, que pretende ser uma demonstração racional do Este mundo de leis naturais não conhece a justiça, que é
espiritualismo. Demonstração daquela mesma fé, porém de conceito novo, de um mundo mais elevado. A força, frente à
acordo com os conceitos da ciência e da psicologia modernas; lei moral, é violação e injustiça. Entretanto esta injustiça, que
uma solidificação dos fundamentos desta eterna e imprecisa as- parece não possuir limites, porquanto a força pode tudo e tudo
piração da alma para o Alto, batendo-a sobre a bigorna da ob- poderia destruir e usurpar, impondo-se desmedidamente, tem
servação objetiva; elevação, ao mesmo tempo, do materialismo um freio em sua própria lei: a força que se desencadeia dos
para o espiritualismo, continuando e completando o primeiro, egoísmos limítrofes, uma tentativa de equilíbrio, um rudimen-
justificando racionalmente o segundo. Não mais ecletismo, mas to de justiça, que, mesmo tomando por unidade de medida a
fusão entre estes dois extremos do pensamento humano, incon- injustiça da força, garante a cada ser o que lhe corresponde e,
ciliáveis tão-somente na aparência e transitoriamente; e, mais através do equilíbrio de tantas injustiças, consegue uma espé-
do que fusão, fecundação, já que, de sua união, nasce uma cria- cie de justiça primitiva, o máximo que é possível conceber
tura nova, um espiritualismo científico, que é a verdade mais naquele nível de vida.
completa do futuro. Não sendo materialismo e nem espiritua- Num mundo em que devorar-se reciprocamente é uma ne-
lismo, os partidários de ambas as escolas ficarão insatisfeitos, cessidade primordialmente orgânica e os vários graus de evolu-
porém não importa. Com isso, projeta-se uma luz nova sobre os ção são uma necessidade lógica, poderá parecer difícil pergun-
eternos problemas, agrega-se algo às filosofias do passado. tar-se como conseguiu nascer e afirmar-se o conceito de altru-
Uma fé viva, que não está fossilizada nas mentiras convencio- ísmo, bondade e justiça, tão prejudicial para o eu, tão antivital,
nais a que hoje ficaram reduzidas as mais altas idealidades; porquanto se estriba no abandono de todas as ofensas e defesas;
uma fé mais próxima da nova psicologia dos tempos, que exer- um conceito de vida que revoluciona todos os valores anteriores
ce forte pressão; uma fé da qual, para aqueles que, como eu, a e que significa uma tão completa negação de tudo quanto pode
possuem, é mister dar o testemunho. ardentemente apetecer a natureza. O que este conceito represen-
Voltemos aos conceitos com que iniciamos este estudo, os ta na economia da vida até pareceria absurdo, no entanto, em
quais deixamos no meio da primeira parte para estudar a evolu- seu nome, alguns homens se atreveram a rebelar-se contra tudo
ção das religiões. A minha insistência sobre esta ordem de idei- o que significa vida em nosso planeta, vivendo fora das leis da
as poderia fazer taxar-me de materialista, no entanto assim o fiz animalidade, sem sucumbir, mesmo quando se haviam despoja-
deliberadamente, porque julguei isto necessário para lançar ba- do das armas de ataque e defesa, antes triunfando, já que eles
ses mais sólidas ao edifício do espírito e, daí, libertar-me num foram gênios e santos. Qual era, pois, essa força que os susten-
impetuoso voo para as mais altas ascensões humanas. Delinea- tava? Existe, então, uma ainda mais sutil e mais potente, uma
rei, desta maneira, novos aspectos da evolução espiritual. força mais “forte” do que aquela indispensável para a vida, ca-
Existe na Terra, sem ir buscá-lo em outras partes, um inferno paz de impor-se a todos, mesmo renunciando à luta?
constituído pelo mundo animal e subumano, no qual tomam par- Normalmente, de acordo com a lei da força, que domina a
te a besta, o homem de raça inferior e, amiúde, também o cha- Terra, o sistema de altruísmo, bondade e justiça vale menos do
mado civilizado. Este mundo possui a sua lei, e os instintos fe- que um escrúpulo inútil. É verdadeira passividade, é gravame
rozes destes seres são os artigos escritos nas formas de vida da- que trava e, pior ainda, é sinal de debilidade, que preludia a der-
quela lei. Aí reina, como valor supremo, a força. Cada ser é uma rota. Aquele que renuncia agredir e defender-se, aquele que
arma, um assalto contínuo, ameaça incessante para todos os de- oferece a outra face às ofensas, como quer o Evangelho, aquele
mais seres. Cada vida não pode aí existir a não ser impondo-se a que se recusa a afundar suas garras na carne alheia para alcan-
todas as demais pela força, como uma extorsão. O indivíduo, pa- çar uma vantagem e, por princípio, não quer obter pela força
ra afirmar-se, deve semear a destruição ao seu redor. Para viver, todos os infinitos prazeres da vida, é derrotado, reduzindo-se a
deve matar. Resulta disso um estado de agressividade e violên- uma existência de dor, ilimitada na expansão, é um vencido à
cia, de incerteza e de luta sem descanso, a fase involuída na his- margem da lei, um desterrado do mundo, uma nulidade que se
tória da vida, na qual as distintas formas ainda não se organiza- destrói. Aquele que segue os ideais superiores, observado pelo
ram em simbiose e lançam-se desordenadamente à conquista do reino da força e com a psicologia da força, parece inerme, inde-
predomínio. O próprio homem, desde há muito tempo, empre- feso, ridículo. É facilmente assaltado, aniquilado sem esforço,
endeu esta luta e a venceu, correspondendo-lhe então, como quase por gracejo. Entretanto o vencedor, nesse mesmo instan-
vencedor, organizar em nosso planeta uma forma de vida dife- te, assim como os que crucificaram Cristo, sente naquela derro-
rente, sobre a base de coordenação, e não de agressão. Contudo ta, naquela debilidade, o mistério de uma força maior, que sur-
é muito recente a recordação e ainda muito fortes os baixos ins- ge de longe, como um estrondo de trovão, despertando um eco
tintos, de modo que, geralmente, ele vive naquele mundo selva- terrível nas profundidades do espírito. Um relâmpago arroja um
facho de luz em sua alma cheia de trevas, revelando o ignoto, e
4
Como quem conhece a fundo a matéria ou assunto; magistralmente. ele pressente a realização de vidas mais vastas, intui o que é
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 9
justo. Assim, o vencedor, no mesmo instante de sua vitória, ex- nos, produto da evolução da vida, a especialização para as apti-
perimenta a sensação da derrota. Então, num calafrio de espan- dões psíquicas, outorgadas por acumulação de experiências, tra-
to, treme e foge, ou melhor, permanece e venera. O vencido ria o afastamento dos vínculos e a desagregação social, se não os
olha do alto como um vencedor, e tal o é, pois descobriu e reve- aproximasse outra necessidade e outra força não reorganizasse
lou uma forma de vida mais elevada e nela triunfa. estes especializados em um organismo coletivo mais vasto, onde
As forças naturais emudecem, desconcertadas, ante este a atividade de cada um segue as linhas de maior rendimento, da-
estranho ser sem armas, que proclama uma assombrosa lei do pelo trabalho no campo das faculdades adquiridas. Esta força
nova e parece pertencer a outro mundo. Qual é esta força tão são os ideais, que, em oposição à violência, constituem o cimento
inexorável, esta nova lei ante a qual o mundo natural treme e precioso que amalgama os instintos egocêntricos e exclusivistas
se dobra? Existem, por acaso, dois sistemas de vida possíveis, em um organismo coletivo maior e mais potente. É assim que os
duas leis, dois mundos próximos e em luta, entre os quais os- ideais, enquanto satisfazem uma necessidade e alcançam um be-
cila a vida do homem? nefício, abrem passagem e traduzem-se em realidade. Eis aqui
Querer concluir sem levar em conta a importância da força uma segunda restrição que a força encontra em si mesma. Ela é
na economia da vida, seria, quando menos, apressado. Foi a um fator de evolução que se manifesta para destruir-se, ou, em
força bruta quem realizou e segue realizando a seleção no reino outros termos, é um fator transitório na grande rota da libertação.
animal. Este é também um modo de progredir, um tipo de téc- A força possui um valor imenso em determinadas circunstâncias
nica evolutiva, mesmo quando implica a gênese da dor, um as- de vida e ambiente, mas conserva seu domínio apenas enquanto o
pecto da grande lei de ascensão, se bem que nos graus mais exijam as supremas necessidades do progresso. A série dos abu-
baixos. A justiça divina – equilíbrio universal – também se ma- sos e das violações tende, através de um mecanismo de reações e
nifesta nela, já que, no choque de forças inimigas em processo choques, a alcançar um estado de equilíbrio mais firme e mais
de contínua agressão, a ação e a reação se neutralizam. O dese- perfeito, e, por evolução, se cumpre o milagre da transformação
quilíbrio do pormenor se equilibra no conjunto, e de uma soma da força em justiça. Prova evidente da relatividade e da mobili-
de injustiças resulta – como dissemos antes – uma primeira dade continua de todas as posições da vida. Prova de um trans-
forma de justiça. Nele, a força encontra dentro de si mesma formismo ascensional de tudo e de todos. Prova de que a vida é
uma primeira limitação. Ademais, foi a força bruta que cumpriu possível em formas e em níveis distintos, a cada um dos quais
a grande função, na história do homem, de levá-lo a afirmar-se correspondendo um organismo de leis e todo um mundo. Um
como primeiro campeão do reino animal. Foi a prepotência – mundo que se transforma em outro sem destruir-se, do qual o ser
carência de escrúpulos e de piedade – que criou os povos domi- vem tomar parte à medida que afloram nele as aptidões para sa-
nadores e vitoriosos. A força, pelo menos nas circunstâncias em ber viver nele e as faculdades de sabê-lo sentir.
que estes se encontravam em seu primeiro período de desen- Tudo isto demonstra a contemporânea existência de dois
volvimento, era-lhes necessária e, sem dúvida, muito criou. Ob- mundos distintos, de duas leis: a força e a justiça, o reino da
servamo-lo na antiga Roma e na América de nossos dias, pela besta e o reino do super-homem, entre os quais o homem osci-
seleção dos indivíduos mais ousados, mesmo quando menos es- la e se debate, cumprindo um passo que significa transforma-
crupulosos, mais ricos de energias ativas e construtivas do que ção e criação biológica.
da perfeição moral tão ambicionada pelas velhas civilizações. A fim de não me estender demasiadamente, delineei as duas
Porém, se a força criou muito, também destruiu muito, e um leis sob o aspecto de força e justiça, que constituem sua caracte-
mundo que se fundasse somente na força acabaria por se destruir rística essencial. Em um sentido mais vasto, a primeira compre-
a si mesmo. Junto a todo vencedor há sempre um vencido que ende o mal, o vício, a violência, tudo o que na evolução significa
lembra, melhor do que aquele, esta destruição. Todas as experi- atraso e no homem recorda a besta; a segunda compreende todo
ências da vida são gravadas na alma humana. As impressões re- o edifício das virtudes que as religiões e as leis se esforçam por
tornam na raça e o instinto recorda, formando-se assim, a par inculcar no coração do homem. As duas leis são o bem e o mal.
com o sentimento de admiração e respeito pela força, também O mal é o passado, e o bem é o futuro. A passagem cumpre-se
um sentimento de repugnância e de ódio, porquanto, no vórtice por evolução, e dela nasce o conflito, que é contínuo, entre as
humano, que se renova incessantemente, o vencedor se trans- duas formas. Portanto o mal e o bem são relativos ao indivíduo,
forma amiúde no vencido, e todos experimentam quantas dores à raça, ao grau de evolução. Isto anula o conceito de culpa, a
acarreta a força quando utilizada em sua própria vantagem. menos que por culpa se entenda a ignorância, que nos faz prefe-
São assim as raças velhas, que, por terem vivido muito, can- rir a desvantagem de retroceder ou retardar a evolução, obstru-
saram-se da luta até à neurose; são elas que mais detestam e que- indo a busca de uma forma mais completa de felicidade. Estes
rem eliminar o uso da força. Este ódio, este desejo de suprimi-la, conceitos éticos sobre bases racionais e científicas se afastam
nasce da necessidade e do interesse que cada qual possui em eli- muito das normas dos códigos penais religiosos e civis, os quais,
minar o exercício daquela por parte dos demais, para conservá-lo ainda que resultem explicáveis em sua gênese como reação e
tão-somente para si. Sendo de todos em particular, converte-se como defesa, carecem de significado no mundo superior da jus-
em desejo da coletividade, e a repressão da força se generaliza a tiça e devem ser relegados ao campo do egoísmo e da força.
tal ponto, que se torna hábito, convertendo-se primeiro em lei re- Quantas vezes, observando a alma humana, perguntei a mim
ligiosa e, depois, na lei civil dos povos. A humanidade cumpre mesmo como é possível a existência contemporânea de duas
desta maneira uma espécie de cerco, a fim de expulsar de seu normas de vida tão diferentes, como podem estas pretender im-
seio aquela audácia, à qual ela deve tanto e que é sangue de seu por-se simultaneamente, e o porquê deste conflito, desta coexis-
sangue, afastando-a paulatinamente, circunscrevendo-a cada vez tência de afirmações opostas, desta contradição no próprio cora-
mais e contendo-a por todos os meios ao seu alcance. É deste ção do homem. Eu sentia seu duplo imperativo em cada ato, e
modo que assistimos a um espetáculo bem estranho, em que a em cada ato havia uma luta. De um lado, o sonho do ideal, tão
força, através do uso, tende a eliminar-se a si mesma. Ela, à me- belo, tão puro, tão perfeito, e do outro, o proveito imediato do
dida que a civilização organiza a sociedade humana, tornando-a utilitarismo. De uma parte, a equidade consagrada oficialmente
mais homogênea, vai perdendo cada vez mais sua importância, por todas as leis religiosas e civis, e de outra, coroada pelo êxito
manifestando-se somente nos indivíduos atrasados, o que é sinal e apreciada incondicionalmente em privado, a força, como tal,
de retrocesso, assim como o seu desaparecimento o é de maturi- sem escrúpulos. Na prática (o que é escusável às vezes, se for
dade. Tudo tende a excluí-la. Os ideais de justiça e liberdade se levado em conta a opressão das necessidades materiais, as exi-
fazem sempre mais necessários. A diferenciação dos tipos huma- gências da vida e a miragem de uma utilidade mais tangível por
10 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
estar mais ao nosso alcance) eu via que os ideais, os princípios, do o esforço para obter um rendimento maior. Deste modo, o
a utilidade maior, porém mais remota, eram tidos em menor homem pode progredir no saber conduzir-se no grande oceano
conta, como uma realidade desagregável, que se desvanece no de forças que é o universo, para conseguir, em vez de dano, van-
mundo dos sonhos. Via, às vezes, acender-se a luta, mas quase tagem. O ignorante, por não saber mover-se no meio delas e
sempre para optar pelo útil, relegando o ideal entre as belas for- desconhecer o efeito de seus próprios atos, pede o que o equilí-
mas de retórica, entre as indiscutíveis verdades, julgadas como brio universal não pode e nem quer absolutamente dar e, assim,
mentiras convencionais, um vínculo do qual, na prática, é mister choca-se de contínuo contra reações dolorosas, crendo ser possí-
desligar-se como de uma posição desvantajosa. Via o anjo ala- vel, pela violência, forçar as leis, para iludi-las. Tenta substitui-
do, de fronte radiante, sempre em luta com a fera audaz e sel- las pelo impulso insignificante de sua própria vontade, rebela-se
vagem. Em cada ato, dois caminhos opostos, uma teoria e uma contra a corrente de todo funcionamento orgânico do universo,
prática, um modo de dizer e outro de agir, uma mentira muito mas a corrente o arrasta. O sábio, ao contrário, pede harmoni-
cômoda e uma realidade muito árdua para seguir. Não compre- camente só aquilo que é lícito pedir, e o obtém. Deste modo, se
endia como era possível, para o mesmo indivíduo, existir con- pode realizar racionalmente, com o máximo rendimento e a
temporaneamente em dois mundos opostos e cumprir duas leis maior aceleração possível, a ascensão de um mundo a outro.
contrárias. A explicação do absurdo somente me poderia ofere- É bem certo que, por outro lado, estas coisas são tão velhas
cer a teoria evolucionista: uma duplicidade contemporânea de como o homem. Repito-as numa forma nova de objetividade
leis somente é possível num regime de evolução, como trânsito analítica, mais verdadeira e mais palpitante, para que recuperem
de uma para outra fase. Somente o ocaso de um período e o al- a vida da qual pareciam haver se afastado. As religiões, as filo-
vorecer de outro podem produzir tais contrastes. Somente o sofias e todo o pensamento humano acumulado no passado,
homem os conhece, não ainda a animalidade inferior, que des- concordam com a crença moderna mais evoluída. As maiores
cansa satisfeita na plenitude de sua fase. inteligências, assim como a alma amorfa das grandes massas
O homem vive, pois, em formas de transição, em níveis dis- humanas, elaboraram-nas, buscando e experimentando todos os
tintos segundo os casos, que vão da besta ao super-homem. Vi- dias, através de vários sistemas, em todos os lugares da Terra,
ve em parte no passado e, em parte, projeta-se para o futuro, com todas as aproximações e resultados possíveis.
ensaiando e explorando o passo para formas mais elevadas. É mister explicar e afirmar aqui a existência de um orga-
Restaram de tudo isto vestígios nas oscilações seculares das nismo de leis, de acordo com as quais, e jamais ao acaso, mo-
religiões, das filosofias, das leis, das instituições; oscilações vem-se todas as forças do universo, leis que são uma vontade e
que poderiam parecer incertezas, mas que são evolução. Nor- um conceito e constituem a alma da criação. Seu imperativo
mas e imperativos que queriam ser absolutos e perfeitos, mas expressa-se sempre nas coisas reais da vida, é sempre um fe-
que são aproximações progressivas de perfeições cada vez mai- nômeno em ação, e encontramo-lo invariavelmente como ele-
ores. Este passo é uma superação biológica, a transformação do mento ligado à matéria, tal como a alma ao corpo. O conceito
homem no super-homem, o maior acontecimento da época mo- existe detrás das coisas, oculto na profundidade do mistério,
derna. Realizar esta marcha é a necessidade mais viva, o objeti- manifestado tão-somente em suas últimas consequências, e é
vo supremo da vida individual e coletiva. Apressá-la, se fosse por sua vez também vontade e ação, assumindo a personalidade
possível, para alcançar uma felicidade mais estável e completa, do eu que pensa, quer e age, divindade invisível, porém onipo-
é a mais profunda aspiração da alma humana. tente e onipresente. Esta concepção naturalista não diminui e
A busca dos meios para realizar e acelerar esta passagem nem anula, senão agiganta o conceito da Divindade. Poder-se-ia
constitui o objetivo deste capítulo. expressar, com as mesmas palavras da gênese bíblica, o concei-
Temos estudado a evolução espiritual no homem, primeiro to antropomórfico: “o homem criou Deus à sua imagem e se-
como evolução de seu organismo psíquico, em seguida como melhança”. É natural que, com o progresso da sabedoria huma-
desenvolvimento de concepções na evolução dos ideais. Obser- na, este conceito se engrandeça. Cada profeta, cada fundador de
vamo-la agora em seu aspecto mais universal e grandioso, co- religiões, já nos proporcionou uma aproximação maior. Portan-
mo uma sucessão de mundos e organismos de leis, onde o ho- to, com a evolução da ciência, que continua a evolução das re-
mem vive progressivamente a sua gloriosa ascensão. ligiões, a alma humana vai cada dia sondando e decifrando um
Esta marcha, da qual queremos estudar os aspectos, as leis e novo artigo da Lei, cumprindo relativamente a si mesma uma
os resultados, é um fenômeno susceptível de um estudo positi- contínua e progressiva revelação da divindade. A evolução, a
vo, porquanto admite a observação e a experimentação. É um elevação desde o âmbito de uma lei a outro mais alto, cumpre
fenômeno natural no sentido de que se realiza por si só, em cada dia no ser uma progressiva realização da divindade.
forma espontânea, diria quase automaticamente, por um jogo de Encontramo-nos, pois, perante uma grande transformação
forças irresistíveis e fatais, porque é a vontade das grandes leis que o homem pode executar em si mesmo, dirigindo-a racio-
e a necessidade mais potente do ser; porque o mover-se, e mo- nalmente, em harmonia com todo o funcionamento orgânico do
ver-se ascendendo, está na essência íntima do universo. universo. O trabalho de compreender e o, ainda maior, de reali-
Pode, porém, produzir-se também racionalmente, ou seja, zar o complicado fenômeno tendem, por certo, a uma utilidade
primeiramente compreendido e depois desejado e conduzido pe- final, obrigando-nos a perguntar qual pode ser esta. Falei de uti-
la inteligência humana, sem que tenhamos de estranhar esta in- lidade que justifique o esforço, o compense e nos faça decidir a
tervenção do homem na conduta e na utilização das leis naturais. intentar a difícil prova, porquanto sei, por experiência, que o
A inteligência humana é por si mesma uma força criadora, e das prêmio e o objetivo final de tudo isto não é uma quimérica
mais poderosas. Pode, portanto, não somente entrar em combi- idealidade, um vão espiritualismo, mas sim uma vantagem, que
nação fecunda com as outras forças, senão também, até certo permite alcançar a mais completa felicidade. É um eterno pro-
ponto, assumir sua direção. Movem-se tais forças de acordo com blema que nós outros vamos encarando, problema real, fasci-
leis que, embora sejam algo adiantadas, não alcançaram total- nante, que emana de uma necessidade imperiosa do espírito, de
mente a perfeição; acham-se sujeitas ao esforço do ensaio e ao um instinto misterioso, que outorga ao homem o direito de pre-
perigo do erro, mesmo quando corrigido e compensado. Se o tender e a certeza de obter, mesmo que num futuro distante,
equilíbrio se restabelece de pronto e o progresso se manifesta uma satisfação absoluta. Este problema que estamos estudando,
em seguida, a prova contém sempre um desgaste que a inteli- se bem que o mais difícil, é também o mais radical e o mais po-
gência pode evitar, estudando o mecanismo das leis que tudo re- sitivo para alcançar a meta desejada, já que não se estriba em
gem com precisão matemática, orientando as energias e dirigin- sobrepor exteriormente a si mesmo todos os possíveis domínios
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 11
e possessões transitórios e ilusórios, e sim na transformação da Eis aqui a função da dor. Ela, no carma, destino inexorável,
maneira de ser, numa profunda e definitiva renovação do eu. provê a quem saldou as dívidas do passado, individuais e cole-
Trata-se da fuga de um mundo inferior, de uma transformação tivas, dívidas que é mister haver expiado, antes de poder inici-
da sua lei, da libertação, enfim, de todas as dores que o povo- ar a ascensão para uma felicidade maior. A dor, portanto, não é
am. Aquele que vive no nível da lei subumana permanece iso- somente um fenômeno de reação orgânica e psíquica, pois cor-
lado em seu egoísmo e deve lutar sem descanso contra todos, responde também a uma lei de equilíbrio moral. Promovida de
porém, ascendendo ao âmbito da lei super-humana, já não ne- expiação a renúncia, é um meio para a conquista da felicidade,
cessita lutar nem esforçar-se e poderá, coisa absurda no mundo o instrumento da grande transformação, o caminho da liberta-
inferior, evangelicamente depor as armas de ataque e defesa e, ção que nos conduz ao mundo super-humano. Eis a reabilita-
com estas, a angústia da incerteza e da derrota, porque existe ção pela dor, que purifica e equilibra, que eleva e avança, que
uma força mais poderosa, sob cuja proteção se colocou e que cria acima do instante fugaz.
espontaneamente o protege. Ele se encontra no meio da corren- Observamos as condições de vida nos baixos níveis de evo-
te, e a corrente o leva. Sua lei é a grande lei, sua vontade é a lução, para encontrar aí a origem da dor. Este é o último elo da
grande vontade. Já não lhe é mister o esforço para impor-se cadeia: involução, ignorância, egoísmo, força, luta, seleção –
como exceção, pois vive harmonicamente com a vida universal. cadeia que, se por um lado termina na dor, representa também
Sua sorte converte-se num equilíbrio estável, que tende a per- um lento caminho ascendente, pelo qual transforma o homem
manecer estável em forma espontânea, porquanto não é produto em super-homem, a força em justiça, o mal em bem, realizan-
da força, precário e combatido. Desce uma paz imensa sobre do a evolução e destruindo as condições de vida inferior, onde
todo o ser, um gozo difícil de compreender e de expressar, que nascia a dor. Em outros termos, transmuda também a dor em
é, porém, o mais profundo que o homem conhece. A alma hu- felicidade. Assim como, com o uso, a força tende a uma au-
mana, invadida pela febre atual do trabalho e da riqueza, exige toeliminação e desaparece, quase reabsorvida em si mesma,
resultados menos efêmeros, necessita, para satisfazer-se, de va- mudando-se em justiça, da mesma forma a dor, com a evolu-
lores indestrutíveis, algo que, através do tempo, não mude e nem ção, tende a desvanecer-se, porquanto também ela, como o re-
se desvaneça como uma ilusão. Dada a transitoriedade de todas gime da força, é um fator transitório, inerente a uma fase de
as coisas humanas, somente a evolução, no vórtice de um inces-
evolução, destinada a ser vencida. As leis de um universo no
sante transformismo pulsante de vida e de morte, constitui o que
qual a dor e a maldade fossem incondicionais e definitivas, não
jamais será destruído. O tempo mede, porém não toca este trans-
poderiam ser tidas como correspondentes a um conceito de
formismo, que se muda na forma, se renova sempre, sem perder
equilíbrio e justiça. A existência seria um delito se não conti-
nada na substância, que vibra no ritmo grandioso de sua ascen-
vesse, junto com aquelas, uma força para destruí-las. Esta for-
são. Esse movimento incessante, que no mundo inferior é des-
ça é a maior de todas: a evolução, destinada a transformar o
truição e tormento, é deste modo guiado para a felicidade e se
mal e a dor – que são simplesmente involução – em bem e fe-
converte em meio de conquista de afirmações eternas.
licidade. Processo espontâneo e inexorável; lento se efetuado
Se os resultados são esplêndidos, o atalho é áspero e difícil
com a defeituosa técnica da tentativa, do erro e da emenda, po-
de achar, demandando enorme esforço. Porém não há grandes
rém rápido se, ao contrário, conscientes da rota e das forças,
conquistas sem grandes esforços. Aqui, o homem deve medir-se
em uma luta titânica, não mais contra os seus semelhantes, mas tratamos de acelerá-lo, guiando-o.
sim contra as poderosas leis naturais, invisíveis, tenazes, que es- A dor nasce do regime de força e de luta necessário para a
tão dentro dele e são a sua própria personalidade, que ele deve, seleção e o progresso nos mundos inferiores. Não esperemos
por sua vez, destruir e reedificar, matar e ressuscitar. Esta des- até ver-nos compelidos por esses estímulos, mas esforcemo-nos
truição de si mesmo é o primeiro sofrimento que lhe incumbe para progredir até onde nos seja possível; anulemos a fase su-
enfrentar. Não discerne de imediato o verdadeiro caminho, seu bumana e humana, impondo-nos formas mais elevadas de vida,
impulso para a felicidade é, em geral, cego e recai sobre si e teremos eliminado a dor.
mesmo, inutilmente. Acredita poder agarrá-la em forma estável, O valor prático e tangível da evolução, o significado deste
usurpando-a com uma violação de equilíbrio; crê ser possível, conceito de evolução que temos elaborado até agora, reside to-
num mundo de leis naturais, o absurdo de se obter o que não se do nesta anulação. Estas superações de formas de vida, de fases
tenha merecido. A força é um atalho cômodo que produz efeitos de progresso, são vitórias sobre a dor. O problema da evolução
imediatos, mas também equilíbrios instáveis, que prontamente converte-se, então, em problema de felicidade, e assim o temos
cedem à reação natural. Daí o acervo das desilusões humanas; de conceber. Nossa meta será a destruição da dor. Todos os
riqueza de energias, porém grande miopia. Estimulada pela sede meios que realizam a evolução conseguirão esta destruição, que
dos gozos – enquanto somente a minoria preferiu a estrada mais significa libertação. Na evolução está, portanto, a libertação;
longa e escabrosa, porém mais segura – a maioria se consome e em tudo o que represente um meio de evolução, temos de ver
se revolve na lama, a fim de pedir aos prazeres do mundo subu- um caminho para a libertação.
mano um pouco mais de felicidade, numa luta encarniçada em Os caminhos da libertação são múltiplos; estudemo-los ra-
redor de resíduos mesquinhos. Não só insatisfação, mas sempre pidamente.
novas derrotas na inexorável balança da justiça. Quem, em tro- É mister, em primeiro lugar, uniformizar-se à lei do mundo
ca, trabalha na senda do bem, vai acumulando créditos; um dia, superior que se deseja alcançar, portanto ter como princípio a re-
daquela mesma lei, lhe manará espontaneamente a felicidade. tidão em todos os atos, para alcançar a nobre finalidade da vida,
Não se atendendo a este equilíbrio, nem à misteriosa voz da para acelerar, mediante o esforço da vontade, a realização em si
consciência, que nos admoesta, nem ao furacão de reações que mesmo de uma lei mais elevada. É necessário inteligência para a
as forças da Lei podem desencadear, algo se vai sacrificando ca- compreensão da vida, da missão e do trabalho que nos corres-
da vez mais ao destino inexorável. A cadeia transmite-se de ge- ponde. É necessário vontade para seguir o que a mente viu, e não
ração a geração, e o déficit acumula-se até nos esmagar. Então, o que o interesse e o prazer quiseram. Não se requer grandes he-
no fundo de um céu tempestuoso, aparecem os profetas bíblicos roísmos, mas sim a disputa lenta, constante e quiçá mais heroica
que convocam à penitência. Estalam cataclismos que são como das provas cotidianas, aquelas que vão cavando na alma o sulco
banhos de dor, e a humanidade sai purificada, como se somente de novos hábitos. Uma vez assimilados no instinto, formarão
na dor pudesse readquirir seus direitos e somente através de tão uma nova personalidade. É necessário o esforço, o trabalho da
terrível assalto voltasse a encontrar a possibilidade de retornar evolução, especialmente no princípio, para passar do mal-estar à
ao caminho interrompido de sua evolução. adaptação e desta, pelo costume, à necessidade do novo estado.
12 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Desta maneira, eliminam-se a tentativa e o erro, que engendram a penetração surge a criação de uma forma mais elevada de vida,
inacabável série das decepções humanas e constituem o sofri- baseada na destruição da dor por meio da própria dor. Eis aqui
mento maior e mais penoso com que a Lei, em sua reação, impõe como é possível considerá-la como um dos principais meios de
o progresso. Queira-se ou não, a evolução é a lei, dura porém jus- libertação. Eis aqui o progresso e a dor estreitamente ligados.
ta, e é mister cumpri-la. Esta é a corrente da vida, que arrasta a Eis aqui explicada a utopia do sacrifício e do martírio. Cristo,
todos e arrebata os rebeldes. Esta é a vontade suprema. A Lei re- que morre na cruz, redimindo com a sua paixão a humanidade,
age contra aquele que resiste, infligindo-lhe a dor como castigo e é o símbolo grandioso que resume este conceito.
acicate. Para quem a segue, lutando e vencendo, a dor vai desa- Sem este conceito da evolução espiritual, a dor é um crime,
parecendo gradualmente. A felicidade, se é uma necessidade ab- como no pessimista caos schopenhauriano. Enquadrado neste
soluta e um direito sagrado de todos, tem de ser conquistada com conceito, eleva-se a instrumento de criação e de redenção, co-
trabalho, e este trabalho é uma ordem. As leis da vida não admi- mo na visão de Os Miseráveis, de Vítor Hugo.
tem ócios, usurpações e nem arrivismos, e dão a cada um o seu Concebo a dor como a reação de uma lei que tende a resta-
justo salário. Mais vale aceitar com satisfação a sua parte propor- belecer o equilíbrio perturbado pelo erro, uma lei que, respon-
cional de trabalho do que aguardar que nos seja imposto dura- dendo a um supremo conceito de justiça, possui a função de,
mente. A evolução é um trabalho tremendo, mas cria em troca os por meio de reações, ensinar ao homem, se bem que respeitan-
maiores valores, o homem e a sua felicidade, conseguindo o in- do a sua liberdade, os verdadeiros caminhos da vida. O homem
crível: a destruição da dor, desde que se trabalhe adequadamente. possui um instinto seguro que o guia para a felicidade e que é o
É necessário realizar a justiça com a retidão, e a justiça somente indicador de sua meta. Ele ensaia todos os caminhos; primeiro
pode ser criada com o esforço humano. Não pode ser reforma so- os mais absurdos, os que conduzem ao gozo imediato e não ga-
cial se antes não foi reforma pessoal e íntima. nho, os da força e da violação, e encontra-os todos cerrados pe-
A renúncia é outro meio de evolução e outro caminho de li- la reação natural da dor, que lhe inibe o passo. Até que o desti-
bertação. Se a retidão é a afirmação da nova forma de vida, a re- no o obrigue, por trás de infinitas tentativas e erros, a tomar o
núncia significa o abandono da velha forma que se deseja ven- único atalho possível, o do próprio progresso. Em outros ter-
cer. Para esta antecipação de nova vida – o nascimento do super- mos, é necessário harmonizar-se com a Lei, para eliminar cada
homem – é mister que se acabe a natureza inferior, que pereça o vez mais a reação constituída pela dor, até que, nos graus supe-
homem com tudo quanto de baixa animalidade haja nele. Transe riores, ela se transforme em renúncia voluntária, ou seja, na
laborioso, luta tremenda do espírito para separar-se da matéria e aceitação livre do trabalho a que a evolução nos obriga.
elevar-se à vida autônoma. Não é um conceito novo este da re- Quando a unificação do eu com a Lei é perfeita, desaparece
núncia, já existente nas religiões, que altamente o proclamaram, toda a possibilidade de reações e a dor é vencida. Concebo a
sem conter, no entanto, aquela explicação que a moderna psico- dor como um mal transitório que se esgota em sua função, que
logia científica requer e que tratamos de dar. A renúncia pela re- existe para devorar-se a si mesmo, tal como a discordância é
núncia é um aniquilamento insensato da personalidade, não se um instrumento para conseguir a harmonia, um meio educativo,
justifica como meio de evolução, que tende à destruição da dor e um acelerador da evolução, um sábio mecanismo pelo qual a li-
ao ressurgimento da felicidade. É melhor, entretanto, deixarmos berdade do ser se vê forçada a integrar-se no progresso. Assim
o desenvolvimento destes conceitos para a Parte III, quando es- entendida, a dor não é uma abjuração, mas pode ser um grande
tudaremos o ingresso do homem no reino super-humano, onde a triunfo, máxime se soubermos utilizá-la como instrumento de
dor desapareceu e cumpriu-se a criação do novo ser. ascensão. Mesmo em suas formas materiais, onde, com maior
A libertação da dor pode ser obtida também em uma forma evidência, parece uma derrota, como no mundo orgânico, a dor
que parecerá impossível à maioria, por falta da penetração inte- pode desempenhar função criativa, como é lógico em um uni-
lectual das causas primeiras, que não ultrapassa o cego instinto verso onde tudo possui um significado e um valor para alcançar
de evitar aquilo que desagrada. A dor é vencida por meio da o bem. Um mal físico tem função criativa no mundo moral,
dor; é destruída pela sua aceitação, assim como se dobra um porque, destilado, transforma-se em instrumento de renúncia e
inimigo abraçando-o. Por uma lei universal de equilíbrio, de de ascensão. É a insuspeita função biológica do patológico.
ação e reação, em um mundo onde nada se cria nem nada se Eu digo aos que sofrem: Valor! Porque o vencido da vida é
destrói, também no campo das sutis qualidades morais, não se amiúde um grande batalhador. As horas mais dignas e mais fe-
neutraliza um efeito senão reconduzindo-o à causa, para que aí cundas são as da dor. Em todos os seus graus, revela o máximo
encontre a sua compensação. Não se anula uma qualidade se es- esforço do ser humano. Eleva-o, ilumina-o e outorga-lhe o di-
ta não for reabsorvida pela vida. A dor pode desaparecer com a reito de olhar a face de Deus.
única condição de ser saldado o débito à eterna lei de justiça; Eis a minha concepção da dor, em oposição à negativa sub-
seja no campo moral, social, histórico, econômico, físico ou tração da vida que é o Nirvana budista; em oposição, sobretudo,
químico, é sempre a mesma Lei, a mesma vontade, o mesmo a essa fuga vergonhosa que significa a concepção utilitarista
Deus. Somente a ignorância pode pretender o absurdo de en- moderna. A dor é energia, luta e criação; tudo aceita para res-
ganá-la, esquivando-se à sua reação. Não se defrauda a Lei, e, surgir numa felicidade maior.
quando se pecou, mais vale neutralizar o mais depressa possível O conceito que nos dá o moderno materialismo científico,
a reação, sofrendo e pagando, pois, mesmo que fujamos, aquela que é a base psicológica de nossa civilização, é muito diferente.
nos alcançará sempre e onde quer que seja. A fim de não agra- No materialismo, a dor não pode possuir funções superiores; é
var o desequilíbrio, nunca devemos rebelar-nos, para não exci- um inimigo e um mal, contra os quais só uma posição é possí-
tar a assim chamada ira divina, ou seja, o mais rude contragol- vel: a de defesa. Esta defesa está habilmente organizada pela
pe, pois a elasticidade da Lei (a divina misericórdia), cuja gran- ciência e pelo trabalho, armas poderosas, mas de concepção
deza contém todo o livre arbítrio humano, acabaria por nos ven- unilateral e insuficiente. Não obstante a luta contra a dor seja
cer, como um destino inexorável. levada a uma tensão limítrofe do terror, a sua ameaça é inces-
A dor, pois, eliminando a reação, saldando a dívida, opera a sante e está oculta atrás das grandezas do nosso progresso. A
progressiva harmonização e efetivação da Lei no eu, ou seja, espantosa série de todos os experimentos sociais e econômicos
determina a evolução. Vimos também que ela existe nos esta- a nada conduz; o homem, ante a desaparição fatal e angustiosa
dos inferiores como consequência do regime de luta e de força, de todas as suas aspirações e ilusões, conserva em seu olhar o
e que pode ser eliminada superando-se aqueles estados. A evo- sonho vão da felicidade jamais alcançada, escondida em uma
lução a elimina. Paralelismo de ações e reações, de cuja mútua realidade mais profunda, que ele não vê.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 13
Entretanto nunca foi mais ardente a ânsia de viver do que Encontramo-nos diante de dois conceitos opostos: o primeiro
agora. A ciência nos faz entrever a possibilidade de um para- se detém nesta vida e neste mundo, onde pretende realizar um
íso sobre a Terra. Nunca houve tensão coletiva mais frenética paraíso que é sua única meta. Com a ciência, estuda detidamente
para o prazer. O homem, que invoca e ensaia todas as liber- os meios e, com o trabalho, os põe em prática. É todo um fervor
dades, ignora os caminhos da libertação. Busca a felicidade de investigações e de ação, um assalto da inteligência às leis ig-
em baixo, aumentando seus atributos exteriores, e não as noradas da criação, para submetê-las ao seu próprio gozo e ao
qualidades interiores. Não. A dor não é um acontecimento seu próprio egoísmo. Um esforço de vontade, para dominar o
acidental, efeito de causas próximas e suprimível com estas, mundo exterior e convertê-lo em um meio para o seu bem-estar.
mas possui raízes profundas em um mundo aonde a ciência Este conceito tende a plasmar o ambiente de acordo com uma
ainda não chegou, e responde a funções fundamentais de ideia e, efetivamente, o transforma de maneira assombrosa, para
equilíbrio na economia da vida. fazê-lo a morada imperial do homem. Porém, se transforma a
Sendo base do progresso humano, está enxertada na vida Terra, não transforma o homem. Se faz progredir tudo, descuida
como um fator de importância excepcional. É o trabalho neces- o valor maior, que permanece ignorado, ou melhor, permanece
sário da evolução, que é a essência e a razão de ser da existên- subjugado ao progresso material que, de meio, tornou-se fim. O
cia. No equilíbrio exato das leis, a dor é indispensável à vida do espírito triunfa sobre a matéria, porém há, no perfeito equilíbrio
universo. A mentalidade moderna, absolutamente ignorante de das leis, uma espécie de desforra daquela, que, mesmo cedendo
tudo isto, faz o irrisório jogo da supressão das causas próximas o seu poder, absorve toda a atividade do espírito e escraviza-o,
da dor. Homens, classes sociais e nações barganham entre si es- pois o prazer que experimenta para a satisfação dos desejos é
te lastro pesado, que dá volta entre eles e permanece sempre efêmero, desvaloriza-se com o hábito e consegue somente au-
igual, porque ninguém o absorve. Tal um cogumelo maléfico, a mentar as necessidades, que converteram o homem em máquina
dor volta sempre a brotar sob novas formas, apesar de tanta ri- de trabalho. O bem-estar material é uma arma de dois gumes
queza, de tanta civilização e tanto progresso. que, se facilita a vida, é também uma cadeia que a oprime. De-
É mister um jogo mais complexo para suprimir a dor e con- pois de haver pedido o sacrifício da mais alta atividade, que cria
quistar a felicidade. É necessário subir com Cristo à cruz e re- os valores morais, tão indispensáveis para a vida, deixa o espíri-
fazer sobre outras bases a vida individual e coletiva. É preciso to no vácuo, desorientado, pois carece de paz interior, que só de-
encontrar na dor uma força amiga, cuja função se compreenda e riva da consciência de um fim. E, sobretudo, não destrói a dor,
se utilize para a própria ascensão. O que interessa não é acumu- cuja ameaça permanece mais perceptível do que antes.
lar poderes, mas fazer o homem. É inútil pregar ou pretender O progresso material pode, pois, ter o seu valor, porém so-
forçar a história e a evolução; é inútil pedir à alma coletiva uma mente quando considerado como necessário ao progresso espi-
consciência imediata e previdente, o que somente as grandes ritual. Do contrário, os caminhos da libertação se tornam cami-
dores e provas poderão fazer amadurecer; tão-somente quando nhos da escravidão.
este nosso sistema nervoso, que é o substrato do organismo O outro conceito, inconciliavelmente hostil à vida presente
mais profundo – a alma – desenvolver-se a tal ponto, que a má- e ao mundo exterior, aparta-se deles como de um mal irremedi-
quina animal, para este serviço, se lhe converta em cárcere, ável, que se toma em consideração para ser evitado. Descuida
flanqueando-o com suas barreiras, somente então o homem do ambiente exterior, não se preocupa em melhorá-lo, conside-
“perceberá” também as leis morais, assim como hoje, com suas rando-o não mais a realização de um desejo próprio, mas ape-
descobertas, começa a vislumbrar as leis da matéria. As leis nas uma necessidade para harmonia universal. Alheia-se, assim,
morais existem, mas estão ainda à espera de seu Newton que as da exterioridade do mundo, sonhando com uma vida diferente e
demonstre. Um dia, a vida do justo será uma necessidade uni- distante, numa aparência de passividade. Sua alma vigilante
versal, porque consequência de uma lei demonstrada e palpá- percebe e sente outra realidade e, nesta, encontra novos pode-
vel, com suas sanções comprovadas, com seus efeitos insupri- res, mais vasta percepção; domina forças sutis e maiores, cria
míveis, e, como tal, governará na realidade a vida, imposta co- os valores morais que regem o mundo, realiza uma expansão e
mo uma obrigação a todo ser racional. Então se terá completado uma afirmação, perante a qual todas as afirmações exteriores
a educação da besta humana. Não será mais necessário este po- resultam irrisórias.
bre e único meio de que hoje se dispõe para domar o homem in- Duas concepções diferentes, que correspondem a duas
ferior, que é o terror do sobrenatural e do mistério, a ideia de evoluções: a da matéria e a do espírito. A primeira é conquista
uma divindade que se vinga e castiga, divindade que os fortes científica, conquista econômica, o aperfeiçoamento das rela-
se atrevem a desafiar e a que os débeis se curvam por medo, ções sociais, o progresso lento da coletividade, um trabalho
enganando-a com os subterfúgios de uma consciência acomo- grandioso de organização e de cooperação, cuja importância
datícia. Então se verá claramente a Lei, sábia e implacável em seria néscio negar. A outra é conquista interior, que aperfei-
sua inexorabilidade, porque despojada dos véus e do mistério; çoa um único valor: a consciência humana; sistema radical pa-
um Deus novo, mais próximo e real, porque estará dentro de ra quitar os males da vida; sistema árduo, reservado a poucos
nós mesmos, em todas as causas, contra o qual não é possível a espíritos de vanguarda.
rebelião nem a felonia. Duas riquezas e duas misérias: miséria econômica, que pode
Na civilização moderna, contudo, já se está levando a cabo ser largamente compensada por uma grande riqueza espiritual;
um intenso trabalho de progresso, ainda que com orientação e ou miséria moral, que riqueza alguma conseguira remediar.
concepção da vida de todo diferente. Estes são: a ciência e o Seria exclusivismo querer valorizar mais uma coisa do que
trabalho, instrumentos de evolução que também devem ser in- outra, execrando o progresso econômico, que pode, por sua vez,
cluídos no rol dos caminhos de libertação. constituir o primeiro passo para o espiritual. Seria visão incom-
Que valor possui o frenético bulício da vida, palpitante de pleta apreciar o lento e complicado progresso da grande alma
problemas e de lutas, ansioso de conquistas, triunfante com su- coletiva, que se projeta mais para o exterior do que para o inte-
as descobertas científicas, transbordante de energia tão juvenil e rior do indivíduo. Cada um, por si, é elemento insuficiente para
de uma fé tão diversa, sem dúvida cheio de beleza, ainda que o conjunto da vida. São elementos complementares. Duas for-
primitiva e brutal? Ao som deste grito, a alma, já farta de tudo mas de evolução, o progresso material e o espiritual, que se
isto e madura, não sente ter encontrado a vida em outras partes? complementam e se condicionam, tendendo a duas criações dis-
O leitor perdoará se corto e abrevio, porque me impus ser tintas: uma exterior e outra interior, que se valorizam mutua-
conciso. mente, quase se sustentando, para ascender juntas.
14 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
A hipertrofia de um e a atrofia de outro, como acontece na ça, da dor à felicidade, do mal ao bem, da matéria ao espírito,
sociedade presente, são o mesmo índice de desequilíbrio. do ódio ao amor, do Inferno ao Céu. Assistimos às cenas fi-
Se os dois conceitos parecem excluir-se por um inconciliável nais. Está por se resolver o grande fenômeno espiritual. Atra-
antagonismo, devido à inversão dos valores, na realidade eles vessa-se o momento crítico da superação biológica, pela qual o
não são mais do que duas metades de um mesmo conceito, dois homem entrará em uma nova vida. Quem sabe ler mais pro-
polos do pensamento humano, a alma masculina – concepção fundamente perceberá neste escrito, junto às argumentações
ativa e positiva da vida – e a alma feminina do universo – con- que se coordenam em uma tese, algo mais que uma declaração
cepção passiva e negativa – destinadas a uma complementação de fé, uma confissão ou, porventura, um testamento espiritual.
fecunda. A própria humanidade parece distribuída como em um Trata-se do relato de outro drama tempestuoso e vívido, que
equilíbrio de partes, segundo as duas metades deste pensamento. culmina na morte, onde tudo o que é humano se funde. Minha
Possuímos no mundo dois tipos de civilizações: a Ocidental e a alma aflora sangrando, porém, ágil e madura, parte ao próximo
Oriental. Possuímos presentemente o moderno Ocidente euro- impulso a que chamo “Ressurreição”.
peu-americano, ativo, rico, poderoso e oco espiritualmente, e o
antigo Oriente asiático, inerte e pobre, mas forjador de religiões, II - A evolução Espiritual na Ciência e nas Religiões
de filosofias e de crenças: a luz do mundo. Dir-se-ia que a hu-
manidade tivesse querido olhar contemporaneamente a vida em Sintetizo alguns conceitos fundamentais, a fim de enquadrar
duas direções opostas, seja para realizar tudo no presente, igno- o argumento em minha concepção cosmogônica. Não é agora a
rando o mais além, seja adiando toda a realização de felicidade oportunidade de entrar em explicações e, muito menos, em de-
para o futuro. Existe, contudo, um trabalho, pois, segundo a Lei, monstrações, que nos poderiam levar muito longe.
todo progresso e todo bem-estar tem de ser ganho mediante um Tudo quanto podemos perceber no universo resume-se a
esforço adequado. Para que a matéria evolua, é necessário o tra- três elementos fundamentais: matéria, que é a sua estrutura es-
balho. Para que o espírito evolua, é mister a dor, que, no fundo, quelética, o universo físico e o dinamismo mecânico que o sus-
não é mais que um trabalho diferente, assim como o trabalho tém; vida, um dinamismo mais complexo, concebida, porém,
não é senão uma espécie de dor. O deus utilitário da civilização num sentido imensamente mais vasto, desde o mineral ao ho-
Ocidental o impõe diariamente, assim como o deus espiritual do mem, existente também em outros corpos celestes; pensamento,
Oriente impõe todos os dias uma renúncia. um dinamismo ainda mais elevado, representado pelo psiquis-
A verdade aparece dividida em dois aspectos que são duas mo humano, através dos nervos, cérebro e espírito.
metades da Terra; nenhum deles esgota todo o pensamento nem É difícil separar um elemento do outro, pois a passagem se
satisfaz a todas as necessidades humanas. Unificados, porém, efetua por evolução, sem solução de continuidade. No fundo,
são uma só aspiração: a ascensão para a felicidade. O Oriente já trata-se de uma mesma substância, cuja maneira de existir é o
não vive mais aqui em baixo, mas aguarda e prepara-se. A par transformismo evolutivo contínuo e que, portanto, se nos mani-
de um enorme tentáculo projetado no mistério do mais além, festa sob forma distinta. Se a consideramos em uma primeira fa-
respira ébrio de sonho outra vida mais distante. Esta ideia da se, que vai da nebulosa à origem da vida, concebê-la-emos como
função evolutiva da dor, da criação espiritual através do isola- matéria; na segunda fase, que parte do início da vida e vai até ao
mento, não parece brotar senão nos povos maduros. A última nascimento do psiquismo humano, chamá-la-emos vida; no ter-
flor e, talvez, a mais bela da vida... Quando se atingiu certa al- ceiro período, no qual este psiquismo se torna autônomo e cria
tura, parece que o ambiente terrestre já não pode mais respon- um novo ser e uma nova vida, teremos o pensamento.
der ao grau alcançado; da impossibilidade de adaptação nasce O universo, desta maneira, se nos manifesta uno e, ao mes-
um desdém pela vida presente, uma necessidade de superação e mo tempo, composto; três universos concêntricos que se com-
de elevação, para encontrar no outro lado uma vida mais pura. penetram e se encontram intimamente ligados uns aos outros,
A iminência de uma realização maior sugere, então, o pressen- pois se sustêm mutuamente para elevar-se um sobre o outro – a
timento da vida nova, invisível para os demais. Declinando e vida sobre a matéria, o espírito sobre a vida; encontram-se em
desaparecendo neste mundo, a alma lança o grito de sua ressur- relação de filiação ou gênese sucessiva, por evolução.
reição. Uma vida maior, em convivência com distintos orga- Assim concebido, pode-se definir o universo como um fí-
nismos em ambiente extraterrestre, cuja existência a astronomia sio-dínamo-psiquismo. Se indicarmos com M a matéria, com V
começa a vislumbrar, talvez no mistério da subconsciência e do a vida, com P o pensamento e com S a substância, poderemos
supranormal. Nossa civilização Ocidental, com suas máquinas, explicar este conceito também com a seguinte equação:
suas riquezas e sua moral materialista, choca-se com as velhas (M=V=P)=S
civilizações asiáticas, sem compreendê-las. Estas se cansaram para indicar que estes três elementos, transformando-se por
de todas as experiências, a ponto de ter já perdido a esperança evolução um em outro, equivalem-se como formas sucessivas
de uma felicidade terrena. Aquela transborda de dinamismo e da mesma e única substância.
de ingênua fé. Esta incompreensão de ideais de raça provocará Sem nos determos em convalidar este conceito com argu-
choques formidáveis, e destes brotarão a compreensão e a uni- mentações científicas, comparando-o com a ideia da “Trindade-
ficação que compendiarão todo o progresso humano. Una”, que se encontra em muitas religiões, interessa-nos agora
Resumindo, os caminhos da libertação são, antes de tudo, de destacar uma circunstância fundamental: a forma de existência
ordem moral: a retidão, que conduz à justiça; a renúncia, que única, indestrutível, é, e não pode ser outra, um incessante
leva ao isolamento e à superação; a dor, que, expiando, neutra- transformismo progressivo, quase uma irresistível necessidade
liza a reação da Lei e conduz à felicidade. Secundariamente, inerente à natureza mesma.
são de ordem material: a ciência e o trabalho, que tendem ao Chegamos assim ao conceito de evolução; evolução da ma-
domínio material do mundo. téria, evolução da vida, evolução do espírito. Eis-nos aqui ante
Estes são os meios da evolução espiritual. a evolução espiritual, que é o nosso tema.
Este artigo – um desabafo de paixão ajustado a um desen- Observemo-la, agora, mais de perto, relacionando-a com a
volvimento racional – aproxima-se de seu fim. Desentranhan- evolução orgânica tal como foi exposta por Darwin, de que já
do conceitos em contínua transformação, da exposição preli- se falou bastante. O conceito, lançado por Darwin, da evolução
minar dos princípios gerais, nos acercamos das conclusões. da vida foi logo ampliado, concebendo-se uma evolução (cós-
Seguimos o fenômeno da evolução espiritual como um imenso mica, geológica, química) da matéria. Não necessitamos voltar
drama, através do qual a humanidade ascende da força à justi- a estes conceitos, já aceitos pela ciência, os quais nos servirão
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 15
de ponto de partida para proceder ao exame de uma nova evo- constituindo-lhe uma forma de existência nova, refazendo-o e
lução – a espiritual – ignorada em grande parte pela ciência ou, transformando-o em um ser diferente. Tal como se fosse uma
quando menos, ainda não admitida oficialmente por esta. nova potência espiritual, capaz de existir e evoluir separada, in-
O fenômeno da evolução espiritual somente se manifesta no dependente de seu último sustentáculo material, o sistema ner-
último escalão do reino animal, que, no conjunto, se encontra voso e cerebral. Portanto, se este psiquismo, por um lado, terá
muito distante dela, observando-se unicamente no homem. O como base um sistema que é, por sua vez, o produto mais alto
homem, como um microcosmo, reflete em si a construção do de toda a anterior evolução orgânica, tenderá, por outro, a sepa-
universo e é uno em sua personalidade num organismo tríplice, rar-se cada vez mais do mesmo, iniciando uma nova evolução
composto de uma estrutura óssea (matéria), de um conjunto autônoma e típica: a evolução espiritual.
muscular (organismo, vida) e de um sistema nervoso-cerebral Se queremos, pois, buscar no futuro a continuação da evo-
(organismo psíquico), três partes que se sustêm e se erguem uma lução orgânica cumprida no passado, se queremos definir a
sobre a outra. Interessa-nos ele não tanto pelo que representa seu forma da futura evolução humana, devemos dizer que esta, lo-
passado, mas porque, encontrando-se no alto da escala da evolu- gicamente, não poderá ser senão psíquica: evolução espiritual,
ção, deixou de construir-se como matéria e como vida e, na sua continuação lógica da evolução orgânica.
fase atual, obra e cria no campo da evolução espiritual. A vida do homem moderno já não tende mais, através da lu-
Com efeito, a evolução orgânica em nosso planeta superou o ta e da experiência, a construir órgãos físicos. Com a sensibili-
período de maior impulso de novas criações e permanece está- dade nervosa e psíquica, assimilará novas ideias, que, depois,
vel, tal como, já anteriormente, se havia estabilizado a evolução serão inatas, novos hábitos, que hão de transformar-se em atitu-
geológica. Estabilizar-se significa equilibrar-se em formas defi- des morais, elaborando este novo organismo psíquico humano
nitivas ou quase, que não tendem a novas transformações radi- que é a personalidade. Será ainda possível, sem dúvida, uma
cais, pois alcançaram a forma de maior rendimento. Assim co- transformação orgânica que somente intente algum primeiro
mo, um dia, se detiveram os grandes movimentos da massa ter- esboço de psiquismo, não mais, porém, como fenômeno princi-
restre e a crosta do planeta se solidificou em forma quase defini- pal, e sim apenas como fenômeno subordinado, com efeito de
tiva, a evolução orgânica, cristalizando-se nos organismos da caráter secundário, dependente da evolução psíquica, que há de
individualidade alcançada, tal como hoje os vemos, e tendo guiá-la como dona, considerando-a como meio para seus fins.
cumprido seu enorme trabalho para chegar ao homem, deteve- Deste modo, vivendo, o homem elabora a construção de
se. Deteve-se? Mas o transformismo ascensional é inerente à sua alma, ou seja, de uma alma sempre mais complexa e poten-
própria existência. Os seres continuaram e continuam existindo. te; e, em tal sentido, a alma pode dizer-se um produto da vida.
Existir significa progredir. Onde? Se não é possível que a evolu- Um organismo novo tende a adquirir uma autonomia cada vez
ção se detenha, qual a nova forma a assumir, especialmente para maior, que se cria continuamente e aumenta a cada dia, enri-
o homem, que se encontra no ponto mais elevado da escala? quecendo-se com todas as experiências pelas quais atravessa.
Darwin demonstrou ao mundo científico a evolução orgâni- Certamente, é o mais alto produto da vida, que representa o fu-
ca do mundo animal até ao homem. Com isso, ilustrou todo o turo da raça humana.
passado, toda a história do organismo humano. Mas, e depois? Temos chegado, assim, ao conceito da evolução espiritual e
Atingido o homem, Darwin calou-se, não se atrevendo a olhar o o temos delineado. Observemo-lo ainda mais de perto em suas
futuro, não sentindo e nem intuindo mais nada além da evolu- características.
ção orgânica já cumprida pelo homem. Pouco ou nada se tem falado no passado com referência à
Sem embargo, se existe um caminho ascensional já empre- evolução espiritual, porque o homem ignorou e nunca, anteri-
endido e que não se pode deter, é lícito inquirir qual forma te- ormente, viveu coletivamente em vasta escala este fenômeno. O
nha de assumir a continuação deste caminho, este incoercível e passado não registra movimentos espirituais de massa que pos-
progressivo transformismo ascensional que é a evolução; sobre sam ser comparados com os atuais; não conheceu senão casos
que parte do organismo humano há de intensificar preferente- esporádicos de seres intelectual e moralmente adiantados, pio-
mente sua ação evolutiva, esta grande elaboradora de formas neiros do futuro que viveram isolados e, apenas muito tarde e
que é a vida? incompletamente, foram compreendidos. Somente os tempos
A ciência moderna já considerou como insuficiente o sistema presentes conhecem o despertar em massa da alma humana, e
darwiniano de matar a vida para estudá-la, ou seja, percebeu a isto é justamente sua característica principal. Por isso pode-se
necessidade de examinar os animais não como cadáveres disse- considerar a evolução espiritual como fenômeno eminentemen-
cados anatomicamente, como partes de um organismo morto, te moderno e, indubitavelmente, o fenômeno do futuro.
mas sim como seres vivos e em função, com o propósito de ob- Tenho a mais viva sensação de que a humanidade está hoje
servá-los sob outro ponto de vista, analisá-los mais profundamen- ensaiando os primeiros esboços de novas formas do ser; formas
te, descobrir seus instintos, penetrar no mecanismo quase psíqui- de personalidade que serão as individualidades espirituais do
co que os anima e os vivifica, intuindo que tudo isso constitui futuro. Voltou-se com ardor e firmeza à elaboração de orga-
uma forma de vida muito mais importante do que a orgânica. nismos novos, de uma constituição totalmente distinta, obedien-
Se esta mudança de observação foi necessária para com os te à mesma lei que forçou a natureza a ir buscar, através de re-
animais inferiores, que devemos inferir para com o homem, que petidos ensaios, nos albores da vida, as primeiras formas orgâ-
os supera a todos? Para o homem, o estudo anatômico dos ór- nicas, hoje desaparecidas, reveladas pela Paleontologia: Peli-
gãos poderá revelar-nos seu passado, mas não sua verdadeira cossauros (Permiano), Pterossauros (Jurássico, Cretáceo), Ple-
natureza e o segredo do seu futuro. Sua natureza e seu futuro siossauros, Ictiossauros, Dinossauros, os mais gigantescos, entre
estão num psiquismo em desenvolvimento, cada vez maior, que eles o famoso Brontossaurus.
tende a libertar-se cada vez mais de todo o suporte orgânico. Eram formas de vida estranhas, mastodônticas, incompletas,
Se o sistema nervoso e cerebral é ainda seu órgão principal, destinadas a desaparecer logo, através da luta pela seleção, para
este é levado pelas condições da vida moderna, tão distinta da estabilizar-se em outras formas, com novos equilíbrios. Presen-
primitiva, a funcionar com tal prevalência sobre todos os ór- temente, tenho a sensação de igual efervescência de luta, de um
gãos e, portanto, a elaborar-se com tal rapidez, que mui pron- mesmo fervor de criação, de uma mesma rapidez na aparição e
tamente há de invadir todo o campo da vida. Resultará daí um na desaparição das formas intentadas: monstruosidades grotes-
psiquismo tão intenso e preponderante, que em breve dominará cas, organismos espirituais anormais, almas estranhas, rapida-
todo o ser, revestindo e definindo toda a sua individualidade, mente eliminadas pela seleção.
16 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Sem dúvida, a evolução humana passa hoje por um período passado está contido, em grande parte, nas religiões. Para traçar
crítico. A evolução, em sua primeira forma de manifestação – a a evolução espiritual, sob seu aspecto de “evolução de pensa-
matéria (seja cósmica, na história do sistema solar; seja geoló- mento”, é mister seguir a evolução das religiões. Encontrare-
gica, na história do planeta; seja química, na estequiogênese mos relações tais entre estas, concatenadas quanto ao mesmo
dos elementos), completou-se; vale dizer que alcançou seus fim no seu desenvolvimento, que nos será dado ver e reconstru-
graus máximos. A evolução orgânica, ato fundamental na histó- ir a evolução de um conceito único e constante, que permanece
ria da vida sobre nosso planeta, também se completou, ou qua- fundamentalmente idêntico, ainda quando cresce e se aperfei-
se, e deteve-se. Em sua forma espiritual, a evolução inicia hoje çoa continuamente até alcançar, nos tempos modernos, uma
um novo caminho com a criação de novas espécies psíquicas, madureza de grandes proporções.
ou seja, individualizadas e distintas pelas características morfo- Poderemos desta maneira observar os antecedentes históri-
lógicas de natureza prevalentemente psíquica. Este representa o cos que prepararam a atual maturidade espiritual, até ao triunfo
fato fundamental na história da humanidade. da ciência de nossos dias. Se ligarmos este estudo ao outro, an-
Classificá-lo-emos – num sentido mui lato – como fenôme- terior e paralelo, o conceito de evolução espiritual, esclarecido
no biológico, porquanto a evolução espiritual, não sendo senão sob seus distintos e vários aspectos, parecer-nos-á mais comple-
a continuação da orgânica, é sempre vida, se bem que em forma to e porá termo à primeira parte. Na segunda parte, voltaremos
diferente. Este fenômeno aguarda hoje um homem de ciência e ao ponto de vista anterior, para desenvolvê-lo ainda mais e tra-
de fé que o divulgue e o demonstre, assim como o fez Darwin tá-lo mais detalhadamente; falaremos assim dos métodos para
com a evolução orgânica; aguarda o apóstolo que o defenda e o realizar e acelerar este novíssimo fenômeno da época moderna,
gênio que o revele, não já com os métodos da intuição, patri- que é a transformação do homem em super-homem e a passa-
mônio de alguns eleitos, senão com métodos racionais da ciên- gem para uma ordem de vida e de leis superiores.
cia moderna, acessíveis a todos. A importância das religiões, como expoentes do pensamen-
É indubitável que a alma humana, que começou a despertar to coletivo, não pode ser posta em dúvida. As religiões são as
depois de um sono de quase vinte séculos, apenas consolidadas grandes filosofias coletivas, as únicas nas quais tomaram parte
hoje as suas primeiras conquistas das grandes unidades nacio- as massas humanas, dando-se as mãos e unindo-se como se
nais, posta em contato com uma nova realidade, criada pelos fossem a ciência progressiva da humanidade. O pensamento
assombrosos descobrimentos da ciência moderna, está a ponto delas se enriquece, adquirindo potência e profundidade, à me-
de afirmar-se definitivamente como organismo autônomo. Esta, dida que, com a evolução, aumentam a capacidade e o poder
que podemos chamar a gênese do psiquismo, representa um da alma humana. Intuições progressivas da verdade, em forma
acontecimento novo na história do nosso planeta e da vida; um sempre mais vasta e completa, relações de homens com o divi-
fato que recorda, em sua grandiosidade, a primeira condensação no por obra de alguns eleitos e clarividentes, foram comunica-
da matéria nas formas planetárias e o aparecimento das primei- das, reveladas a uma humanidade que compreendeu e pôs em
ras individualidades orgânicas da vida. prática o que pôde, e que, absolutamente ignara em relação às
Trata-se de uma grande revolução da ordem, daquelas que concepções supranormais do subconsciente, aceitou-as na for-
explodem na natureza quando um fenômeno alcançou sua ma- ma psicologicamente passiva da fé cega, a única possível, dado
dureza, depois de um lento período de incubação silenciosa. o nível espiritual da coletividade.
Trata-se de uma revolução biológica, ou seja, da criação, por Seguindo, através da história das religiões, o desenvolvi-
evolução, de um novo ser; de uma superelevação da vida; da mento deste conceito único e fundamental, encontraremos uma
formação em massa de seres mais evoluídos, até constituir uma religião muito mais vasta, única e universal, da qual seguiremos
nova super-humanidade do futuro. sua evolução, que é a evolução do pensamento humano. Reli-
O homem não foi no passado – espiritualmente falando – gião que vai desde o vedantismo ao bramanismo, a Buda, se di-
senão uma criança em sua grande maioria, e demonstra-o o fato funde pelo Egito, chega ao mosaísmo, para dilatar-se no cristia-
de que a humanidade, até agora, nunca enfrentou a solução dos nismo e até à ciência moderna. Avança em vagalhões, como um
grandes problemas do conhecimento de forma racional, mas oceano em tempestade, agitado e impelido pelo sopro do Eter-
apenas acreditou no que os grandes, isolados e mais adiantados, no. Sobre esta crista espumosa das ondas, relampejam pensado-
haviam visto por si sós e revelado. Somente hoje a alma huma- res, mártires, profetas de todos os tempos e de todos os povos.
na ousou caminhar sozinha, coordenando os esforços de todos, Cada uma de suas formas é um esforço do pensamento humano
com métodos externos acessíveis a todos, e não revelados nos para evoluir; é uma aproximação maior da verdade; é uma ten-
arcanos misteriosos dos templos; em uma palavra, elevando-se tativa da alma humana para erigir-se em tipo de espiritualidade
em massa para uma vida autônoma e constituindo-se em coleti- cada vez mais perfeita. Não é possível, neste escrito, seguir de-
vidade consciente e independente. talhadamente a história de todas as religiões da humanidade; se-
Estas últimas observações nos revelam um novo aspecto da rá mister fazê-lo sinteticamente, limitando-nos às principais.
evolução espiritual. Depois de tê-la estudado como evolução de A evolução espiritual da humanidade pode dividir-se em
órgãos e capacidades psíquicas, apercebo-me que posso consi- três grandes etapas: o budismo, o cristianismo e a ciência
derá-la também sob um ponto de vista distinto, ou seja, como a moderna.
evolução de pensamentos e ideais. Tratando-se de um fenôme- Na antiquíssima Índia, o bramanismo, filho da sabedoria
no sumamente interessante e, sobretudo, de igual maturação, védica, havia realizado – ainda quando pelo sistema de inicia-
iminente no atual momento histórico, é mister não descuidá-lo, ção secreta – a ciência do espírito, que seguia métodos de me-
para chegar ao fundo da questão. ditação e de disciplina ascética, chamados Ioga. Nas profun-
Suspendamos, pois, por um momento – voltaremos a este didades do mundo interior, descobrira alguns grandes concei-
tópico mais adiante, na segunda parte (Métodos de Realização) tos, com os quais havia resolvido os mais vastos problemas do
– o estudo da evolução espiritual, considerada como superação conhecimento. Tudo isto, porém, em uma humanidade igno-
biológica e gênese do psiquismo, e observemo-la sob outro rante, havia quedado, necessariamente, como privilégio de
ponto de vista, ou seja, como desenvolvimento do pensamento uma casta e segredo de poucos iniciados. Somente com Buda
coletivo da humanidade. – última flor do gênio hindu, surgido quando a civilização
Chegamos assim às portas de uma nova ordem de conceitos, bramânica, esmagada sob o peso de seu passado, começava a
que nos transferirá para um campo totalmente diverso: o estudo cansar-se e a declinar – realizou-se publicamente o que o
comparado das religiões. Com efeito, o pensamento coletivo do bramanismo havia realizado em segredo, e lançou-se ao mun-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 17
do, fazendo-a pela primeira vez patrimônio de todos, a mais No cristianismo, a dor já não é a ameaça e o terror do ho-
profunda filosofia da vida. Foi este o primeiro passo. mem, o inimigo contra o qual se luta, desde que seja, por assim
O budismo divulgou dois grandes conceitos, tão grandes dizer, domesticada e se converta em força amiga e útil para re-
que ainda hoje não se extinguiu o seu eco na moderna Europa. alizar a evolução espiritual, ou uma aproximação cada vez
Estes conceitos são: reencarnação e carma. Reencarnação sig- maior da felicidade. Ao inimigo do homem não se pode vibrar
nifica uma série de vidas humanas sucessivas para a mesma golpe mais rude.
personalidade espiritual. Carma significa encadeamento, su- A transformação da dor, de instrumento de pena em um
cessão lógica dessas vidas, seu desenvolvimento no tempo de meio de felicidade, não só é concepção nova na história do
acordo com uma lei de causalidade, que, com perfeita justiça, pensamento humano, senão também uma estrepitosa vitória, a
cria o destino individual. Foi assim, através do budismo, que maior revolução moral que jamais haja existido. Tudo isto não
esta grande ideia da evolução espiritual começou a formar-se é senão a boa nova predicada por Cristo. Nesta valorização da
na consciência coletiva. dor reside o significado do cristianismo; este é a apoteose da
Afirmada a existência desta evolução com os conceitos de dor e baseia-se sobre a vida do Cristo, que foi o poema da pai-
reencarnação e carma, o budismo começou a realizá-la, seja xão. Buda não teve paixão; ele adormeceu tranquilamente no
com a renúncia, como meio de libertação e ascensão, seja com Nirvana. Eis aqui o profundo significado do drama da cruz:
os métodos de introspecção e análise por intuição. Os misterio- elevação, até aos mais altos graus dos valores humanos, de tu-
sos poderes do espírito – que ainda hoje permanecem vivos e do o que havia de mais abominável – a dor; cruz que se con-
vitais em um mundo tão diferente – conduzindo a novas formas verte em símbolo de uma religião, santificando o que o homem
de visão psíquica e percepção espiritual, revelando e aperfeiço- havia temido e odiado.
ando, voltam a influir até entre os pregadores do materialismo Vencer a dor, abraçando-a e amando-a e, ao mesmo tempo,
científico, causando perplexidade ao homem moderno, acostu- utilizando-a como o mais ativo fator de evolução, como um
mado a perceber tão-somente com os sentidos e a investigar ex- meio sempre ao alcance da mão para fazer do homem um ser
clusivamente com a observação e a experimentação. novo, que vive uma vida mais elevada, mais santa, mais feliz,
O cristianismo dá um passo ainda mais gigantesco. Se o este é o significado da redenção e da ressurreição cristã. O bu-
budismo viu na evolução espiritual a fase da destruição da dismo, embora o grande caminho já percorrido, não pudera de
animalidade (supressão do desejo, renúncia), o cristianismo nenhum modo chegar a uma tão profunda interpretação da vi-
observou a sua fase sucessiva, a reconstrução do super- da; movera todas as forças da inteligência, porém somente o
homem; se Buda disse: “a evolução espiritual existe (reencar- cristianismo movimentou todas as forças do coração. Somente
nação, carma); buscai-a em vós mesmos (introspecção)”, so- o Cristo ressurge. O cristianismo é uma elevação imensa e cá-
mente Cristo traçou, no campo desta evolução, a realização lida para a vida, entendida em uma forma mais digna. As pai-
completa de nosso progresso. Porém a distância que separa o xões humanas não são destruídas senão em sua forma inferior,
cristianismo do budismo se evidencia toda no problema da subsistindo e se levantando para um nível mais alto; o paraíso
dor. As religiões, realizando a evolução, não são mais do que cristão não é somente o descanso que deriva da negação da dor
formas de luta contra esta grande inimiga, já que a missão da e do mal, mas é uma nova forma de vida na qual o homem se
evolução é suprimi-la, embora ela signifique instrumento de expande depois de sua reconstrução espiritual, que é a sua res-
felicidade, progresso e até bem-estar. surreição e sua redenção.
No fundo, Buda e Cristo partiram da observação desta lei Não devemos, por isso, conceber um antagonismo entre
atroz e própria da animalidade, da qual o homem não está isen- budismo e cristianismo. Haverá, no máximo, contradição nas
to e que foi definida por Darwin como “a luta pela seleção do formas, exteriormente, porém, na realidade, não se trata de
mais forte”, luta que não conhece piedade, necessidade inevitá- uma verdade colocada à frente de um erro. Nenhuma religião
vel no nível das formas inferiores de vida, e que engendra, co- constitui um erro, se ocupa o seu lugar. O cristianismo é, sim-
mo mal irreparável, a dor. Buda, movido por uma imensa pie- plesmente, mais evoluído e mais completo do que o budismo;
dade, foi o primeiro que expôs o problema de sua supressão e é sua continuação lógica; a evolução de um mesmo conceito
buscou um sistema que cortaria o mal pela raiz, no afogamento que, uma vez iniciado, avança e consegue uma perfeição mai-
do desejo na aniquilação da vida. Por último, numa renúncia or. Relação entre o menos, que prepara o mais, e o mais, que
completa, que culmina no Nirvana, na paz absoluta da liberta- pressupõe o menos; uma complementação recíproca de ele-
ção. Uma fuga da vida, para libertar-se dos males que lhe são mentos, indispensável para formar uma religião completa; um
próprios; uma negação global das dores e prazeres, estacionan- cristianismo explicado pelo budismo naquelas partes (reencar-
do na sublime imobilidade. nação e carma) que o cristianismo esqueceu em seu caminho;
Assim, a luta, que é a causa da dor, é atacada no desejo, sua um budismo completado pelo cristianismo (redenção através
primeira raiz posta no coração do homem. Sem dúvida, com da dor). Duas concepções não contrárias entre si, pois a maior
ele, o problema da dor é enfrentado com toda a energia. compreende a menor em seu seio; dois métodos, sendo o se-
O cristianismo, mesmo quando segue e completa o mesmo gundo mais completo do que o primeiro; duas filosofias pro-
conceito, chega muito mais longe; o problema é exposto e re- gressivas que marcam duas etapas no caminho da evolução es-
solvido em forma distinta e mais radical. Se o budismo, para piritual da humanidade; dois graus na mesma escala do pro-
destruir a causa da dor, se conforma – mediante a supressão do gresso humano; duas revelações aparecidas em distintos mo-
desejo – com o aniquilamento da natureza inferior no homem, o mentos históricos, nos quais a humanidade se encontrava em
cristianismo, conduzindo-o de todo a outro nível biológico, o diferentes graus de madureza; dois ideais de diferente potenci-
faz ressurgir em um mundo novo, onde a lei atroz da luta pela alidade que se subseguem no mesmo caminho.
seleção do mais forte – lei bestial da injustiça e da força – é su- Deixei de mencionar, por brevidade, as outras religiões do
perada, e, desta forma, a dor acaba definitivamente vencida. Se passado, que podem vincular-se a estes dois troncos principais,
o budismo se limita a explicá-la e justificá-la, chegando, através como ramos laterais de uma mesma árvore: seja a egípcia, que
da introspecção, aos conceitos de reencarnação e carma, e ensi- possui muita afinidade, em suas concepções da vida, com a an-
na o modo de evitá-la através da renúncia, o cristianismo, di- tiga civilização da Índia, seja a religião de Israel, que não é se-
zendo paixão, redenção e ressurreição, ensina a utilizá-la e amá- não a preparação do terreno em que devia nascer o cristianismo.
la como um precioso instrumento, que serve de alavanca para Estas religiões se auxiliaram e se sustentaram mutuamente, con-
evoluir e edificar-se em uma vida mais elevada. fiando-se a custódia dos grandes conceitos que se deviam con-
18 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
servar, maturar e assimilar, transmitindo-os para que fossem cussão – desastres coletivos dos quais a Europa ainda irá demo-
aperfeiçoados ainda mais, uma vez cumprida sua própria função rar para se refazer, apesar de tudo – dizia – a ciência moderna
histórica. Assim, profetas e povos foram elaborando, pouco a constitui um acontecimento novo na história da alma humana.
pouco, como a construção de um grande edifício, a trama de Se a necessidade de se afirmar a levou a exagerar desde o prin-
uma religião mais vasta, que se levanta sobre os alicerces de cípio e engendrou a atual civilização utilitária, necessariamente
uma verdade única, que se manteve constante através das for- truncada e unilateral, este esforço de pensar por si, no entanto,
mas mais diferentes dos tempos e lugares, manifestando-se ca- com que a humanidade demonstra ter ultrapassado para sempre
da vez mais luminosamente. a menoridade da fé na revelação, é maravilhoso. Até então, a
Não falo da antiga Grécia, fenômeno espiritual mais com- verdade – como já disse antes – era oferecida já plasmada, pe-
plexo, que, se por um lado contém e transmite os germes con- los grandes solitários, os quais, tendo-a intuído com meios pró-
ceptuais do Oriente ao Ocidente, por outro pode ser considera- prios e excepcionais, comunicavam-na em seguida a uma hu-
do – na perfeita realização conseguida do divino no humano, na manidade que, sendo incapaz de encontrá-la por suas próprias
mais harmônica fusão alcançada entre o espírito e a matéria – forças, aceitava-a passivamente. A humanidade, hoje, rechaça
como um descenso daquele nesta e uma pausa no caminho da esta forma primitiva de conhecimento, ousando olhar de frente,
evolução espiritual. Especialmente se vincularmos o helenismo unicamente com suas próprias forças, o mistério. É uma huma-
à antiga Roma (que careceu de conceitos espirituais, pois não nidade em marcha para a sua idade adulta, que deseja olhar o
podia possuí-los o ideal do domínio material do mundo, conse- mundo com seus próprios olhos. Eis o grande passo para frente
guido pelo sistema da organização da força), encontraremos ne- que a humanidade realiza hoje no caminho da evolução espiri-
le a elaboração de um conceito distinto: aquele do qual, mais tual: progresso, porquanto todos são admitidos na investigação
tarde, devia nascer o materialismo utilitarista moderno. Trata-se e colaboram na mesma com métodos novos: a observação e a
de um materialismo primeiramente helênico, depois romano e, experimentação. Todos aqueles que desejam e sabem, podem
em seguida, moderno; uma concepção pagã da vida, que difere conduzir o seu grão de areia na construção do grande edifício
das concepções religiosas do ciclo examinado na evolução espi- da verdade, e os resultados são acessíveis a todos, através das
ritual, porquanto não se propõe – como aquelas – realizar a fe- formas de vulgarização do saber e da democratização dos co-
licidade pelo desenvolvimento no mundo interno, mas domi- nhecimentos anteriormente ignorados.
nando o mundo e a natureza com a inteligência e a força. Estes Isto há de conduzir a humanidade para a sua madureza inte-
são os dois extremos do pensamento humano: espírito e maté- lectual, a fim de seguir, sem antagonismos, o caminho empre-
ria, paganismo e cristianismo, Ocidente e Oriente. O Oriente endido pelo budismo e pelo cristianismo. Sem antagonismos,
permanece indiferente ante o mundo exterior, esquivando-se ao pois, se os teve e todavia os possui, são transitórios e relativos.
seu contato, para dedicar-se exclusivamente ao aperfeiçoamen- O objetivo fundamental da verdadeira ciência é o mesmo que o
to da personalidade humana, e o Ocidente, que triunfa hoje na das religiões: a busca da verdade; e, à força de buscá-la, esta
moderna civilização europeia-americana, segue o ideal oposto. ciência terá de chegar necessariamente onde nunca tivera sus-
As duas concepções, no Oriente e no Ocidente, também hoje se peitado chegar: a demonstração da ideia de Cristo. É natural
encontram frente a frente: o alcance da felicidade através da que se encontrem na meta, que é a mesma, porquanto são so-
evolução do mundo interior e exterior, apegando-se cada vez mente distintas as rotas seguidas para alcançá-las; por uma
mais a este. Em outros termos, dois métodos: renúncia e con- parte, a revelação; por outra, a observação. A verdade, que é
quista, dor e trabalho; dois adversários que se excluem, desti- una, não pode variar pelo fato de ser alcançada por vias dife-
nados, porém, quem sabe, a unir-se e a colaborar. Levar-nos-ia rentes. Esta é, justamente, a função histórica da ciência moder-
muito longe, porém, a explicação das complexas funções destas na, e não mais o fim utilitário, que apenas possui como meta a
forças colaterais que atuam nestas civilizações de tipo distinto. realização de uma felicidade material. Este é seu significado
Não nos cabe falar das ramificações mais recentes, que se dife- como nova etapa na estrada da evolução espiritual do homem:
renciam do cristianismo tão-somente em pormenores; retorne- a demonstração das verdades, até então somente conhecidas
mos, pois, ao argumento interrompido. por revelação, contidas nas religiões.
O cristianismo não se detém no caminho da evolução espiri- Estas perderão seu aspecto misterioso e inacessível que tan-
tual. A ideia de Cristo sobre a redenção do homem apenas se to fatiga a mentalidade moderna. Serão preenchidas suas lacu-
lançou na história do mundo. Em dois mil anos, a humanidade nas, desaparecerão seus antagonismos exteriores e aparentes e
assimilou somente uma pequena parte, permanecendo pagã e suas discrepâncias com várias filosofias. Adquirirão, com a
politeísta como antes. Fixaram-se apenas – e nem sempre em demonstração cientifica, a evidência e a tangibilidade que hoje
forma estável – alguns conceitos nas instituições que hoje cons- atormentam e impor-se-ão – por assim dizê-lo – a todo ser raci-
tituem o patrimônio da civilização moderna, a civilização cristã. onal. Assim, a ciência moderna, seguindo a estrada e comple-
Estamos ainda longe da realização completa da ideia de Cristo, tando a obra do budismo e do cristianismo, assinalará a chegada
aquela que os evangelhos chamam a “vinda do Reino dos Céus”. do Reino dos Céus, ou melhor, oferecer-nos-á o super-homem
Para realizá-la, importaria que a moral de Cristo saturasse total- espiritualizado do futuro e realizará uma fase ainda mais avan-
mente as instituições, que se formasse uma humanidade organi- çada da evolução espiritual.
zada sobre bases distintas e radicalmente diferente, sobretudo Resumindo: o mérito de haver primeiramente afirmado a
nos instintos, nas normas de vida, na fé dos indivíduos. A evolu- existência da evolução espiritual corresponde ao budismo; ao
ção espiritual tem, pois, grande caminho a percorrer. cristianismo, o de haver ensinado os meios para realizá-la.
Entretanto um fato novo surgiu neste último século: a ciên- Corresponderá à ciência o de demonstrá-la, divulgá-la e, em
cia. A ciência representa, depois do budismo e do cristianismo, seguida, realizá-la.
um novo grande passo a frente no caminho da evolução espiri- Observamos, realmente, em nosso mundo civil, um fato sin-
tual. A ciência moderna, se bem que tenha começado exceden- tomático de primordial importância para a história da evolução
do-se no afã de concluir, arrastada pelo entusiasmo de seu pri- espiritual. Na Europa moderna, cadinho das ideias do mundo,
meiro aparecimento e também por uma natural reação corretiva em um período febril que quase raia ao neurótico, em um mo-
do abuso que as religiões praticaram; se bem que, apenas nasci- mento espiritualmente critico como o atual, no qual parecem
da, fundira-se no materialismo, infectando o mundo de utilita- agitar-se as grandes ideias da história e das correntes espirituais
rismo, fazendo o homem retroceder àquela animalidade somen- da humanidade, nesta Europa, dizia, encontramos reunidas as
te na qual o havia estudado, produzindo – como última reper- três grandes formas do pensamento humano: o budismo, o cris-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 19
tianismo e a ciência. O budismo antigo, ressurgido no moderno como já vêm herdando toda a nossa civilização, a nova grande
movimento teosófico, representa a ideia de reencarnação e car- fé e viverão para levá-la mais adiante. Todavia, mesmo que a
ma, o conhecimento de métodos para encontrar uma consciên- Europa tivesse vivido tão-somente para realizar esta criação,
cia interior através das escolas do pensamento, e uma primeira não teria vivido inutilmente.
forma de purificação espiritual por intermédio da renúncia. Es-
tes conceitos profundos da antiga sabedoria hindu são necessá- III - O Reinado do Super-Homem
rios para explicar e completar a filosofia cristã, que, com o cor-
rer dos séculos, os ia perdendo. À teosofia neobudista está, des- Ressurreição! O homem, libertado, ressurge. A evolução
ta maneira, confiada uma grande missão na reconstrução espiri- espiritual se cumpre. A grande lei da vida triunfa. Percebo o ru-
tual da Europa moderna. O cristianismo, nas formas de catoli- gido da maré que avança dos mais profundos abismos e impele
cismo, protestantismo e outras afins, representa a ideia da dor os seres a uma corrida desenfreada de ascensão. É o hálito da
como função criadora no mundo espiritual, o conhecimento dos vida. Sinto a grande lei, princípio e força que anima o universo,
métodos de evolução das paixões e dos instintos, métodos ten- apressar, com o movimento lento e fatal de todo o seu comple-
dentes a realizar a transformação biológica do homem no super- xo organismo de formas e de conceitos, este momento supremo
homem, isto é, o aparecimento do novo homem espiritual, a para onde converge todo o transformismo fenomênico, este
missão de reconstruir a humanidade, reconstruindo o indivíduo. ponto culminante, que é a superação biológica, a transfiguração
A ciência, em suas infinitas ramificações, representa a função no super-humano. Toda a vida se acha empenhada no esforço
da demonstração racional das verdades reveladas e, com isto, a de forjar seu produto mais elevado no grande trabalho da última
obra de divulgar as ideias contidas nas religiões e de realizar na síntese. De um mundo de luta e de dor, a alma renasce em luz
vida os postulados das mesmas; fecundação das ideias dos nova e respira a atmosfera rarefeita das grandes alturas.
grandes solitários mediante o esforço da série infinita dos indi- Antes de empreender o grande voo, há um ponto no qual a
víduos, missão de realizar a evolução espiritual. alma se retarda em vacilação e incerteza, o ponto neutro do
Se, porém, cada uma destas três grandes forças espirituais transformismo. A vida se desenvolve, então, como um canto
representa uma ideia, uma tarefa, um trabalho próprio, as três cheio de nostálgica tristeza, formada por todos os sonhos dis-
juntas tendem a um fim muito maior, que é conseguir a fusão persos no vazio do nada, e, como folhas murchas do outono,
de todas as concepções em uma concepção única e mais am- caem uma após outra as ilusões e as miragens. O canto morre
pla, fusão que será a unificação espiritual de religiões, filoso- em nostalgia sem nome, apaga-se quase em calafrio mortal. Ex-
fias e ciência, síntese de todo pensamento humano, nova reli- traviada em deserto desolado e sem fim, a voz retumbante do eu
gião do futuro, na qual todas as sucessivas e diversas aproxi- se desvanece em canção lamuriante de sonho. Com a entonação
mações da verdade, conquistada paulatinamente pelo homem, doce e triste da recordação, a alma canta desconsoladamente.
encontrarão seu lugar, completando-se e fundindo-se numa só Seu canto é triste como um suspiro; gemendo, afasta-se da Ter-
verdade universal. ra. O eco distante dos amores perdidos ainda vibra no ar solitá-
Temos notado, através do desenvolvimento da ideia religiosa rio, música doce dos sentidos que se extinguiram para sempre.
da humanidade, a presença de um pensamento constante, mesmo Recordação dolorosa. Numa angústia mais profunda, que trans-
quando se vai transformando no tempo em um conceito único e borda do mistério, o último adeus à vida flutua largamente co-
universal, se bem que plasmado diferentemente pelos distintos mo que suspenso no vazio; em seguida, lentamente, desce para
temperamentos dos povos. Existe, pois, apesar das distâncias de desvanecer-se num aniquilamento que já não possui voz, mas
tempo e espaço, uma concordância de princípios fundamentais, tão-somente um latejo de vibração interna. A vida humana dis-
uma relação de partes, um aumento contínuo do mesmo núcleo solveu-se instantaneamente: eis o nada. Algo se delineia naque-
primitivo, que não deixam lugar a nenhuma dúvida. le vazio, como uma nebulosa, e se vai dilatando e transbordan-
Ainda que, aparentemente, estas três grandes forças espiri- do em outro esplendor. Uma estranha vida renasce nas profun-
tuais se encontrem em conflito, tendendo a excluírem-se num dezas; uma sensibilidade anímica, novo meio de percepção,
contínuo estado de luta, não devemos alarmar-nos pelas apa- abre de par a par as portas ao eu esmagado, que vislumbra uma
rências. Lutam pela necessidade mais urgente, que é afirmar-se visão semelhante a um sonho. Eis aqui o supranormal inexplo-
a si mesmas, se bem que separadamente, ou seja, defender, an- rado, em cujo umbral a alma assoma estupefata, e sobre o qual
tes de tudo, a sua própria existência. Sentindo-se cada uma de- se manifestam as pseudoneuroses incompreendidas do gênio e
las um elemento vital, indispensável ao futuro do pensamento do santo. Eis aqui o super-homem solitário e sofredor, enfastia-
humano, defendem-se desesperadamente, como se tivessem o do dos ídolos das multidões, aturdido pelo bulício da vida, abs-
terrível pressentimento de que seu próprio fim poderá prejudi- traído e inepto porque seu espírito nada faz senão escutar aten-
car a reorganização futura dos mais altos destinos do espírito tamente uma canção sem fim que se levanta de seu interior e
humano. Este instinto de conservação individual é natural e sobe de encontro ao infinito. Na sua hipersensibilidade tortu-
providencial, pois, no fundo, se as três forças se chocam entre rante reflete-se o tormento sagrado da criação, em que se des-
si, é também para que se conheçam melhor e porque, na reali- nuda a beleza luminosa da alma. Estranho sonhador, absorto
dade, buscam-se para tocar-se, para sentir-se, para encontrar um nos ócios fecundos que amadurecem sua ânsia interna invisível,
encaixe que, algum dia, lhes permita a fusão. Se a preocupação padece uma paixão que não se endereça mais ao homem, porém
pela própria integridade e conservação é, como no indivíduo, a ao universo. É heroico arcar com o peso de uma grande ideia.
mais pertinaz, não é menos viva, se bem que menos visível, Este peso que esmaga, assusta e oprime com uma sensação de
aquela de poder achar um meio de uma fusão futura. Estes três desproporção e de miséria.
princípios, o budismo, o cristianismo e a ciência, acabarão por Como se poderia calcular o custo destas conquistas, como
fundir-se na Europa moderna, transbordante de ideias, que con- descrever o drama terrível que vivem estes espíritos doridos
tinua sendo o cérebro do mundo, se bem que esteja bastante que levam dentro de si a ânsia de criação? Enquanto nós outros
cansada pelo muito que lutou e viveu. gozamos os frutos humanos que aplacam e dispersam as forças
Nesta Europa ultramadura, a civilização fartamente avança- do espírito, eles se reconcentram para intentar o esforço sobre-
da, para que não deva iniciar sua regressão, antes de extinguir- humano, vivem de coisas imensas, de esperanças e desalentos
se, deseja brindar ao mundo a maior criação do pensamento inconcebíveis, empenhados em lutas titânicas contra forças ti-
humano: a religião sintética do futuro. Outros povos do Ociden- tânicas; pedem à vida aquilo quase impossível, que é a realiza-
te americano, mais jovens e mais aptos para a luta, herdarão, ção do ideal, sem descansar em prazeres fáceis, sem possibili-
20 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
dade de jamais se conformar com a mediocridade, empurrados como, por exemplo, no sonho relatado no Capítulo XXV de I
como num turbilhão, por um trabalho incessante de evolução. Fioretti, de São Francisco, para demonstração de que os “san-
Como descrever o terror de quem se assoma sozinho ao abismo tos”, seres biologicamente “adiantados”, viveram realmente es-
dos grandes mistérios e percebe, sobre o limiar do supranormal, te drama íntimo em que o espírito ensaia voos e cai. Depois se
a visão de novas realidades sem limites? Como conceber a sen- purifica e recobra forças através de outras provas, para volver
sação de vertigem que dão certas alturas à natureza humana e a a reiteradas tentativas, caindo e ensaiando de novo até que, fi-
triste solidão da alma diante da desmesurada inconsciência das nalmente, consegue o voo vitorioso.
massas, mercê da insuficiência de um mecanismo sensorial e O espírito sofre na longa espera, mas o futuro lhe pertence.
cerebral que não consegue agarrar a parte mais verdadeira e A matéria é tenaz em sua opressão, mas, como filha do passa-
mais profunda da vida? Depois, a luta para ascender sozinho, a do, fenece com este.
desvinculação atroz dos laços da animalidade, que, com fre- O homem atual oscila entre as duas fases contíguas, num
quência, constituem integralmente a vida; o esforço, às vezes dualismo de formas de vida que evidencia o transformismo as-
perigoso e malogrado, para forçar a aceleração do processo cendente, dualismo que observamos em todos os valores huma-
evolutivo. Atrás de cada vitória, a vertigem de uma altura mai- nos e agora voltamos a encontrar no homem. Apresenta-se-nos,
or, até que apareça um novo mundo de grandiosidade arrebata- assim, uma duplicidade de organismos em um único ser, cone-
dora. Dores e angústias recompensadas não mais pela humani- xos e distintos ao mesmo tempo, juntos, mas não fundidos, dis-
dade, mas pelas forças biológicas. Dores necessárias para a cri- tanciados por uma rivalidade que é uma guerra sem quartel, pa-
ação de valores maiores: os espirituais. ra conquistar todo o campo da vida; corpo e alma, matéria e es-
Depois do exame da evolução espiritual como conceito, pírito – assim como a força e a justiça, a dor e o prazer, o mal e
desde o ponto de vista científico até ao religioso; depois do es- o bem – somente representam, no caminho da evolução, o pas-
tudo dos meios para realizá-la, sob o ponto de vista social e es- sado e o futuro. Nada importa, se a existência do espírito – es-
piritual, consideremo-la, agora, com um ritmo mais rápido e vi- sência destilada de todas as experiências da vida, que tudo con-
brante, como um impulso de paixão, na plenitude de sua reali- centra e conserva eternamente – por ser uma entidade sutil e
zação. Completaremos, desta maneira, mudando continuamente impalpável, foi negada. Não importa tampouco se, em muitos
de perspectiva, o quadro desta concepção, que é uma filosofia casos, a alma silencia, pois o seu componente físico é débil. Pa-
universal e completa da vida. ra outros, ela é uma realidade contínua, evidente, indiscutível;
Vimos que os caminhos da libertação nos conduzem ao rei- se não é ainda possível, para a sua demonstração, executar uma
no do super-homem, a cujos umbrais chegamos, onde se efetua exata anatomia espiritual, é devido tão-somente à falta de meios
a superação biológica. O nascimento do super-homem pressu- sutis de investigação. Quem busca provas racionais para encon-
põe a morte do homem, ou seja, um isolamento e uma luta. É o trar a alma atesta a sua própria involução. A alma, como Deus,
isolamento do mundo inferior, é a luta entre o espírito e a maté- não se demonstra; é sentida e alcançada dentro de nós mesmos,
ria, entre o ser novo que se liberta e ressurge e a animalidade por intuição, e não por um esforço exterior de raciocínio.
que não deseja e, entretanto, deve morrer. Na desvinculação en- Em alguns seres avançados, nos quais o espírito se sente
tre espírito e matéria, na libertação deste novo ser que, impulsi- maduro para uma vida própria e reclama a sua afirmação, em
onado pela lenta maturação do tempo, surge estranhamente contraste com um organismo que não quer ceder seu campo e
num mundo novo, com novos sentidos, instintos e conceitos, perecer, a luta pode chegar a ser terrível. Aquele organismo, se
existe todo um esforço de ascensão, laboriosidade do parto, ân- está destinado à eliminação para ser inexoravelmente vencido
sia de criação, e isso, depois de uma incubação milenária, à for- com o tempo, resume toda a animalidade e é a cristalização de
ça de acumular experiências e aptidões, crescendo e aperfeiço- um passado que representa, pela sua massa, uma força e um
ando-se com o trabalho da vida. Há algo que recorda, se bem impulso imensos. À chama ardente do espírito a matéria opõe a
que muito longinquamente, o glorioso nascimento da vida no inércia das grandes massas, agarra-se, como pesado lastro, ao
mundo orgânico – uma grande conquista depois de enorme tra- anjo alado, que se atrasa na impaciência do voo.
balho e prolongado esforço. Podemos imaginar a vida não mais como um ponto, mas
O homem, já chegado ao máximo da evolução terrestre, como um rasto que vai crescendo até cobrir um bom trecho do
avança ainda mais além, apartando-se da animalidade que lhe caminho da evolução. O espírito é o seu limite extremo avança-
era própria, superando-a totalmente com novas e mais vastas do, a locomotiva em marcha que devora distâncias, ou ainda, o
aptidões, até revolucionar a vida. chefe que vê, guia e manobra. A matéria é a massa que, se gra-
O espírito, aprisionado pela matéria já antes de nascer, no vita por inércia, garante a estabilidade; é um corpo que, mesmo
período penoso do ensaio, se debate dentro do organismo cor- dificultando, também assimila, fixa e conserva as conquistas
póreo insuficiente e preguiçoso, como entre paredes de um cár- realizadas, ainda quando se estenda ao limite oposto, do qual a
cere. Urge-lhe crescer, e o mecanismo sensorial já não responde vida se vai afastando cada vez mais. O espírito, que marcha à
mais à crescente vontade de perceber e de viver. Este novo or- frente, em processo de contínua e progressiva criação, ansioso
ganismo, que é a alma, deseja romper a carcaça para expandir- por viver “mais além”, tem a seu cargo todo o trabalho da mar-
se na luz do sol; deseja superar o passado e abrir-se nas rotas da cha e é o inimigo natural de tudo quanto vem arrastando atrás
vida, ressurgindo no júbilo de uma renovada juventude. Este é de si. A matéria, em compensação, é um organismo animal, fei-
o significado íntimo dos fenômenos metapsíquicos, que tendem to para abastecer-se a si mesmo, e não às criações espirituais;
a normalizar-se, e das manifestações cada vez mais claras do um organismo cujas células estão construídas para as trocas
subconsciente na realidade cotidiana. Existe dentro de nós comuns, e não para suportar as tempestades do espírito. Este
mesmos, e se vai definindo cada vez mais, uma personalidade organismo é o inimigo natural do espírito, que, para afirmar-se
ansiosa de vida própria. Grita sempre mais forte e golpeia de- a todo o custo, lhe impõe um trabalho pesado e até o agride,
sesperadamente o nosso interior, como se fora a porta cerrada como para matá-lo, a fim de libertar-se dele. Daí esse desequi-
de um cárcere. Cada dia é mais castigada pela estreiteza dos li- líbrio que se quis incluir no patológico, mas que é somente um
mites do mecanismo sensorial e, naturalmente, expande-se cada deslocamento de centro de vida, a aparência exterior de um in-
vez mais, buscando lançar-se fora nas realidades novas e mais tenso trabalho de criação. Dentro da vida se encontram o enor-
vastas, para a conquista de uma vida independente. me trabalho do renascimento e a dor da morte. O espírito é or-
Encontramos esta luta e este esforço perfeitamente descri- ganismo em crescimento contínuo, que, no seu incessante reno-
tos em muitas passagens psicológicas da literatura mística, var-se, vai matando cada vez mais a besta no homem. Cada se-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 21
gundo é fração de transformismo evolutivo, em que uma parte ao espírito, disputando-lhe qualquer ascensão e intentando me-
do ser morre e volta a nascer; desloca a vida para dá-la ao espí- lhor sujeitá-lo aos seus fins. Estabelece-se desta maneira, entre
rito, subtraindo-a à matéria. Nenhuma criação é possível sem os dois, uma luta pela vida, luta que será tanto mais árdua quan-
trabalho e sem dor. Uma parte de nós outros, dada a autoridade to mais forte e atrasado for o nosso eu inferior.
da Lei, que é um impulso irresistível de evolução, deve separar- Não atendamos à sua voz desesperada. Deixemo-lo, heroi-
se para ser abandonada e substituída por outra forma. A nature- camente, gritar e perecer, vencendo a resistência que aperta cada
za inferior está obrigada a este trabalho típico de reparação do vez mais as cadeias de nossa escravidão. Se soubermos superar
mundo de hábitos e instintos que foi seu e que deve extinguir- o primeiro esforço, que é sempre o mais penoso, experimenta-
se. Isto não quer dizer que ela, sentindo-se desfazer pelo ímpeto mos no espírito, de imediato, uma sensação de bem-estar, uma
da borrasca, não resista por instinto de conservação e não se re- alegria em nossa consciência, que irá aumentando à medida que
bele para não perecer. Apertada em engrenagem que a vai es- avançamos para o progresso, até que se forme em nós o hábito
magando cada vez mais, presa por uma sensação de asfixia e de do mando. A cada vitória, a matéria mais debilitada afrouxará o
terror da morte, luta desesperadamente. Daí essa batalha interi- seu apertão, e o sofrimento perderá cada vez mais algo de sua
or, verdadeiramente épica, e que é a maior de todas as glórias intensidade. Se é doloroso matar a natureza inferior, este é o
humanas. Drama laborioso e fecundo, através do qual resplan- único meio para matar também a dor, que, como vimos, desapa-
dece a função evolutiva da dor. rece com a libertação, pois a pena da separação deriva totalmen-
Existe um duplo trabalho: o florescimento do espírito, ór- te da natureza inferior e não existe para o espírito que se tenha
gão novo que intenta alcançar cada vez mais solidamente as liberto da mesma. O sofrimento reside todo na imperfeição, na
futuras formas, e o sofrimento e a morte de um organismo que impotência, nas limitações que são inerentes à matéria, enquanto
se sente limitado em suas expansões máximas, formado e que, para o espírito, esta é a rota radiante da redenção e da vida.
afirmado solidamente nos séculos vividos, sob a presidência da O fenômeno da superação biológica que nos conduz ao rei-
mesma lei que agora o mata. Esta morte daquela parte de nós nado do super-homem assume, pois, a forma de uma luta entre
mesmos, que em geral é a mais sólida, pois data da herança o futuro e o passado, entre o espírito e a matéria, e efetua-se
dos instintos mais antigos, é o maior tormento. É o justo preço mediante a renúncia, que poderíamos já definir como o proces-
da conquista da evolução. so de realização do transformismo evolutivo. O problema trans-
É bem certo que o caminho da superação, por ser feito de figura-se de superação em luta, de luta em renúncia. A renúncia
renúncia, é o caminho da tristeza e causa horror, encerrando, manifesta-se-nos sob dois aspectos distintos. Para o ser igno-
todavia, uma alegria que compensa. Não sofre o ser em sua to- rante e passivo, que não se move senão sob o empuxo da Lei,
talidade tais restrições, mas somente o organismo inferior, o há uma renúncia forçada, imposta pela evolução, inexoravel-
único que grita, enquanto a parte mais nobre do eu goza e se mente – a dor – o caminho das grandes massas inconscientes,
alegra ao vislumbrar nova e ilimitada expansão. lento mas inevitável, o caminho de libertação, que já examina-
Encontramo-nos, também aqui, à frente de dois conceitos in- mos. Existe a renúncia voluntária, caminho rápido, consciente e
versos e complementares na função da dor, que, no mundo ani- livre, reservado para aquele que sabe e se lança espontaneamen-
mal, é destrutiva e, no mundo espiritual, se inverte em função te, sem aguardar imposições, na corrente da evolução e segue-a
criadora. O que, para os instintos inferiores, significa terror e ativamente, acelera o seu curso, buscando-a e utilizando-a co-
morte, para o espírito é gozo e vida, e ao contrário. A evolução mo um instrumento no caminho da libertação, a que aludimos e
impõe-se sempre dentro de perfeito equilíbrio de justiça; não é que estudaremos aqui. Duas escolas diferentes de progresso,
possível se esquivar a um sofrimento, assim como não se pode igualmente necessárias, das quais não se escapa a não ser para
recusar uma alegria. Quem se entrega aos gozos do espírito deve sair de uma para a outra. Ou a dor ou a renúncia. Eis a exigên-
sofrer o tormento da carne; e quem se entrega aos prazeres da cia da evolução, e a evolução é a vida.
matéria sofre um contínuo desassossego, o remorso da consciên- Dor e renúncia não são, pois, senão duas fases desta opera-
cia, que não é possível abafar, pois despertará quando cair a ilu- ção. Tocam-se como fenômenos contíguos, que tendem, de
são. Parece impossível uma posição de ócio, porque a evolução pontos diferentes, a um mesmo fim: a libertação. Retornemos
é lei inexorável, que nos impõe a conquista de nossa felicidade. ao problema da dor, para ver como esta se transforma gradual-
Espírito e matéria representam duas formas de vida tão di- mente, até resolver-se no problema da renúncia. Chegaremos
ferentes, que o ser não pode contê-los ao mesmo tempo, sem assim a explicar-nos o significado deste conceito da renúncia,
dar a um deles a primazia com menoscabo do outro. Dois absurdo e inadmissível se o separarmos daquele da evolução,
amos, dizia Cristo, aos quais não se pode servir ao mesmo que a utiliza como instrumento de superação e ascensão. Estu-
tempo: Deus e o Diabo. daremos uma questão mencionada anteriormente, a da renúncia
A natureza do espírito é positiva, ativa, criadora. Sua ne- como meio de libertação; veremos como deve ser usado este
cessidade suprema é dar e doar-se. Seu gozo é o altruísmo, o meio, qual é o dinamismo de seu funcionamento, que nos con-
sacrifício. duz ao reinado do super-homem, onde, finalmente, se realiza a
A matéria, ao revés, é negativa, passiva, inerte; para suster- evolução espiritual tão amplamente preparada.
se, necessita receber, absorver continuamente do mundo exteri- Deixei de enumerar entre os caminhos da libertação os sis-
or; acumular constitui seu gozo primordial. Cega e muda por temas de Ioga, escola de pensamento e desenvolvimento espiri-
natureza, não pode viver se não for fecundada e plasmada pela tual, a ciência Oriental da evolução, não só porque este estudo
potência do espírito e reanimada incessantemente por seu abra- nos levaria demasiado longe, senão também porque estes siste-
ço vivificador. Daí o egoísmo, a avidez de sua pobre vida refle- mas são adequados especialmente aos que podem viver em iso-
xa, o insaciável desejo de posse e de domínio. Se o espírito é lamento monástico. Limitamo-nos, deliberadamente, a uma or-
tão inesgotavelmente rico, que pode dar sempre sem se acabar dem de ideias ocidentais e científicas e chegaremos à realização
jamais, a matéria é tão pobre, que nada pode dar sem sentir-se do Ioga com os meios da nossa própria psicologia.
morrer. Sempre sedenta e famélica, ela é toda garras para pegar, A dor, contra a qual de nada valem a riqueza, a ciência e o
feita para agarrar e entesourar, pois, nos mundos inferiores, o poder, entra inexoravelmente em todos os lugares e sabe fazer-
dar importa em diminuição e autodestruição. se sentir também naqueles que ignoram sua função evolutiva,
Disto nasce a sua atitude contraditória. O que para o espírito impondo-se incondicionalmente a todos. Em contato com ela, o
representa a separação dos vínculos de um mundo inferior e a eu, saturado do mundo exterior, sente-se sacudir em suas fibras
libertação, para a matéria é a desesperação da morte. Agarra-se mais íntimas, por uma sensação estranha. A dor oprime, cerra
22 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
todas as vias de expansão para o exterior, obriga o impulso da Passamos, assim, ao mundo super-humano, onde a dor, de
vida a retirar-se em ordem sobre si mesmo, para buscar novos fator negativo e maléfico, se transforma em prazer de criar,
refúgios em outras direções, usando rumos inexplorados. As em amiga querida dos grandes, em alavanca poderosa que re-
forças, que de outro modo se dispersariam caso se lançassem pa- genera o mundo, em uma corrida para a vida. Soa o hino da
ra o exterior, acumulam-se e concentram-se para, em compensa- redenção. Felizes os que choram. Aqui, a dor não é mais dor.
ção, dilatar-se interiormente, numa expansão diferente. O pro- A Lei permanece, mas é a lei santa do sacrifício. O conceito
gresso e a conquista de bens são os primeiros instintos da vida e de “dor-mal” e “dor-dano” se transforma no de “dor-
a felicidade de que o homem necessita. Tudo que os limita lhe redenção”, “dor-trabalho”, “dor-útil”, “dor-gozo”, “dor-bem”,
causa pena, pois toda a diminuição de si mesmo é dor. O eu que “dor-paixão”, “dor-amor”, por gradações sucessivas, numa
se encontra rodeado pela dor, sofrendo-a, agita-se freneticamen- contínua ascensão, até ao absurdo aparente do martírio, até
te sob o apertão que o sufoca, preso ao desespero pela necessi- uma Santa Teresa, um São Francisco, um Cristo. A dor, então,
dade insatisfeita, e vê-se induzido a intentar outros meios para transfigura-se. Parece esfumar-se na mais profunda sensação
realizar aquela expansão, que é a sua própria vida. Se está madu- da Lei, como um eco de mundos inferiores que aí em cima, na
ro pelo sofrimento e pelo conhecimento, ao defrontar a barreira glória da alma, não pode chegar.
inexorável que o destino opõe ao seu fácil crescimento externo, Através da evolução, realizou-se o milagre da superação da
com um supremo esforço se rebela contra tudo o que é do mun- dor. O eu e a Lei uniram-se em harmonia perfeita, sem possibi-
do exterior, buscando outro caminho em si mesmo. O impulso lidades de violações, de reações e de dor. Esta já não existe
da vida toma assim outra direção, para o interior. A expansão aqui como mal ou expiação, mas somente como trabalho livre
encontra a maneira de igualmente realizar-se, mas para uma rea- e consciente, transbordante de prazer de criar valor maior: o
lidade de outra ordem, saltando por cima das várias lisonjas e homem e sua felicidade.
gozos. Deste modo, o sofrimento da dor se modifica em um mal É neste ponto que a dor se torna renúncia, a fase mais ele-
benfeitor, porquanto, sem o seu aguilhão, não teríamos buscado vada da superação. Agora poderemos compreender o signifi-
o novo caminho. Uma vez orientada neste rumo, a personalidade cado deste conceito, do qual está cheia a vida dos “santos”.
traça, então, novo itinerário. Avançando gradualmente, descobre Aqui está como a renúncia deve ser incluída no número dos
que a vida humana não é a vida integral e vislumbra, mais além caminhos da libertação, porquanto significa isolamento da vida
da mesma, um mundo imenso. Ocorre um fato estranho: a cada inferior, sendo desta maneira uma condição para ascender até
golpe que parece acarretar a ruína, algo ferve e emerge do mais um mundo melhor.
fundo do eu. Cada vez que a dor aperta e parece reduzir a vida, Como tudo se transforma subindo a escala da vida! Como
algo se reconquista numa forma diferente que, em compensação, sofrem diferentemente os seres nos mais variados graus de evo-
a engrandece. Percebemos que a dor nos separa e nos livra de lução, cada um à sua maneira: este, maldizendo; aquele, expi-
um invólucro denso de apetites e sensações; que a alma se le- ando; esse outro, bendizendo e criando!
vanta para um mundo maior à medida que nos vamos despojan- Depende de nós o saber ascender para vencer a dor, o saber
do da animalidade e que se dilata numa potência mais vasta de sofrer reagindo na forma mais elevada, extraindo do tormento
percepção, numa forma de vida mais intensa, numa realidade da vida o proveito máximo do espírito. Saber reagir, aí está o
cada vez mais profunda. Do mistério do ser afloram novas fa- segredo. Certamente é mais fácil afirmar-se e vencer no mundo
culdades na consciência. Eis porque uma vida de provas pode mediante uma reação de força e de ódio, mas só a justiça e o
conter grandes compensações no mundo do espírito e, como re- amor são as reações dos grandes. Se o ser inferior não sabe rea-
compensa, estimular essas grandes criações interiores que, na ar- gir senão manifestando a sua baixeza, quem possui uma alma
te, na fé, na ciência, nascem sempre de uma grande dor. Seu va- responde com uma reação que é um impulso para levá-lo mais
lor como instrumento de evolução provém deste seu poder de além dos confins da vida Só, contra todos, mas grande.
penetrar e revolucionar, de provocar uma reação. A dor é, desta É uma experiência – que é a eterna filosofia da vida – que
maneira, um grande estimulador e excitador de reações nas nos ensina a vencer a dor seguindo a evolução, superando as
quais a vida espiritual se revela. formas inferiores, afastando-nos daquele centro de atração de
No mundo subumano, ali onde a dor é derrota sem piedade, todos os nossos desejos e paixões, que é o mundo exterior, ao
o ser sofre na sombra, cheio de ira, em estado de absoluta misé- qual o inexorável transformismo evolutivo se opõe como um
ria de consolo, de luz e de vida. É a dor do condenado sem es- furacão, convertendo-o em abdicação de formas transitórias e
perança. O homem é sempre livre para usar, com responsabili- efêmeras para enriquecer o próprio eu de realidade mais pro-
dade própria, as forças naturais, podendo retroceder até ao funda, mais concreta, mais estável. A criação dos valores será
abismo, se não quiser esforçar-se pessoalmente para realizar definitiva, o resultado intangível e invulnerável. Conquista-se
sua libertação. Somente no mundo humano, o eu se reconcentra uma fortaleza dentro do próprio ser, refúgio supremo para as
em si mesmo e pondera. dores da vida, onde tudo, finalmente, se encontra na paz. Tudo
As experiências se acumulam, o instinto registra, assimilam- isto é uma atrevida exploração no mundo ignoto das forças
se melhores hábitos, criam-se aptidões e capacidades espirituais, mais profundas do ser humano. Não é fácil aventura espiritual,
a alma começa a sua expansão. No mundo humano, o espírito mas transformação de consciência, transportada com medo
pressente uma recompensa e uma liberação e leva consigo um mais além da vida, no supranormal. Pode parecer fuga e des-
raio de esperança. É a dor tranquila de quem expia e sabe. Mes- truição, e o é, com efeito, mas fuga para subir mais acima, des-
mo quando a alma conserva uma aspereza exterior, encontrou truição para reconstruir melhor. Pode parecer uma espécie de
uma rocha aonde aquela não chega, outro mundo onde se refu- mutilação de aspirações e de vontade, uma supressão de sadias
giar. Arte de saber sofrer conscientemente, vencendo a vida. energias ativas num estado de passividade vazia do fecundo
Deste modo, a dor recebe um valor totalmente novo, porque a fermento da paixão, tal como o é na atormentada degeneração
mente a analisou, descobriu as suas causas e estudou as suas neurótica de algumas religiões do Oriente. Mas é sublimação
leis. Consciente de sua função evolutiva, achou-a justa; num ato da vida numa forma de ação mais enérgica e mais viril do que
livre e voluntário, em vez de evitá-la, aceita-a. Conhece a sua fi- o desgaste inútil da comum agressividade desorganizadora,
nalidade e utiliza-a. Sabe que não é senão um trabalho mais in- numa forma de ação mais ativa, porque consciente das forças
tenso e fecundo, convertendo-a em instrumento de redenção. Es- naturais no meio das quais opera.
tamos num mundo novo, onde as leis biológicas se transforma- Meu ideal humano não é o super-homem de Nietzsche, figu-
ram e a dor, o terrível inimigo, perdeu muito da sua virulência. ra primitiva do herói da força, mas o super-homem em que a
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 23
vontade do dominador, a inteligência do gênio, a hipersensibili- do, ingresso impedido pelas paixões e instintos do passado,
dade do artista e, sobretudo, a bondade do santo se tocam e se que, erigidos em vontade autônoma, funcionam como seres vi-
fundem. O lutador sobre-humano que se digna lutar tão-somente vos, como guardiões; e, o segundo, um descenso do sobrenatu-
com as forças biológicas, e as vence. Um ser que é quase de uma ral no humano para levá-lo, num abraço fecundo, para o alto.
raça nova. É o lutador da justiça, o senhor de todas as forças de Os estados psicológicos característicos deste momento que
sua própria personalidade, com o auxílio das quais sabe lutar preludia o renascimento da superconsciência parecem estra-
conscientemente para o bem individual e coletivo. nhos. Depois da grande luta, toda a vontade parece ter-se aca-
Existe no mundo um ideal: sacrifício, dor voluntária e ju- bado no ser. Então, extraviada a razão, destruída a consciência
cunda, aceitos como instrumento de grandes criações espiritu- e esgotada toda energia vital, preso a um total decaimento, num
ais, ideal formidável que relampeja no budismo e no cristianis- estado de passividade que parece inércia, mas que é apenas o
mo, acima do árido conglomerado de dogmas e catalogação de grau hipersensível alcançado pela receptividade, o eu mais pro-
atos que, se, para o vulgo, são uma necessidade, para quem se fundo da superconsciência desperta e se manifesta.
eleva, são cárcere da consciência. Este ideal me diz: sofre para É surpreendente a mudança (tal como uma criança que se
criar, morre na matéria para renascer em espírito, sozinho e converte em homem) verificada nesse tipo de consciência, que,
grande, age preso de uma sagrada paixão de evoluir, divino entre as sensações de morte, renasce tão diferente. Surpreen-
dom, raro entre os homens. É o conceito da felicidade perfeita dente porque contraria todos os cânones da ciência médica; um
exposto em I Fioretti de São Francisco, repetido como máxima organismo que parece finar-se, justamente durante o seu des-
das mais profundas filosofias, desde Cristo para cá, em todas as censo vital revigora-se e sensibiliza-se, aguça-se e dinamiza-se
formas, e que, incompreensível para a mentalidade moderna, perceptivamente, engrandece-se espiritualmente, tal como se
intentei repeti-la, usando os termos do positivismo materialista. nutrisse a si mesmo em mananciais de energia de natureza ex-
Tenho a confirmação daquele fato indiscutível que é a expe- traorgânica. Todo o mundo das sensações reaparece, mas tão
riência vivida, com poderosa fé, por esses homens de vanguar- fora do habitual e tão incontrolável a princípio, que assume as
da, os santos, que seguiram este método para realizar sua as- aparências incertas de sonho. Então, a percepção, antes insegu-
censão, glorificada pelo assentimento dos povos e a veneração ra, incompleta e, às vezes, errônea como no recém-nascido, se
dos séculos. Se tudo isto não é uma utopia, se a santidade não é vai precisando, fazendo-se mais luminosa e consciente. Período
uma aberração, se a humanidade não está louca e se desejamos, de controle, como uma regulagem destes novos meios de per-
para venerar, antes de tudo compreender, esta concepção sinté- cepção à realidade externa. Período em que a consciência, ao
tica é indispensável. A santidade pode existir também no mun- mesmo tempo que se alegra por sua acrescentada potencialida-
do moderno. Se esta chama de vida espiritual assumiu nos sécu- de, por outra lado se assombra com estranhos extravios, provo-
los passados a forma religiosa monástica, à base de isolamento cados por deslocamentos de sensibilidade, que constituem o seu
e contemplação, nas ferozes condições da época, que faziam maior tormento, pois sente que perde neles tudo quanto havia
necessárias essas fugas; se hoje, para a nossa mente, aquela conquistado. Vislumbrar por um instante um mundo novo e, em
santidade se nos afigura uma utopia por estar cristalizada em seguida, como cego, não ver mais nada; sentir que possui novas
formas que já não se usam, ela, entretanto, não morreu. Como faculdades perceptivas e, de chofre, não saber mais usá-las; ter
fenômeno eterno, indestrutível, terá que subsistir, invariável em provado o êxtase e senti-lo desvanecer; tudo isto é característi-
sua substância, mesmo quando mude de formas, de acordo com co desse período de transição, que possui toda a incerteza da
o progresso e a mentalidade moderna. Uma santidade nova, cul- tentativa e toda a voluptuosidade do desenvolvimento.
ta, consciente, direi quase científica, uma santidade que, liberta Todavia, gradualmente, a percepção anímica se vai estabili-
das estreitas fórmulas medievais, surja à luz do dia no meio de zando, e o eu se orienta. A mudança de consciência se afirma, e
nossa turbulenta sociedade. Um santo novo é necessário no o novo eu, dono de novos meios, retorna à direção da vida em
mundo moderno, o super-homem, síntese viva dos mais eleva- forma diferente, já sem forçar a vontade, num estado de since-
dos conceitos, surgido do budismo, do cristianismo e da ciên- ridade absoluta, como um eu diferente, que já não diz mais eu,
cia, consciente de todos os valores morais que compendia, de porque se integrou no todo; que não possui órgãos sensoriais e,
sua força biológica, de sua função evolutiva; um santo que, su- entretanto, tudo sente; carece de organismo material, entretanto
perando a forma e liberto do passado, dono do futuro, volte a vive e age; não possui voz, entretanto fala; não raciocina com a
lutar em nossa vida, com nossa psicologia, “dominador” em lógica humana retardada e analítica, mas conclui instantanea-
perfeito equilíbrio entre tantas forças diferentes, e suporte he- mente com esta faculdade mais rápida, profunda e sintética que
roicamente o choque das almas rebeldes e jovens. Se hoje o é a intuição. Já não se desdobra em um comando de vontade,
emblema é “força”, que seja a força superior do espírito, seja a nem se consome num esforço de energias, mas que “é” imedia-
beleza espiritual que se anima a manifestar-se viva no mundo, tamente tudo o que quer. A percepção, então, se realiza total-
como um desafio, para que o mundo, se não as compreender, se mente em forma de vozes e visões, por sensações que, ao invés
dilacere e, dilacerando-se, aprenda. do exterior, vêm do interior e, seja impressionando o nível sen-
Vimos o processo genético da santidade, o vasto processo sório dos centros nervosos, seja elevando-os a uma ordem supe-
de transformação que conduz o homem até aos umbrais do rei- rior e própria jamais alcançada por aqueles meios, dominam a
no do super-homem. Existe, na realidade, este momento crítico consciência sempre com tal força, que as sensações transmiti-
em que, depois de uma larga maturação de um novo psiquismo, das pela via fisiológica-nervosa-cerebral do mundo exterior,
o ritmo fenomênico se precipita na fase típica da crise espiritu- como que ofuscadas, passam para segundo plano. Daí a dimi-
al: a conversão. Um “quid” novo, nascido do trabalho profundo nuição da sensibilidade e, algumas vezes, a invulnerabilidade à
do espírito, está pronto. O transformismo evolutivo, com a sua dor que muitos acreditam milagrosa; daí o sentido profético, te-
marcha inviolável, medida pelo compasso do tempo, chegou. lepático, as visões, os êxtases, que sem dúvida encerram um
Instante decisivo do deslocamento de equilíbrios, quando a in- mistério que as hipóteses patológicas não explicam suficiente-
decisão entre os dois mundos, o humano e o sobre-humano, já mente. Estes estados escapam por certo à analise objetiva, pois
não é mais possível. Este momento psicológico, que é o ponto somente se chega a eles pela introspecção. Não se trata de um
crítico em que se resolve o fenômeno espiritual, não é, por cer- fato exterior a ser analisado, que se possa submeter à observa-
to, um conceito novo. As escolas de pensamento chamaram-no ção, mas de uma mudança de consciência, ou seja, do próprio
“umbral”; as religiões ocidentais, “a graça”. Termos imaginati- instrumento de investigação. Depara-se-nos a falência da psico-
vos para descrever, o primeiro, um ingresso em um novo mun- logia analítica, racional, exterior, que é considerada a arma de
24 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
compreensão universal. Dir-se-ia que a superconsciência repele perconsciência é sempre consequência da dor criativa da re-
a razão para o seu mundo exterior, porquanto já não lhe é mais núncia, é sempre o último termo de uma evolução dos instin-
necessária. Estamos diante de uma forma de consciência, uma tos, dos desejos e das paixões.
faculdade de juízo, que dirige sabiamente a vida, se bem que Há uma classe de temperamentos – os sensitivos ou psíqui-
com meios e sensações diferentes. Sabemos somente que é algo cos – a que pertence o místico e na qual se pode incluir o poe-
que brota do íntimo mistério da personalidade, uma consciência ta, o artista, o músico, o homem de ciência, o gênio e o santo.
que é independente do mundo exterior e possui a sensação de Aí, onde as qualidades espirituais humanas tenham se desen-
sobreviver-lhe como consciência da vida eterna. Vive-se então volvido em alguma forma e a natureza humana haja alcançado
diante da revelação de realidades insuspeitas, mais profundas, as suas faculdades mais elevadas, existe sempre um super-
além da forma, em contato com a essência das coisas. É a visão homem. A humanidade compreende e exalta esta condição, que
apocalíptica da palingênese. se encontra mais evoluída e posta em maior evidência pela
Superado este momento crítico – crise interna que existe na oportunidade ou pelo ambiente, mas todas elas possuem pon-
vida do gênio e do místico e que a moderna psicologia recons- tos de contato entre si e coexistem mais ou menos latentes no
truirá para compreender, o que não pôde fazê-lo a mentalidade mesmo ser. As qualidades de raciocínio, se bem que não seja
de outros tempos – a consciência se estabiliza em novo estado, mais do que luz fria, pois, mesmo quando clareia o atalho, na-
numa atmosfera de grandeza e de mistério, que nos enche de da sabe realizar por si só, movem-se amiúde paralelamente e
espanto. Realizando um último esforço, façamos uma mirada prontas para excitar as do coração, a paixão que obra e cria. Se
audaz na alma do gênio e do santo, para penetrar o enigma de os intelectuais agem num campo com as forças analíticas da
sua vida interior, sentir com eles a potência das forças motrizes mente, os emotivos e os apaixonados constroem em outro
de atividades não comuns, observar não mais o lado humano, campo, com a força intuitiva do sentimento e do amor. Fecun-
lânguido e moribundo, mas o lado divino da vida. Veremos a didades distintas, porém necessárias e todas grandes, porque a
glória dos triunfos interiores, o júbilo das novas expansões, vida precisa igualmente de luz e de calor.
grandezas de conquistas e labaredas de paixões novas. Não Frequentemente, o intelecto abre a rota para, em seguida, ar-
mais veremos o aspecto negativo, de destruição e morte, mas rastar atrás de si o coração. Há quem chegue através do largo
sim o positivo, de ressurreição e afirmação da personalidade. caminho da análise; há quem o faça pelo atalho da intuição,
Olharemos com a coragem que nos confere a necessidade de mas sempre se alcança a criação de um tipo de super-homem.
venerar e a mesma fé dos grandes, ainda quando o haver ousa- Tratemos de delinear as características mais salientes da psi-
do compreender e desejado imitar não nos tenha servido mais cologia do super-homem, entidade de raciocínio e de paixão, qua-
do que para tornar a cair, numa vã tentativa de voo, mais dolo- lidades fundamentais da natureza humana, que não se destroem,
rosamente ao solo, para quedar aí, mudos e assombrados, mas se aperfeiçoam e se equilibram em forma mais seleta.
olhando ao longe, com a nostalgia no coração, o cume inacessí- Antes de tudo, uma racionalidade mais perfeita. A conquista
vel do reino do super-homem. da verdade se completou. A consciência move-se em plena luz.
Como descrever os estados de superconsciência, a psicolo- Não mais uma verdade subdividida, fracionada em tantas pe-
gia do supranormal? Aí, a normalidade retrocede com uma quenas verdades particulares, incompletas e em luta, buscando
sensação de vertigem e de sagrado terror. Como descrever es- a unificação, mas uma verdade universal que, superando-as,
tes estados de contemplação interior, em que o mistério do admite todos os pontos de vista dos indivíduos, dos tempos, das
universo e o mistério da alma se olham e se compreendem? O crenças e das religiões. Eliminada essa nulidade lógica, a cons-
olhar aprofunda-se na íntima causalidade fenomênica. O fraci- ciência já não nega mais nada, porque conhece tudo. Não mais
onamento da realidade entre os obstáculos de espaço e de tem- essas zonas obscuras, inexploradas, dentro e fora de si, essas
po é superado durante o supremo estado do espírito que des- grandes zonas de trevas que são os mistérios. O mistério, ne-
cansa na visão global do todo, êxtase com que o santo é re- cessidade da mente inferior e involuída, desaparece. Faz-se luz
compensado amplamente da perda de todas as coisas humanas, até nas coisas íntimas. A Lei evidencia-se integralmente, tanto
de todas as dores e renúncias que se impôs a si mesmo para al- nas grandes linhas como nos pormenores.
cançá-lo; arroubo sublime, aonde o tormentoso torvelinho das Paralelamente, uma sensibilidade mais profunda. Um feixe
ilusões humanas não chega, onde o descanso é absoluto, o po- de sentimentos novos, que poderíamos chamar “percepção
der é imenso e a vida, que se multiplica em nova percepção anímica”, permite o gozo de sutis belezas, frequentemente des-
anímica, corre caudalosamente ao encontro do infinito. É com- percebidas. Junto às harmonias da arte, do homem e da nature-
pleto o gozo do espírito que aceita o beijo divino, que se incli- za revelam-se as harmonias mais profundas da estética moral,
na para ele em labareda de amor. Amores incompreensíveis, arte divina que não possui a beleza grega superficial da forma,
que abalam e quebram a débil tessitura humana, demasiado mas a íntima e mais alta beleza do espírito. Mais do que a con-
frágil para suster seu ímpeto. O centro da vida se desloca, seu templação de uma ideia, é a realização em si da perfeição supe-
trono se eleva na hipersensibilidade própria do supranormal e rior e da harmonia universal. É a conquista de valores impere-
parece nutrir-se em mananciais exclusivamente espirituais, cíveis; é a criação de um organismo espiritual de eterna beleza,
mediante um intercâmbio que se efetua em meio a forças de ao qual a vida tudo sacrifica – juventude, força, saúde, poder e
uma ordem especial, desconhecidas por nós. tudo quanto de transitório a Terra ostenta. A consciência possui
A alma possui a visão da Lei, a sensação de seus atos, sub- a sensação desta beleza interior, síntese de arte superior, e esta
merge-se na sua corrente, respira a música que emana das har- sensação constitui um prazer. Uma nova capacidade de pene-
monias da criação e se alimenta deste respiro. Que vibrações do tração psíquica, que poderíamos chamar de intuição, revela sem
Cosmos encontrou, como as absorve, de que modo sintoniza sombras o mistério da alma. O organismo espiritual de todos os
com essas vibrações do infinito? seres mostra-se desnudo; espontaneamente se manifesta a causa
Os estados supranormais foram descritos diferentemente daquelas misteriosas atrações e repulsões chamadas simpatias
pelos místicos justamente porque essas sublimações de perso- ou antipatias, que são afinidades ou antagonismos, extrato de
nalidade, assim como as filosofias, são distintas segundo o tipo toda a história da personalidade humana. É bem certo que a al-
de temperamento de cada um. Resultam, por evolução, de um ma sempre se reflete no corpo, através do qual se torna transpa-
longo passado. Possuem, no entanto, um fundo comum, e suas rente, esforçando-se, todavia, para sair dele, a fim de se expres-
linhas gerais convergem sempre, de qualquer tempo e lugar sar livremente. Mas o homem, com demasiada frequência, pre-
que elas derivem, não deixando motivos para dúvidas. A su- tende construir no corpo uma falsa imagem da alma. A intuição
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 25
penetra sem esforço através de toda a aparência, demole toda a monia contínua, um canto de gratidão que é a música mais pro-
astúcia. A superconsciência, que não admite mentiras para si, funda do espírito. As dores humanas não desaparecem, mas di-
não as tolera nos demais. Se as faculdades anímicas conferem verso é o choque quando ferem a mente encouraçada, e despre-
superioridade na luta cotidiana, combatem, deste modo, da zível a sua força de penetração no espírito defendido pelo co-
forma mais aristocrática. A vida perderá por certo muitas das nhecimento profundo, possuidor da virtude de se refugiar no
doces ilusões, mas, com elas, todos os seus erros e desenganos. paraíso distante, aonde não chega a dor. É felicidade difícil e
A sociedade humana, vista claramente no que é, e não no que árdua, mas sem dúvida muito grande, a única que resiste à in-
pretende ser, aparecerá como espetáculo muito triste, mas nem vestida das duras provas da vida, surgindo delas ainda mais be-
por isso resplandecerá nela, com menos potência, a justiça divi- la! A harmonia interior, essa paz que provém de sentir-se sem-
na, nem sua harmonia será menos suave e perfeita. pre em relação e de acordo com o funcionamento orgânico do
A consequência de tudo isto é um conceito diferente da vi- universo, de achar-se sempre na melhor posição, qualquer que
da, um estado de ânimo novo para com as coisas humanas. O seja ela, o hino do coração da harmoniosa voz da consciência,
conhecimento das grandes verdades, a solução das últimas in- de viver nessa fé, na lógica e na bondade do todo, nessa luz do
terrogações, confere uma grande calma interior, a paz de quem espírito, como na própria atmosfera vivificadora, é saciedade de
viu a meta, o último termo a que a alma aspira. Deste conheci- alma contente, equilíbrio de compensação psíquica, do qual
mento das verdades universais deriva o da própria verdade espi- nasce a ventura superior e invulnerável.
ritual, do próprio destino. O super-homem é consciente de toda A libertação realiza tudo isso. A personalidade que se
a sua personalidade, da origem de cada um dos seus instintos, formou na vida interior já não é mais arrastada pelo torvelinho
que descobre no seu passado eterno, na história daquele germe de todas as correntes do mundo e, tendo conquistado a inde-
espiritual que, vivendo e tornando a viver, vestido de diferentes pendência das condições exteriores, converte-se em centro de
organismos, adaptando-se, absorvendo, assimilando, sempre uma realidade própria e autônoma. O super-homem emerge do
adquire uma nova qualidade em cada prova vencida, conser- mar, e a tempestade já não o envolve. Venceu o mundo, que já
vando eternamente dentro de si os frutos espirituais da vida. O não pode mais violar sua liberdade, deter seu trabalho nem al-
super-homem conhece a sua história, larga história tecida de terar a realização da sua vontade. Com isso, ele não se ausenta
férrea logicidade, na qual nada se cria e nada se destrói, mas de nossa vida, mas nela irradia luz nova, demonstrando que
tudo se transforma e nenhum valor se perde. Sobre estas bases, existe para todos o meio de remissão e também a possibilida-
na mesma férrea logicidade do passado e na indestrutibilidade de de ascender. Apesar de todas as desigualdades humanas, há
das faculdades morais, antecipa o seu futuro, prepara-o e dese- uma igualdade absoluta emanante da eterna justiça, da qual
ja-o. Daí o domínio de todas as forças do próprio eu, o saber somos todos obreiros no campo da própria diferenciação, sob
comportar-se em meio aos grandes choques da vida, com uma as mais diversas formas.
visão muito ampla e segura das grandes extensões das coisas Tudo quanto temos dito não basta para circunscrever total-
cotidianas. Se a superconsciência é, sobretudo, um fato espiri- mente o ciclo da personalidade humana, que, junto às exigên-
tual, como tal repercute e se impõe também na realidade exteri- cias viris da mente, contém as exigências de ordem feminina,
or, dominando-a. Encontramos, assim, junto a uma sublime da paixão e do sentimento. A evolução, que comete e transfigu-
calma interior, a consciência de um poder dominador. ra a personalidade humana em todas as suas qualidades, trans-
Nem por isso o furacão das coisas humanas deixa de açoitá- forma, acrisola e enaltece também as paixões, sem destruí-las.
lo, mas fica limitado à superfície. A consciência não sofre, por- Existe uma evolução do desejo, uma evolução dos instintos,
que se reconhece autônoma, muito diferente, não mais identifi- uma evolução das paixões. Seria insensato condenar aprioristi-
cada com o mundo vencido, podendo refugiar-se naquela parte camente e em absoluto a sede de existir, a ânsia da vida, que é o
do ser pertencente à vida eterna, fortaleza inexpugnável que desejo. Ele é a mola de todo progresso, o estímulo necessário
guarda com segurança o tesouro de maior valor. Não sofre por- para toda conquista, o antecedente daquela exteriorização na
que sabe que a tormenta existe somente na aparência, que o ca- qual a alma, experimentando, se engrandece. É a chama da ação,
os é contraste transitório e a grande realidade é o equilíbrio, que da luta e da prova indispensável à evolução. É mister conduzir o
porá fim a toda desordem. Desaparece, com ele, aquela estri- desejo para uma contínua elevação, de modo que todo o orga-
dente dissonância lógica, o tormento maior do espírito, que é nismo dos instintos e a fortaleza das ideias inatas se transfor-
não compreender o ambiente e pedir sem obter, pois se pede o mem, conduzindo o homem para as modalidades superiores de
absurdo. No mar de dissonâncias, isola-se num oásis de harmo- vida e de perfeição moral, que são as virtudes, as quais, ao longo
nia, onde a vida é mais linda. A profunda visão das coisas, mos- do incessante trabalho das civilizações, são concebidas e assimi-
trando também os lados mais vastos e mais distantes do pro- ladas. A vida social, as religiões e as leis possuem a função de
blema humano, oferece em cada caso a sensação da mais exata educar o homem, ainda selvagem interiormente, penetrando em
justiça, a grande fé e o otimismo absoluto, mesmo em frente da sua consciência, impondo-lhe a evolução dos instintos e das pai-
dor. Toda posição social, por injusta e penosa que seja, aparece xões, que são forças diretrizes da vida.
sempre como a melhor. Via de regra, antes de inquirir que fal- Observemos uma única paixão, a maior – o amor – que,
tas individuais ou coletivas se está expiando (todos possuímos presidindo à conservação, encerra mais profundamente o mi-
uma culpa por expiar, como indivíduos, como classe social, soneísmo de raça e parece mais renitente à evolução, para ver
como nação e como humanidade) e antes de compreender a dor, como esta paixão se sublima na personalidade humana que es-
remontando-se às fontes do mal, reage-se com atos de rebelião, tamos delineando.
de ira, de inveja e de inútil ferocidade. O homem superior, ao Se o amor no mundo animal é função quase exclusivamen-
contrário, somente tem uma reação de benéfica atividade em te orgânica, adquire no homem, enriquecido pela evolução de
reparar o mal, de reconstrução silenciosa e consciente, realizan- novas faculdades, qualidades de ordem nervosa e psíquica. O
do sozinho, sem transferir a responsabilidade a outrem, o tre- fenômeno do amor complica-se; à função animal, que biologi-
mendo dever que lhe compete, porque sabe que o sofrimento é camente foi a principal, se sobrepõe, como um crescimento ou
trabalho fecundo de conquistas espirituais e, assim, muda cada uma incrustação, um feixe de funções novas, que transformam
pena em trabalho cotidiano, nobre e compensador, para o êxito. todo o fenômeno, tornando a sua estrutura mais completa, e,
Então, o espírito, vivendo em relação com os mais distantes como sempre acontece na evolução, ampliam seu campo de
momentos do grande esquema de seu próprio progresso, se so- ação. Para maiores poderes, porém, maiores perigos, o que os
brepõe às misérias imediatas; a vida se transforma numa har- seres menos evoluídos ignoram. Observando, neste campo, as
26 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
correntes que a evolução abre dentro da massa humana, vemos se achar em todos os níveis da vida. O progresso é assinalado
hoje a tendência no amor para aperfeiçoar-se e sensibilizar-se, por uma revelação de amor mais ampla. Suas funções, desde as
tendência que, aspirando a outra forma de superamor espiritu- mais simples – nos seres inferiores, a multiplicação da espécie
al, oferece simultaneamente o perigo de perder-se em degrada- – desenvolvem-se com a infinita potencialidade do germe,
ção neurótica, em erotismo sexual. A humanidade encontra-se complicam-se com novas atribuições que se subseguem por
defronte do dilema: ou bem materializar, mais do que elevar, o evolução, aumentando sempre o seu reino. A fêmea transfor-
amor, caindo em formas de prazer nervoso mais intenso, po- ma-se em mulher; o macho, em homem. A simples atração se-
rém de baixo erotismo antivital, ou bem dominar a sua paixão xual cresce no amor maternal, filial, familiar, nacional, huma-
e guiá-la, orientando a evolução para as formas de amor espiri- nitário, para chegar à beneficência e ao altruísmo, culminando
tual do super-homem. na abnegação suprema do martírio. A mulher transforma-se em
Esta característica tendência atual do amor para sublimar-se, anjo e o homem em santo.
revela-se de forma evidente na atitude da psicologia corrente e Nesta progressão das formas evolutivas do amor, vemos ex-
da literatura em voga. Sem dúvida, em matéria de amor, sabe teriorizarem-se, cada vez mais energicamente, todas as defesas
ser, às vezes, de um psiquismo refinado, como nunca o fora em da vida, pois é função do amor criar, conservar e proteger. As
épocas passadas. Predomina nela o elemento nervoso e sutil, forças destruidoras do egoísmo são absorvidas e anuladas gra-
tudo o que é fascinação, simpatia, graça, arte, música, vibração dualmente, num crescimento de altruísmo e de sacrifício, pelas
e estados de alma, tudo o que é poesia e perfume do amor. En- forças criadoras do amor. O altruísmo universal, que abraça to-
contramo-nos indubitavelmente nos mais altos graus do amor dos os semelhantes, nasce, não obstante isto possa parecer hoje
humano, onde se acentua a parte espiritual. A voluptuosidade uma utopia, do altruísmo familiar, que lhe é um esboço. Ele é a
não é mais a turva orgia dos sentidos e aspira transformar-se em força em evolução que, em tempos melhores, será o cimento
límpido êxtase de alma. Um passo mais, e o amor humano será indispensável dos organismos sociais progressivamente homo-
superado. A humanidade está às portas do novo reino e entrará gêneos, pois, quanto maiores são as concessões que na vida de
nele, se souber perseverar na tensão do progresso para a nova cada um se outorguem à vida dos demais, ou seja, o altruísmo,
fase espiritual e realizar um esforço supremo e decisivo de con- tanto mais forte é a sociedade e mais individualizada e consci-
centração de energias para subir o último degrau, além do qual ente a alma coletiva. A absorção do egoísmo no amor, esta in-
está o amor místico e divino. Este, na forma como os santos o versão de forças contrárias, uma na outra, não é senão um mo-
conceberam, viveram-no e gozaram-no em êxtase supremo, não mento do processo de conversão do mal em bem, da dor em fe-
é a agradável digressão de romântico sentimentalismo, porém a licidade, que já vimos efetuar-se por evolução, e possui assim
mais tempestuosa das conquistas, na qual há que se empenhar outras funções além da defesa da vida. O raio de ação do ego-
todas as forças da vida. É duvidoso que hoje se realize este tra- ísmo, constituído de separatismo, é estreito, tende ao isolamen-
balho, pois toda criação demanda mui áspera luta, na qual o es- to, possui um campo limitado de penetração e de gozo e, não
pírito se tempera e se exercita, sem prazer e sem descanso. Dis- obstante parecer o caminho mais rápido para o prazer, contém,
persam-se as energias. A nova sensibilidade, ao invés de ascen- ao invés, uma força de inibição do próprio gozo. Se, em com-
der, retrocede; ao invés de espiritualizar-se, torna-se neurótica e pensação, o amor, espiritualizando-se, transforma-se numa de-
decai. De sorte que o amor, na sociedade atual, mesmo quando dicação cada vez mais completa e gratuita, que parece a nega-
alcança os mais elevados graus da finura, a ponto de parecer ção do prazer, tudo o que perde, por não ser egoísta, ganha-o
quase chegar à espiritualidade do misticismo, recolhe-se sobre em profundidade de sensação, em potência de penetração, em
si mesmo e, antes de elevar-se do nível, torna a baixar, envene- pureza de percepção e de ação e, por último, em realização de
nado pela sua própria potencialidade. As novas faculdades psí- felicidade, porquanto a evolução do amor não é senão a revela-
quico-nervosas, ao invés de serem utilizadas para progredir, são ção gradual de ilimitada capacidade de prazer. Este aumenta e
exploradas para um maior gozo, última consequência da ruino- torna-se estável. Ao invés de satisfação precária, ligada a fun-
sa concepção materialista da vida. O cérebro e o espírito são ções orgânicas, sujeitas a cansar-se demasiado rápido, devido
postos a serviço do prazer. Chega-se, com tais critérios, a fazer ao desgaste, equilibra-se numa satisfação nervosa e psíquica cu-
misticismo sensualizado e falsificado, enervante e enfermiço, ja nascente mais imaterial dificilmente se esgota e não se altera.
mediante artificiosas complicações e refinadas exteriorizações, Nos fenômenos da matéria existe algo que se cansa mais rapi-
enquanto impera no espírito o vazio e a desolação. Uma evolu- damente. A imaterialidade elimina os desgostos que desmorali-
ção às avessas, a mais completa prostituição da alma. zam, confere estabilidade a tudo, tornando tudo mais real. Vi-
Observemos, entretanto, na evolução do amor, as sucessi- bra nela não a limitada sensibilidade do corpo, mas a sensibili-
vas aproximações do superamento realizado pelo explorador dade mais ampla e mais profunda da mente e do coração, ór-
do supranormal. Esta concepção do amor divino como senti- gãos capazes de sensações mais firmes e intensas, independen-
mento limítrofe, derivado por evolução do amor humano, dá- tes das condições físicas do ambiente.
nos a explicação lógica da sua origem. O fenômeno psicológi- Nesta ampliada capacidade de desfrutar, satisfazem-se tam-
co então, que existiu e pode existir, adquire uma base racional, bém desejos e afirmam-se paixões de outra natureza. O desejo
de outro modo inexistente. O amor divino proveio por conti- de posse e de domínio, tão humanamente insaciável, será satis-
nuidade (como em todo fenômeno) do amor humano e é seme- feito quando, por ter renunciado ao egoísmo que nos separa de
lhante a este, tendo conseguido, através de sucessivas provas e tudo o que nos rodeia, pudermos possuir e dominar o todo,
elevações, que somente demoliram a sua parte mais involuída, aproximando-nos das coisas sem vontade de tomá-las, e con-
aperfeiçoar-se e purificar-se. Ascensão de paixão, que faz parte servá-las com o desprendimento do mais completo altruísmo.
da evolução da personalidade, na qual todas as qualidades se Deste modo se explica a renúncia e a pobreza daquele grande
transfiguram numa psicologia de ordem superior. Poderemos rico e enamorado que foi São Francisco. Possui-se, então, tudo,
desta maneira delinear uma gradação das formas de amor. Ca- riquezas sem limites, quando se sabe amar desta maneira a to-
da ser, desde o animal até às raças humanas inferiores, desde o dos, com aquele amor perfeito que nada pede.
homem inculto das classes sociais mais baixas até ao intelectu- Estas são as maiores paixões que tanto dilatam a existência,
al, ao santo, ama de maneira diferente, segundo sua qualidade vividas pelo super-homem e, a seu turno, pelas humanidades
ou perfeição alcançada. O amor sofre transformações profun- futuras. Para o homem do futuro, certamente, as grandes satis-
das paralelamente ao desenvolvimento desta cadeia de tipos fações serão de ordem espiritual. Ele sentirá por nós, talvez, um
humanos. Sendo a maior força do universo, não pode deixar de asco, tal como o sentimos por um animal mergulhado nos gros-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 27
seiros prazeres dos sentidos, semelhante ao que nós experimen- dade atormentada. É ele, por acaso, um enfermo ou um degene-
tamos pelas distantes orgias romanas. Rir-se-á das nossas ânsias rado? Como julgá-lo? A própria ciência, desorientada pelo fato
de riquezas e das nossas paixões, próprias de homens primiti- de que os clássicos elementos de juízo não oferecem a explica-
vos, pois valorizará, ao contrário, as satisfações que proporcio- ção deste moderníssimo fenômeno, vislumbrou nele uma en-
nam o pensamento, a arte, e outras mais refinadas que a criação fermidade tão atípica, de uma ordem clínica tão indefinível, que
infundiu nas belezas da vida. Entretanto é a nossa época, e não se viu obrigada a considerá-la apenas como uma forma de per-
as passadas, que sente o afã dos superamentos e está elaborando sonalidade. Observemos as suas características. Inteligência e
a sua nova alma. Uma expressão manifesta do multiplicar-se do atividade, uma nota predominante de intenso psiquismo; ágil
espírito moderno vemo-la na evolução da música, índice dos mobilidade do espírito, na ânsia de criação incessante; inquietu-
sentimentos humanos, música que deseja expressar atitudes in- de e fuga de todas as formas de inércia, ou melhor, um desequi-
teriores cada vez mais complexas e, fugindo ao cediço argu- líbrio de concepção da vida. Moralmente, uma delicada percep-
mento do ódio e do amor, elevar-se à descrição de todos os es- ção do verdadeiro, do belo, do bom; uma retidão que demonstra
tados da alma humana e da natureza, buscando novos rumos. possuir realmente os altos ideais de virtude, honestidade, altru-
Não mais a simples melodia que acaricia o ouvido, porém a ísmo, que são a base da vida social e indicativo de elevado grau
harmoniosa arquitetura do canto na orquestração majestosa, tal de evolução, conceitos cuja elaboração é o custoso e último
como na forte concepção wagneriana. Música espiritual que se produto de toda civilização, o que a mediocridade normal está
dirige não só aos sentidos, mas à alma, com voz que expressa longe de ter alcançado. Quanto à sensibilidade, o sistema ner-
sensações de ordem superior. voso é levado ao máximo da agudeza e da potência. Organica-
Com esta evolução de sentimentos e paixões, transita-se, mente, o tipo é em geral resistente e de longa vida. O aspecto
assim, do amor humano ao amor divino. Para os que não são patológico revela-se no esgotamento de energia nervosa, debili-
sensitivos, parece que a paixão que se espiritualiza oculta-se tamento da vontade, inconstância no esforço, emotividade por
além de toda percepção, no nada, contudo ela apenas se des- demais acentuada, estados afetivos inexplicáveis e incuráveis.
materializa. O superamor do santo é para ele uma satisfação Este é o quadro de muitos casos de neurastenia; enfermidade
real e elevadíssima, a ponto de recompensar-lhe toda a heroica nova e estranha que, se às vezes é obscura e sem as característi-
renúncia. É alegria totalmente interior, e tão diferente das ale- cas comuns, compõe-se, nos aristocratas da neurose, da mistura
grias humanas, que, mais do que uma atitude do espírito, é pa- de sofrimento e inteligência, associação compensadora e inex-
ra todo o ser uma transfiguração na qual o super-homem, atra- plicável num organismo que apresenta sintomas de decadência.
vés da negação de todo o seu eu inferior, reafirma-se e ressur- Que mistério se encerra nestes caprichos do patológico?
ge num mundo superior. Dir-se-á que, na natureza, onde tudo tem a sua razão de ser,
Este amor tão diferente é estranho ao nosso sexualismo, esta sensibilização dolorosa e espiritual não é mais do que o es-
aparta-se deste não por ser assexual, mas porque é supersexual, forço de novas adaptações; a rebelião e o tormento de um orga-
porque não pode encontrar no mundo o termo de complemento, nismo ainda não preparado para satisfazer as exigências da al-
devendo buscá-lo mais além da vida, no seio das grandes forças ma nova, que geme sob o peso de violenta criação biológica.
cósmicas, no isolamento relativo e aparente, prelúdio do regres- Como seria possível explicar num sentido de enfermidade as-
so ao mundo em forma de amor universal. Na solidão dos si- pectos que comparticipam de superioridade? Como explicar, a
lêncios sem fim, o santo ama; sua alma hipersensível abre-se a não ser com a hipótese de uma pseudoneurose, sob a qual se es-
todas as vibrações do infinito, num arranco impetuoso e frené- conde um labor incessante de criação, essa intensificação de
tico para a vida de todas as criaturas irmãs. Embora se nos afi- capacidades nervosas, mentais e morais? Então, como interpre-
gure só, ele está com o invisível, a quem estende os braços no tar esta inopinada dilatação de potencialidade anímica senão
êxtase de um supremo e vastíssimo abraço. Algo lhe responde com a teoria da evolução espiritual?
do inconcebível, algo o inflama e o nutre, num incêndio que re- Sem pretender aprofundar a questão, demasiado vasta para
duziria a cinzas qualquer outro ser humano. Crepita o amor que este estudo sumário, das relações entre neurastenia e evolução
abrasa todo o universo. Num mistério de sobre-humana paixão, psíquica, a fim de colocar esta como elemento precursor daquela
Cristo, sofrendo, abre de par em par os braços na cruz, e São – um sintoma – na realidade nos encontramos ante um tipo de
Francisco, no Alverne, abre seus braços a Cristo. personalidade que representa, por refinamento moral e superior
Estas são as grandes possibilidades da psicologia do super- intelectualidade, a assimilação já efetuada dos mais altos valores
homem como ser de raciocínio e paixão. Uma observação mais, espirituais, a formação completa do tipo para o qual a humani-
antes de terminar. O super-homem, que é um tipo psíquico ex- dade tende em seu desenvolvimento. Encontramos nele todos os
cepcional e, julgado segundo o critério do nosso mundo, trans- sinais de nobreza racial, de aristocracia que encerra o acme da
borda as unidades de medida comum, foi sumariamente degre- perfeição que a humanidade jamais tenha aspirado conquistar.
dado para o anormal. Devido à sua aparente neurose, foi gros- Em sua própria lassidão e emotividade demasiado intensa, na
seiramente confundido com o patológico. Absolutismo e sim- exaltação de sua inteligência e sensibilidade dolorosa, existe al-
plismo de sabor lombrosiano, demasiado primitivo para identi- go ultrarrefinado como de uma raça que, por estar excessiva-
ficar e distinguir estas formas de pseudoneurose, nas quais o mente madura, agoniza e morre. Não mais um organismo físico
patológico, se existe, existe transitoriamente, não como uma predominante que impõe necessidades e sensações ao seu siste-
nota desafinada, mas como aparência exterior de uma íntima ma nervoso, instrumento de sua vida, mas um organismo nervo-
febre de ascensão, como sistema do esforço de superamentos so preponderante, que absorve tudo para si, condiciona o funci-
biológicos. Pretende-se incluir no anormal todo aquele que se onamento orgânico e acaba por dominá-lo, transcendendo-o
excetua à maioria dos casos e à mediocridade geral do tipo hu- numa tentativa de quase criar para si uma forma própria de vida.
mano mais comum, de valores duvidosos. Este julgamento A pesquisa no supranormal, o ensaio de novos estados de cons-
apressado conduz ao erro de equiparar e confundir, colocando- ciência e a delicada espiritualidade deste tipo humano signifi-
os por igual fora da lei, o subnormal e o supranormal, ou seja, cam uma antecipação do futuro. Socialmente pode representar,
fenômenos que são sensivelmente opostos. se orientadas suas energias e utilizadas as suas qualidades raras,
De acordo com o que fizemos notar, quando delineamos o um precioso fermento de sensibilidade e atividade, um raio de
fenômeno da evolução espiritual, hoje se torna cada vez mais luz no meio da massa trevosa dos medíocres, dos sãos e dos
frequente o desdém por um tipo humano que tende ao supra- normais, nos quais predominam a inércia e as funções animais,
normal, extremamente nervoso e genial, ainda que de geniali- pois o seu mais alto ideal é a reprodução e a nutrição.
28 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Existe, indubitavelmente, uma neurose patológica, mas, demolir, e sim a revalorização mais consciente e mais com-
com abundante frequência, pretendeu-se atribuir-lhe uma série pleta das velhas virtudes intuitivas, uma síntese e uma nova fé
de fenômenos que pertencem ao supranormal, desvalorizando- para a nossa alma. Sentimos a vida em desacordo com os nos-
se desta maneira o tipo humano, que pode ter uma função na sos pais, e o eixo do mundo se desloca do antigo centro ao re-
economia da vida social e cuja multiplicação seria um indício dor do qual girou durante milênios, completamente modifica-
de profunda transformação evolutiva da humanidade em nossa do nestes últimos vinte anos 5.
época. Concebendo muitos casos de neurose como um desequi- Definimos como racional, passional e pseudoneurótico este
líbrio transitório, inerente à fase de conquistas biológicas, evita- tipo complexo de personalidade que é o super-homem. Não obs-
remos a incompreensão que impede a ciência de cumprir o seu tante tudo quanto temos dito, ele poderá ainda parecer um tipo
dever, que é estudar e valorizar todas as forças da vida. Uma estranho, submetido a uma inútil exaltação. Parece incompreen-
das conclusões do presente estudo é que a ciência se proponha a sível, mas, se é certo que treme sozinho, no umbral da neurose,
alcançar dois objetivos: nos casos de neurose patológica, se não de abismos e de terrores, pode por sua vez, ultrapassando os li-
se encontra a verdadeira terapia, que se realize então a preven- mites da sensibilidade comum, aventurar-se por esse maravilho-
ção profilática mediante a concretização de uma consciência so mundo que encerra todos os êxtases, ignorado pela maioria.
eugenética; nos casos de pseudoneurose, auxiliar o transfor- Esta, por certo, se encontra a salvo de alguns terríveis sofrimen-
mismo biológico, aliviar as dores que o acompanham, esten- tos interiores, entretanto não pode gozar das satisfações do su-
dendo a mão piedosa e benévola aos seres que lutam sozinhos, pranormal, mistério longínquo e fascinante, a que a animalidade
talvez para criar uma raça nova, da maior importância para a humana aspira, sem sabê-lo, cheia de desejo e de ansiedade.
progressiva domesticação da besta humana. A ciência deveria Parece estranho que tal tipo não ponha o dinamismo de sua
compreender que esta tendência à neurose, num mundo de leis própria direção psicológica a serviço do bem-estar material e
que, sem dúvida alguma, obram com inteligência e suprema tangível; que não empregue as suas próprias capacidades ner-
previsão, pode possuir uma função no equilíbrio da vida. Deve- voso-cerebrais na defesa da vida, da qual e para a qual nasceu,
ria, portanto, penetrando nas profundidades do subconsciente, utilizando-as para uma vantagem imediata, mas converta-se em
anatomizando o supranormal, ajudar a nascer e crescer este no- instrumento antivital, quase de ofensa e de destruição de si
vo organismo psíquico que é a alma humana. mesmo, pois olha por demais longe, vislumbra e deseja uma vi-
Esta teoria da evolução espiritual pode ser uma ótima hipó- da mais vasta. Esta inversão de todos os valores, este desloca-
tese de trabalho. A ciência deveria investigar nesse campo, que mento de aspirações, este sacrifício do real ao irreal, do presen-
contém os mais inacessíveis e misteriosos segredos da vida e te ao futuro, do corpo ao espírito, esta imolação ao hipotético e
promete os mais memoráveis descobrimentos. A ciência deverá ao invisível é ato aloucado para quem não possui o sentido de
um dia, quando houver compreendido todas as leis da vida, as- certas realidades profundas.
sumir sua mais alta missão, que é dirigir a seleção humana, fa- É certo que, também para aquele que vive no mundo supe-
zer-se guia deste imenso fenômeno da evolução. O homem, até rior do espírito e compreende tudo isto, é muito grave sentir,
hoje, neste campo, está sujeito cegamente, como um bruto, a em seu próprio centro, não um cérebro aliado e amigo, que o
leis naturais que ignora. Existem na sociedade humana indiví- ajude na luta árdua contra tudo e todos, mas um cérebro que lhe
duos indesejáveis pelas suas qualidades antissociais. Toda a co- faz guerra, que, longe de secundar, ataca a vida, transforma-lhe
letividade sadia deveria cuidar de sua higiene moral, impedindo todo o trabalho, complica os obstáculos, aumenta as penas,
o nascimento desses seres em seu seio. Considerando a vida agrega o peso enorme do drama interior às dificuldades do
como imigração espiritual do além, não se deveria permitir à mundo exterior, já por si suficientes para esmagar um homem.
debilidade mental sua vinda, atraída por personalidades afins, Que terrível problema se tornará uma vida assim, suspensa en-
ao nosso ambiente pelo mecanismo da reprodução, negando-se- tre a luta exterior e a interior, ambas sem trégua?
lhe um lugar entre nós. Há existências construídas de tal forma, Contudo a ordem do espírito é irresistível. Se representa
que não constituem mais um prazer, e sim um tormento; vidas um peso, confere, por sua vez, um sagrado orgulho de si mes-
que, longe de serem um dom, são uma condenação, e renová- mo, uma consciência suprema que outros não possuem. O or-
las é um crime. Somente uma nova sensibilidade moral e cons- ganismo se gasta e se desfaz, mas não importa. De todos os
ciência, que ainda não existem, baseadas na visão de remotíssi- modos, o fim, para ele, mais ou menos prolongado, é sempre o
mas vantagens raciais e compensações individuais de uma vida mesmo, e o valor da vida se estriba somente em dar-lhe um
mais vasta do que a atual, podem realizar, nestes dolorosos ca- conteúdo eterno. O super-homem ressurge em uma nova for-
sos excepcionais, o necessário ato de abnegação, que não conta ma, que é sua, e somente ele, que a adquiriu, poderá gozá-la.
com nenhum apoio da opinião pública. Importa que o homem Sabe que há uma continuação da vida na eternidade, onde to-
adquira uma consciência eugenética e, finalmente, assuma a di- dos os males e todos os delitos se justificam e se compensam.
reção das forças naturais, que contêm os fundamentos da felici- Sente possuir, acima de tudo, uma personalidade e um destino
dade do indivíduo e da raça. Seleção principalmente psíquica, próprios, independente da raça familiar, nacional e humana. O
seleção de personalidade. Se os remotos antecedentes, obras ou super-homem parecerá um absurdo, mas não o é menos a he-
crimes, estão no segredo do carma individual, as causas próxi- rança comum de ilusórios e fugazes prazeres, a realidade de
mas e manifestas se acham na herança fisiológica e amadure- trabalhos e dores tenazes, somente para chegar à morte. Todo
cem naquele primeiro templo de educação que é o seio mater- progresso foi utopia também; a utopia de hoje poderá ser a
no, onde a alma que está para nascer, em estado de passividade verdade de amanhã. É um temperamento de vanguarda que
e de máxima receptividade, recebe impressões que logo são de- prepara, com risco próprio, as verdades futuras. Se hoje traba-
senvolvidas com a intensidade de sugestões pós-hipnóticas, lha e sofre sem ser compreendido, acumula dentro de si facul-
como premissas indiscutíveis da vida. dades e forças espirituais que um dia o admitirão entre os futu-
Por último, pedimos à ciência que nos dê o conceito cientí- ros dominadores do mundo. Aos satisfeitos do presente, desta
fico da virtude e nos diga o que devemos elevar ou rebaixar nossa vida tão horrivelmente mesquinha e imperfeita, aos
na escala dos valores morais, apontando-nos o que é detestá- normais equilibrados no ciclo das funções animais, que gozam
vel e punível, pois estão extintas ou em vias de extinção nos- e descansam, muito afastados das tormentosas lutas espirituais,
sas inadequadas virtudes tradicionais e convencionais, que caberá, por seleção natural, a função de servos.
correspondem a posições espirituais já demasiado afastadas
5
das nossas. Pedimos não mais a demolição, pois é muito fácil Considerar que este trabalho foi escrito em 1932. (N. da E.)
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 29
Entretanto, não terá sido inútil, queremos esperá-lo, esta ex- Aos 43 anos de idade6, eu compilava por fim, como último
cursão pelas terras inexploradas do espírito, para descobrir ne- termo e fecho de um largo período de árdua investigação, a
las tantas esperanças, esta tentativa de reestruturação, por meio “minha” síntese da vida, a “minha” visão universal, que me
da psique e dentro da psique moderna, dos mais altos conceitos brindava com a solução dos grandes problemas filosóficos e
éticos, na procura de uma fé mais franca e mais sentida. Tenta- com a paz. Tinha de buscar e encontrar a minha verdade, con-
tiva talvez malograda, mas que se justifica por sua sadia inten- quistar a minha fé. Sintetizei-a, rapidamente, num artigo. Era a
ção. Malograda, talvez, mas que importa? Nenhum mal deriva- minha premissa inicial, inaceitável para mim sem um conceito,
rá para quem não persegue finalidades humanas e sente-se re- sem um ideal, apoiada apenas em instintos, interesses, prazeres
compensado e satisfeito somente por preferir uma verdade já e ilusões, como o é para muita gente. Para concluir com conhe-
intuída, para quem conseguiu perceber as forças do eterno, para cimento, devia primeiramente investigar e saber tudo e assim o
quem vive de uma chama interna que nenhum sopro humano fiz. Foram vinte anos de estudo e de lutas, especialmente de lu-
poderá jamais apagar. Mesmo quando este grito de uma alma se ta e de dor, pois tão-somente a luta e a dor nos proporcionam
perde no vazio, sem encontrar nenhuma ressonância nos espíri- uma síntese completa. Fruto da vida, nela me reintegrava para
tos, não desistirão a evolução e a Lei, que continuarão o seu viver. Não era uma abstrata construção ideológica. Eu nada ha-
trabalho, sem se precipitar e sem jamais se deter. via perdido do juvenil “instante fugidio” em vão ansiado por
todos os humanos. Nunca tive que me afligir, porquanto aí, on-
IV - Experiências Espirituais de muitos encontram, na sua madureza, na culminação das rea-
lizações sonhadas, no fundo das coisas, a sensação de transito-
Assim como se experimenta no laboratório científico, pode-se riedade do resultado e a presunção do esforço, eu, em troca, ha-
experimentar no campo espiritual e moral. Os elementos de que via descoberto uma vida que não teme a morte e acumulado va-
dispomos aqui para a investigação fenomênica, os fatores que se
lores imperecíveis, que nenhum ato de vontade humana e ad-
combinam, são fornecidos pela personalidade humana e pelas
versidade alguma, jamais, me poderiam arrebatar.
condições de ambiente. Entre aquela e estes, produzem-se conta-
Dos princípios por mim identificados, uma das conclusões
tos, choques, reações e combinações não mais de caráter molecu-
deduzidas que mais imediatamente correspondia à realidade da
lar, e sim moral, com as características de resistência, consumo
vida era que o homem, se desejasse viver segundo a justiça,
dinâmico e, sobretudo, de desenvolvimento lógico, que obedece
não podia viver senão do seu próprio trabalho. Este era o meu
a uma lei suprema de equilíbrio, própria do mundo químico.
Aqui, o fenômeno se eleva a um grau altíssimo e desenvolve-se dever. Na fase de atuação prática, sucessiva à da investigação,
como se fora um drama guiado por suprema lei de justiça. surgia bem nítida a impossibilidade de usufruir os bens heredi-
Aquele que não vive tão-somente a sua própria existência tários para as necessidades da vida, mesmo quando reduzidas
vegetativa, mas também esta segunda e maior vida, que é a vida às mais indispensáveis, a fim de deixar o maior lugar possível
do espírito, realiza dentro de si, continuamente, tais experiências às necessidades do espírito. Aos trabalhos de ordem espiritual,
espirituais. Seu material de observação é o próprio eu, que se ignorados pela maioria, que justificavam em mim esta atitude,
agita nas infinitas circunstâncias da vida. É difícil observar e ex- tinha que acrescentar aqueles demandados pela necessidade de
perimentar sobre os demais, seja porque quase todos vegetam na ganhar a vida e buscar os meios. Não era loucura. São Francis-
superfície e não perquirem a vida no seu verdadeiro significado, co tinha ido muito mais além, levando as coisas ao extremo de
seja porque, raras vezes, é possível penetrar no íntimo da alma reduzir-se à mais completa pobreza.
alheia. É mister, portanto, a auto-observação. Isto não basta, Eu queria demonstrar a mim mesmo que esta concepção,
pois são casos de caráter particular ou relativos a uma pessoa, a considerada pelo nosso mundo moderno como absolutamente
determinado tipo de personalidade humana em restrito momento utópica e irrealizável, era possível pô-la em prática, pelo me-
de sua vida e no desenvolvimento de seu destino. A realidade nos em parte.
não é nunca uma abstração de caráter geral. Em compensação, o Como Zaratustra, eu baixava do Olimpo dos meus estudos.
fenômeno é “verdadeiro”, ou melhor, existiu e foi vivido. É um Seria possível enxertar, na férrea engrenagem econômica da vi-
fato concreto. Mesmo quando se apresente como um fato “pes- da moderna, um ser absolutamente “self-made”7, ausente da vi-
soal”, pode interessar, como acontecimento susceptível de inves- da concebida pelo mundo, dotado de muitas preciosas qualida-
tigação, a uma determinada ordem de pessoas, podendo-se de- des, mas praticamente inúteis por não serem comerciais nem lu-
duzir do mesmo consequências e conclusões de ordem geral. crativas? O problema pode ser exposto em termos mais vastos.
Do relativo ao particular, podemos alcançar a melhor com- Que possibilidades sociais oferece hoje a humanidade civil a um
preensão das leis universais, que tudo regem, pois sempre as intelectual puro, conhecedor tão-somente dos problemas espiri-
veremos resplandecer, ainda que sejam nas menores experiên- tuais, armado para a tremenda luta pela vida somente de bonda-
cias espirituais do mais obscuro entre os homens. de e de justiça, ou seja, completamente desarmado por estas?
Este prólogo era necessário para explicar que, ao desejar re- Nenhuma possibilidade. Eis a resposta.
latar aqui experiências de ordem espiritual, não posso falar com Suas concepções projetam-se séculos à frente, estando mui-
a certeza de quem viu e provou a não ser as minhas experiên- to além da psicologia atual para poder estar em contato com
cias pessoais. Trata-se de um caso “vivido”, que pode tornar-se ela. A sua hipersensibilidade redunda toda em prejuízo. A soci-
extensivo a casos parecidos e afins. O leitor tratará de encontrar edade moderna somente admite quem saiba ser uma roda da
nele algo de sua personalidade e compará-lo com as suas pró- máquina coletiva. Expulsa do seu seio, colocando-o à margem,
prias realizações espirituais. Poder-se-á, por último, inferir do junto com os enfermos, os idiotas e os anormais, todo aquele
mesmo uma dedução importante, ou seja, que as coisas mais que não dê um rendimento concreto e imediato. A sociedade
simples da vida podem assumir um aspecto distinto e um signi- exige a normalidade; equipara a exceção destoante à insuficiên-
ficado muito maior quando observadas em profundidade, rela- cia evolutiva. Vive do presente, e os valores de rendimento dis-
cionando-as com os infinitos elementos de que se compõe a vi- tante escapam à sua orientação psicológica.
da do espírito, imensamente mais vasta.
Vejamos o fato, nada importante, por certo, se considerado 6
Em 1929
superficial e exteriormente, como em geral se observam as coi- 7
“self-made man” - expressão inglesa que designa aquele que se fez
sas, mas de grande valor se analisado interiormente, tal como por si mesmo, pessoa que alcançou determinada posição pelo próprio
eu o vi e como, agora, passo a expô-lo. esforço. (N. do T.)
30 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Há indivíduos cujo ambiente espiritual é o supranormal, cu- me foi constantemente assinalada sob a forma de inspiração e me
ja atividade se dirige para o inexplorado e que sentem estar no orientou no caminho a seguir. A lei que, na ação, se converte em
mundo somente de passagem, para realizar ideais que quase força (aquilo que comumente se chama Deus, Divina Providên-
não interessam a ninguém. Percebendo uma vida muito mais cia, etc.), assumia no meu caso a forma de personalidade, ou seja,
vasta, não podem absolutamente tomar a sério os instintos, os de consciência inteligente e volitiva, da qual eu percebia a apro-
interesses e as paixões que hoje agitam o mundo. Hipersensiti- ximação, graças a uma espécie de tato psíquico ou espiritual. E
vos que não vivem de cálculos e de raciocínios, mas de intui- sentia a sua presença não mais ao lado, mas sim dentro da minha
ção, contendo em si todos os extremos de luz e de trevas, nos consciência. Nascia em mim a ideia que devia desenvolver – a
quais sofrem e ardem de uma febre de criação contínua, não fa- inspiração. Essa personalidade me fazia companhia, dava-me va-
zem cálculos e nem tiram proveito de seu próprio trabalho. Es- lor, muito mais do que qualquer amigo ou pessoa querida deste
tes desafortunados pioneiros de um mundo futuro estão verga- mundo, com a qual a união espiritual nunca é completa, enquanto
dos sob o peso de um ideal, sustentam sozinhos, sem que nin- que a nossa fusão era íntima e perfeita. Nos momentos decisivos,
guém lhes enxugue uma lágrima, todo o trabalho da semeadura quando urgiam a ação e a decisão, essa personalidade agia e fala-
e passam incompreendidos, presos à visão interna que os espi- va por mim que, abatido e desalentado, comportava-me como um
caça inexoravelmente e lhes absorve todas as suas energias, ti- autômato. Manifestou-se-me, por último, em forma de uma voz
rando-lhes toda recompensa material. Estes desterrados, aos interior que eu escutava incessantemente e com a qual sustentava
quais cabe na vida missão muito diferente daquela de ser ho- colóquios e discussões, uma vez que sempre desejei discutir raci-
mem-máquina, a sociedade os põe à margem! onalmente todo ato, sem jamais me abandonar ao fanatismo. E eu
Não são admitidos, como pretenderia a atual sociedade hu- discutia. Mas, quando me recusava a obedecer, porque a razão e o
mana, mas ela não é tudo. bom-senso assim me aconselhavam, então a voz se tornava mais
O que é esta pequena psicologia humana diante das forças límpida e forte. O conselho se convertia em ordem, a ponto de
imensas do universo? Sem que o saiba, é a estas forças que obe- não me deixar em paz até obedecê-la. Em seguida, acontecimen-
dece a psique coletiva. O empuxo mais ativo, o que determina os tos imprevisíveis davam-lhe razão. Como sensação, não era uma
acontecimentos humanos, deriva sempre dos imponderáveis. Es- voz sonora que impressionasse o ouvido por meio de ondas acús-
tes nascem e desaparecem, não se sabe como. É um erro grave ticas, mas uma voz de pensamento, que chega ao espírito por
dos assim chamados homens de ação o desconhecimento das meio de ondas psíquicas. Estas sensações da alma não se perce-
forças invisíveis e imponderáveis da vida, das quais são depen- bem segundo nossos sentidos corporais, mas se manifestam nu-
dentes. Nosso mundo percebe somente as causas próximas, mas ma só palavra: sentir. Com firme convicção, dizia-me: “Atenção.
as crises e os revezes nascem de causas remotíssimas, que cor- Dentro de um ano ocorrerá isto; nesta data te encontrarás em tal
respondem a um maravilhoso mecanismo de leis, ainda ignora- situação”. Para aquele que, como eu, viu logo realizar-se tudo
das e não levadas em conta pelo homem. É pueril acreditar na aquilo que, algumas vezes, parecia impossível como um sonho,
possibilidade de sucesso, seja ele coletivo ou individual, através este pressentimento do futuro não deixa de ser impressionante.
de uma preparação imediata e próxima. Tudo responde a uma Para os demais, não posso oferecer outra prova além da sinceri-
lei, a um equilíbrio, a uma justiça. O destino de todas as coisas dade de minhas palavras, a ausência em mim de qualquer outro
segue um caminho lógico, que não é possível improvisar. fim exceto a investigação desinteressada, com o objetivo de fa-
Eis aí, então, como este tipo de homem também pode entrar zer, possivelmente, o bem. A minha própria convicção transluz
em combinação com o mundo humano, não porque este o admi- na franqueza com que redijo este escrito. Ofereço a todos o que
ta, mas pela imposição de uma força superior. Aqui intervém prometi: observar a fenômeno refletido na minha consciência.
um fator novo. O homem verdadeiramente justo e realmente Examinemos juntos, mais intimamente, as características
espiritual, qualquer que seja a sua fé, dispõe para a sua ajuda de destas manifestações.
forças muito poderosas, pertencentes ao mundo invisível, que Aquela força, concretizada sob a forma de uma personalida-
penetram e governam tudo. Estas forças podem realizar o mila- de, exteriorizava-se e interferia tão-somente quando urgia uma
gre de fazer vitoriosa uma vida que também é baseada sobre a necessidade suprema e uma finalidade de bem. Portanto, nada de
luta, mas luta que não utiliza as energias do indivíduo para agir supérfluo ou superficial, nem simples curiosidade de experimen-
de forma humana, pois tais energias possuem outro endereço. tação. Manifestava-se e intervinha em circunstâncias graves, na
Tal é o homem justo. Para ele, não existem margens, nem ata- urgência imperiosa, na extrema necessidade. Somente então in-
lhos. Estaria destinado frequentemente ao fracasso, se aquelas tervinha, deixando-me, no restante, livre com as minhas abun-
forças não interviessem em seu auxílio. dantes forças humanas. Devia encontrar-me em perigosa encru-
Não há de interessar ao leitor conhecer qual tenha sido a for- zilhada do meu destino, na qual teriam que se decidir, através
ma exterior da luta sustentada por mim através dessa mecânica das minhas pequenas vicissitudes humanas, acontecimentos im-
atividade do corpo e da mente, que hoje se chama “trabalho”. portantes, concernentes à minha vida maior (como a temos to-
Preferirá conhecer minha visão interna, a observação do fenôme- dos) na eternidade. Era preciso o perigo que, por minha ignorân-
no realizada por mim sob ponto de vista bastante insólito, situado cia e debilidade, pudesse comprometer meu futuro nos séculos.
nas profundidades do meu eu, penetrando as profundidades das Então, na luta titânica entre o bem e o mal, aquela força intervi-
coisas. Interessa-lhe o testemunho, que aqui lhe outorgo, da con- nha para restabelecer o equilíbrio. Nestes momentos de perigo,
tínua sensação por mim experimentada acerca da presença dessa em que a luta, por ser superior às minhas forças, ameaça esma-
força e da maneira como ela, incessantemente, me guiou; a visão gar-me, sou libertado delas e, como todos, devo carrear a minha
claramente percebida da ação desta grande lei de equilíbrio e de carga de deveres com a mais completa responsabilidade.
justiça, que nunca se me havia manifestado mais patente, que Essa força somente se me manifestou com finalidade de
nunca se me afigurara de tamanha missão interventora. O resul- bem. A sua intervenção tendeu sempre à prática do bem. Fazem-
tado tangível foi, para mim, uma posição econômica conquistada me o bem e impõem-me, por sua vez, o mesmo procedimento.
num breve período de tempo, depois de vencer grandes dificul- Onde existe o mal, ela jamais se encontrará; e quem obra o
dades com meios absolutamente inadequados para a luta. Mas a mal nunca a conhecerá, nem a possuirá.
imprevisível e de todo inesperada sucessão de acontecimentos, Por estas características, que a convertem em algo inerente
tendentes em massa para o resultado obtido, poderia ser um sim- à vida e suas contingências, vemos que esta força desaparece,
ples caso fortuito. O que me surpreendeu, e isso não se pode ser tornando-se impossível observá-la, quando nos aproximamos
considerado acaso, foram as previsões realizadas, a estrada que dela com a mentalidade imbuída de puro cientificismo ou, pi-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 31
or ainda, com a curiosidade do “diletantismo”. Estes fenôme- investindo terrivelmente, como um furacão, mas que desapare-
nos são novos, e é necessária uma nova ciência, que inclua en- cem espontaneamente, tão logo as tenhamos vencido. O segre-
tre os elementos que geram a observação do fenômeno, um fa- do está todo em não recusá-las, mas aceitá-las, tratando de
tor que hoje é incrível: nada menos do que a pureza de inten- aproveitá-las para o nosso progresso espiritual.
ções e a elevação moral do investigador. Se essa força se nega Que concepção nova da vida nos proporcionam estas ob-
a manifestar-se com o objetivo único de experimentação, a servações, e como se modificam radicalmente as nossas mais
não ser nos grandes momentos críticos de algumas vidas, infe- costumeiras apreciações das coisas! A própria luta, encontrada
re-se que resulta ser quase impossível observá-la à vontade. em todos os setores, nota dominante da vida humana, sofre
Não se pode prefixar artificialmente o fenômeno nas investi- uma revolução. Frequentemente, ela nos torna malvados, ar-
gações científicas. Trata-se, portanto, de fenômenos susceptí- mando-nos uns contra os outros, como lobos famintos, e nos
veis de observação, quando se produzem espontaneamente, oprime como maldição. Quando concebermos a vida fora dos
mas não sujeitáveis à experimentação. estreitos limites do mundo humano e de suas realizações pueris
A manifestação dessa força responde, pois, a um princípio e ferozes, então as nossas perspectivas, como criações que de-
de necessidade e, portanto, a um princípio de bem. Observemos safiam o tempo, serão mais vastas e, para alcançá-las, não será
agora a sua maneira de se conduzir. necessário que apelemos para todos os mesquinhos meios da
A sensação de sua presença nem sempre era nítida em mim. agressividade e da traição, dos quais o homem lança mão para
O atordoamento do organismo, a percepção mais viva das coi- assegurar o prazer de um dia. Poderemos viver e vencer sem
sas mais próximas e imediatas, a preocupação do meu espírito, lutar de modo tão baixo, agindo de comum acordo com a gran-
que tomava parte ativa no esforço da luta, tirando-me a tranqui- de lei de justiça no caminho do triunfo.
lidade, perturbavam as faculdades receptivas do meu ser, impe- Sei bem que é difícil aceitar uma luta tão áspera. A Lei pode
dindo-me frequentemente de sentir. Então, aos períodos de luz, parecer, no princípio, um peso oneroso, mas logo se torna uma
de uma alegria extraordinária, da sensação de força e expansão força imensa à nossa disposição. A lei de justiça nos ata as
que me infundia essa nova faculdade sensorial do meu espírito, mãos, impondo-nos o comedimento na vitória e a manutenção
seguiam-se períodos de ofuscamento, de solidão desconsolada e constante do equilíbrio, que nós, fazendo sempre o melhor uso
de abandono às minhas paupérrimas forças humanas, das quais possível das nossas forças, não devemos alterar, animados pela
sempre duvidei muito. Naquela ocasião, tudo parecia destruir- vantagem imediata. É uma amarra que nos coloca em passivi-
se, como se meu espírito não resistisse ou não pudesse manter- dade. Por isso o homem justo, que jamais agride ou atraiçoa,
se longamente naquele estado de sensibilidade especial, mas aparece em nosso mundo como um ingênuo, um inerme, desti-
apenas por alguns momentos. A força, entretanto, não se afas- nado a ser rapidamente vencido. O justo é um desarmado, en-
tava de mim, pois antes que voltasse a senti-la diretamente, eu quanto que o forte sem escrúpulos, aguerrido e agressivo, chega
percebia a sua presença nos efeitos da sua obra, num aconteci- mais rapidamente à meta. Porém este, abusando da sua liberda-
mento predisposto, num problema inesperadamente resolvido, de, tende continuamente a ultrapassar os limites da grande lei
numa dificuldade repentinamente vencida, num fato que advo- de equilíbrio e, mesmo quando goza das vantagens imediatas,
gava a meu favor. Em seguida, a voz retornava, às vezes con- está usurpando, porque lança mão antecipadamente de seu futu-
fundida com outras parecidas, que fingiam aconselhar-me, mas ro. Os adiantamentos somam-se no débito, que vai aumentando
que eram frívolas, falsas e malvadas. Desmascaradas por isto, a cada dia e terá que inexoravelmente ser saldado. Ante a lei de
fugiam logo. Somente o bem atrai a voz verdadeira. O bem é justiça, o mal é um peso moral que gravita sobre a personalida-
necessário à minha consciência, para que esta não perca a sua de, dificultando a ascensão do espírito para o Alto, onde se en-
limpidez, como um estado habitual, uma capacidade de sutis contram a libertação e a paz. Por sua vez, o justo sustenta, tole-
vibrações, indispensáveis para perceber estas coisas. Essa força ra, sofre e, praticando o bem todos os dias, vai acumulando em
me deixava sozinho por momentos, não por minha culpa ou in- seu crédito, atraindo para si as forças do bem, que, irresistivel-
capacidade, mas porque a sua intervenção devia limitar-se às mente, o elevarão, assim como farão descer aquele que é domi-
ocasiões necessárias. Nunca representou para mim uma ajuda nado pelo mal. Por uma lei inviolável e fatal, o bem retorna
supérflua ou um convite à indolência, e sempre cuidou de nada sempre, como chuva de bênçãos, sobre aquele que o praticou, e
fazer por mim, se eu podia fazê-lo com minhas próprias forças. o mal volta sobre o seu autor, como chuva de maldições. São
Algumas vezes, permaneci como que perdido, sujeito às créditos e débitos que a grande lei de justiça, que é Deus, não
forças inimigas, que pareciam satisfeitas em destruir. Por que pode deixar de conferir. E deve fazê-lo para não se contradizer
essa força, que queria salvar-me, conforme me havia assegura- a si mesma, não violar o equilíbrio, que é a sua essência, nem
do, me abandonava? E por que a sentia então dentro de meu ser desviar a corrente segundo a qual todo o universo se move.
dizendo-me: “Oh homem de pouca fé!”? E por que, durante to- “Humilha-te e serás exaltado”, “Os primeiros serão os últimos”.
da a minha vida, assim que o perigo se tornava realmente grave Cristo mesmo enunciou a lei de equilíbrio. Praticai o bem! Este
e minha barca parecia a ponto de se afundar, aquela força vol- será o único seguro, o melhor investimento, dos nossos capitais
tava e, como por encanto, a tempestade se acalmava? humanos. A força tremenda do justo inofensivo será somente
Que são, pois, estes tremendos dramas interiores, turbi- esta, a sua justiça. Sutil na sua elevadíssima potencialidade, que
lhões de sensações extremamente invisíveis, estas angústias e esmagará um Napoleão e fará de Cristo um deus nos séculos.
estes triunfos no mundo do suprassensível? E o que desejava Esta é a força que pode realizar o inacreditável, o absurdo soci-
de mim essa força? al da vitória, em nosso mundo de violências e abusos, daquele
Desejava não somente o êxito daquele determinado aconte- que não luta no sentido humano. Esta é a força que nos pode
cimento, mas, e principalmente, meu esforço, todo o meu esfor- auxiliar a realizar o milagre da supressão da luta brutal, ou seja,
ço. Desejava que me acostumasse a dar todo o meu quinhão, o milagre do superamento da animalidade, o milagre da reden-
tão necessário para temperar meu espírito, plasmá-lo em quali- ção. Se o homem pudesse compreender que peso tremendo
dades mais elevadas, indispensáveis à minha ascensão. Impu- exercem sobre a realização dos acontecimentos humanos estes
nha-me luta contínua, sem possibilidades de descanso ou triun- impulsos que vêm do invisível, geralmente não levados em
fos não merecidos. Eis aqui a vida concebida como uma série conta, por certo tremeria. Impulsos invisíveis, mas tão podero-
de provas, irreais no mundo exterior, reduzido a um cenário em sos, que irresistivelmente dobram indivíduos e forçam aconte-
contínua mutação, mas reais no espírito, onde se gravam eter- cimentos. Podem penetrar, porque são invisíveis, e fazem cur-
namente, em formas de novas qualidades. Provas que sucedem, var, como se fossem palhas, os chamados “fortes” da vida.
32 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
De tudo isto, podemos obter esta importante conclusão: a futuro? Somente quando tenhamos sob as nossas vistas uma parte
luta pela vida, na forma brutal usada pela sociedade civil mo- considerável da nossa vida maior e pretérita, que se perde na
derna, não é de nenhum modo uma lei inflexível da natureza. eternidade, tomaremos posse dos elementos que predeterminarão
As guerras, as rivalidades comerciais, a competição individual o futuro. Eu o digo a todos, impulsionado pela voz interior da
e coletiva de todas as espécies não são mais do que a conse- qual vos falei, que estes são os únicos e os verdadeiros problemas
quência da baixa lei animal, preferida sempre pelo homem, do futuro, aqueles aos quais se dirigirá a mente humana nos pró-
dada a sua psicologia. ximos séculos, e cuja solução redundará no real e no mais autên-
Não é certo seja necessário que toda a coletividade compre- tico progresso. Muitas outras coisas, que parecem mais importan-
enda e siga uma lei mais elevada para que resulte possível a ca- tes, não o são na realidade. Todos gozamos ou sofremos, felizes
da indivíduo realizá-la. A Lei sempre existirá, e mesmo quando ou desgraçados, sem saber por quê. Opomos à dor reações in-
apenas um a siga, ela está sempre pronta a se lhe manifestar, conscientes. Somos uns pobres míopes, já que nada vemos de-
ainda que toda a humanidade a ignore. pois da morte, e semeamos a esmo o bem e o mal. No passado
A observação destas minhas experiências espirituais pro- eterno, que ignoramos, moram as causas do presente. Nossos
porciona-me outra consideração. Quando penso de que intrin- próprios atos semearam as dores que sofremos. Pelo bem que
cadas séries de fatos, contingências e fatores – entre estes os praticamos seremos recompensados. Construímos no passado, li-
psíquicos, imponderáveis e mais imprevisíveis – surge um vres e responsáveis, a nossa personalidade atual, com seus instin-
acontecimento humano, não posso crer que a nossa vontade, tos, tendências e aspirações, boas ou más. Assim como o caracol
por mais forte que seja, ou a nossa inteligência, mesmo quando constrói a sua carapaça, nós nos construímos um determinado ti-
agudíssima, possam ter uma participação preponderante e deci- po de destino, que se nos adere como vestimenta. Este é o “far-
siva em sua preparação. Não! Nos sucessos humanos, em todas do”, nosso fardo particular, invencível, tirânico. No lento trans-
as contingências da vida, existe um imenso “imponderável” que curso dos séculos, repetimos os nossos atos, assimilamo-lhes as
cobre três quartas partes do problema e nos escapa quase por consequências, até que se tornam irresistíveis e fatais. Foram
completo. E este “imponderável” não é o acaso, nem o caos, obra nossa e, com justiça, hoje gravitam em torno de nós mes-
nem a desordem, mas um novo e mais profundo equilíbrio que mos. Nossa obra hoje é lei de divina justiça e não pode ser modi-
eu percebo e que possui suas nascentes distantes, na estrutura ficada. Contrastando com o campo de determinismo absoluto,
do nosso próprio destino, tal como nós o forjamos com as nos- criado pela trajetória percorrida e por todos os atos do passado,
sas obras. É este o maior drama que vi através desta minha úl- estão o nosso presente e o nosso futuro – um campo de livre arbí-
tima experiência espiritual. Esta a visão que se me revelou du- trio absoluto – onde a vontade age, tornando possível a correção
rante a minha luta. Minha vida – um momento do meu destino contínua e o endireitamento de rota no sentido que livremente
– é consciente de sua relação com a eternidade em que estou desejarmos. Da ação combinada de todos os nossos atos do pas-
vivendo, dando-me conta de todo o seu significado. Das minhas sado, já fixados em nós, e desta contínua retificação que nos é
observações não se deduz a importância do meu destino, mas a possível fazer, resulta o futuro, o nosso futuro, que é deste modo
possibilidade, por mim entrevista, de contemplar a estrutura de constituído por dois elementos: um fixo, já cristalizado, e outro
qualquer destino no tempo, ou seja, de prever o futuro. móvel, devido à nossa vontade, que continuamente se sobrepõe
Quando digo “prever o futuro”, refiro-me não a um futuro àquele, modificando-o. Da influência recíproca destas duas for-
genérico ou universal, mas a um caso determinado, uma vida ou ças, uma passiva e outra ativa, resulta a trajetória do futuro, que,
destino particular. Estou convencido de que num universo onde desta maneira, pode ser conhecido, devido também ao fato de
tudo é lei, equilíbrio e ordem, onde cada fenômeno se desenvolve que, em parte, poderemos querê-lo e criá-lo.
de acordo com uma proporção exata de causas e efeitos e onde Hoje, porém, quem se rege por esta ordem de ideias? Para
nada acontece por acaso, também o destino humano não pode es- poder efetuar investigações introspectivas tão profundas, é neces-
tar sujeito à sorte, mas sim a uma férrea e matemática concatena- sário uma grande limpidez de espírito e um poder muito forte de
ção de ações e reações, em equilíbrios constantes. O fenômeno visão interior. É mister mover-se numa atmosfera espiritual ele-
da vida, com todas as suas alternativas materiais ou espirituais, se vada, ser iluminado por uma luz interior, que não se pode impro-
desloca e avança continuamente, mas sempre mantendo-se em visar, nem explicar ou ensinar, porquanto somente a compreende
equilíbrio. Nestas condições, se ele não ocorre por uma casuali- quem a possui. É preciso uma contínua retidão na prática e pure-
dade, mas de acordo com uma lei, então pode ser previsto quan- za de consciência, já que, somente neste estado, os órgãos da
do se conhece essa lei. O destino, tal como o é no presente, está percepção anímica se refinam até alcançar a sutileza e a sensibi-
todo contido no passado e, tal como será no futuro, está embrio- lidade necessárias para perceber certas delicadas sensações inte-
nariamente contido no presente, no estado de causa. Se soubés- riores. Tesouros imensos, revelações inauditas, faculdades gran-
semos observá-lo bem, poderíamos ler nele, rapidamente, todos diosas encontram-se em nosso espírito. Nada, entretanto, é tão
os elementos de seu próximo desenvolvimento. É aqui, aliás, on- pouco apropriado para no-los mostrar como os sistemas turbulen-
de reside a dificuldade. Quem se conhece a si mesmo? Para um tos, prepotentes e materiais da nossa moderna civilização. Certos
estranho, resultará muito mais difícil penetrar, de fora, nas pro- fenômenos não se dominam mediante hipóteses engenhosas, ha-
fundezas desse “si mesmo”. Quem conhece a lei do próprio des- bilidades cerebrais, força da mente. Frequentemente, o mistério
tino, ou seja, a sua natureza, a sua tendência dominante, o seu ti- não abre as suas portas a não ser àquele que, humilde e profun-
po? Cada homem traz consigo, com determinado modelo de per- damente, ama, mas ama no sentido mais alto e espiritual.
sonalidade e uma dada espécie de destino, a tendência para certas Conclusão. Com este escrito deixo o meu testemunho. Tive
provas, perigos, triunfos, alegrias e dores. Mas ignora facilmente que obedecer à minha voz interior, sob cujo ditado escrevi, ra-
tudo quanto para o seu próximo vai resultar em torturantes pro- pidamente, sem refletir, a ponto de não saber se me compete re-
blemas. Para conhecer tudo isto, seria necessário tomar em con- ferendar este artigo com a minha assinatura.
sideração outras causas, que hoje o homem, a sua ciência e as re- Torno a afirmar a objetividade das minhas observações, a
ligiões ignoram. Como seria possível conhecer tudo isso num sinceridade das minhas palavras. Sempre concebi a vida como
mundo onde os problemas da personalidade humana apenas co- uma experiência espiritual que tende a uma conquista moral.
meçam a ser estudados, onde muitos creem que a vida termina Este conceito, levado agora ao mundo prático da luta pela vi-
com a morte física, onde muitíssimos ignoram que, antes de seu da, proporciona-me ótimos resultados. Estas experiências es-
nascimento físico, tiveram um passado, que é justamente o que pirituais, que acabo de expor, reafirmaram a minha fé. Sinto
devem recordar e meditar, pois encerra a chave do presente e do que somente as almas puras e justas, onde quer que se encon-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 33
trem no mundo, poderão compreender-me. A elas, o convite portas, obedecendo. Obedeces e amas. A nossa vida é uma só.
para ensaiar estas maravilhosas experiências espirituais, que Sentimo-nos e amamo-nos.
comprovam o triunfo do bem. Para elas, a esperança que o seu A visão não é da Terra e proporciona ao coração um êxtase
destino, pelas ações do passado, contenha as mesmas forças, que não é da Terra. Toda a criação, plantinhas e árvores, inclu-
que devem elevá-las cada vez mais. Para elas, o meu cumpri- sive os escolhos nus e severos, cantam-me na sua voz a grandi-
mento fraternal e o voto de que a aquiescência que nelas possa osa sinfonia da vida.
suscitar a palavra de fé que me anima, resulte-lhes em consolo Escuto e não sei mais onde me encontro, tão mudada está a
e ajuda no terrível momento da luta e da dor, que a todos, Terra vista assim na sua essência interior.
igualmente, nos espera. Todos os seres me olham, cercam-me e falam-me: “Quem
és tu que finalmente vês? Tu, que não és cego entre os homens?
TERCEIRA PARTE  VISÕES Vem, olha, escuta, que nós te falamos”.
E cada um levanta a sua voz distinta conforme a sua natureza.
O CANTO DAS CRIATURAS (1932) A rocha é severa e brame; a grande voz da terra é um troar
do enorme bramido distante. As velhas árvores em meditação
Caminhava só, em uma hora de folga, pela campina extensa. repousam cansadas; as plantas mais jovens cantam nas flores,
Não sabia como fazer-me companhia e, por isso, atentava nos rebentos, nas folhas; as plantinhas sorriem delicadamente,
nas coisas que me cercavam. como as crianças, na alegria de viver. E ri a pequenina vida
Olhava-as com sentimento de amor, e elas me respondiam animal, escondida e esparsa em redor, num trinado de felicida-
com sentimento de amor. Lentamente, o meu olhar se transfor- de. Também o céu imenso e o mar na sua vastidão distante
mava em olhar de sonho, e a minha alma, que no silêncio aflo- possuem as suas vozes e sorriem, ou murmuram, ou cantam,
rava, reencontrava e sentia a alma das coisas. Além da maravi- ou choram, ou rugem; também o deserto é pleno de vida, onde
lhosa harmonia da forma, eu percebia na vegetação a vida. tudo pulsa, vibra e freme. E, com todos, o meu ser sintoniza,
Oh! A minha alma vê. Cada pequenina planta possui a sua porque toda vitalidade é a mesma vida.
expressão de ser, e eu a sinto viver, vejo-a olhar-me. Maiores, Vejo agora abrir-se o abismo dos céus, faiscante de vidas.
as árvores são fortes e severas, mas todos são seres simples e Quantas, ao infinito, no espaço infinito; e cada uma possuindo
bons, que desconhecem a ferocidade dos animais. Por isto, a uma voz, uma luta, uma esperança, uma meta, um destino, uma
sua companhia irradia tão grande sentimento de paz... Mas eu dor, uma alegria. E todas me falam: “Oh! tu que me vês, olha e
amo os pequeninos vegetais, as plantinhas tenras e jovens, que escuta”.
oferecem a sua frescura, desabrochadas do mistério à luz do A sinfonia é imensa, vasta como o tempo e o espaço; é mú-
sol, com uma dedicação tão completa, com uma tão feliz igno- sica composta de toda a harmonia do universo.
rância de todos os horrores da vida, que eu desejaria abraçá-las, É isto Deus? É Deus isto que eu vejo? Porventura está Ele na-
tal como se deseja abraçar a criança ingênua que vem à vida quela harmoniosa lei que rege toda esta ordem, o grande EU, cen-
cheia de alegria; desejaria beijá-las como almas irmãs. tro do grande organismo, lampejante de ideia, vontade e ação?
Também elas me amam e confiam-me o segredo de suas vi- E este EU és TU, SER SUPREMO, que não sou digno de
das: “Não pedimos senão morrer para que a tua mais alta vida mencionar?
animal floresça. Nós somos as humildes servas da tua superior Então me ponho de joelhos e oro. Então todas as criaturas
vida orgânica, tão completa e tão complexa para nós. Nossa irmãs se calam, inclinam-se e rezam. Então, de todo o universo,
ambição é nos sacrificarmos por ti, a fim de possibilitar-te esta sobe o canto do amor, e tudo é luz e alegria, contentamento e
vida orgânica da qual sabes criar uma atividade ainda mais ele- triunfo. E, ao canto de amor do universo, outro canto supremo
vada, tão elevada para nós, a vida do espírito. Apanha-nos e responde: “Volve para mim, oh! Criatura que conquistei, para
mata-nos. Não lutamos e não nos vingamos. Também nós te- mim que te criei”.
mos grande missão no equilíbrio da vida. Mesmo o sacrifício e
a morte possuem uma grandeza e representam uma vitória”. TRÍPTICO (1928)
A ternura invade-me ao olhar esta humilde vida vegetal,
plena de tão abundante e alta finalidade, que desejaria quase A Noite
adorá-la.
Sem este traço intermediário que une a vida do mineral Condensam-se sobre a terra vapores estranhos, subindo le-
(também essa vida mais abaixo eu a sinto) à vida do homem, vemente como uma maré. A Lua branca resplandece no céu,
como poderia completar-se o ciclo de permutas na superfície criando-nos fantasias.
terrestre? Quem transformaria o solo, o ar, os minerais em Do alto de Assis, observo a noite, olho com os olhos pro-
substâncias orgânicas assimiláveis? fundos da alma, olho as estrelas vivas, e o seu frêmito puro
Sem toda esta maravilhosa cadeia de transformações e de proporciona-me grande nostalgia.
contatos que do mineral atinge o homem, como seria possível o Vejo a terra adormecida embaixo; parece também cheia de
mais alto fenômeno da vida, que é aquele da criação dos eter- pureza na noite longa. Está inteiramente envolta em diáfanos
nos valores do espírito? véus e parece que repousa inocente, como na aurora da vida.
Pequenina e humilde planta, também tu trabalhas no funci- Parece que aguarda ainda a sua criação; parece que, no afluxo
onamento do grande organismo! ascendente dos vapores estranhos, dormem ainda as formas dos
Não o sabes na forma de consciência reflexa que o homem seres, e tudo se recolhe, quase tremendo, num silêncio sacro,
possui, mas o mesmo instinto que pulsa em ti eu o encontro para venerar o grande mistério da vida nascitura.
no meu ser, numa idêntica linguagem fundamental, a expres- Distante, na névoa, perdem-se os perfis das coisas, que on-
são do pensamento da vida. Como eu, nasces, cresces e mor- dulam como formas que lentamente saem do nada.
res; como o meu corpo, sentes calor ou frio, umidade ou secu- Parece que vagueia no ar uma até então indecisa forma de
ra, a vigília ou o sono; e permutamos um respiro inverso. O existir e, na incerteza do ser ou não ser, afigura-se-nos que as
calor do perfume das tuas flores, que na primavera me invade, coisas tentam exteriorizar-se.
conta-me que amas e que amas ardentemente. As tristezas ou- Sob a luz suave da Lua, estranhos fantasmas endireitam a
tonais dizem-me que também envelheces e morres. Quantos fronte nas névoas e, depois, se dissolvem aflitos. Formas que
padecimentos, oh! Pequeno e humilde ser, humildemente su- se vão.
34 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Formas que se vão em longa fila, procurando a vida. Nasce- Homem, ergue-te e vive; segue as pegadas dos grandes na
ram, e a evolução, num relance, lhes pôs o dilema e a morte; a grande estrada da libertação; levanta-te e edifica a ti mesmo,
evolução acossa sem dar trégua, sempre para mais alto. plasma em ti o super-homem. Vi o teu futuro reino durante as
Em paz, as estrelas do céu observam o grande apocalipse e vigílias, miragem bela como uma visão. Por que não o conhe-
sorriem tranquilas, sem se admirarem, porque, para elas, o es- ces? Por que demoras na estrada do teu progresso? Tu que, en-
petáculo é velho, tantas vezes visto e revisto. tre tantos seres, venceste na Terra a grande luta da evolução e,
A eternidade não se perturba mais. agora, chegado ao ápice da vida animal, dominas o planeta,
por que ainda tardas tanto em prosseguir? A evolução biológi-
A Aurora ca está completa. Aguarda-te a evolução espiritual. Supera o
animal do qual ainda és feito; torna-te grande na alma!
Aproxima-se o amanhecer. Tênues luzes tremem no oriente Observa quanto a natureza percorreu para produzir em ti a
enquanto, no horizonte oposto, desce lentamente a Lua, vencida sua obra máxima. Parece que tentou todas as formas para uma
pelo dia nascente. As estrelas puríssimas ainda observam do al- única mais excelsa: o homem. Quanto esforço nas tentativas,
to e possuem a cor do céu. Das trevas emergem os coloridos, e quanto imenso trabalho de formas abandona para trás, a fim de
outra vez o arco-íris se tingiu na aurora da luz. deixar sobreviver uma única maravilha para o futuro: o homem!
Desperta a vida lá embaixo na planície extensa, e invade-me Observa, nos tipos vegetais e animais, as imagens deixadas no
imensa ternura pelo homem e por seus padecimentos. meio da estrada desta nunca saciada vontade de te criar. Elas se
Saio de uma noite insone, e o amanhecer surpreende-me inclinam para ti e parece que te apoiam, para te manter no alto.
ainda desperto e decidido a perseguir a ideia. Por que vacilas ainda em superar a vida? Não sentes fer-
A meditação profunda não tem a noção de tempo e é intensa mentar na alma a história dos séculos vividos, não sentes subir
como uma dor. a maré das lutas e das provas superadas, não sentes, vinda do
Oh! A vigília do pensamento. Benditas sois vós, desejaria túmulo, a voz dos mártires e dos grandes que te chamam para
gritar, almas rudes, mudas ao misterioso encanto da terra e do uma espiritualidade mais elevada?
céu, benditas porque podeis viver sem saber e sem perguntar. Homem! Também em ti a evolução pôs o dilema do ser ou
O mistério me persegue e não me dá trégua. não ser, avançar ou findar. Não sabes que não se pode jamais
O que é, no infinito, este meu espírito que não tem paz? Para parar? Se é da própria natureza do universo o movimento e o
onde me impele o turbilhão dos séculos? Para onde me leva, para progredir, pretendes tu mesmo, oh! pequenino homem, barrar a
onde nos conduz, esta nunca saciada vontade de viver? Em noite grande corrente? Acima da tua vontade, seguem decisivas as
de insônia, num turbilhão, vi cheio de espanto a esfinge revelada, grandes leis e surge a dor: a sua própria sanção. Qual novo ca-
olhando-me suavemente no rosto para apontar o cume distante. taclismo esperas, que novo sofrimento te obrigará a evolver,
Destruir-me-á o corpo, não importa, mas morrerei contente, até que sintas o fulgor do raio da estrada de Damasco e tu,
porque conquistei uma vida ainda maior. constrangido, transponhas a soleira do reino do super-homem?
Por que deverão ser extintas as grandes forças biológicas A minha sede de ascender vertiginosamente, a anelante
que, em milhões de anos, plasmaram a forma da vida material? ânsia de construir minha alma, a luta para vencer e superar a
Não. A evolução sempre surge de baixo e sempre avança fase das paixões e repousar depois na consciência liberta, tu
em direção às mais altas formas, em movimento incessante; não não a sentes!
pode parar e então prossegue em nível mais elevado, o nível Não, tu não desejas o entendimento. Amas viver na brutali-
humano da psique. dade, amas a terra e satisfazes as tuas paixões para viver. Dei-
Também em mim, a evolução pôs o dilema do ser ou não xas-te guiar pelo instinto, satisfeito com isto, não tentando
ser, prosseguir ou findar. compreender aquilo que fazes.
Procurei compreendê-lo, e o misterioso turbilhonar dos sé- A revelação divina e a ciência humana, dando-se as mãos,
culos começou a fermentar dentro do meu espírito. entenderam-se e se harmonizaram para os que as quiseram acei-
O meu passado elevava-se como ondas, e surgiam rápidas tar. Os mártires de todas as religiões deram o exemplo para os
as lutas e as provas superadas; por fim, eu estava mudado e menos inclinados ao entendimento. O homem ainda não enten-
maduro para a grande revelação. de. Pobre homem!
Vi a minha eternidade; um amadurecimento lento, culmi- Falará a dor, último recurso da Lei, justa e boa, para con-
nando num estrondo como o raio na estrada de Damasco. duzir o cego para sua estrada fatal, do seu bem e do seu pro-
Cheguei. Assim, transpus o limiar e vivi uma nova forma gresso; a dor abalará a inércia. Pobre homem! Vejo-te desani-
de vida. mado e deprimido.
O universo tremeu dentro de mim, no entanto tudo seguia O meu corpo choca-se contra uma enorme muralha de tan-
igualmente calmo e sem perturbação. tas e tantas mentes iguais, inertes, satisfeitas em viver a sua vi-
Quando a evolução criou a primeira asa ou guiou o primeiro da miserável. Eu, só e esgotado. Tu não me escutas.
olhar à luz, a eternidade não se alterou.
A vida opera, sem se encher de admiração, grandes milagres Fecho
de maneira completamente natural, com a paz eterna de quem
sabe e, sem pressa, alcança. A aurora transformou-se em dia. A planície, adormecida lá
embaixo, está fumegante sob a aurora. Do lento vaguear da né-
O Dia voa, parece que se desperta a voragem do tempo. A manhã está
feliz, alegre e cheia de juventude; no ar leve e calmo, vibra a
O que é que, lá embaixo, emerge da névoa matutina, estra- promessa de vida.
nho monumento voltado para o céu? Ruínas de Tebas antiga Mas dissipa-se com o dia a pureza das horas matutinas; não
ou muros de castelos indianos no vale do Ganges, ou a glória mais olham para baixo as estrelas sorridentes e calmas. E, en-
de Paris pelas planícies do Sena? Não! É a linda cúpula de Vi- quanto morre a última claridade da aurora, dentro de mim um
gnola, que surge ao sol. Desejaria também que a ideia que a eco me repete: ser ou não ser, evolver ou findar.
criou resplandecesse ao sol. E vejo na dor a estrada da evolução.
São Francisco, a tua bela imagem está tão distante, não mais Somente na dor, livremente amada, vejo a estrada do ser, a
te compreendemos! única força que torna a alma grande.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 35
E, no desejo intenso de prosseguir sem repouso, grande sede A festa do verão, os divinos colóquios com a alma misterio-
me assalta de querer sofrer. Eu apelo para a dor com os braços sa da natureza, os êxtases dos silenciosos arcanos e a solene
abertos, e o eco repete-me ainda: “ou sofrer ou morrer”. quietude na qual repousa o turbilhão do tempo. Na voz das coi-
sas mais humildes, ouvia tremer o mistério do infinito.
CÂNTICO DA DOR E DO PERDÃO (1933) E tu me olhavas, doce criatura de que o bosque é feito, escu-
tando comigo a longa sinfonia dos ocasos. E a sinfonia se de-
No silêncio da noite imensa, eu escuto o cântico de minha senvolvia suave, de luz em luz, até desaparecer o último es-
alma, um cântico que vem de muito longe e traz consigo o sa- plendor nas trevas, qual uma voz que morre no silêncio.
bor do infinito. A terra em paz contava-me calmamente, à luz da tarde que
As coisas dormem, e a voz canta. se esvai, da suspensão da luta, do repouso da vida exausta, di-
Estou desperto e escuto; parece que a noite escuta comigo. zendo-me como o dia, já velho ao anoitecer, era mais sábio por
O mistério que está em mim é o mistério das coisas: dois in- tê-la vivido.
finitos olham-se, sentem-se e compreendem-se. Adeus bosque solitário, pensativo como eu; adeus caminho
Lá embaixo, pelas margens distantes, além da vida, o canto que vai para o ocaso; adeus árvores amigas que tanto amei.
responde, despertam-se as sombras, e, das profundezas, todos Agora, o entardecer é frio e lívido; o teu perfume, oh! Terra,
os seres estendem-me os braços: “Não temas a dor, não temas a tem um sabor de pranto.
morte, a vida é um hino que jamais tem fim”. O teu respirar esgotado, que eu sinto nas mãos, parece que
Observo-os e perdoo à sarça a inocente ferocidade de seus me responde tristemente: adeus!
espinhos, à fera sua garra, à dor sua investida, ao destino seu O inverno já te abala com um arrepio de frio. O uivo do
assédio, ao homem sua ofensa inconsciente. vento sumirá em teu meio, em longas ululações, sibilando na
“Perdoa e ama”, diz o meu cântico. tenebrosa tempestade da noite.
E eis que ele apresenta uma estranha magia: todos os seres Pobre árvore amiga, adeus! Sofrendo irei para outras plagas,
me olham fascinados, e cai o espinho, a garra, a ofensa. levando a tua lembrança querida; do vento receberei as tuas no-
E devagar, devagar, ignaros e cheios de espanto, a magia os tícias e a ele confiarei, para ti, as minhas.
vence, e comigo, lentamente, recomeçam o cântico; a harmonia O vento me trará da primavera distante o afago de tuas no-
se dilata, difunde-se e ressoa em todo o Criado. vas frondes; desfolha-las-ei com o meu sopro para que minha
Sobre cada espinho nasceu uma rosa; sobre cada dor, uma carícia te enlace lá de longe.
alegria; sobre cada ofensa, uma carícia de perdão. Adeus!
Abro meus braços ao infinito, e falanges de seres me esten- O bosque responde-me: Paz!
dem seus braços.
“Canta, canta”, falam-me, “cantor do infinito; nós te escu- O Sino dos Mortos
tamos. O teu cântico é a grande lei, é a grande festa da vida. O
teu cântico é luz da qual o ódio e a dor fogem. Canta, canta, Soa melancolicamente um sino ao entardecer. É a voz dos
cantor do infinito”. ciprestes e dos túmulos, um som triste de pranto, um lamento
E eu canto. que se perde ao longe pelas campinas e, entre as folhagens mor-
Meu corpo está cansado, e eu canto; meu corpo sofre, e eu tas, plangentemente morre.
canto; meu corpo morre... e eu canto. O ar repousa. A neve inerte se condensa em gotas de ra-
mo em ramo. Existe neste entardecer uma sensação de gran-
TRÍPTICO (1934) de abatimento na vida, e a terra está estranhamente absorta.
Parece que se recolhe para meditar sob o manto da neve
Novembro sempre igual.
No silêncio imenso, não escuto senão o pulsar do meu pen-
Adeus bosque solitário, que tanto amei. samento, que desce profundamente, de região em região, para
Como é amargo teu hálito nesta tarde, enquanto te olho di- despertar não sei onde, sobre o limiar do mistério.
zendo adeus. Olho dentro da terra, e ela me parece desejosa de oferecer-
O inverno te cinge no seu sono, a voz queixosa da chuva me o amplexo que tantas vezes lhe pedi com os braços estendi-
lenta docemente te adormece. dos, chamando-me para repousar entre os seus torrões.
Repousa entre as névoas o vento; repousa no silêncio a Amei tanto as suas belezas, penetrei tanto em seus segredos,
grande voz da vida; no abandono lento das folhas mortas, re- vivi tanto no misterioso palpitar da sua vida, trocando amores,
pousa a expressão de ser das árvores. como almas amigas.
Triste e doce mês de novembro, em que tudo morre lenta- Uma tristeza comum nos domina e nos aproxima neste en-
mente por cansaço, dá-me o teu repouso. tardecer.
Caminha, caminha minha alma sem parar. Donde vens, para E como tu, oh! terra, te demoras nesta tepidez outonal, qua-
onde vais na eternidade, oh! Alma filha do mistério? Anda, an- se retrocedendo para recordar o verão, e tão afável e melancóli-
da! Quão longe está a meta no infinito! ca és nesta tua recordação, assim também eu me demoro no
Quanta paz, oh! Bosque, neste teu recolhimento em silên- meu outono e, melancólico e afável, volto-me sem mágoa a re-
cio, nesta tua obediência às leis da vida, nesta tua tranquila ex- cordar a vida.
pectativa da ressurreição da primavera. Dá-me o abraço, oh! terra, que tantas vezes pedi para ter
Como este sentido de morte tranquila se harmoniza suave- repouso.
mente em ti, nas cores esmaecidas, nos mínimos sons, nas cal- E parece que a terra me olhou e me escutou, abrindo-me o
mas profundas! seu seio. Entrego-te o meu corpo. O drama da vida está findo.
Qualquer coisa se apagou no sol, no céu, no ar; o frêmito da O que aconteceu ao convulso turbilhão das paixões, às tormen-
vida acalma-se em vagarosa sonolência. Algo se extingue em tosas tempestades do pensamento? Será tudo disperso como fo-
mim com um longuíssimo lamento, uma dor se desalenta, por- lhas ao vento, o tremendo trabalho de uma vida?
que é a dor do mundo, um pranto que é o pranto da vida. Tudo está acabado. Em lenta paz, o corpo se dissolve.
Observo e relembro. Repousa a sua vida, adormecida em longa sonolência.
36 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
E as estações passarão, e a vida se transformará em corpos, QUARTA PARTE – O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO
docemente golpeada através dos torrões, ora de um calafrio de
gelo, ora de igual umidade de chuva, ora de uma tepidez das O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO (1939)
tardes ensolaradas.
Não morrerá, todavia; sentindo-se mudar, cantará nela as A educação é o ato no qual a geração madura se volta sobre
grandes notas de cada sensação. Apertado no amplexo tenaz a geração jovem, que a sucede, para transmitir-lhe todo o fruto
da terra, nela mergulhará vibrando, fundindo-se na sua alma do seu conhecimento e experiência. É através deste ato que se
potente. forma aquela continuidade de pensamento que se prolonga na
Daquela minha vida, que se dá, os seus braços subterrâ- história, num desenvolvimento cujos termos se unem, suceden-
neos sustentarão as grandes árvores amigas, tateando no escu- do-se por contato e derivação. Esta cessão de experiência da ge-
ro para sorver vida; o seu grande espírito pensativo exigirá ração que vai à geração que vem, esta semeadura de uma se-
sob a terra aquilo que da terra o corpo tomou e deve restituir mente espiritual que, ao lado da semente orgânica, revive e pro-
ao ciclo das coisas. lifera, parece natural na unidade imposta pela lei da vida. Os
E surgirá lenta, pelos braços subterrâneos, a força da minha jovens são de fato um espelho em que tudo reflete, pois são
vida, retomada às árvores amigas, para levá-la ao sol, onde re- construídos para serem, nesse período de vida, acima de tudo,
viva lá em cima. intuitivos e receptivos, como esponjas destinadas a absorver.
A morte ressuscita. Eles absorvem e assimilam tudo, prontos a traduzir em termos
Toma. Os meus despojos dou-te sem mágoa. Retoma, ser de vida aquilo que os maduros dão como produto de sua exis-
irmão, tu que não conheces outra vida a não ser esta, aquilo que tência. A educação é, pois, um fenômeno instintivo, universal e
me deste por um dia, para a minha missão. A minha é outra vi- automático de captação, por parte da psique sempre renascente,
da. A minha alma, renascida na dor, desejosa de fugir da crisá- dos produtos da psique que, cansada, se retira da vida. É um fe-
lida, sonha com os espaços imensos de uma vida mais vasta. nômeno que abrange toda a produção espiritual de um povo,
Distante, em outras plagas que tu não conheces, eu aporto. portanto não pode morrer e transmite-se por lei natural. A edu-
O túmulo é a minha ressurreição. cação desejada, sistemática, digamos também artificial, não é
Soa sempre lá em baixo o sino dos mortos, não mais como senão um momento particular e reflexo deste tão vasto fenôme-
lamento que morre entre as folhas mortas. É o hosana da vida no de educação natural, que está na lei da vida e do qual todos,
que ressurge. quer queiram quer não, consciente ou inconscientemente, do-
Já sorriem no alto, para mim, as estrelas na doce e suave centes ou discípulos, tomam parte.
luz matutina. Vejo outro mundo, não mais de formas que vão Sobre o problema da educação, neste sentido restrito e par-
lançadas no turbilhão. Elas seguem como um canto imenso, ticular, ponho em foco hoje o meu pensamento. Um problema
equilibrando-se em ciclos alternados de vida e morte, avan- imenso. Seria necessário que a geração madura fizesse um se-
çando para o bem e para a felicidade; seguem criando, mesmo vero exame de consciência antes de se decidir a transmitir o seu
na dor, uma alegria maior, contida e construída numa única pensamento, que prestasse conta daquilo que sabe e, sobretudo,
força: amor. daquilo que não sabe, antes de voltar-se para as novas vergôn-
teas da vida para soprar-lhes o hálito da própria alma. A luta
Ressurreição universal, que tudo invade, muitas vezes pode se transformar,
antes do que em ato de amor e de dedicação, num ato de impo-
Ressuscita alma, a tua dor está vencida. sição daqueles já instalados na vida sobre os jovens inexperien-
Sorriem distantes as árvores na doce primavera, sorri na sua tes. Querendo primeiro viver toda a sua vida, os maduros não se
liberdade o meu espírito, que ressurge, como a vida ressuscita decidem facilmente a fazer o seu testamento e, mesmo devendo
dos despojos mortos do inverno. fazê-lo, não veem senão um prolongamento da própria vontade,
Morta entre as coisas mortas está a tua dor, lá embaixo, inú- que continua a agir por si própria. A educação se transforma,
til utensílio atirado ao longe, nas plagas desertas de uma triste desta maneira, numa luta na qual a velha geração tenta impri-
vida. Mas o seu fruto está aqui, e a alma o vê: trabalho, criação mir-se sobre as jovens, mesmo nos seus erros e fraquezas, por
e glória. um instinto de conservação própria, reproduzido e continuado,
No infinito, o universo canta: ressuscita, a tua dor está de quem, no fundo, não ama senão a si mesmo. Na educação,
vencida. pode reaparecer o antagonismo entre os que se vão indo e os
Numa nuvem de espíritos em hosanas, eu vejo resplandecer que vêm vindo na disputa pelo espaço na vida, porquanto os ve-
Cristo. lhos não deixam facilmente a presa aos jovens, ávidos de subs-
A sua cruz é luz, a dor é redenção. Pelo calvário, elevamo- tituí-los, expulsando-os. Estes possuem uma personalidade já
nos ao Céu; pela cruz, a Deus. feita de instintos, vontades e desejos, um tipo preexistente à
Ressuscita. Aquela dor inimiga é agora a tua força e a tua educação, um eu independente, que o educador também possui.
grandeza. O espírito a amava como suave amiga, sentindo a Então o ato da educação não é uma pacífica transmissão de ex-
sua libertação. A mesma lei que te oprimia, agora te salva e te periências, mas, sobretudo, uma contenda pela conquista de um
eleva. A meta está atingida, e o mal cai, instrumento do bem; lugar na vida, que os jovens disputam aos velhos.
a pequena desordem temporária é reabsorvida na imensa or- Esta íntima forma do ato educativo é atingida naturalmente
dem suprema. com uma atitude materialista, isto é, quando o homem se reduz
Triste e longo é o caminho de lágrima e sangue; mas, supe- somente aos seus primordiais elementos biológicos, ao seu puro
rada a prova, o destino atinge a meta. substrato animal. Para que aquele ato se eleve, é necessário in-
A dor que tanto amaste com teu olhar voltado ao Cristo não fundir-lhe um hálito novo, de espiritualidade, o elemento ideal,
é negação e treva, mas criação e luz. A cruz não é uma conde- que desloca o baricentro dos interesses e do egoísmo animal pa-
nação da vida, mas é sua maior força; não é punição ou vingan- ra a superior finalidade coletiva, na qual se esquece a vantagem
ça, mas é uma festa da alma e uma bênção de Deus. imediata do eu e prevalecem o elemento amor supersexual e o
Vejo no alto o resplandecer do CRISTO. elemento consciência, que abraçam mais amplos horizontes no
Um raio me atinge, uma beatitude me domina, e em êxtase tempo. O fenômeno educativo, entendido no sentido restrito de
eu grito: “Senhor, agradeço-te por isto que é a maior maravilha que temos falado, sofre então uma transformação evolutiva, na
da vida; que a minha dor seja a tua bênção”. qual se espiritualiza e se aprofunda, gradativamente perdendo
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 37
em coação, em imposição egoísta, em antagonismo de rivalida- tram, em termos instintivos da subconsciência, já saber muito.
de aquilo que conquista em altruísmo, em consciência, em pe- Se neles a palavra é difícil, o olhar é, ao contrário, rico, o gesto
netração psicológica. O ato educativo se transforma assim, e é fervoroso, o eu salta a todo o momento de dentro para absor-
sempre mais, em amplexo da alma, em função coletiva de con- ver tudo pelas vias rápidas e vastas da intuição. Noto a eferves-
servação e construção, em ato de solidariedade entre aqueles cência interior destes espíritos vivacíssimos, ainda presos à cu-
que nascem e aqueles que morrem. O grau de evolução de um riosidade pela vida, para eles nova, e às maravilhas de suas sen-
povo pode, deste modo, revelar-se neste índice educativo, que é sações. Que sínteses imediatas, que rapidez de conclusões,
a forma pela qual se exprime o contato entre varias gerações. A mesmo sendo muito pouco além do curto campo de suas cons-
educação, assim, vai continuamente perdendo em crueldade, ciências, mesmo sendo provisórias, para serem logo depois
em imposição, em rivalidade e contraste, para conquistar com- completadas e corrigidas. Que peso para eles a lenta psicologia
preensão, comunicação, colaboração e unificação. Chegamos analítica adulta, que nada resolve!
assim ao extremo oposto, ou seja, à forma suprema do ato edu- Observo aquele pequeno mar de cabeças e pergunto-me:
cativo, que é a mais completa e espontânea comunhão de espíri- quem são eles? Todos iguais e, no entanto, tão diferentes! Exis-
tos numa unidade de sentimento e de pensamento. tirá, no meio de tão monótono grupo de indivíduos insignifican-
Percorrendo assim a estrada da evolução, o procedimento tes, algum valor de exceção destinado a revelar-se? Muitos não
do educador se espiritualiza, depositando as suas escórias ao se revelam imediatamente, pois algumas sementes desenvol-
longo do caminho do seu progresso. Desse modo, ele conquista vem-se tarde e são, algumas vezes, as mais complexas e as mais
sempre mais amplo direito de educar, o qual lhes está verdadei- repletas de frutos. Frequentemente, os mais brilhantes são su-
ramente reservado somente nas últimas fases. perficiais, os precoces se esgotam. Quais são as leis que presi-
Depois de haver, desta forma, orientado biologicamente o dem ao desenvolvimento da inteligência? Ou nos encontramos
problema dentro da fenomenologia universal, e tê-lo bem ama- diante de um fenômeno tão específico, que cada caso se realiza
durecido na minha mente, quis aplicá-lo, neste sentido, na minha como tipo próprio, com lei particular? É preciso saber penetrar
experiência cotidiana de educador, que, pondo-me em contato também na exceção, intuí-la, farejá-la e achá-la, favorecendo o
com extenso número de jovens, me permite controlar experi- desenvolvimento com todos os meios. Os educadores precisam
mentalmente as teorias e aprofundar este importante lado do saber fazer exceção às regras tradicionais em relação à incom-
problema psicológico que é o ato educativo. O meu precedente preensão da sagacidade do menino.
comportamento sintético se desloca aqui ao extremo oposto, que Observo o problema pedagógico, tão rico de aspectos, colo-
é essencialmente analítico. A visão restringe-se, mas, em com- cando-o diante de mim. Estamos imersos no imenso fenômeno,
pensação, aproxima-se de uma realidade sempre mais concreta. em tal grau, que, mesmo para a ciência, apresenta-se denso de
Na minha atividade pedagógica cotidiana, quis realizar esta mistérios, ou seja, como fenômeno da vida e da vida do espíri-
transformação evolutiva do ato educativo, para conquistar ple- to, que é o lado mais complexo. É aqui que se pode fazer o
namente e substancialmente, na minha consciência, o direito de mais profundo e mais novo, o mais inexplorado e original estu-
educar, elevando o ensino ao nível de missão. Desejei sempre do da personalidade humana. De preciso sabemos muito pouco
esquecer o meu eu, para observar melhor o eu dos jovens, que neste campo. Somente um senso místico individual do espírito,
devemos desenvolver. O meu trabalho, com esta atitude, perdeu digamos assim, pode nos guiar na profundidade misteriosa da
progressivamente qualidades coativas e disciplinares, para con- personalidade. Todavia a unicidade do fenômeno vida e a cen-
quistar qualidade de penetração psicológica. Lutei extenuante- tralidade do seu princípio nos une numa solidariedade de traba-
mente para ser sempre mais o professor e menos o domador. lho que é também a manifestação da compreensão, quer seja-
Posição difícil, trabalho árduo, transformação complexa que, mos dirigentes ou dirigidos.
para mim, não é senão um momento da minha evolução indivi- Observo aquele pequeno mar de cabeças e sinto as vibra-
dual, que é o significado da minha vida. ções íntimas daquelas personalidades, que apenas transparecem
Não importa o que um homem ensina. O professor, entre os da construção física. Viver, viver! Os jovens ainda possuem em
jovens, é sempre um centro de irradiação espiritual. Qualquer si o dinamismo concentrado do germe, do explosivo que deverá
coisa que ele diga é sempre um discurso íntimo e substancial se descarregar lentamente para alimentar todos os esforços da
entre docente e discípulos e atinge a profundeza do eu, que é vida, a fim de transformar a energia em experiência, a força em
um fato anterior à educação, a qual surge como um ato poste- conceito, a quantidade em qualidade. O dinamismo inicial da
rior, que se sobrepõe, quando não se contrapõe, à sua persona- nebulosa cósmica é neles muito mais rico do que em nós adul-
lidade. Esta protege instintivamente a própria integridade, re- tos, mas deverão transformá-lo lentamente em consciência, co-
belando-se a toda imposição. A força e a disciplina não são se- mo nós o fazemos. Este é o significado da trajetória evolutiva
não atos de superfície, de valor prático, um meio de relativo da vida. Vive-se para experimentar em todos os campos. No
valor pedagógico, mas nunca a substância de um ato educati- fim, nada se perde, porque o resultado do nosso trabalho estará
vo. Este é dado pela profundidade de penetração psicológica, o em nós mesmos, porque a essência destilada dos valores, ex-
que é uma coisa difícil. É necessário ter uma grande alma, pos- pressa em nosso modo de ser, não morre.
suir a coragem e a força de abri-la de par a par, ser dotado de O educador deve conhecer estes sutis fenômenos psicológi-
uma potência de irradiação que penetre e, ao mesmo tempo, de cos, deve tê-los já enquadrados numa síntese universal, deve
uma fineza psicológica que saiba guiar aquela potência. Co- ter resolvido os grandes problemas, porque compreendeu o
nheço bem esta dificuldade. O nível evolutivo da personalida- problema da alma, deve perceber toda a teleologia da vida, ca-
de da maioria dos jovens, que não são senão homens em for- so contrário, não saberá o que fazer. Deve saber distinguir na
mação, em geral não é muito alto. O professor deve possuir a massa o timbre de cada personalidade e adaptar-se a ela, por-
força de saber exigir tudo de si mesmo. que, se não souber modular a própria onda psíquica em sinto-
Eis uma classe. São quarenta meninos e meninas dos 13 aos nia com os diversos tipos, não encontrará jamais o meio de pe-
16 anos. Um pequeno mar de cabeças, um pequeno mundo de netração. Trabalho de artista, pois representa uma grande arte
instintos, cargas nervosas, rivalidades, pensamentos e sentimen- esta de modelador de almas. Ele lança a semente. O jovem não
tos. Eles representam a vida. Em suas fisionomias estão impres- dá demonstração, parece não se aperceber, mas guarda em si
sos o cansaço, a fadiga, a força, a fraqueza, a grandeza da estir- todas as impressões, que se desenvolvem depois e são o impul-
pe e tudo que foi anteriormente gravado naquelas almas, que, se so das suas ações. Gravar no espírito é colaborar com a obra
pouco sabem falar em termos reflexos da consciência, demons- divina da criação. O homem não se convence pelo raciocínio.
38 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
A lógica, justamente porque é ato reflexo, pode bem pouco di- perior. Educador e classe, como chefe e povo, representam os
ante das profundas vozes da vida, hereditárias e instintivas, dois extremos dos valores sociais, o máximo e o mínimo. O
que reagem contra os contágios psíquicos bons ou maus. ato educativo consiste em aproximar e fundir estes dois ex-
São forças flexíveis, ávidas por receber e assimilar novos tremos, estes dois polos da vida moral, que são complementa-
impulsos por sugestão, preferindo primeiramente as vozes afins. res, feitos para se unirem.
É esta a íntima técnica psicológica daquele ato que se sinteti- Cada aglomeração de seres humanos se comporta, por fe-
za na frase: “ir ao encontro do povo”. Isto significa: “exemplo”. nômeno de psicologia coletiva, como um ser único, possuindo
Onde existir uma classe dirigente, superior por qualidades uma personalidade diferente daquela dos seres componentes,
intrínsecas, e não só por atributos exteriores, mesmo sendo uma personalidade própria, com muitos olhos observadores,
formada por homens obscuros, que trabalham substancialmen- que sente as consequências daquilo que acontece em cada pon-
te, sem rumores de formas, aquela classe tem o dever heroico to seu. Ela tende a nivelar-se no plano dos menos evoluídos,
de caminhar em direção ao povo. Digo heroico porque é ár- que, mais prepotentes, tentam tomar as diretrizes, porque exis-
duo, principalmente se apenas acabaram de emergir da lama, te na coletividade como que uma tendência ao relaxamento de
pois nos obriga a colocar as mãos naquilo que mais nos enoja, controle e um abandono de responsabilidade. Contudo aquela
e isto para elevar também os outros. Estes são geralmente psicologia coletiva tende também a se fazer arrastar pelo edu-
desprovidos de qualquer senso de compreensão e de gratidão, cador ou pelo chefe, se ele é o mais forte, o melhor e sabe se
acreditando somente no seu arrivismo pessoal. Não é lícito fazer sentir substancialmente como tal. A verdadeira luta ini-
que se faça disso um pretexto de demolição do melhor. Cabe o cia-se então entre ele e os piores. A maioria flutua incerta para
cargo de direção, baseado em normas rígidas de disciplina, a aderir ao vencedor. Estamos ainda numa fase biológica tão
quem sabe mais. A vida é trabalhosa para quem verdadeira- atrasada, que a justiça não se pode fazer valer senão pela força.
mente se dirige ao povo; quem possui o comando tem o dever Culpa dos homens, e não dos chefes. Uma classe, como um
bastante árduo de manter a ordem. Não basta então dizer que povo, compreende primeiramente a força e, somente depois,
a vida é missão. Não basta. É preciso possuir uma fé evidente, em segunda plano, a justiça. O progresso da civilização é dado
lógica, vivida na luz da mente e na paixão do coração, que nos pela mudança das relações entre força e justiça, isto é, por uma
faça lembrar a todo instante que a vida é missão. Somente en- progressiva extinção do primeiro valor e por um proporcional
tão, o trabalho será estável, pois estará equilibrado, o que sig- fortalecimento do segundo.
nifica que a nossa dedicação aqui na Terra será compensada Aquelas unidades psicológicas são sensíveis e podem ser
pelo céu, que sempre irradiará bênçãos, se estivermos aptos a educadas. Se o seu instinto é este, assim é porque foi construído
pedir e formos dignos de receber. desta maneira na longa experiência do passado. Compete ao
Desta maneira, a obra de educação é verdadeiramente um educador enxertar novos estímulos naqueles instintos, para
ato de fraternidade. O educador representa a força do bem, fa- transformá-los em qualidades superiores, que serão os instintos
zendo-se canal para a sua descida desde o divino, mesmo quan- do futuro. É maravilhoso observar com quanta rapidez se
do a involução humana o constringe a adotar formas de coação. transmite a todo o organismo a sensação de um golpe produzi-
A educação é bondade, mas não deve jamais permitir que a ig- do em qualquer ponto. É desta forma que um exemplo dado por
norância dos involutos satisfaça o seu mais forte instinto, que é um único indivíduo atinge os demais.
transformar bondade em fraqueza, a fim de poder subjugar. Cada indivíduo encontra a si mesmo em cada membro da
Nestas condições, a bondade tem o dever de armar-se com as coletividade, sentindo imediatamente, como própria, a sensação
garras afiadas à mostra para a sagrada proteção do bem. A cul- do prêmio ou da punição direta em qualquer dos seus compo-
pa é somente da involução humana, que impõe à educação, para nentes. No entanto, com a transferência da evolução humana de
que esta afirme, os métodos fortes da disciplina, desenvolven- sua fase orgânica para a fase psíquica, chega-se, enfim, a um
do-se, desta maneira, a imensa luta do bem contra o mal. Esta é primeiro grau de aperfeiçoamento nervoso coletivo, que, no
a áspera e dura realidade do esforço pedagógico. Existe para campo pedagógico, indica adoçamento de métodos e aprofun-
cada alma um peso específico inviolável, sempre pronto a ma- damento de penetração psicológica. Então, o ato educativo se
nifestar-se, que escava abismos inacessíveis e distâncias terrí- aperfeiçoa no cuidado dispensado ao indivíduo, a cuja natureza
veis. Quem está por baixo agarra-se desesperadamente, como específica encontra maneira de adaptar-se. Nestas condições,
quem se está afogando, àquilo que está no alto, para arrastá-lo à quando a penetração psicológica se faz mais aguda, a separação
própria baixeza e fazê-lo afogar-se consigo. entre o lastro social e os melhores se torna mais rápida, e a es-
Naquele pequeno mar de cabeças que é uma classe, sinto o tes, então, podemos dedicar um cuidado mais especial, porque a
problema da educação do povo e encontro o mundo nas suas missão do ato educativo não é obstaculizar, favorecendo as zo-
notas fundamentais. Aqueles jovens estão todos ali a pedir for- nas parasitárias, mas secundar os estímulos naturais da seleção,
ça e bondade, sabedoria e paciência e, a todo instante, valor e que agora é, sobretudo, psíquica. O significado e o objetivo da
exemplo. Estão todos curvos, trabalhando como homens, para educação não é nivelar, mas selecionar. É descobrir o melhor e
fazerem-se ao largo na vida. encorajá-lo para utilizá-lo, e não mutilá-lo, reduzindo-o às pro-
Domina uma espécie de instinto para marchar contra a cá- porções do medíocre. O materialismo do último século criou e
tedra, num ímpeto de atingi-la, pisá-la e destruí-la, a fim de elevou como modelo o tipo do homem normal, adaptado a uma
permitir ao eu maior gritar lá de cima. É a eterna história do pequena vida burguesa, calculada, utilitária, sem fé e sem aspi-
homem. Sobre aquele pequeno mar de almas se destacam es- rações. As resistências são grandes, porque este tipo tende a es-
tas notas dominantes da psicologia coletiva como “leitmo- tabilizar-se pela lei do menor esforço. É biologicamente conve-
tiv”, que emergem da confusão dos menores motivos indivi- niente. Entretanto, outras leis biológicas estão de atalaia e pron-
duais. Naquela idade, o instinto de subir é dominante, como é tas para varrer estes acomodamentos parasitários que desejam
também o crescimento físico. A natureza estabelece logo uma parar no caminho da vida, paralisando a seleção. Elas arremes-
graduação de valores entre os jovens, mesmo utilizando crité- sam a força da evolução contra a indolência dos estacionários.
rios elementares, que, segundo as leis primordiais da seleção, Estas forças evolutivas abalam tais equilíbrios cômodos, utilitá-
dão a supremacia ao mais forte por qualquer meio. Se os es- rios, de conveniência, sem amanhã; resolve-os porque objetiva
colares, como um povo, podem representar a explosão das criações sempre mais altas. Devemos voltar-nos ao povo para
forças elementares da natureza, compete ao educador, como elevá-lo em massa, procurando, sobretudo, desentranhar os me-
ao chefe, enxertar naquele campo os estímulos de ordem su- lhores, somente aos quais pode ser confiado o futuro.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 39
A PSICOLOGIA DA ESCOLA – IMPRESSÕES (1933) turma dos escolares é toda concorde e sempre unida. Mostra-
nos que, olhando do outro lado, o nosso conceito pode parecer
Um artigo de Camilo Viglino na “Revista Rosminiana” es- uma utopia. O ponto de partida do rapaz, como toda a sua psi-
timulou-me a expor estas minhas impressões. Elas poderão in- cologia, é completamente diverso. Todos os alunos estão ali
teressar, talvez, porque partem de um homem que ingressou no com um único instinto, o instinto de suas idades: brincar, diver-
magistério no período de sua vida madura e julga com a experi- tir-se sem preocupações, alcançar com o menor esforço possí-
ência das coisas humanas; vê e sente o problema da escola atra- vel os resultados e as notas necessárias às promoções, para dar
vés da psicologia com que está habituado a enfrentar e resolver o assalto à vida. É a lei do menor esforço. Não tendo sofrido,
os mais diversos problemas do pensamento e da vida. ainda não compreenderam, pois só a dor gera a reflexão. A vi-
Por escola entendo aqui a escola média, compreendida não da, como ingenuamente pensam, está no seu irrefreável impulso
como um problema teórico e orgânico, mas como um problema para a alegria. Que lhes importa Cícero ou Shakespeare, gramá-
prático. Trata-se da luta do mestre no diuturno contato com a tica ou álgebra? Abstrações difíceis, belezas e conceitos para os
crua matéria cerebral dos jovens. Ele, fatigosamente, ara os quais as suas almas ainda não estão e talvez nunca estejam
campos virgens da inteligência obstinada para atirar no sulco amadurecidas. Que tristeza, que aborrecimento, que coisas indi-
traçado a semente do saber. gestas e fastidiosas para serem engolidas forçosamente! Enquan-
Os dois termos da equação pedagógica são: professores e to o professor se arrebata por Goethe ou por Ésquilo, o rapaz se
estudantes. Distintos e opostos, com o desígnio de ensino mú- entusiasma pela sua gaiatice, procurando avidamente um mo-
tuo, porque também os jovens podem ensinar muito ao profes- mento de refrigério, no que é tão compreendido pelos colegas de
sor que souber observar, a fim de acumular depois uma preci- sua intimidade! E que peso para o professor dever impor a aten-
osa experiência psicológica e conduzir o resultado na prática ção, falar a quem não o acompanha e que sabe e faz aparentar,
do seu apostolado. por instinto, todos os mais inverossímeis cansaços, a fim de fu-
Entre os dois extremos deveria, sem dúvida, estabelecer-se gir à aula. Que sentimento de rebelião, que energia os jovens
uma reaproximação psicológica, para que vibre a centelha da apresentam para afirmar e impor o seu próprio eu, belo ou bruto,
comunhão espiritual, sem a qual a transferência do saber não é nobre ou baixo, qualquer que o seja! Para nos tornarmos interes-
possível. Eis, porém, como cada um me surgiu na sua diferente santes, necessitamos descer continuamente aos seus níveis, re-
psicologia. duzir o estudo a um jogo, agitado e rumoroso como uma partida
De um lado, o professor. A classe é a sua orquestra, que de futebol, com explosões de sentimentos muitas vezes não ele-
ele dirige e à qual não só transmite o impulso cultural que a vados, suprimindo toda a ideia abstrata. Desta forma, a nobre
faz avançar intelectualmente, mas também infunde, com o curiosidade do saber é uma exceção, a ponto de vir a ser consi-
contato contínuo, com exemplo, com método, a própria per- derada quase patológica naquela idade.
sonalidade, aquela personalidade humana que transparece de Para a compreensão perfeita, seria necessário abaixar to-
tudo e proporciona o seu cunho no ambiente. Na irradiação de das as pontes, encher definitivamente o valado. Deste lado,
sua personalidade às personalidades menores dos alunos, me- porém, não existe apenas a irreflexão juvenil, mas toda uma
nores porque ainda não estão desenvolvidas, porém prontas psicologia diferente da vida, imposta pelo instinto; existe a lu-
para receber, está o mais alto sentido da escola, está de contí- ta pelos pontos, para a promoção, há todo um esgrimir “ad
nuo, com o exemplo, com método, a própria alma, acima de hoc”, toda uma realidade diversa, tão férrea, que submerge
todas as necessidades formais, como esplendem todas as altas todas as outras. O escolar ali se encontra a nos lembrar a cada
coisas que estão acima das aparências do tempo e da vida. momento a sua maneira de agir. É um implacável “do ut
Aquela irradiação tende a qualquer coisa de maior, além da des”8, e este é o melhor caso do jovem dito inteligente. Ele es-
elevação das inteligências a um mais alto grau de erudição. tá ali a nos ensinar que tempo é dinheiro, que a energia psí-
Tende a dar aos espíritos o sentido de uma vida mais completa quica é preciosa, que o melhor é quem chega, de qualquer
e mais profunda, na qual lampeja um ideal, mesmo que seja maneira, primeiro. São as leis da vida, que todo o mundo res-
expresso na sua mais simples forma de exata observância de pira, às quais ninguém sabe se esquivar, nem mesmo, de todo,
dever. Aos olhos do professor, o problema do ensino não pode o idealista. Tudo é luta na vida. Com tal psicologia, o jovem
ser tão-somente a mecânica transmissão do saber, como o de- afronta a escola com os critérios da vida, mostrando-nos elo-
seja nosso século de eruditos e de especialistas, ainda à procu- quentemente que não se trata, na verdade, de uma conversa.
ra da última síntese, mas deve dilatar-se naquele problema Através de quão angustiosas dificuldades devemos exausti-
muito mais vasto da compreensão da vida, compreensão que a vamente preparar a estrada para a luz do pensamento!
síntese cultural não pode dar, que nenhum curso ensina e ne- Concluindo, a minha impressão é que, posto o problema
nhum concurso controla, que não é tanto uma ideia abstrata, nestes termos, conforme se me apresenta, a habilidade do pro-
uma concepção, quanto um sentido de vida vivida, uma ema- fessor – uma verdadeira arte – consiste em saber abaixar sobre
nação que somente um espírito maduro e profundo pode irra- o fosso o maior número possível de pontes, todas em definitivo,
diar, entregando-se totalmente. Abre-se, então, aos olhos do abolindo-o, se possível. Não é, porém, uma arte fácil. Certos es-
professor, a visão de uma tarefa superescolástica: a construção tados de calma e de ordem nas salas de aulas são produtos do
de intelectos e, na transformação da pedra rude em escultura temor, não da compreensão, mantendo as pontes levantadas. O
conceptual e bela, quase a infusão de um hálito da própria al- certo é que, no encontro entre duas tendências opostas, o cho-
ma; a construção de homens, plasmando a personalidade, cri- que é inevitável e a solução é imposta pela disciplina. É a reali-
ando no espírito, com ato superior ao do artista que se expri- dade da vida, que não se pode e não se consegue deixar total-
me na matéria e nela imprime o seu alento humano. mente fora do limiar sagrado do templo das formações espiritu-
Desçamos agora da cátedra e atravessemos o fosso profundo ais, e que nos acompanha e entra conosco mesmo onde não de-
que a separa dos escolares. Fosso profundo sobre o qual se pro- sejamos. Está ali, entretanto, a nossa arte. Saber circunscrever a
jetam pontes, como nas antigas fortalezas. Transponhamo-las e coação, para afastá-la gradativamente, tendendo para a sua eli-
observemos o outro extremo da realidade escolástica: os estu- minação, de modo a não restar senão a ideia, a imagem do
dantes na sua psicologia oposta. constrangimento ao estudo e ao dever. Tornada habitual, depois
Enquanto nós, idealistas do ensino, vagamos no céu da reli- coisa natural e subentendida, que esvoace, todavia, no ar, inva-
gião do espírito, que faz da vida um ato de fé, no campo das be-
8
las construções, filhas da nossa maturidade, a maior ou menor Do ut des – expressão latina: “dou, para que dês”. (N. do T.)
40 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
da a atmosfera local, como um pressuposto que não possui mais mático preposto a uma atividade, às vezes, quase mecânica. En-
a necessidade de concretizar-se em fatos. Então, se não a con- tretanto são os grandes e tremendos problemas da vida e da per-
vicção, ao menos a sugestão de ordem e dever descerá ao espí- sonalidade, imensos na sua substância, exorbitantes do saber
rito do jovem; um novo hálito lhe será fixado para formar o humano, insolúveis pela ciência moderna. Naquelas pequenas
germe de um mais nobre instinto no adulto. E a nossa arte resi- cabeças travessas pulsam as milenárias leis biológicas, exatas,
de em habituar os jovens, simultaneamente, à compreensão e à fatais, absolutas na sua tão vasta elasticidade, entrelaçando-se
comunicação; está em abrir as suas almas à confiança, desper- aos mais árduos problemas de psicologia. A alma das crianças,
tando-lhes o interesse pelo estudo. Nesta arte está a evolução da livre ainda, pela graça de Deus, da consciência reflexa que a
educação, que tende das formas antigas de punições materiais educação proporciona, esconde sob o belo manto da mentira, a
às formas de orientação baseadas na comunhão espiritual. À sua inocência, os seus movimentos e ímpetos; todas as flexões
medida que a sensibilidade se aperfeiçoa, o constrangimento se de seus raros repousos ocultam a efervescência de sua primeira
sutiliza e desaparece, transformando-se no elemento convicção, explosão. Revelam-se-nos, com a rapidez da intuição, todos
que suprime o desperdício de energia. É menos oprimente para aqueles problemas psicológicos, tão evidentes e tangíveis para
o aluno, é mais lucrativo para o ensino. O constrangimento não os olhos que sabem ver profundamente para alcançá-los!
se compatibiliza com o uso do pensamento, que, com sua natu- Como é feita, então, esta alma humana a ser educada? Por
reza livre e espontânea, somente se nutre do contato com outro qual caminho o pensamento a penetra? Quais as reações que a
pensamento livre e espontâneo. despertam, como funciona aquele complexo organismo psíqui-
A revolução no mundo é hoje revolução moral. O conceito co? Surge diante de mim, mesmo nas simples e pequenas coi-
biológico de vida-luta será substituído por este imensamente sas da escola, além de todas as tarefas e dos trabalhos pedagó-
mais alto e potente de vida-missão; o conceito de trabalho- gicos, este formidável problema da personalidade humana, o
vantagem individual será substituído pelo trabalho-função co- problema da sociedade porvindoura, na nova e mais elevada
letiva. O ideal não será mais a palavra abusiva e vazia de ou- ciência do futuro.
trora, mas a suprema verdade e centelha de ação. Será a potên- Psicologia individual e psicologia coletiva, afeto e discipli-
cia que fará do mundo vacilante uma nova civilização. Esta na, diferenças de temperamento e de adaptação, ensino em
ideia introduz na vida dos povos elementos novos e pode ser massa e contato individual, misoneísmo escolástico, sobrevi-
considerada a base de uma nova fase de evolução biológica. vência de critérios superados que, todavia, não podem morrer
Para quem vê com a grandeza da alma as grandes coisas, as no meio de tantos duelos e tantas formas! Tudo se agita neste
coisas imensas do destino e da eternidade, não é exagero ob- conjunto de forças e de correntes, que parecem quase irreais,
servar nisto a explosão de uma força moral de ordem cósmica. porque não são perceptíveis, mas regem tudo e ressurgem em
E, se o ideal deverá entrar na vida, com o ímpeto de uma ava- toda parte, em cada momento, com a potência animadora que
lanche, isto se realizará primeiramente na escola, porque ela é, somente as causas invisíveis parecem poder ter.
por sua natureza e tradição, o núcleo e o canal de irrigação, o Não desejo dizer nada de preciso, não quero conclusões.
templo das mais altas missões espirituais. Desejo nesta conversa agitar somente um pouco estes concei-
tos, na expectativa de que do seu movimento nasça um choque,
A ARTE DE ENSINAR E DE APRENDER (1934) uma reação, qualquer ideia, talvez útil e nova, que conduza a
outras ideias.
Uma boa e despretensiosa conversa. Um retrospecto repou- A psicologia coletiva da classe é sempre muito inferior, co-
sante, numa rara tarde tranquila, sobre coisas observadas por mo acontece em todos os fenômenos dessa espécie, à psicologia
experiência direta, sobre conceitos emanantes desta nossa vida individual. Cai nela, de súbito, o nível de educação de cada um:
de missionários do ensino, conceitos que ressurgem aqui, por um jovem na massa ousa aquilo que jamais faria sozinho, isola-
um momento, naquele aspecto particular em que se apresentam do diante de sua consciência. Esta se abandona na coletividade a
e como eu os sinto. Conversa rápida, feita laconicamente e uma inconsciência ou consciência mais elementar e mais baixa.
com franqueza, toda pessoal, como é do meu feitio, em todas É isto o que o professor tem diante de si na sua cátedra, impon-
as sensações e interpretações da vida. Isto é devido ao meu ins- do-se-lhe sistemas de domador. Vencida e domada, porém, esta
tinto irrequieto, que deseja caminhar a todo custo fora dos ca- menos evoluída alma coletiva, com os meios menos refinados
minhos batidos, numa procura anelante de uma realidade mais que ela exige, o professor poderá, depois, fazer ressaltar, pouco
profunda do que a aparente e, todavia, sempre concreta e ima- a pouco, as superiores personalidades individuais. Aqui se inicia
nente dos fatos vividos. o trabalho de distinção, e sobressaem de súbito os diferentes ti-
Não é verdade que não é tanto em si mesmas que as coisas pos, antes confundidos no conjunto: o tímido, o sensível, o fran-
interessam, mas sim pelas vibrações que despertam em nós? co, o inteligente, o obtuso, o improvisador, o mentiroso. Quan-
Não tanto pelas suas pulsações intrínsecas, mas sim pelas sensa- tos matizes! Encontramos aí a sociedade inteira, porque nestes
ções que fazem brotar em nossas almas? As coisas do mundo, pequenos existe a alma humana, que se arroja na vida com todas
inertes e iguais para todos, estão em seu lugar. Parece que so- as suas ilusões, fraquezas e belezas. O espetáculo merece ser
mente o nosso olhar as anima e que belo seja apenas vê-las, não visto. Quantas diferenças de estilo e de atitudes apresentam os
na sua nua realidade objetiva, mas refletidas no tormento de jovens quando interrogados um a um! Começa, então, nesta se-
nossa alma viva. Neste espelho, parece que se revestem de uma gunda e mais íntima fase do contato psíquico, um trabalho de
beleza nova. A interpretação de quem as sentiu profundamente penetração mais profundo, que conduz o olhar do professor à
nos guia, em face das coisas mais simples e comuns, a uma nova alma de cada jovem. Da soma e fusão destes olhares individuais
interpretação, inesperada, que possui a magia de dar de si uma surgirá depois um olhar mais profundo de conjunto, que abran-
nota que reconhecemos, mas que, todavia, não sabíamos achar. gerá toda a classe. Então, e somente então, o professor conhece
Quantas vezes nas breves pausas – e quem ensina sabe muito e possui de fato, em suas mãos, toda a classe. Somente agora
bem como são breves – transigindo com a áspera tensão nervosa nasce aquela comunhão de espírito a que se pode verdadeira-
de quem se senta à cátedra, ao perpassar os olhos na pequena mente chamar de obra educativa. Esta posse da alma individual
multidão de cabeças irrequietas, parei para pensar, o olhar perdi- do aluno pode ter uma influência sobre a sua vida, iniciando
do ao longe, em tantos problemas com que nos defrontamos e aquele trabalho de compreensão, aquela obra de ascensão, que
agitamos na escola! Eles parecem pequenos, reduzidos como es- deixa vestígios mais profundos do que a pura erudição. Então, à
tão nas fórmulas de um regulamento ou de um conceito esque- fase da luta, que implica no duelo pelo ponto, fazendo o jovem
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 41
mentir e afastar-se do professor, que lhe parece um inimigo, se- complexo entrelaçamento de vibrações são eles a síntese? Seja
gue-se a fase mais alta, na qual a fadiga inútil e o atrito do cho- no colóquio ou na conferência, nos quais a ideia sobe da pala-
que recíproco e contínuo desaparecem, e o aluno se torna um fi- vra à psique, seja no estudo silencioso e solitário, no qual a
lho que trabalha de acordo e com a mesma fé do pai. ideia emerge da leitura, capacitamo-nos, de quais interferências
Agora, o nosso olhar se desvia dos escolares para aquela fi- de onda, de quais captações subconscientes e, em alguns casos,
gura que se move na cátedra, sobre a qual vemos as grandes de quais imersões em correntes psíquicas a nossa mente é sus-
imagens e os símbolos mais venerandos. O que se move naque- ceptível? Será que, seja ensinando ou estudando, atiramos à
la figura: alma, corpo, paixão? Se todos os trabalhos humanos mente um alimento que ela assimila por si, quem o sabe como?
pudessem ser reduzidos ao conceito de puro utilitarismo, é cer- E se o pensamento não é como se suspeita e for, como tenho
to que o trabalho de ensinar e de educar é o mais inadaptado a razões paro crer, uma vibração elétrica em ondas ultracurtas, de
esta redução. Se esta redução, qualquer que seja, puder ser comprimento da ordem de um mícron? A que revoluções, apli-
transformada, por um espírito nobre, em missão, sabendo ver e cações, métodos psíquicos, didáticos e escolásticos, poderia tu-
exaltar o lado moral, nenhuma obra excede em grandeza a esta do isto nos levar! E, se a ciência abrir as portas deste mistério
do educador. Obra superior a toda classificação humana e reco- que é a psique humana, que coisa será o estudo e a escola no
nhecimento exterior. Fixa o peso específico da pessoa moral e ano 2.000 ou 3.000? Fantasias pueris e distantes? Não creio.
coloca-a no seu plano, em sua altura, na qual se equilibra, per- É um fato verificado, para quem possua o hábito da criação
manece, vive e vence espontaneamente. intelectual, que esta não resulta absolutamente das vias da cons-
Eis o verdadeiro espírito da escola, o conceito vivificador ciência normal cotidiana, que nos é tão útil nas necessidades e
que, no meio das áridas noções, faz nascer um ímpeto de co- correlações da vida. Parece que o progresso da racionalidade
nhecimento e de superamento. Eis a vibração profunda que tu- consciente e reflexa esteja como que suspenso, porque, para as
do mantém e vitaliza, sem a qual tudo se torna morto, árido, construções superiores, um mecanismo mais íntimo e complexo
frio, mecânico, insuportável e inútil. Então, a aula, antes fria, se deve ser posto em movimento, confiado a uma parte mais pro-
aquece. Daquela atmosfera feita de muralhas, de cátedra, de funda do nosso eu, onde a consciência e a vontade chegam com
bancos, tão árida e pesada para os jovens, floresce uma espécie luta, ou absolutamente não chegam. Estas coisas não são novís-
de milagre de emoções, que são talvez as únicas de todo o tra- simas e estranhas, mas velhas como o homem. Somente ainda
balho de escola que recordamos com alegria e que restam. Infe- não foram analisadas cientificamente. Há muito que os poetas
liz de quem fizer da cátedra um instrumento mecânico sem al- possuem as suas musas, e os músicos a inspiração. Wagner, no
ma, mesmo sendo perfeita a execução dos regulamentos e das seu diário de vida veneziana, falava de um louco – o seu Tristão:
formas burocráticas. Máquina que funciona somente objetivan- “Aquele louco me surgiu claramente; eu o transcrevi rapidamen-
do manter em pé uma posição e um estipêndio! O ideal, se bem te, como se o conhecesse há muito, de memória”. Perosi diz que
que invisível, imponderável, é uma força tão substancial na vi- o compor é para ele uma necessidade impulsiva de temperamen-
da, que, sem ele, como acontece a todo corpo sem alma, tudo se to. Chopin compunha numa espécie de êxtase. Não são, talvez,
acabrunha e morre. O princípio hedonista do “do ut des”, base os artistas antenas sensibilíssimas, estendidas no infinito, aptas a
do mundo econômico, não pode, em alguns casos, sobretudo registrar vibrações misteriosas? E não são todos assim? Penso
neste, bastar. Em torno desta base da vida social que é a escola, em Mussorgsky, em Rimski-Korsakov, Stravinsky, Ibsen, Dos-
não é suficiente mover-se com a psicologia, ainda que honesta, toievski etc., e não sei por que me vêm à mente justamente nesta
de trabalho, é necessário também uma paixão pelo bem. De ou- hora. É um fato que todas as mentes, sejam de artistas, cientistas
tra maneira, traímos e matamos a alma humana. ou mesmo santos, cada uma em seu campo, todas as vezes que
Esta paixão de superamentos espirituais pode ter outra mani- se projetaram ao alto para arrebatar uma nesga do grande misté-
festação irradiante, além do âmbito educativo da escola, num rio das coisas, verdadeiros tentáculos que a evolução, em anteci-
campo ainda mais vasto, aquele no qual o professor se julgue pação, atira de encontro ao desconhecido, adotaram um meio
parte integrante e construtiva das forças culturais e espirituais da que foge à racionalidade comum, racionalidade que parece coisa
nação. Não é esta missão ainda mais alta? A quem será, portan- pedestre, de uma dimensão inferior, condenada por sua natureza
to, confiado o trabalho das criações do pensamento e das fun- a nunca se elevar acima do plano em que se move, de infinito
ções intelectuais de um povo, senão a esta elite que justamente trabalho de análise, sem esperança de síntese.
se aparta do furor da luta econômica, do comercio e dos negó- A minha audácia reside em considerar que este método, até
cios? Que coisa mais bela do que a figura de um professor mo- agora de exceção, deverá se tornar “normal” por evolução. Não
desto que, terminado o trabalho de educador de jovens, retempe- nos provaram e ensinaram cinquenta anos de materialismo a
ra o seu espírito em missão mais grave de educador de homens? evolução orgânica darwiniana, e milênios de vida das religiões
Repousa nesta atmosfera de conceitos e passa as noites insones, não nos ensinaram a ascensão espiritual? Unamos estes dois
pela alegria de se sentir vivendo, ainda que seja como uma gota, conceitos e teremos uma evolução única, psíquica, como criação
no oceano vivo e construtivo do pensamento da nação em mar- biológica. A linha da evolução se delineia, no começo, por tenta-
cha. Não é talvez a mais nobre alegria humana e a mais evoluída tivas, em casos esporádicos, por acenos embrionários, a princí-
das fases da vida terrestre, esta em que o mais alto centro das pio supernormais, com uma tendência lenta, gradual e tenaz nas
sensações emotivas e vitais é transportado do nível vegetativo e suas exceções às normas. Tratar-se-ia, ao mesmo tempo, de um
passional para o de pensamento e criações conceituais? método de indagação radicalmente novo e diferente daquele que
Desta maneira, a nossa conversa nos leva longe, a outro o precedeu – dedutivo e indutivo – que tanto criou em toda a ci-
problema, o de estudar, de aprender, para depois criar no pen- ência moderna; passar-se-ia ao método intuitivo, que revolucio-
samento. Qual é a técnica misteriosa disto? Aqui, a turba esco- naria o pensamento humano. Fantasias, dir-se-á. Se a ciência de-
lar já desapareceu; o problema é mais íntimo e mais elevado, e seja decisivamente penetrar no íntimo mistério das coisas, é ne-
a mente adulta o observa em si mesma para, depois, tirar dedu- cessário um veículo mais rápido, um instrumento mais agudo,
ções que iluminem também a comunicação do saber, que é o que não seja a razão. Por que deveremos crer que a ciência não
problema escolástico. saiba dar senão produções mecânicas e nada mais? E por que a
No estudo e na aprendizagem, nós nos apegamos às formas inspiração deve limitar-se unicamente às formas artísticas e poé-
mais empíricas. Acreditamos que esta arte consiste em ler, re- ticas? Por que não poderá ela ser uma nova inspiração filosófica,
petir e reter, aplicando este sistema de ensino aos jovens. Mas, matemática, social, moral, científica, não excepcional como até
se consideramos a essência dos fenômenos psíquicos, de que agora, mas normal? Por que esta arte de sentir por via imediata
42 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
não poderá se tornar por evolução o método normal de investi- bastam os meios de registro mecânico, a começar pelas biblio-
gação em todos os campos do saber? Neste psiquismo superior, tecas? Sendo assim, por que perturbar a psique? Isto é tanto
o pensamento é mais potente e nasce espontâneo, sem trabalho e mais verdadeiro, quando parece que, muitas vezes, da ciência
sem fadiga! Que poderá, então, aflorar do mistério das coisas? É que se aprende na escola nada é levado para a vida, depois que
audaciosíssimo, mas não é absurdo, pensar na generalização fu- foi toda despejada pelo estômago cheio do aluno. O estudo de-
tura do método intuitivo, hoje excepcional. veria ser, sobretudo, a arte de orientação no saber, trabalho de
E quem sabe se, dentro de alguns séculos, não estudaremos formação da mente e da consciência, maturação substancial de
e aprenderemos utilizando métodos de sintonização? Ou se a capacidade cultural, e não colagem de noções. Em outros ter-
fadiga dos livros será substituída pela harmonização vibratória mos, deveria ser um exercício destinado à formação do automa-
do ambiente? Já possuímos os receptores de radio e televisão. tismo do pensar; à transformação do ato de pensar, tão exausti-
Sabe-se que a matéria, no fundo, é energia, e que o pensamento vo, incerto e imperfeito nos menos evoluídos como é a maioria
também é energia e se transmite por ondas. Não é absurdo que dos homens-crianças, em ato automático, espontâneo, instinti-
se possa, sondando o mistério do subconsciente, alcançar a vo. Tornar-se-ia ato sem fadiga, cheio de alegria e irresistível
transmissão do pensamento por sintonia. necessidade, como são na sua satisfação todos os instintos, uma
A sua assimilação dar-se-á não com a fadiga do estudo, mas vez verdadeiramente fixados na consciência. Explicam-se assim
por recepção de um transmissor, funcionando como distribuidor certas paixões raras, mas que existiram e existem, da curiosida-
e recompositor do pensamento por via conceptual direta, sem de no saber. Casos em que o pensamento representa uma fun-
forma de língua ou palavra. ção normal, instintiva, uma necessidade vital, não uma exaus-
Este método da intuição, pelo testemunho dos que não podi- tão. Parece, então, que o centro da vida se desloca do nível ve-
am criar senão pela inspiração, teria a enorme vantagem de su- getativo orgânico das paixões para o nível da concepção e do
primir a fadiga. Alguns automatismos do pensamento já são de pensamento. Aí, a personalidade vive espontaneamente, sem
experiência comum e utilizáveis também como método didático. aquele esforço do qual tentam fugir, como diante de um sofri-
Quem não observou que aquilo que se leu e estudou à noite res- mento, todos os dias, com tanta tenacidade, os nossos alunos.
surge facilmente diante da mente pela manhã? Existe, pois, ao A minha palestra me levou longe, ao mundo para onde
que parece, a possibilidade de confiar ao subconsciente uma ta- convergem os campos mais complexos e novos da ciência e
refa a cumprir, independente da vontade, da consciência e, por- que os audazes mais elevados aguardam para investigar, des-
tanto, sem esforço algum. O subconsciente parece ser uma má- cobrir e concluir. São coisas distantes, talvez menos do que se
quina obediente, à qual se pode confiar a execução de uma tare- crê, mas coisas do amanhã. Lá se encontra o futuro do pensa-
fa quando, por um processo auto-sugestivo, lhe tenha sido dada mento humano e também da escola. Entretanto a humanidade
a ordem. Poder-se-ia desta maneira pensar uma ideia e, depois, caminha. A psicotécnica, digo-o sem ironia, talvez não seja
abandoná-la, porque aquela parte do eu que independe da cons- apenas uma palavra nova, como frequentemente se usa na ci-
ciência continua a desenvolvê-la sem fadiga, amadurece-a sem ência, para denominar velhas noções. São estas expressões ne-
atenção, desenvolve-a e, mais tarde, a leva completa e amadure- cessárias e naturais, pois que os movimentos psíquicos, em to-
cida à consciência. Isto não é absurdo, porque, sem dúvida, o eu dos os campos, são transformações biológicas. Estes são os fa-
é muito mais vasto do que a consciência, e grande parte dele tos. E é uma realidade que este movimento mundial tomou
existe e age além dela. Há, fora do poder desta, um grande re- pulso e arrasta o pensamento do mundo com uma força e uma
servatório de saber, que não aflora senão em casos especiais; um velocidade sem precedente na história.
armazém onde as impressões se elaboram, quem sabe por que
processo! Não são todas as nossas funções orgânicas como a QUINTA PARTE – PROBLEMAS ATUAIS
respiração, pulsações cardíacas, movimentos peristálticos e ou-
tros, confiados ao subconsciente, isto é, a uma consciência que A HORA DE NAPOLEAO (1939)
não chamarei inferior, mas pré-formada, na qual estes funcio-
namentos já estão definitivamente fixados por automatismos? Um recente volume, Vida de Napoleão, escrita por ele
Poderíamos levar isto ainda mais adiante. Admitamos que a mesmo, tradução italiana da edição inglesa de Murray, de 1817,
consciência, enquanto for vontade e fadiga para formação de convida-me a colocar mais exatamente em foco o meu pensa-
automatismo, não seja consciência e que a tendência da sua mento sobre este grande homem e seu destino, que é também o
evolução, assim como o resultado do seu funcionamento, con- destino de um povo e de uma revolução. Isto encerra, em sínte-
sistam num estado de estabilização em que todos os produtos se, os acontecimentos de um continente, de um período históri-
conquistados no trabalho concluído se fixam por automatismo, co, de uma ideia social nova e tão vasta, que ainda caminha.
transformando-se de tarefa a executar, de obstáculo a superar e Deixo aos historiadores os pormenores dos fatos, que não
de meta a conquistar, em qualidade adquirida, ideia inata e ins- valeriam a pena repetir. Agrada-me, entretanto, investigar por
tinto inerente à personalidade e nela indestrutível. A que dedu- trás deles, a fim de descobrir o fio sutil com o qual o destino
ções, seja no campo do estudo individual, seja no do ensino, entretece a vida dos homens e dos povos. Napoleão foi um ho-
pode conduzir o conceito desta fixação, por assimilação no mem de exceção, por isso, nele, o destino foi constrangido a fa-
subconsciente, de todas as experiências, noções e impressões da lar com mais evidência. Cada vida possui uma lei, mas em tais
vida; o conceito deste processo de estratificação da personali- vidas, especialíssimas, fala a história.
dade, em contínuo desenvolvimento e crescimento por dilata- Não me interessa a pesquisa de estudiosos de coisas napo-
ção da consciência; desta absorção na própria psique, como leônicas, se o livro é de seu punho ou obra de intérpretes. O
parte de si mesma e de forma indelével, de tudo o que a alcan- sabor napoleônico, naquele estilo robusto, nervoso, concreto,
ça! Se a ciência soubesse encontrar a via para lançar as impres- existe, e isto me basta para sentir-lhe, através da palavra, a fi-
sões no subconsciente, assim como encontrou os meios para gura e o pensamento. Naquele estilo, vibra a vontade e a deci-
penetrar na estrutura atômica, não poderia também, da mesma são, palpita a potência do homem habituado à ação e à vitória.
forma como, na desintegração do átomo, alcançou a energia em Por este motivo, li o volume de um fôlego, e, apenas concluí-
abundância, realizar o aprendizado sem fadiga? do, eis que nasce em mim este escrito. Poucos livros sabem
Poder-se-ia deduzir outra observação: que o estudo não de- excitar em mim tais reações, e poucos tenho encontrado assim
veria ser somente um processo todo exterior de aquisição de densos de vida e de conceitos.
noções. Para acumular noções de fatos, a pura erudição, não ◘◘◘
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 43
Li nas profundezas da vida grande e trágica deste homem Delineiam-se aqui os dois momentos da vida de Napo-
os ensinamentos da história! A moleza do reinado enfraqueci- leão: aquele em que executa a sua missão e está de pleno
do de Luís XV, filho degenerado do Rei Sol, perde até a sua acordo com as exigências da história, e aquele no qual ocorre
última justificação de graça na bondade débil e míope do pobre o reverso. Há lógica na troca de posição da vida de um ho-
Luís XVI, vítima da força. A tempestade de sangue se desen- mem e no desenvolvimento de um fenômeno social. Não se
cadeia, e, do terreno ainda vermelho, nasce uma epopeia heroi- pode discordar de que, enquanto Napoleão sintetizou o esfor-
ca e trágica, para a qual é chamado como protagonista um des- ço de um povo para fixar uma ideia no mundo, as forças da
conhecido e humilde corso. vida não o abandonaram. A ideia revolucionária voava com
Ele é feito para a guerra, e o destino, que parece sabê-lo, as águias contra os velhos sistemas decadentes da Idade Mé-
constrange-o a fazê-la e vencê-la. Com a revolução às costas, é dia. Napoleão resume em si o duelo imenso que se travava
colocado em situação de não mais poder retroceder. Desta ma- entre a França e o mundo civil de então. Não havia na reali-
neira, envolve-se de forças que se somam às forças dos aconte- dade senão uma luta universal de ideias, uma tentativa de ex-
cimentos, cujo desejo é valorizar a sua indiscutível autoridade pansão, como verificamos ainda hoje, em proporções maio-
no meio de uma sociedade que renova a sua construção, as suas res. A coligação da Europa e a França representavam dois
condições e os seus quadros. O corpo social que nasce da revo- princípios em luta. “Napoleão devia completar a revolução,
lução muda a sua estrutura; abaladas as velhas organizações, há dando-lhe característica legal, a fim de torná-la reconhecida e
um esforço de reestruturação em procura de novas e estáveis legitimada pelo direito público da Europa”. Enquanto bata-
posições num terreno livre, exigindo homens novos. Sobre o lhou pela aceitação de princípios novos e elevados, o destino
vazio gerado pela revolução quanto a cabeças coroadas, a histó- lhe foi favorável. É que os chefes, conforme acredito, não são
ria podia escrever: procura-se um chefe. Aguardava-se, todavia, apenas servidores e artífices da evolução, o que já seria gran-
que um chefe se revelasse. Em oportunidades mais naturais do dioso, mas, sobretudo, instrumentos momentâneos e ativos
dinamismo social, se as posições fossem bem protegidas, e não do pensamento de Deus. De acordo com o mesmo princípio,
desmanteladas por revoluções, a história não teria a iniciativa a história afasta os seus grandes homens quando não servem
de chamar à valorização efetiva as qualidades desse homem, mais aos seus fins. Inutiliza-os quando eles não querem ou
fossem elas as mais extraordinárias. Se o terreno não estivesse não podem mais servi-la. Ai, portanto, daquele que atraiçoa a
livre e a história não se encontrasse em expectativa, as leis da sua própria missão, pois se verá abandonado pelas mesmas
vida não concederiam excelsas valorizações ao indivíduo, nem forças que o elevaram à posição de comando.
aos puros objetivos de afirmação pessoal. ◘◘◘
Sem exagerar em sentido algum, creio que, no duelo entre o Aqui se inicia a segunda fase da vida de Napoleão. A força
homem e a história, reina, mais do que a guerra, uma suprema e na qual ele havia acreditado, por motivos muito profundos, o
divina harmonia que os coloca tempestivamente lado a lado pa- abandonou. A sua vontade movimentara outros impulsos em seu
ra maior rendimento de ambos. A lei universal do menor esfor- destino, que, como qualquer outro, não era fatal e inelutável,
ço está presente também no campo social. mas consequência de um feixe de forças sensível ao nosso dese-
No fundo da ferocidade que havia manchado de sangue o jo. Ele havia confundido a sua própria pessoa com a sua missão
e a ideia da revolução. O triunfo aparente da força pareceu-lhe a
primeiro surto de uma ideia nova, havia alguma coisa de verda-
substância, a finalidade do poder, quando era apenas um recurso
deiro, de justo e de potente. Havia o sentimento de renovação, a
precário. Cansada pelo esforço da revolução, a França desejava
explosão primaveril dos renascentes impulsos biológicos, que
refazer-se sob a proteção da sua espada, no entanto, após tanta
investiam com decisão e diretamente contra a decrépita forma
guerra, demasiada guerra – a guerra pela guerra – acabou por se
do velho regime, agora vazio de sua potência substancial e so-
esgotar. Exaurida a sua função de expandir a ideia, o instinto dos
brecarregado de incômodas superestruturas seculares.
povos negou-lhe cooperação. A semente atirada não exigia, para
Evidentemente, a revolução francesa continha princípios. Se
germinar, tão abundante sacrifício de sangue.
estes, no início, se manifestaram sob a forma mais baixa, isto
Cristo, que venceu e vence sem a força, em maiores propor-
era porque o objetivo da destruição estava confiado àquele pe-
ções, deve ter sido, com certeza, um enigma para Napoleão.
ríodo primordial. Superada a fase necessária da limpeza do ter-
Existe, portanto, uma lei mais geral, segundo a qual um princí-
reno, pôde Napoleão começar a construir. pio de vida sabe encontrar todos os meios para afirmar-se, quan-
No fundo, não se trata senão de uma longa e lenta revolu- do deve fazê-lo, porque se encontra na estrada da evolução.
ção secular, pela qual a organização social se aperfeiçoa conti- Em dado momento, apresentou-se-lhe ao destino uma em-
nuamente, ascendendo à justiça, levando, com princípios de presa temerária. Ele, todavia, escolhera a lei da força, que não
igualdade sempre mais amplos, para um número sempre maior admite acomodações com os planos da Lei. A força, com a
de cidadãos, o direito à vida coletiva. Os incidentes de então, mesma natureza inexorável e desapiedada, agiu contra o pró-
as violências e as incompreensões passam, mas o princípio prio Napoleão. Por isto, revivendo o seu caso com maior expe-
permanece. Resta aquele movimento ascensional lento e cons- riência, nos tempos modernos, sente-se, por instinto, que o espí-
tante, embora acidentado, das camadas inferiores sociais, que rito, tanto quanto a força, é elemento necessário de afirmação e
sobem, demonstrando conter a mais fecunda reserva de vida, e de solidez, em todos os empreendimentos humanos.
esta, assim, aflora à superfície da história, sempre renovada
nestas obscuras sementeiras. O PROBLEMA AGRÁRIO (1939)
◘◘◘
A história, impregnada das criações graciosas do século Ao iniciar esta série de artigos, eu me propus abordar pon-
XVIII, experimentava um período de guerra e de poderio, exi- tos mais vitais do problema social de hoje. Portanto não se es-
gindo de um Napoleão a força e a vontade para disciplinar a tranhe que me ocupe também da agricultura, pelo menos em
nova ordem, que ameaçava naufragar na rivalidade entre as na- linhas gerais, uma vez que ela coopera na intensificação do
ções, primeira e natural consequência do sistema representativo nosso amor à terra.
em um povo não antecipadamente preparado. A vida produz em Para quem chegou, por caminhos próprios, àquela unidade
Napoleão a sua nota de força necessária para a sinfonia dos de concepção sintética, que falta à ciência moderna, é fácil a
seus desenvolvimentos, utilizando-a no momento oportuno, a passagem do problema médico-sanitário, de que falei em arti-
fim de completar o seu concerto com as demais. gos precedentes, ao problema agrário, uma vez que ambos se
44 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
apoiam na mesma base biológica e derivam da mesma raiz, que organismos, que é o húmus, até às plantas, que vegetam, aos
penetra nas camadas profundas da vida. animais, que se nutrem, e ao homem que vive da terra. Hoje se
O problema técnico agrário é, antes de tudo, um problema busca transformar em problema aritmético terrenos, plantas,
de orientação geral, sem o que, a experimentação não possui animais e homens. Hoje, desejamos considerar a terra como uma
princípio nem guia. Também neste campo, surpreendemos o equação química de elementos nutritivos, isto é, terreno subnu-
materialismo, que chamarei de doença psicológica do século, trido mais adubos é igual a terreno mais produtivo. Concepção
nas suas últimas consequências e prosseguimos na mesma simplista, unilateralidade de visão econômica, negligência de
campanha em prol da obra de ressurreição, desejada sempre no muitos fatores para que a equação corresponda à realidade. Da
campo especifico de cada problema particular. Por este motivo, mesma forma para a pecuária. Uma vaca não é mecanismo para
cada um destes artigos soa como um toque de alarme, para que transformação de forragem em leite e carne. Com esse critério,
eles sejam escutados e compreendidos. Sabemos que a orienta- os organismos animais são forçados à produção intensiva, sob a
ção materialista do último século, cujas últimas consequências pressão de um regime alimentar intensivo. A natureza suporta
práticas em todos os campos ainda vivemos, pode constituir, pouco o trabalho excessivo. Sobrecarregada, qual máquina, de-
conforme se observa, um perigo para a saúde humana e repre- sorganiza-se, e o animal “inexplicavelmente” se enfraquece e se
sentar também um atentado para a fecundidade da terra. torna estéril. A terra perde a sua capacidade produtiva; os ani-
Quando a concepção unilateral do materialismo chegou ao mais nascem mal e doentes, organicamente tarados: partos difí-
terreno das realizações (a passagem é fatal e rápida) e, com o ceis, tuberculose, aborto epizoótico9, esterilidade. O critério
seu simplismo mecânico experimental, ignorante dos aspectos econômico nos fez esquecer o supremo equilíbrio da natureza,
mais profundos dos problemas, invadiu o campo biológico, não as leis profundas que fixam os limites de cada existência. A ex-
podia, na sua pretensão de impor-se às leis da vida, senão pro- ploração indevida de uma função somente se pode obter com o
vocar uma reação, porque elas são invioláveis. preço da depressão de outra função. O animal não é máquina de
Assim como, nas construções, é necessário conhecer a resis- produção e de renda. Por mais agnóstico que se queira ser, não
tência dos materiais, a fim de não os submeter a um esforço su- se pode violar as imprescritíveis finalidades da vida.
perior às suas resistências especificas, também no terreno bio- Se o erro econômico grava todo o negócio agrário, o erro
lógico, o material vivo possui um campo de flexibilidade e re- mecânico e o erro químico gravam, sobretudo, a terra. A má-
sistência, o qual permite suportar apenas momentaneamente um quina, usada para a superprodução e para a obtenção de um
determinado trabalho, estabelecendo um valor-limite além do custo menor, proporcionou, como veremos, uma vantagem
qual a elasticidade biológica não se mantém. Ultrapassados es- momentânea pela adubação química. Nada se rouba da nature-
tes limites naturais, o ser, seja homem, animal, ou vegetal, ado- za, apenas se antecipa o usufruto mais rápido das reservas natu-
ece e a terra, que é viva também, torna-se estéril e depauperada, rais. Os resultados da industrialização e da mecanização da
como um verdadeiro doente. agricultura levaram a uma ilusão de lucros, altos a princípio,
Este é o resultado do choque de uma diretiva errada com as depois estáticos e, finalmente, decrescentes, a ponto de impor o
leis da vida. Trata-se de uma psicologia de violências, que pre- uso progressivamente maior de adubos químicos e um trabalho
tende impor-se e forçar os princípios do funcionamento orgâni- sempre mais intenso. Delineia-se, assim, uma nova fase negati-
co do nosso mundo. Se estes sistemas forem mantidos por lon- va da lei que regula os lucros, exigindo um esforço e uma des-
go tempo, perguntamos à ciência, quais serão os resultados em pesa cada vez maiores, para vencer a tendência da terra a pro-
todos os terrenos onde o homem encontra a vida? Os problemas duzir cada vez menos. Aumentam as doenças das plantas, dimi-
da saúde, como da fertilidade, são problemas lentos, vastos, he- nuindo, como nos animais superprotegidos, as resistências or-
reditários, que abraçam várias gerações. gânicas. Repete-se aqui a mesma consequência da excessiva
Entremos particularmente no âmbito agrário. Neste campo, proteção bacteriológica usada pelo homem.
aquelas premissas psicológicas instauraram um regime de pre- Encontramo-nos diante dos últimos resultados das premis-
potência por parte do homem e de esforço por parte do subju- sas materialistas, unilaterais e ignorantes dos sábios equilíbrios
gado mundo orgânico. Este regime, que deu lugar, a princípio, da vida. O método da agricultura científica, técnica e mecânica,
a uma superprodução, não deixa agora, como resíduo do seu depois de ter oferecido um resultado imediato e efêmero, alcan-
supertrabalho, senão uma subprodução, filha do depaupera- çou um limite além do qual o rendimento se detém, e a nature-
mento. Expliquemo-nos. za, mais providencial do que o homem, nega-se a trabalhos for-
A orientação científica da agricultura incorreu em três er- çados. Este fenômeno se revelou, com evidência, na adubação
ros, que são três perigos; o erro econômico, o erro mecânico e química destruidora das bactérias necessárias à vitalidade do
o erro químico. terreno. Não propomos que ela deva ser abolida, mas usada
A industrialização agrária trabalha fazendo prevalecer os cri- com o necessário bom senso, para que se evitem graves danos.
térios econômicos. O proprietário rural já é um contador que Cedo a palavra às vozes autorizadas. Que não me acusem tam-
calcula a sua renda e deve fazê-lo, instigado por várias causas bém de visão unilateral. Ehrenfried Pfeiffer escreve no seu livro
estranhas à agricultura, tais como o risco na colocação da produ- A Fertilidade da Terra: “É notável o efeito imediato da aduba-
ção, a concorrência dos mercados mundiais, as oscilações de ção química sobre o crescimento das plantas, aumento de pro-
cambio, a dependência em relação aos países estrangeiros para dutos, arbustos túrgidos, particularmente quando se empregam
obter as matérias primas necessárias à indústria de adubos, etc. adubos artificiais azotados. Tais resultados tornam os adubos
Estas pressões vêm violar o equilíbrio dos fenômenos naturais. químicos preferidos pelos agricultores. Abarrotando os merca-
Esquece-se de que, nestes negócios, o processo econômico não dos consumidores, a ciência afirma que, com tal prática, se ba-
se pode isolar, porque se intromete no processo vital, que é fun- lanceiam os elementos deficientes. Entretanto duas conclusões
damental. Se o ignorarmos, se o violentarmos, destruiremos vão se impondo com frequência aos práticos que vivem e traba-
também o resultado econômico. O material é vivo, impondo por lham em contato com a terra: uma é que, para manter a produ-
este motivo exigências que a industrialização agrária tende a ig- ção no mesmo nível, é necessário aumentar de ano para ano a
norar e a descuidar, arcando com as consequências. Trata-se de quantidade de adubos químicos, e a outra é que a estrutura do
fenômenos vitais, trabalha-se com organismos, e todo o solo é terreno se transforma no sentido já mencionado do endure-
um organismo que possui vida. Nesta existe alguma coisa de cimento e da incrustação. Por que motivo as nossas escolas de
imponderável, que foge a toda orientação materialista, alguma
coisa que é de origem espiritual. Um trabalho agrícola depende 9
Epizootia: Doença, contagiosa ou não, que ataca numerosos animais
de fenômenos biológicos que vão da unidade coletiva de micro- ao mesmo tempo e no mesmo lugar.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 45
agricultura e as nossas estações experimentais se calam diante dendo recusar ofertas. Não se lhe aplique um sistema mecânico
deste fenômeno, observado pela maior parte dos práticos? Fala- de química orgânica. Quando fornecemos o adubo artificial, a
se tanto do incremento da produção, mas muito pouco da alte- planta o prova e percebe que ele pertence a um ciclo de vida di-
ração do terreno. Não possuirão as estações experimentais, para verso do seu; sente a distância que o separa de si e a falta de afi-
as pesquisas comparativas, áreas de terras em condições que nidade; recusa-o porque se acha impossibilitada de admitir sem
permitam o estudo de tais transformações?”. prejuízo, no círculo do seu recâmbio, aquilo que, por atávica ex-
Para quem só admite uma verdade quando sabe que ela é periência, lhe é estranho. Somente o adubo natural, por ser vivo,
sustentada por nomes autorizados, citarei Tallarico, Suessen- bacteriológica e quimicamente afim, e por estar no mesmo plano
guth, Niklewsky, Ienny Hans, Fippin, Elmer O, Dreidax, Berle- orgânico, pode ajudar e ser assimilado. Em outros termos, poucos
se, Bartsch etc. Com eles, esboça-se uma visão mais exata do são os pontos de contato entre o mundo orgânico e o inorgânico
uso dos meios químicos no campo da agricultura. para que o primeiro possa sempre abrir as portas ao segundo, a
Os seus perigos são mais três: 1) Aumento não proporcional fim de aceitá-lo no seu metabolismo. A terra, desta maneira, as-
de renda em relação ao custo do adubo. 2) Esterilização do ter- simila e digere bem somente os produtos orgânicos; e, se nós não
reno. 3) Perigo para a saúde dos animais e dos homens que se a nutrimos com um alimento sadio e apropriado, ela adoecerá, e,
nutrem daqueles produtos. com ela, tudo quanto nasce dela ou dela dependa.
Eis o que diz Chimelli a este respeito: “As regiões de nova Chega às minhas mãos, quando estou para terminar, um
conquista compreendem geralmente os terrenos ricos de húmus opúsculo de Gnecco, de Gênova: Exposição de um sistema ra-
acumulados há séculos pela vegetação espontânea. Se o húmus cional, prático e econômico para aumentar a fertilidade do so-
não for reintegrado com suficientes adubos orgânicos e com pro- lo, onde se comentam os resultados já experimentalmente obti-
cessos de formação natural, ele será destruído em período mais dos com o sistema da “Vegetina”, com uma orientação muito
ou menos longo, e então sucedem, inevitavelmente, os fenôme- semelhante à nossa.
nos observados por todos os agricultores que tenham trabalhado Problemas delicados, problemas novos. O estudo profundo
com adubos químicos, isto é, a mudança da estrutura normal para destas questões devia levar-nos a uma visão global da vida, sem
o excessivo endurecimento do terreno, a formação de crostas na deixarmos de parte o limitado campo técnico. A visão sintética e
superfície, o aparecimento de manchas estéreis nos campos, a de- unitária não podia deixar de nos guiar a este renovamento de vi-
ficiência de capilaridade e, por consequência, a diminuição de são e de conceitos diretivos, que não permitem mais a insistên-
disponibilidade hídrica e a regressão da fertilidade etc.”. cia numa técnica agrária exclusivamente química, mas impõe-se
“Com os nossos métodos de cultivo intensivo”, acrescenta acrescentar àquela técnica processos biológicos e dinâmicos,
Pfeiffer, “particularmente com o uso abundante de exclusiva próprios da terra. É necessário, também neste campo, superar a
adubação química, criamos condições tais, que as propriedades matéria e recordar que a agricultura se apoia no fenômeno vida,
físico-químicas do terreno predominam e as atividades orgâni- contendo em si algo de espiritual, justamente como parte res-
co-biológicas caem em depressão. A mineralização da terra, ponsável e diretora. A agricultura implica também o senso de
além de ocasionar o desaparecimento das minhocas, acarreta a amor e de intuição clínica que se exige do médico. Torna-se in-
formação de uma crosta na superfície durante o período de se- dispensável aquele espírito de colaboração, que é fundamental
ca. Este fenômeno deveria ser considerado pelo agricultor como na natureza, perfeita em sua maravilhosa harmonia. Pode pare-
sinal de “tempestade”, denunciada pelo barômetro do seu terre- cer estranho, mas o fator espiritual é tão vasto e íntimo em todas
no. Uma vez arruinada, a reconstrução da saúde de um terreno é as coisas, que não se pode menosprezá-lo sem prejuízo, nem
um trabalho lento e laborioso”. mesmo no que se refere ao problema da produção, tido e havido
Referindo-se à saúde dos animais e dos homens, assim se como fenômeno exclusivamente econômico, industrial e mecâ-
exprime o célebre fisiologista Abderhalden: “Com muita fre- nico. Em que pese aos utilitaristas, outra orientação deve agir
quência e em lugares diversos, determinadas doenças dos ani- qual novo impulso, até nos pormenores dos problemas técnicos.
mais e dos homens foram atribuídas ao método de adubação Este princípio concebe a sociedade humana como totalidade or-
das plantas alimentícias. Não se pode ainda afirmar com segu- gânica e não pode deixar de encarar a natureza senão como tota-
rança, mas é admissível que importantes substâncias sejam ela- lidade harmônica. Alcançamos deste modo uma interpretação
boradas pelas bactérias do terreno; devemos refletir bastante se social mais exata da solidariedade de todas as formas da vida.
é certo destruir a vida e a atividade sutil dos micro-organismos, Amemos a terra conjuntamente com a nossa pátria e a nossa
introduzindo azoto sob a forma de nitrato de potássio, cálcio, família; amemos a terra, viva como nós e como nós criatura que
ácido fosfórico, que perturbam e impedem o desenvolvimento adoece e se cansa. Saibamos conservar-lhe a saúde física para
dos organismos vivos e provocam dificuldades futuras”. as futuras gerações. Ela é mãe de todas as coisas, sobre ela se
Assim diz, enfim, o Dr. V. Ratto, em Saneamento Médico: reveza o ciclo da vida e da morte. No seu ventre prolífico, no
“Os casos sempre mais frequentes de trombose, câncer, arteri- seu húmus, que é campo da morte, renasce a vida vegetal, ani-
osclerose e diabetes, fazem suspeitar (aos médicos dotados de mal, e renasce também a nossa vida. Esta terra não é somente
respeito à biologia em geral – vegetal, animal e humana) que a um composto químico, mas um organismo vivo, rejuvenescido
causa desta série não totalmente nova, mas de peso crescente de pelas irradiações cósmicas que a atingem, pelos micro-
doenças humanas, esteja ligada aos métodos de cultivo adota- organismos que a purificam, pelos vermes que a fecundam, por
dos, isto é, depende da íntima qualidade minimamente e imper- todo o trabalho vegetal e animal que lhe povoa as entranhas e a
ceptivelmente venenosa dos alimentos dos animais e do homem superfície. A terra é útero que recebe, protege, fecunda e resti-
e dos remédios usados contra os parasitos”. tui. Depositária da vida, conservadora dos germes, princípio fe-
Problemas delicados, problemas novos. É necessário, para minil de defesa, de espera e de reprodução, eletricamente nega-
compreender a agricultura, um senso religioso da natureza, da tiva, armazenadora de vibrações cósmicas, expande-se ao ritmo
qual ela faz parte; senti-la na sua realidade palpitante em relação das irradiações solares, passiva somente para melhor agir no si-
a todo o cosmo. Como coisa viva que é, torna-se absurdo reduzi- lencioso trabalho interior; a terra contém toda a potência recons-
la, nas abstrações de gabinete, ao artifício da experimentação ab- trutiva do amor, que perenemente regenera, preenchendo os va-
surda, divorciando-a da harmonia universal. A planta possui vida, zios da morte. Sobre o dorso desta criatura irmã, que não é má-
sensibilidade, vontade individual, instintos que não se podem quina, soerguem-se todos os fenômenos sociais. Retribuirá o
contrariar. A terra é uma unidade vital coletiva com estas mes- nosso amor dando-nos o fruto do seu seio. Porém, se a maltra-
mas qualidades e, como tudo, age, reage, escolhe, defende-se e tarmos, violentando-a, ela se fechará em si mesma, tristemente,
possui uma consciência íntima das coisas que lhe pertencem, po- e negar-nos-á os seus favores, porque, sem amor, não há criação.
46 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
O PROBLEMA RELIGIOSO (1939) organização humana. A necessidade de se impor aos homens pe-
la coação da lógica, de normas e de sanções, partindo do exteri-
or, foi certamente uma dura necessidade histórica. Não se culpa
No equilíbrio da vida existem dois aspectos que, por serem a ninguém se a vida ainda rudimentar do homem exige seme-
complementares, se integram reciprocamente; originam-se de lhantes processos. Com certeza, hoje, se lamenta muito o indife-
dois extremos, que delimitam o âmbito dentro do qual oscila o rentismo que é, na realidade, a ausência do fator espiritual.
movimento da vida: espírito e matéria. Eles apresentam-se como A experiência interior de muitos e a minha própria experi-
poder espiritual e poder temporal, como Igreja e Estado. Obser- ência mística ensinam que não se pode – perdoem-me a frase –
vamos, em todos os agrupamentos humanos, a existência da ca- encontrar Deus somente porque o procuramos; o trabalho e a
sa de Deus e da casa do chefe, a catedral e o paço municipal. responsabilidade da pesquisa da verdade estão no tormento
Numa civilização equilibrada, a dissonância da luta entre os próprio, na maturação própria, na luz que se deve buscar com a
dois princípios deve ser evitada, alcançando-se a harmonia. O alma inteira, e não se realizam senão através da luta e da dor,
Estado é o princípio viril, volitivo, que afirma; possui a função que nos elevam além do plano das ilusões dos sentidos. Materi-
concreta da ação, da organização e da guerra. A Igreja é o prin- alizamos, antropomorficamente, a Divindade quando procura-
cípio materno, afetivo, de conservação, de sacrifício; possui a mos alcançá-la pelas vias da razão e fora de nós mesmos, no
função intuitiva da fé, do esforço espiritual, de lutas e conquis- plano sensório, ao invés de buscá-la pelas vias da intuição, den-
tas interiores. Assim como a Igreja, numa civilização completa, tro de nós, no plano intuitivo. Caminho por certo mais cômodo
não pode viver na Terra sem o consentimento do Estado, este
é aquele, porque foge ao burilamento da alma, mas somente es-
não deve viver sem a direção espiritual de uma Igreja.
te pode guiar o espírito para Deus.
A religião que rege a civilização europeia, há dois milênios,
Vemos, com frequência, que se dá maior importância à dis-
é o cristianismo. E, como a civilização europeia pode ser consi-
cussão do que à fé, aos conceitos que devem habitar a nossa
derada a alma do mundo, seria absurdo não reconhecer a força
mente do que aos ímpetos que devem explodir em nosso cora-
daquela instituição.
ção. Preferimos a via da erudição, mais cômoda, mais esplêndi-
Entretanto o cristianismo se dividiu, por sua vez, em dois
da e mais vã, à via do sacrifício, mais áspera, silenciosa, porém
aspectos, embora complementares. Aparentemente, é uma divi-
mais produtiva. Desta maneira obtemos uma luz esplendente e
são de almas; mas, substancialmente, apenas uma divisão de
fria; ora, sem calor, não se constroem almas. O momento atual
trabalho, uma especialização por atitudes diversas, uma separa-
tem mais necessidade de homens de paixão, que saibam sofrer,
ção tendente a reconstruir a unidade.
do que de intelectuais que saibam pensar, porque nos falta não o
A Igreja latina, talvez mesmo pela função pedagógica que
esforço cerebral, mas o esforço moral. Acima do pensamento es-
lhe foi atribuída, assumiu prevalentemente a forma de orga-
tá o espírito, acima da razão está a fé. Se, no último século, a
nismo concreto de homens e normas, teologicamente raciona-
onda materialista, que a igreja também experimentou, conduziu-
lizante e mundanamente legisladora. A anglo-germânica, ao
nos a uma racionalização da religião, a onda atual, incipiente,
contrário, aprofundou preponderantemente o lado interior, pes-
levar-nos-á à espiritualização. É preciso saber viver ambos os
soal, intuitivo.
momentos, que são complementares. A simples racionalização
É inútil discutir a realidade. Os povos possuem hábitos di-
versos e, de acordo com estes, preenchem as suas funções, es- disseca todos os sentimentos e promove a discussão, que é sestro
colhendo cada um as mais adaptadas ao próprio temperamento. de antagonismo e de afirmação, não ideal de amor e de abnega-
A Europa subdividiu assim a sua tarefa religiosa, lançando-a ção. Por este motivo, alguns espíritos verdadeiramente angélicos
desta forma ao mundo. Os latinos aprenderam da verdade o as- esquivaram-se a priori da via do saber, mesmo teológico.
pecto transcendente, o conceito, a racionalidade, a objetividade, O espírito completa assim o seu contínuo trabalho, varian-
colocando-se, deste modo, em condições de continuar e desen- do as suas atitudes. “Et multum laboravi quaerens Te extra me,
volver o pensamento dos grandes filósofos gregos, assimilando et Tu habitas in me”10 (Santo Agostinho). Não é este talvez o
os produtos do pensamento individual e coletivo. Os anglo- aspecto mais sublime e mais intenso que teve o cristianismo
saxões extraíram da verdade o aspecto imanente, o senso íntimo nas suas origens? E por que não desejar que o cristianismo la-
da Divindade, a intuição, o subjetivismo. É evidentemente uni- tino se aproveite da cisão anglo-saxônica, nascida precisamen-
lateral o insulamento na atitude exclusiva da transcendência ou te de um excesso de transcendentalismo, completando-se com
da imanência. As leis da vida nos mostram contínuos exemplos o retorno ao imanentismo inicial? Reentrar em si para Deus;
desta complementariedade. Atravessam fases de contrastes para intuição, “intus itio”11. “Est Deus superior summo, interior in-
alcançar a unidade, uma unidade múltipla, complexa, mas com- timo meo”12 (Santo Agostinho).
pleta. Estes dois princípios são de fato necessários: tanto o ab- Isto não é acusação, mas voto de nova ascensão – da letra
soluto, do conceito, como o infinito, da inspiração. É necessário que mata ao espírito que vivifica – para que o cristianismo
que se compensem, pois, isoladamente, ou chegarão a um ex- possa cumprir plenamente a sua divina missão. Existe uma
tremo no materialismo religioso ou ao extremo oposto, no livre- multidão de almas honestas, ardentes e sinceras, que sentem o
exame anarquizante. Dois perigos igualmente graves. peso e a ameaça do polvo materialista e de sua filosofia apa-
Ameaças sutis, mas certamente não atingem a grande mas- rente, simulada através da ciência destruidora de princípios e
sa, que não gosta de pensar, que cede a própria responsabilida- com os tentáculos do ateísmo. Tais almas estão prontas a so-
de e tudo executa mecanicamente, com o menor esforço. No frer, numa unidade de fé, para que o espírito ressurja, uma vez
entanto, problemas graves para os espíritos profundos, que pen- que ele, em todos os sentidos, é a única força que rege e que
sam. Se o imanentismo encerra o perigo da dispersão, o trans- pode salvar a nossa civilização.
cendentalismo conserva o perigo da cristalização. A racionali-
10
zação da verdade pode matar a vitalidade espiritual interior. A “Muito me esforcei procurando-Te fora de mim, e, no entanto, é den-
definição de normas concretas se arrisca a expulsar a atividade tro de mim que Tu vives”. (N. do T.)
11
Intuição, “intus itio”. Do latim “intuitio” (Caldas Aulete). De “intus”
religiosa e a perder o senso íntimo e profundo da Divindade;
(adv.): interiormente, no interior. (Saraiva Dicionário); e “itio” (itio,
acarreta a diminuição do esforço moral, que é o único itinerário onis, de “ire”): ação de ir, passos (Idem; ibidem). Assim, pois, intui-
do espírito que deseja chegar a Deus. ção: ação de ir para o interior, para dentro de si mesmo. (N. do T.)
Este é o grave perigo que pesa sobre o cristianismo latino: 12
“Exteriormente, Deus está nas supremas alturas, mas, interiormente,
ausência de espiritualidade, como consequência da solidez da está também no meu coração”. (N. do T.)
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 47
Trata-se de salvar e de criar a verdadeira civilização. Há ne- tributários. Desconhece, por conseguinte, a desolação desses
cessidade de homens novos, decididos e convictos, que operem estados contra a natureza, as misérias que se verificam nas me-
com métodos espirituais, pois é necessário viver na substância trópoles europeias, asiáticas e americanas. Na América do
do cristianismo. Isto não se pode realizar acusando os outros, Norte, de todas as cidades da Itália se faria uma imensa e
mas ofertando-nos. Portanto menos trabalho para adaptar o monstruosa metrópole, de sete ou oito milhões de habitantes,
Evangelho às nossas comodidades cotidianas, refugiando-nos perfeita em todos os seus serviços centrípetos e centrífugos,
atrás das justificações artificiosas e das argumentações de inte- com monstruosidades de todos os gêneros – do arranha-céu ao
lectualidade raciocinante, brilhantes e eruditas escapatórias à lei subterrâneo – isto é, perfeitamente infernal para a vida, dei-
simples e sublime. Oferta real de renúncia e dedicação, por xando o resto do país desabitado.
amor ao próximo; tensão interior, luta sem trégua, de conceito e A questão, devido à intervenção de eventuais acidentes his-
de obra, para a preparação na Terra do Reino dos Céus. Isto es- tóricos, é menos grave entre nós. O problema demográfico pôde
tá longe do método retórico e das exterioridades, que não pene- topograficamente resolver-se segundo a natureza, não deixan-
tram nas almas. Não se trata de discursar ou de aparentar. Le- do, todavia, de existir. Nos estados novíssimos de além Atlânti-
vemos, diariamente estampado em nossa alma, o ideal cristão, co, a máquina agiu mais profunda e rapidamente, violentando a
sem transigências. Releva personificar e testemunhar o sacrifí- natureza e armando amplas ciladas à vida do homem da civili-
cio como cristão, mesmo na presença das incompreensões e das zação precedente, ainda não preparado para resistir.
condenações. Cumpre saber trabalhar sem ajuda, sem reconhe- Nestes ambientes de produção intensíssima, onde a vida e a
cimento e sem apoio. Urge sofrer pelo bem e servir, mesmo a máquina assumiram um ritmo de febre, sem silêncio e sem des-
quem nos condene. Substitua-se a palavra e a forma pela pró- canso, a saúde da raça se sujeita aos mais graves atentados, não
pria alma e a própria dor. Oferte-se, diante do espetáculo vazio obstante os melhoramentos higiênicos. Verificado que a ten-
da piedade exterior, a sinceridade e a piedade da alma. À religi- dência da concentração demográfica parece uma característica
osidade rumorosa é preciso contrapor o sacrifício, o Evangelho de nossos tempos, pergunto-me a que dimensões atingirão tais
vivido, que edifica e penetra, sem rumor, sublimando cada ato hipertrofias e qual a entidade ameaçadora para a saúde da raça.
da vida. Vamos começar por nós mesmos, a fim de barrar real- Se é fácil, por simples ato de multiplicação, fantasiar a respeito
mente as injunções humanas, cômodas, burguesas e utilitárias. das maravilhas mecânicas das grandes cidades do futuro, é
Estamos excessivamente habituados às convenções de um também fácil, pelo mesmo processo, imaginar quanto poderão
Evangelho transigente, a uma forma de fé segundo a qual nos elas tornarem infernais as condições de vida de seus habitantes.
iludimos de poder alcançar o Céu sem demasiado sacrifício. A Cabe, em nosso país, à sensibilidade da política dirigente, pres-
religião deve consistir numa realização completa, incidindo sentir e afastar todos os perigos.
nos costumes, e não numa série de práticas exteriores que em Observemos com olhos ainda desacostumados de tais espe-
nada modificam os atos e a vida. Não acuso, choro, porque é táculos. Pode acontecer que o bom senso, a voz da natureza,
triste, porque se vai contra Cristo quando se faz da cruz uma voz da saúde moral e física, contrariem a opinião da vantagem
espada para agredir o próximo e da virtude um pretexto de imediata e do aparente bem-estar.
economia de amor fraterno. Dirijo-me, sobretudo, aos homens De fato, a grande cidade, parecendo reunir todos os aper-
de boa vontade e com a finalidade do bem. O inimigo é aguer- feiçoamentos (geralmente não é senão imundície, pelo menos
rido e trabalha com armas de ferro. Não se pode responder em algumas zonas), atrai hoje irresistivelmente a massa aluci-
com armas de papelão. A Idade Média era feroz na Terra, mas nada, que se precipita atrás da miragem, em busca do melhor.
julgava conhecer o Céu, buscando-o em lances frenéticos de É muito discutível que a perda da intimidade com a natureza
paixão. Hoje, nós dormimos; somos utilitários porque o mate- seja compensada pelos artifícios criados pelo homem. A gran-
rialismo nos penetrou. Não nos restou senão um Céu pintado de cidade parece feita para se ver, não para se habitar. Inúme-
com esplendores dourados e voos retóricos de anjos. Enfim, é ras coisas, íntegras e gratuitas no estado natural, são, entretan-
preciso superar esta fé sorridente, cômoda, dourada do século to, mais ou menos adulteradas e custosas nos grandes centros,
XVIII. Precisamos do desprendimento, se queremos sobrevi- onde tudo se monopoliza e se industrializa. Mesmo o que foi
ver amanhã. A hora é dura e intensa. Sigamos o exemplo de dado com fartura e generosidade pela natureza não chega na
Cristo, no caminho da cruz.
cidade senão como artefato adulterado, distribuído com o fim
de lucro e de negócio. Não se sabe se o provinciano que vai à
URBANISMO E RAÇA (1939) cidade para tornar-se menos rude, fazendo holocausto do pa-
trimônio de sua alma virgem e da sua saúde intacta, seja com-
Regressando à minha pátria de eleição, a pequena Gubbio – pensado pela economia conquistada e pela indiferença de espí-
cidade do silêncio – depois de visitar cidades rumorosas, pro- rito adquirida no turbilhão citadino.
pus-me analisar a sensação viva e contrastante de duas tão di- “Nas grandes cidades das infinitas gaiolas de concreto ar-
versas formas de existência. O homem do século XX escolheu mado de muitos andares”, diz o Dr. Enrico Gilardoni numa ex-
um modo de viver artificial e distante das leis sadias da nature- posição sobre o problema demográfico, publicada na revista A
za, como o é o caso das megalópoles. Força, de dezembro de 1935, “o ar é corrompido pelos mias-
O urbanismo é problema de saúde ou doença, de sanidade mas dos carburantes, pelo pó dos veículos e das fábricas, pelos
de espírito e de raça. É, portanto, um problema fundamental; vapores dos termossifões e das máquinas, donde uma ameaça
um dos aspectos do problema da raça e da sua defesa. Falar so- contínua para as vias respiratórias, sobretudo para os seus deli-
bre ele significa versar o problema da educação das massas. cadíssimos cílios vibráteis, que, conquanto deveriam constituir
O urbanismo possui a virtude de nos mostrar, como num a nossa maior defesa pulmonar contra a tuberculose, acham-se
campo de cultura intensiva entre tantas pragas modernas, os já enfraquecidos nas suas preciosas funções da acidose ou da
males que o homem criou com a civilização. hiperalcalose de origem saprofitária e alimentar. Nas grandes
Vive-se ali contra a natureza, em mastodônticos reagrupa- metrópoles, o barulho aturde incessantemente, os perigos sur-
mentos de massas humanas. Afortunadamente a nossa Itália, gem em toda a parte; por isso não são mais possíveis a medita-
devido a complexos equilíbrios históricos, não produziu e não ção e o recolhimento do espírito. Trabalha-se e vive-se quase
sofre de tais tumores sociais, destas hipertrofias demográficas, mais com a luz elétrica do que com a luz solar. Trabalha-se e
monopólios que vivem à custa das áreas restantes, reduzidos e vive-se em completo isolamento do magnetismo terrestre. Não
48 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
falo, por brevidade, dos problemas alimentares, todos por resol- da força. Não basta a máquina do dinheiro, que é procurado por
ver, tanto a alimentação moderna se deformou na oficina indus- todos e utilizado somente para se comprar a mesma mentira que
trial e, depois, na cozinha particular, tudo à base de caixas, de se quis vender. O dinheiro circula; que percentagem de polui-
empacotamentos, de fermentos, de açúcares, de condimentos, de ção circula com ele? Será tal quantia a medida da civilização e
excitantes, de pasteurizações, de esterilizantes, de frigoríficos, da felicidade de um povo?
agravada, enfim, pelo alcoolismo do vinho, da cerveja e dos li- A produção e o consumo direto nos meios menores elimi-
cores, além do alcaloidismo do café, do chá, do cacau, dos aperi- nam os intermediários, os desfrutadores, as adulterações co-
tivos, do fumo e das infalíveis gotas reconstituintes. Alcoolismo merciais dos alimentos, protegendo e simplificando a vida com
e alcaloidismo a que nem mesmo as mulheres fogem... Não me um saneamento automático de todas estas pragas.
refiro aos cosméticos idiotas; aos perfumes asfixiantes, às apa- Além da reconstituição da saúde moral, o contato com as
rências hipócritas, aos disfarces piedosos de tudo quanto é simu- forças e as leis da natureza opera a reconstituição da saúde físi-
lação nas pessoas e às roupas absurdas. Devo, todavia, mostrar ca. A nossa vida, não mais cercada pelas feras e pela espada, é
os enormes danos da difusão entre o povo dos remédios sensibi- hoje cercada pelas substâncias tóxicas da indústria alimentar e
lizantes como as fenacetinas, os calmantes, as aspirinas e simila- por todos os outros artifícios da civilização.
res, já ao alcance de todos, a fim de fugir vilmente à dor, ou seja, Parece que a civilização do urbanismo deseja realizar uma
ao santo grito de advertência e de revolta da natureza, menos- seleção às avessas, destruindo com os seus sistemas protetores
prezada, e ao necessário meio de expiação e de purificação que a os poderes defensivos, com os quais a natureza arma o orga-
natureza exige para nos curar. Devo, outrossim, acentuar os de- nismo para lutar e vencer sozinho. Desta maneira, o homem se
letérios efeitos daquelas antinaturais terapias à base de produtos enfraquecerá e acabará por ter que viver numa campânula de
opoterápicos13, de soros e de vacinas, que presunçosamente a vidro. “Os débeis”, diz Carrel no seu livro O Homem, Esse
Escola de Medicina Oficial vai sempre incrementando por via Desconhecido: “são conservados, assim como os fortes, e a se-
oral, hipodérmica, endovenosa e, até, endorraquidiano”. leção natural não serve mais. Ninguém poderá prever qual será
Somente quem está ainda imune do contagio psíquico e o futuro de uma raça assim protegida pelas defesas médicas”.
continua a viver, por convicção, afastado dos grandes centros, Prefiro, como treinamento físico, o frio natural, suportado com
ao chegar a uma metrópole, qualquer que seja, sente o absurdo resistência e com paciência, o frio que Deus nos manda em
do seu sistema de vida. O novato precisa de forte trabalho de harmonia com as leis da vida. Prefiro a fadiga física, que nos
adaptação para poder suportar e depois avaliar esta substitui- ensina a lição da necessidade.
ção do natural pelo artificial, do substancial pelo fictício, do Com o tempo, as reservas válidas da raça encontrar-se-ão
necessário pelo supérfluo. É indispensável certa dose de adap- somente nos campos, onde a pobreza adestra-se na resistência,
tação para renunciar às grandes riquezas da vida, como o sol, o tempera-se nas dificuldades, onde o organismo não está viciado
espaço, a paz, gratuitamente distribuídos a todos como elemen- e inutilizado para a defesa por proteção artificial e complica-
tos de vida, a fim de ir disputá-los depois, numa luta em que o ções antivitais. Nas grandes cidades, tudo coopera para a perda
homem quase se destrói. da grande riqueza: a vida simples, aquela riqueza superior e
Os elementos fundamentais de saúde física são também inalienável que consiste em saber viver desde pequeno por nos-
bons desinfetantes morais; o sol e o espaço afastam o contágio sa própria conta. A grande cidade exalta os valores fictícios,
psíquico e reforçam o ambiente familiar, harmonizando todas especialmente os prejudiciais, raramente os úteis. Surge assim
as expressões da natureza. Ao entrar num destes pátios, para os grande miséria nas altas classes sociais, as mais atingidas pelos
quais se abrem inúmeras janelas de residências populares mo- males do bem-estar. Miséria orgânica e miséria moral.
dernas, não pude deixar de sentir uma sensação de opressão. A ciência moderna praticou o crime de destruir, na doença e
Graças a esta moderníssima caixa, apertam-se como sardinhas na dor, a esplendida compensação moral em que a natureza se
em lata inúmeras famílias, de modo que a forma física e moral reequilibra, pagando-se dos danos na contabilidade divina, que
de cada uma é modelada por contato e por pressão sobre a for- tudo salva quando tudo parece perdido. O materialismo fez da
ma física e moral da outra, o que me lembra os amontoados saúde uma conquista mecânica, observando-lhe somente o lado
cristalinos nos quais o eu de cada indivíduo, cristal, se perde no físico. As consequências de tal rumo agnóstico, que mutila o fe-
amalgama coletivo da rocha. Humanidade em filões, estratifi- nômeno nas suas interdependências, são pagas com as nossas
cada por peso especifico de valor econômico. Estratificação de tribulações. A saúde é um equilíbrio entre forças antagônicas as-
carne e de coisas, de dores e de alegrias, misturados e estra- sistidas pelo fator moral, do qual o materialismo prescinde. É
nhos, amontoados amorfos, organismos sem alma. piedoso o contraste desta realidade com a medicina, que deseja
O dinamismo físico das multidões vibra pelas ruas. Ordem se impor à natureza, forçando o organismo, esquecendo que não
exterior, canalização de rodas e de passos. Interiormente, o ca- se pode vencer senão respeitando as leis da vida. Estas fazem da
os. A grande máquina e a sua carga – o homem – vivem em re- saúde um fenômeno hereditário, preparado diariamente, de gera-
gime de recíproca necessidade, vinculados entre si como dois ção em geração, com a nossa ética alimentar e o regime costu-
calcetas14. Em certas multidões, dominam a cor e o odor psíqui- meiro, onde o fator espiritual e moral possui peso decisivo.
co das fossas. A miséria moral é imensa, triste e piedosa. Sub- Pode compreender tudo isto a nossa humanidade embriaga-
merso e sufocado nesta atmosfera, eu me perguntava com sen- da de velocidade e toda presa à mania aerodinâmica? O urba-
timento de angústia, o que se poderá fazer com esses restos de nismo é cópia febril desta psicologia.
civilização para reabilitar o homem, proporcionando-lhe espa- Desarticulemos a grande cidade que é a praga do nosso sé-
ço, luz, saúde do corpo e do espírito. culo. Salvemo-nos de todas as suas aberrações. A sociedade
Somente a posse de tais riquezas pode extinguir a obcecante atual não possui sequer o senso dos seus perigos. Existe uma
alucinação pelo ouro. Uma fé nos renovará e nos salvará. Mas a única crise verdadeira: a crise da consciência. Existe apenas um
quem podemos pedi-la? Uma fé sem a grandeza do amor não é peso imenso que grava o mundo: a nossa ignorância. Temos
senão respeito fingido pelo temor do dano e pela inferioridade apenas uma coisa a fazer: libertarmo-nos urgentemente, porque
os povos também morrem por falta de consciência.
13
Opoterapia: Tratamento de doença mediante o uso de extratos de Se olho para o alto, buscando uma força auxiliar que já te-
órgãos animais. nha iniciado esta obra e possa dar garantias de continuá-la no
14
Calceta: argola de ferro fixada no tornozelo do prisioneiro, ligada à campo da ideia e da ação, não vejo senão a sabedoria providen-
cintura dele, ou ao pé de outro prisioneiro, por uma corrente de ferro. cial e salvadora de uma lei: a lei divina da vida.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 49
A EVOLUÇÃO E A DELINQUÊNCIA (1939) ses e impede a expansão das leis naturais. A mesma insaciabili-
dade humana que faz com que o homem aspire latentemente a
Os mesmos atos que, para o homem civilizado, entram no ser o dono do mundo e a mulher a ser a rainha de todos os amo-
campo da delinquência, eram, na fase de vida do homem primi- res, impele a planta e o animal que desejariam, se não fosse a
tivo, atos normais, lícitos, segundo as leis da natureza. Roubar e limitação dos obstáculos, cobrir com a sua espécie toda a super-
matar ainda são para os selvagens a espontânea expressão das fície da Terra. As mulheres e os homens são os próprios vigias
leis fundamentais da luta pela vida e da seleção do mais forte. das expansões das outras mulheres e dos outros homens; daí
O valor do indivíduo, naquele plano da evolução, somava-se no nasce a virtude, que, no fundo, não é senão o ciúme da própria
teor de capacidade para o mal. O inepto – o menos mau – era expansão. As funções de ordem pública são confiadas ao ins-
inexoravelmente repudiado. A natureza, que procura alcançar, tinto e nascem deste primeiro controle de polícia natural. A re-
contínua e impiedosamente, as posições ocupadas pelos valores ação do interesse de todos sobre o indivíduo completa os seus
intrínsecos, não sabia se exprimir, naquela fase involuída, numa instintos. Se, primeiramente, ele compreendeu que o dinheiro é
forma de justiça mais completa. útil e em seguida procurou obtê-lo de qualquer modo, apren-
Numa sociedade primitiva, o indivíduo não existe senão pa- deu, depois, através das sanções sociais, que o dinheiro não é
ra si mesmo. A unidade, a consciência, a função coletiva são verdadeiramente útil, se for roubado. Semelhantemente se dis-
elementos que ainda não apareceram e não se desenvolveram ciplina o instinto do amor, que aprende, sujeito à fiscalização
no germe da vida. As correlações sociais encontram-se no esta- coletiva, a não se satisfazer senão para proliferar. Assim, o
do caótico; as sementes da convivência se chocam sem piedade campo social contém em si mesmo os elementos da sua vida,
na sua fase primordial, antes de encontrar a via da coordenação. da degeneração, da correção e da evolução.
As células individuais não sabem ainda organizar os seus mo- É vão tentar a compreensão e a solução de tais problemas
vimentos e funções em relação à finalidade superindividual, por simples construções ideológicas e por sistematizações filo-
que encerra vantagens e realizações mais altas. sóficas. A expressão exata das questões sociais e, sobretudo, do
Existe, todavia, um grande impulso interior na vida, uma es- fenômeno da delinquência não se pode obter senão cavando até
pécie de vontade e de sabedoria latente que fazem pressão de às raízes biológicas, colocando-nos em relação com a fenome-
dentro para fora, a fim de atingir com mais evidência o campo nologia universal, para a qual é necessário orientar o próprio
das manifestações. Deste mistério, em cujas profundezas reside pensamento. É naquela profundidade biológica que encontra-
Deus, emerge a evolução, incessantemente acossadora e eterna- mos a realidade do conceito diretivo dos fenômenos; não nas
mente construtora de formas de vida sempre mais altas. Deste destilações cerebrais dos eruditos distantes da vida. Somente
modo, a primeira e mais feroz expressão da lei de justiça, regida poderemos compreender a substância dos fatos se os observar-
por equilíbrios rudes e violentos, se adelgaça e se aperfeiçoa. A mos em função desta força evolutiva íntima, que transforma
natureza retoca e completa o impulso primordial da seleção e continuamente a natureza. A evolução animal, antes exclusiva-
eleva a sua lei a um plano mais elevado, pois que a tendência ob- mente orgânica, propensa a construção de formas físicas, en-
jetivamente verificada, no fenômeno da evolução, é a da passa- contra-se no homem atualmente na fase complementar, afeita à
gem de um estado de desordem para um estado de ordem. O pro- construção de formas psíquicas. Neste campo, estamos ainda no
cesso da civilização, que se encontra no âmbito daquele fenôme- período paleontológico, de explosões passionais violentas de
no, consiste na harmonização e na organização; tende à transfor- construções ideológicas monstruosas. Ao defrontar-se com a
mação do caos originário num organismo coletivo. O homem al- disciplina deste novo mundo do espírito, nos seus atuais esbo-
cança a percepção do fenômeno da delinquência somente quando ços iniciais de civilização, o homem se encontra oscilando entre
se congrega em sociedade e concebe o interesse coletivo; nasce duas leis, a da animalidade e a da super-humanidade, duas fa-
então a função social da circunscrição dos atos lesivos à ordem ses, numa posição de transição em que aquelas duas formas de
pública. Não é mais lícita ao indivíduo a ignorância do interesse vida disputam o campo. A delinquência pertence à primeira fa-
de seu semelhante. A ordem pública regula-se por uma consciên- se, involuída, da incompreensão e da ferocidade, que atavica-
cia nova, antes ignorada, porque ainda não nascida; na consciên- mente retorna e sobrevive em desacordo estridente com o am-
cia coletiva, todos os indivíduos se encontram a si mesmos, fisca- biente atual, que luta pela sua destruição.
lizando-se mutuamente. A medida de civilização é dada pelo Unicamente este conceito de transição e de oscilação entre
grau de transformação dos impulsos caóticos primordiais, que in- as duas fases diversas nos explica o contraste, a luta e o fenô-
tegra o indivíduo e suas funções no organismo social, aperfeiço- meno da delinquência. Somente este conceito nos esclarece a
ando-se a forma de luta como elemento da seleção. evolução de formas que tendem a um aperfeiçoamento até que
As suas raízes são de ordem biológica. A natureza quer al- se extinguem. Explica-nos como o mesmo ato homicida, que é
cançar os seus fins supremos: a conservação do indivíduo e da punido como supremamente antissocial quando explode no âm-
raça. Se encontrar obstáculos no seu caminho, procurará de- bito interno de uma sociedade, é, ao invés, considerado heroico
sembaraçar-se deles com violência. Se lhe faltar o necessário e merecedor de prêmio quando surge na defesa de uma socie-
para atingir estes fins, ela procurará obtê-lo com qualquer meio. dade contra outro grupo social. Isto demonstra o quanto é ab-
O trabalho é dividido entre o macho e a fêmea, em duas formas surdo invocar neste campo os princípios abstratos de justiça e
inversas e complementares. O primeiro é feito para a luta, en- como a punição penal corresponde, sobretudo, a um princípio
carrega-se do mister da reprodução e da conservação, pelos de defesa e de interesse coletivo.
quais se arrisca e morre, se necessário; a segunda é feita para a Esta é a primeira base jurídica, isto é, a primeira legitima-
maternidade, soma em si as finalidades da reprodução e da con- ção da ação do direito penal, pois que a natureza impõe, para
servação, por estas também arrisca a vida e morre. Ambos pos- realizar os seus objetivos superiores, certos deveres à vida: a
suem o seu heroísmo inverso e complementar. defesa desta e de tudo quanto lhe pertence. As ideologias são
Estes dois sustentáculos da vida, quando degeneram, tor- neste campo superconstruções a posteriori. Não se discute a
nam-se fatores da delinquência. Quem passa por cima da lei e necessidade de defesa. Unicamente esta base possui a solidez
deseja alcançar a satisfação pela fraude e pelos atalhos mais concreta das razões biológicas. Isto legitima a defesa e trans-
cômodos, é criminoso na sociedade hodierna. Viola-se a lei da forma-a gradativamente em direito.
justiça quando o macho se esquiva ao trabalho e quando a fê- O código penal do indivíduo isolado, no estado primitivo,
mea se furta ao dever da maternidade. Algumas vezes, tal cri- está nos seus braços. Ele se defende como pode, o melhor que
minalidade nasce da injustiça social que oprime algumas clas- pode contra todos. O código penal de uma sociedade evoluída é
50 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
um sistema de normas em que aquela defesa é disciplinada em ficação ética. A evolução comum realiza a obra da pacificação
virtude da finalidade que promove o interesse individual a uma e da civilização interna. Somente dentro desse conceito, a mis-
necessidade mais vasta e mais complexa. são ética e primordial do direito encontra a sua plena justifica-
O conceito da evolução da criminalidade se complica e se ção. O jus15 que não assume as funções de um ascensor para as
completa com o conceito da evolução do direito penal. Falo mais altas formas de vida individual e coletiva e permanece no
sempre em evolução, porque é de das raízes biológicas que os campo utilitário, mesmo sendo socialmente útil, não pode cha-
fenômenos sociais recebem a seiva de que se nutrem; é preciso mar-se legítimo diante das leis da vida. Perante estas a justifi-
vê-los como são, isto é, não como conceitos estáticos, imóveis, cação nasce das necessidades da evolução. Deste modo, o direi-
de categorias fixas, mas como um dinamismo, um transfor- to penal ascende da reação individual vingativa à função coleti-
mismo perene, dinâmico, como um contínuo turbilhonar. Por- va de proteção preventiva, até atingir a função universal ética e
tanto não mais podemos dissociar a evolução da criminalidade educativa. Torna-se menos reivindicatório, mais eficiente prote-
da evolução do seu antídoto social. Ataque e defesa, em técni- tor de ordem e legítimo impulso evolutivo. É sempre menos
ca bélica, relacionam-se mutuamente e evoluem juntos. A cri- força, arbítrio, violência; mais justiça, ordem, pacificação. De-
minalidade varia no tempo e no espaço, como todos os fenô- para-se-nos, assim, a progressiva elevação do direito penal ao
menos sociais; varia com a evolução da psique humana que campo ético, a posse sempre mais ampla de valores morais e a
participa da evolução biológica. Um impulso primordial e co- ascensional harmonização do mundo social.
mum, que faz tudo avançar, até a ciência e as religiões, modi- A primitiva justiça, grosseira no seu direito de defesa, evol-
fica continuamente a forma de ação criminal e, paralelamente, ve para a justiça que permite a justificação do direito de punir.
a forma de seu corretivo: o direito penal. Quanto mais a balança da justiça substitui a espada da vingan-
A delinquência tende a aperfeiçoar-se psiquicamente e ça, tanto mais pesa a responsabilidade moral do culpado e tanto
passar da zona da violência e da ferocidade para a zona da as- menos vale a própria tutela egoística. Na sua evolução, o jus de
túcia; a apoiar-se, paralelamente ao fenômeno guerra, nos re- punir penetra mais a substância das motivações, e o legislador
cursos sempre mais complexos, inteligentes e orgânicos. As inclina-se para o culpado em ato de compreensão, a fim de en-
condições mais refinadas da vida moderna, criadas pela ciên- riquecer a função social da defesa com funções preventivas e
cia e pela máquina, tornam mais sutil a forma de expressão do educativas, porquanto o dever dos dirigentes é o de auxiliar o
homem involuído na sua ascensão.
mesmo instinto fundamental. A forma reagirá, todavia, sobre
As duas ferocidades – da culpa e da punição – abrandam-se,
a substância, modificando as características do instinto. Esta
aproximando-se os extremos e harmonizando-se no seu choque.
mudança de forma é então o primeiro passo para a evolução
Antes de invectivar o involuído, devemos ajudá-lo a evolver,
da psicologia criminal.
antecipando desta maneira a demolição dos focos de infecção,
O direito penal prevê e segue esta transformação. Os códi-
agindo sobre as causas antes de tiranizar sobre os efeitos, pre-
gos envelhecem se não acompanham a evolução da forma de
venindo antes de reprimir. Há no balanço social um tributo
expressão dos delitos, se não se modificam em relação a estes.
anual de condenados, segundo uma lei que as estatísticas ex-
Os códigos modificam-se à medida que a reação social evolui e
primem. É preciso compreender esta lei e depois extirpá-la até
melhora; operam mais lógica e substancialmente e agem em
as raízes. Existem os deserdados cujo crime foi o terem sido
profundidade, dirigindo-se sempre para as raízes psíquicas do marcados, no nascimento, pelas taras hereditárias. Outros são os
fenômeno da delinquência. falidos na luta pela vida, frequentemente com a mesma psico-
Destarte, ação e reação tendem ambas a se deslocarem no logia e valor moral dos vencedores. A delinquência é um fenô-
campo psíquico. O encontro de dois antagonistas em luta se dá meno de involução. É necessário demolir todos os fatores coad-
em zonas sempre mais profundas. O choque tende a perder a juvantes dela. A sociedade possui um dever bem mais alto do
sua nota de brutalidade à proporção que a vida se torne menos que apenas defender-se e isolar-se em segurança: o dever de fa-
física e mais psíquica. O criminoso torna-se astuto para se eva- zer progredir consigo, de arrastar na sua marcha ascensional, as
dir; a norma punitiva toca uma sensibilidade mais excitada, que suas células mais jovens e atrasadas. A alma coletiva tem tam-
exige tratamento diverso. Compreende-se, então, a inutilidade bém as suas tarefas e a sua missão. A posição primitiva satisfa-
das penas cruéis; aprende-se que a ferocidade dos sistemas pu- zia ao materialismo de outros tempos, mas não pode jamais
nitivos é mais efeito dos tempos do que meio apropriado ao ob- contentar e bastar à mais alta civilização do futuro.
jetivo de suprimir a criminalidade. As formas mais violentas
como as torturas, pena de morte, supressões cruéis, caem por SEXTA PARTE – PROBLEMAS ESPIRITUAIS
terra, em desuso ao longo da via do progresso, como folhas
mortas, escórias abandonadas no passado. As normas do direito AUTO-OBSERVAÇÃO DA MEDIUNIDADE (1933)
tornam-se então fatores ativos na construção dos instintos hu- Desenvolvimento espiritual e elevação moral
manos, os quais se adaptam a novos hábitos. E o hábito é como fatores de uma alta mediunidade
transmissão ao subconsciente, reação de automatismo, de novas
qualidades da natureza humana. Donde se conclui que a verda- Sou de parecer que, em certos momentos críticos, o progres-
deira e a mais substancial função de um direito penal inteligen- so da ciência alcança a maturação, enfrentando e resolvendo
te é educar o homem, função mais importante e elevada do que problemas que podem facilmente ser enfrentados pelos métodos
o mal – mal necessário – contido na legítima defesa da coletivi- experimentais ou pela observação, mas carece de diferentes
dade. Função preventiva e criativa que não é senão uma fase do processos para a solução de outros.
mais vasto processo em que se desenvolvem todas as institui- Fatos se nos deparam que não se pode explicar quando so-
ções de um povo, a transformação da força em justiça no pro- mente a sua aparência superficial é analisada.
cesso evolutivo da harmonização geral. Trata-se, em resumo, de Para atingirmos a profundeza das coisas, devemos empregar
um sistema de domesticação da fera humana, de um imenso a alma como instrumento de pesquisa, ou melhor, substituir o
trabalho educativo que se opera por coação pedagógica, inteli- pensamento e a razão – meio analítico – pela intuição.
gentemente aplicada, do pensamento das células sociais mais Uma das formas substanciais desse método é caracterizada
evoluídas às camadas mais baixas da sociedade. pela mediunidade.
O contraste entre ataque e defesa tende progressivamente a
15
esmorecer, e o direito penal encontra nisto a sua mais alta justi- Jus (do latim jus, juris - ou ius, iuris:) direito. (N. do T.)
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 51
Acredito que a mediunidade é fruto de um desenvolvimen- pojar-me das alegrias da minha vida anterior. Ao término desse
to natural, alcançado pelo cérebro humano na sua evolução. A desenvolvimento autoimposto, descortinei, no Natal de 1931, o
vida, sem dúvida, atinge paulatinamente formas mais grandio- primeiro degrau de acesso a um objetivo cujo fim é uma me-
sas, visando cada vez mais a perfeição. O homem do futuro diunidade experimental maravilhosa.
tornar-se-á extremamente sensível e será normalmente um mé- Minha mediunidade é dupla, visual e auditiva. Ouvia uma
dium com outros e mais apurados sentidos, que lhe traçarão voz em mim, inicialmente de mensagens natalinas, e, posteri-
nova e poderosa diretriz de pesquisa, com a qual, sozinho, po- ormente, de mensagens de Páscoa, as quais eram elevadas e re-
derá fazer grandiosas descobertas, utilizando-se de uma direta pletas de bons ensinamentos e pensamentos.
aptidão investigadora do espírito, afastada e independente dos Tentarei a seguir descrever-lhes os meus descobrimentos.
órgãos dos sentidos. Ao contrário daqueles que só gostam de fazer observações su-
As pessoas que alcançaram este alto nível de desenvolvi- perficiais e nos outros, possuo a vantagem da minha própria
mento veem, ouvem, sentem, enfim atingem o seu ser interior experiência e da observação interior de mim mesmo.
verdadeiro, o que não é possível aos portadores de sentidos Não sou sujeito a aparições físico-mediúnicas. Senti que
normais. A recepção de altas revelações independe completa- não as poderia suportar, pois eram violentas demais para mim.
mente dos sentidos. Não caio totalmente em transe. Vejo claramente os pensamen-
Alguns acontecimentos desta espécie foram considerados tos (geralmente abstratos) que escrevo, conforme vão sendo
neurose ou neurastenia e tidos como casos patológicos; na registrados. Eu os vejo como se fora numa despreocupada lei-
maioria das vezes, somente se apresentaram como revelações tura, sem coação.
individuais e definiram a constituição de um novo tipo de ser Enquanto os vejo, não reconheço neles a beleza, a ordem e
humano. o sentido, nem o significado ou o objetivo da mensagem visual.
A mediunidade é, no meu parecer, uma assimilação da ver- Todavia não me preocupo com isso, e aguardo o desenrolar até
dade, claramente recebida e altamente desenvolvida, por seres o fim. Sou somente um assistente passivo e inconsciente.
psíquicos dotados de novas características sensitivas. Logo que volto perfeitamente a mim mesmo, vejo ainda es-
Sou de parecer que isto abrange um desenvolvimento natu- tes pensamentos como se fossem vistos por olhos internos e
ral e que, com o correr dos tempos, os demais seres lá chegarão, profundos. No entanto, isto não é algo visual ou propriamente
porque este fenômeno se realiza de um modo geral. A humani- uma visão. É uma voz que eu vejo, é uma imagem que eu pos-
dade deve alcançar a alta maturação, transpondo um por um os so ouvir. É um sentido do pensamento dentro do meu ser; não
degraus da preparação através das provas, que são absoluta-
são ideias relembradas ou assuntos já discutidos. E isto inde-
mente necessárias para tal fim.
pende do idioma.
Concebi esta teoria através do estudo e da auto-observação,
Sinto intimamente que isto não é do conhecimento diário da
durante um penoso trabalho de mais de vinte anos.
vida. Fico completamente ausente, sem qualquer impressão do
Estou, presentemente, com 46 anos. Aos vinte e dois anos
ambiente humano em que vivo, podendo, porém, retornar a
recebi meu diploma de advogado na Universidade de Roma e,
qualquer momento ao estado anterior. Apesar de estar desacor-
com insaciável sede de instrução, comecei a aprofundar-me de-
dado, não me acho precisamente inconsciente do mundo exter-
sorganizadamente em todos os ramos do conhecimento huma-
no, o qual distingo, embaçadamente, à distância.
no. Quando concentrei meus esforços no sentido de produzir
Obedeço a uma espécie de comando íntimo, que me obriga
uma grande síntese, enfeixamento dos conhecimentos adquiri-
dos, senti que tudo isto nada representava se eu não vivesse a escrever, sem nenhum preparo prévio, acompanhando-o numa
numa nova criação, que me elevasse à positividade. espécie de estado febril, sem fazer alterações ou interrupções.
Esta nova criação deveria ser caracterizada por um desen- Quando a comunicação termina, repouso e leio mais tarde
volvimento espiritual. Senti ao mesmo tempo a falta deste no- aquilo que escrevi. Só então compreendo o inteiro significado
vo tipo humano, que já previra e no qual eu devia me transfor- da comunicação e acho tudo fácil, agradável, e sem necessidade
mar, para provar a minha teoria no campo da prática. Observei de correção alguma, entendo os pensamentos que me são com-
que este desenvolvimento se realizava em todo o lugar, na ci- pletamente novos e que nunca foram do meu conhecimento.
ência, na religião, na filosofia, na medicina etc., e que a evolu- Toda a operação se efetua por si, sem a minha interferência e
ção é a grande lei da vida. sem o meu controle, como se trocasse a minha personalidade.
Eu havia escrito bastante e queria, agora, realizar experi- Meus sentidos, ao iniciar o estado mediúnico, ficam como se o
mentações e provas, para verificar a veracidade da teoria. Ob- centro da sensibilidade se tivesse voltado completamente para
servei, então, que a mediunidade se encontra no fim de uma esse meio de pesquisa. Esse novo centro situa-se nas profunde-
contínua purificação da alma e no desenvolvimento do meu ser zas do meu íntimo, e os seus sentidos são incomensuravelmente
intrínseco, como natural e necessário produto desta conduta. grandes e sinteticamente reunidos. Esta minha personalidade
Precisei admiti-lo, como todo ser humano tem que admitir interna é independente do espaço e do tempo. Experimentei
o seu destino. Neste caminho, transformei-me num homem to- perscrutar campos mais longínquos e descortinei os aconteci-
talmente novo. O meu procedimento evolutivo era para a ci- mentos que viriam depois. Ouço essa voz como se fora outra
ência um enigma, e eu não poderia encontrar nela nenhum au- personalidade, que me é agradavelmente familiar, que me pro-
xílio. Infortunadamente, isto representa um dos erros da ciên- porciona conselhos úteis e protege-me inúmeras vezes do peri-
cia moderna, porquanto não reconhece a grande significação go como se fora um amigo vivo e inseparável.
da moral como fator predominante. Trabalho, agora, numa au- Apesar dessa espécie de amizade, concordamos em nos se-
topurificação progressiva e faço as experiências geralmente parar de vez em quando.
no laboratório das percepções humanas. Os meus instrumen- Vejo, também, ao meu redor, outros seres, que não são no-
tos foram o mal e o bem, a alegria e o sofrimento, e, no decor- tados pelos meus semelhantes. A minha mediunidade cresce
rer dos acontecimentos do meu destino, que também possui a continuamente em estreita ligação com os conhecimentos ad-
sua lei, descobri, ao invés de uma lei insignificante, as gran- quiridos e com a moral da minha personalidade. Isto é notável,
des leis da existência. e a ciência nunca levou em consideração o valor moral como
Comecei a aprofundar-me sempre mais e surpreendi-me ao fator decisivo para qualquer revelação espiritual. Esta correla-
descortinar esse novo mundo de vida intensa, forte, estranha e ção é de tal forma forte, que um lapso moral me traria a perda
de infinitas possibilidades. Para evoluir nesta vida, precisei des- irremediável da mediunidade.
52 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
A minha condição de médium é, no meu parecer, o último do. Foram sempre as classes moralmente menos evoluídas as
degrau de um aspirado descobrimento espiritual e moral, por- mais ansiosas pelos nivelamentos sociais, pelo rebaixamento de
quanto encontrei um entrelaçamento entre esta nova sensibili- todos os vértices e pela supressão de todas as distâncias. Se
dade e a prática de uma vida limpa e virtuosa, mostrando-me olham com desprezo para o alto, na realidade a maior aspiração
a exigência absoluta da reciprocidade entre o ser espiritual é imitar, é fazer-se por elevar-se. A eterna lei do progresso inci-
que fala e o médium que registra as vibrações psíquicas que ta o homem com seu impulso irresistível. A insuprimível neces-
lhe são enviadas. Quanto mais eticamente alto for o transmi- sidade de elevação espiritual, que arrasta mesmo os mais retar-
tente, tanto mais pura deve ser a vida do médium. As ondas dados, arrebanha ainda os mais inertes, porque, um dia, toda
transmitidas devem ser da mesma espécie daquelas ondas re- paralisação e toda satisfação chegam à fase de saciedade e en-
cebidas pelo receptor. joo. Esta universal aspiração de multiplicar necessidades, de re-
Eu, como ser humano, me preocupo, com grande paixão, finar hábitos, de complicar a vida, lutando às vezes mais pelo
em acompanhar os altos seres espirituais nos seus ideais. A mi- supérfluo do que pelo necessário, para tudo realizar e experi-
nha personalidade humana compreende a entidade por intermé- mentar, a que coisa tende senão à conquista de formas de vida
dio da inteligência. Na abstração dos sentidos, geralmente, uma mais complexas, nas quais alcança maior desenvolvimento da
personalidade mais alta se apossa de mim, e assim vejo e reco- consciência? Nada parece interessar tanto à vida quanto este
nheço diretamente o ser noutro ponto de vista. processo de crescimento da personalidade. Parece que não se
Possuo, na maioria das vezes, dois pensamentos em mim: sabe dar outro conteúdo, outro objetivo, à existência do que es-
um inferior, comum, humano; e outro elevado, que transporta ta expansão do eu, que deseja conquistar o universo, esta fadiga
para nova vida de surpreendentes experiências. A alta persona- de criação, necessidade tormentosa da alma, que anseia pelo
lidade vê geralmente o íntimo do ser. supranormal. As grandes necessidades da vida humana não são
As minhas melhores manifestações não foram realizadas nas mais exclusivamente a conservação e a reprodução (conserva-
salas de visitas, onde se reúnem pessoas fúteis para palestrar, ção da raça) senão também o aumento da consciência.
mas sim nos hospitais, onde o sofrimento purifica a alma huma- Quando dizemos consciência, personalidade, alma, espírito,
na e a torna capaz de receber o auxílio moral e material da parte psique, não conhecemos exatamente qual seja a estrutura deste
dos altos seres espirituais que operam por meu intermédio. organismo; sem dúvida alguma coisa muito complexa, que não
Relatarei oportunamente mais fatos referentes à evolução da podemos definir a não ser de modo vago e genérico. Há, na
minha mediunidade16, deixando aqui apenas estas ligeiras ob- personalidade, dois organismos concêntricos, diversamente de-
servações. senvolvidos e amoldados segundo os vários indivíduos, ou seja,
duas consciências: a consciência e a subconsciência.
CONSCIÊNCIA E SUBCONSCIÊNCIA (1930) A primeira é exterior, direi quase de superfície, aquela que
comumente todos adotam no estado de vigília, na vida cotidia-
Em campo algum a desigualdade humana é tão profunda na, nas correlações com o ambiente sobre o qual é plasmada, do
como naquele dos valores espirituais íntimos, que distinguem qual e para o qual é feita. Nada nos autoriza a tomá-la como
a personalidade. Se olharmos a alma, despojada dos ouropéis unidade de medida das coisas. Muitos fatos nos deixam crer
da educação e das convenções sociais; se isolarmos, obser- que ela não esgota toda a realidade e que deixa ainda inexplo-
vando em profundidade, o tipo individual de todos os acessó- rada uma região ainda mais vasta, uma vez que não possui ou-
rios que habitualmente o escondem, encontramos homens da tros órgãos senão os sentidos; tudo o que esta consciência abra-
mais irredutível disparidade psíquica, ainda que a pátria, as ça, apanha e possui, ela o faz por via sensória. Se é precisa e
condições e a família sejam as mesmas. Eles vivem sob seme- concreta, é, entretanto, limitada. Se é positiva e ativa, projeta-se
lhantes aparências exteriores, sob as mesmas leis sociais, pas- para o exterior, que é seu todo e único campo de ação. É a
sam pelos mesmos lugares e nas mesmas circunstâncias. So- consciência da vida e morre com ela.
mente ocultam, na profundidade invisível, um modo diverso A subconsciência é outro modo de ser e de sentir, é uma
de ser, de sentir, de reagir, e uma estrutura espiritual diferente: projeção diferente do eu, em direção oposta, para o interior, on-
a personalidade. Um eu com suas características turbilhona de se encontra uma realidade muito mais extensa. É como uma
sob a máscara igual, niveladora da forma, não da substância. vastíssima consciência de sonho, incerta, evanescente, vizinha
Ao lado de quem vegeta na sua beatitude orgânica, esquivo a do mistério. É outra consciência, situada no polo oposto do ser.
qualquer fadiga de conhecimento e a qualquer risco de ação, O eu oscila entre os dois extremos, entre as duas consciências
outros se agitam por um incessante tormento de criação e não contíguas, em dois mundos limítrofes, um externo e outro in-
podem viver sem a consciência do todo, nem sabem mover-se terno. Duas consciências que, como o dia e a noite, a vida e a
sem que cada ato seu seja uma nota na grande sinfonia da vi- morte, são inversas e complementares e, assim, se equilibram
da. Há os que se saciam de pequenas coisas imediatas, os que como duas metades de um todo. A subconsciência é consciên-
tremem sob o peso das concepções poderosas. Aqui, um espí- cia profunda, um organismo mais íntimo, o ser interior, a ver-
rito embrionário, quase inconsciente, que não sabe viver se- dadeira personalidade, não herdeira nem filha do ambiente. É o
não externamente. Lá, uma alma hipertrófica sente o universo eu com toda a sua capacidade, instintos, aspirações e a trajetó-
se agitar dentro de si e é esmagada num vórtice de sensações. ria do seu destino, o eu que se oculta nas profundezas do ser,
Sob a aparência de igualdade existem distâncias incalculáveis, bem pouco visível e que raramente se revela no tipo comum.
uma substancial diversidade de vida e de destino, que tornam Ela contém e resume todo o passado vivido, a experiência coti-
impossível qualquer nivelamento. diana de inumeráveis vidas. Das inúmeras provas experimenta-
Entretanto o desejo de nivelamento nasce. E nasce num das através do organismo sensório da consciência cerebral,
mundo que, por ser uma corrida para a evolução, não admite qualquer coisa, como a essência destilada, desceu em profundi-
igualdade. Este desejo não representa senão o esforço dos infe- dade ao íntimo e se transmitiu por automatismo ao subconsci-
riores para alcançarem, a qualquer custo, os superiores. A teoria ente sob a forma de hábitos, qualidades, atitudes, instintos, idei-
da igualdade foi sempre a teoria da equiparação do maior ao as inatas. A descida das experiências da vida exterior para a
menor, a teoria do rebaixamento do primeiro a favor do segun- consciência mais profunda, que as absorve, as assimila e as
conserva eternamente, resistindo assim à transitoriedade das
16
No livro As Noúres, escrito quatro anos mais tarde, o autor desen- coisas mortais, é um fenômeno maravilhoso, porque valoriza no
volve amplamente este tema. (N. da E.) eterno cada ato da vida, dando a tudo um significado profundo.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 53
No subconsciente reside o nosso eu verdadeiro e indestrutível, primir todas as sensações exteriores, transferir-se para a outra
aquilo que de nós não perece com a morte. parte do nosso ser e saber descobrir este eu mais profundo que,
Se a função da consciência cerebral e mortal é a de ser ór- em silêncio, vive em nós outra vida. Aquele, porém, que muito
gão externo da subconsciência imortal, um meio para esta to- progrediu, sabendo captar o subconsciente, não viverá mais a
mar contato com o mundo da matéria, um instrumento neces- limitada vida terrestre, mas a vida maior da eternidade e des-
sário à produção e à assimilação de experiências nele adquiri- conhecerá a morte. Este é o grande prêmio, a grande conquista
das, primeira condição para o acréscimo de aquisições, a reali- a que conduz o desenvolvimento espiritual.
dade mais profunda de nosso ser encontra-se no subconsciente. A morte não é igual para todos. Igual pode ser somente o
Aquele crescimento que observamos ser uma das grandes ne- processo de decomposição orgânica. Diante, porém, da sobre-
cessidades da vida é o enriquecimento do subconsciente. O eu vivência, somente um subconsciente desenvolvido não perde a
eterno se veste de milhares de consciências relativas, diferen- consciência, isto é, não se anula como sensação no após-morte.
tes e transitórias, que morrem em milhares de existências. O Muitos dos homens atuais, demasiado próximos da besta per-
que permanece indestrutível, o que recolhe os resultados da vi- dem realmente, na morte, a sua consciência. Outros morrem
da e, assim, avulta e se dilata é o subconsciente, somente o sem perder a limpidez e a potência de vida, porque nem todos
subconsciente. Tudo o mais é transitório, sujeito à lei do trans- sobrevivem igualmente.
formismo fenomênico, que tudo arrasta; deve mudar de forma O progressivo desenvolvimento da sensibilidade, a que nos
tanto mais rapidamente quanto mais nos debruçamos para o conduz a evolução humana, não sendo senão uma contínua re-
exterior, do espírito para a matéria. Das células dos órgãos fí- velação do subconsciente ao consciente, um conhecimento cada
sicos, do sistema sensório nervoso cerebral, até à consciência e vez maior das misteriosas potências íntimas da alma, equivale a
à subconsciência, há uma progressão seriada de veículos ou uma contínua conquista da imortalidade, até que um dia o eu
corpos que se entrosam uns nos outros. tudo saiba. A consciência, hoje tão limitada, dominará inteira-
O subconsciente não morre. Aquele que pode encontrar, mente o subconsciente, coincidirá com ele, e aquele mundo,
através da meditação e da introspecção, o próprio subconscien- ainda tão incerto, das percepções anímicas será claro e eviden-
te, reconstruindo-lhe as sensações, descobre o seu eu eterno e, te. Nesse dia, o homem terá vencido a morte.
quem sabe, as impressões de sua vida no além. Todas as vezes
que, das profundezas daquele mistério que se esconde em nos- POR UMA VIDA MAIOR (1930)
so íntimo, aflora qualquer coisa à superfície da consciência,
temos indício de um mundo distante e inexplorado, de outra É possível, mesmo em condições de ambiente mais simples
vida oculta que vivemos. Mas nem todos somos iguais. Em al- e vulgar, viver além dos terrenos restritos das pequeninas coisas
guns, o subconsciente é tão desenvolvido, as sensações do es- que nos cercam, num mundo imensamente mais vasto. Não im-
pírito são tão potentes, que a vida interior é evidente, e já vi- porta tanto a grandiosidade exterior dos acontecimentos que vi-
vem na Terra a vida que está além da morte, na eternidade. vemos, quanto a profundidade com que os sentimos. Não nos
Outros, cujo subconsciente é apenas esboço embrionário, não detenhamos à superfície; é necessário penetrar a substancia das
encontrando dentro de si nenhuma sensação, nem traços de vi- nossas vicissitudes. Então, os fatos mais comuns da vida cotidi-
da interior, negam naturalmente tudo o que não podem com- ana, as infinitas particularidades, imperceptíveis para muitos,
preender, porque toda a atividade consciente se desenvolve no revelar-nos-ão a ação das grandes forças do universo, o desen-
mundo exterior. A sua alma rudimentar não sabe reger-se sozi- volver do nosso destino e a grande meta distante que vai além
nha e morre, como consciência, na morte do corpo. Outros, em da vida, numa férrea logicidade e justiça. Poderemos, desta
posição intermediária, que é de criação e de conquista, tentam maneira, não só transcender livremente à vida comum, mas va-
sondagens neste arcano íntimo, onde cintilam clarões de luzes, guear no mundo vasto e rico de novas sensações e emoções,
revelações parciais, que alvoroçam o ser com profundas emo- expandindo-nos em vida maior. Existe, além das aparências,
ções. Os contatos fugazes com o invisível, reveladores do sub- uma realidade mais profunda nos máximos como nos mínimos
consciente são, às vezes, estados de sonho, ou movimentos ins- fatos. Há na interpretação comum das coisas um sentido que se
tintivos, ou inspiração. Aquele aparece, então, com meios e expande através das causas e se esconde no mistério. Nos basti-
funções próprias, na consciência cotidiana, exorbitando os li- dores da vida está uma realidade mais sutil, mais verdadeira,
mites da percepção anímica, tipicamente superior à normal. No que encerra o porquê de todas as coisas. É a realidade do espíri-
subconsciente, se o sabemos sentir, gravou-se o segredo da to, a verdadeira e eterna realidade da vida. Lá se movem os fios
nossa vida, traçou-se a trajetória do nosso destino, oculta-se o que condicionam os grandes e os pequenos acontecimentos dos
porquê dos nossos acontecimentos, vibra a lembrança do nosso povos e dos indivíduos. Lá está o porquê das nossas alegrias,
eterno passado, permanece a sensação daquilo que fomos antes triunfos, dores e derrotas. Pode-se desta maneira dar aos fatos
de nascer e daquilo que seremos depois da morte. No subcons- mais simples horizontes infinitos. Na simplicidade interior vi-
ciente, se o soubermos encontrar, reside o segredo da identifi- ve-se no eterno e em contato com o divino.
cação de nossa individualidade eterna, a bagagem de sensações Como encontrar esta realidade mais profunda e esta vida
com que sobreviveremos. “Conhece-te a ti mesmo”. Fato estri- maior? Nas regiões do espírito. Ela é um produto espontâneo,
tamente pessoal, colóquio íntimo do ser que se interroga a si oriunda do subconsciente; é o clarão da revelação interior que
mesmo – “vedado aos estranhos”, experiências que não se po- ilumina tudo de uma luz nova. Traduz-se em dulcíssima revela-
dem ensinar nem demonstrar a quem não saiba alcançá-las por ção de paz, em majestosa sensação de infinito, na contemplação
si mesmo. Não é fácil ser lúcido no subconsciente, saber fazer de um panorama imenso. Entramos em colóquio com a alma do
funcionar esta consciência profunda, explorar por meio de uma criado, privilégio dos artistas; surgem percepções novas de todas
sensibilidade tão diferente um mundo tão móvel e tão vasto, as forças infinitas da vida, fortalecendo a alma para a luta; sur-
que parece fugir ao controle de qualquer indagação, relatar a preendem-nos confortos e alegrias espontâneas. Os silêncios po-
lembrança de tudo isto à consciência exterior. É por isto que se voam-se de vozes; as solidões, de movimentos. As dissonâncias
evita a utilização do subconsciente na vida prática. Não sabe- se desfazem em harmonias; o sofrimento, em alegria. Então, as
mos confiar-lhe um trabalho intelectual, que resultaria sem fa- portas do mistério se abrem; a nossa pequena vida se dilata na
diga e sem consumo de energia nervosa. As duas consciências, vida maior, e olhamos o seu interior estupefatos e inebriados.
sendo inversas, eliminam-se; a subconsciência não aparece en- Vemos agora até aonde iremos, a última etapa da nossa meta. A
quanto a consciência está em funcionamento. Não é fácil su- alma nos responde e adverte-nos com aquela sua voz de seguran-
54 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
ça que jamais mente. Esta voz possui um timbre todo particular vida é a preparação de um mundo maior para os nossos filhos.
que a identifica. Então, o espírito articula uma prece na qual não Preparação que é fadiga e luta. Trabalho demorado, que absorve
se invoca um Deus externo, para acudir a um interesse próprio e energias e exige sacrifícios, mas que dá os resultados mais segu-
mais ou menos imediato; sente um Deus interior, que se ama ros. Somos filhos das nossas ações. Para colher, é necessário
sem reservas e se compreende, numa fusão completa. semear. O problema da felicidade torna-se sempre mais comple-
Eis alguns aspectos individuais da vida maior. O fator psí- xo, e é urgente prever. Se a nossa sociedade se sente cheia de
quico e espiritual é conduzido aos primeiros planos para que preocupações e tão insegura nos seus prazeres, é porque a maior
nos seja proporcionada a entonação de toda a existência. Quan- parte das nossas alegrias é de origem precária, filha do egoísmo,
tos caminhos, porém, para alcançar a compreensão destes esta- e lesa as leis do equilíbrio universal. Aquilo que começamos a
dos de ânimo; que profunda educação psicológica, moral e ar- fazer livremente, depois nos circunda, nos liga e nos escraviza,
tística é necessária! Posições inadmissíveis para muitos. Entre- seja para o alto ou seja para baixo, até às últimas consequências.
tanto, o futuro da vida é este, estas são as formas buscadas pelo A vida é um caminho; cada volta é uma prova. Cada ato possui
progresso coletivo e pela evolução individual. O progresso do seu valor moral, cada acontecimento seu significado recôndito,
mundo não é somente mecânico, nem colima somente a perfei- como parte de um esquema maior, que se projeta na eternidade.
ção mecânica. Atrás deste se encontra um progresso muito mais Ninguém, neste mundo, se encontra sempre no posto exato de
substancial, que é o progresso espiritual e moral. As conquistas maior rendimento em relação às suas qualidades. A maior parte
materiais não podem deixar de reagir sobre o espírito. Quanto das energias se desperdiça nos atritos da luta, razão pela qual o
mais a civilização progride, mais o homem se apercebe de que, que interessa não é a utilização imediata da capacidade adquiri-
além, existem outros problemas; quanto mais se apura, mais da, mas a criação e a aquisição de novas qualidades através de
sente a urgência da solução. Quando um dia a humanidade tiver novas experiências. Se olharmos mais profundamente, encon-
resolvido, de forma universal, o problema econômico, com o trar-nos-emos no melhor posto, no de melhor rendimento diante
domínio das forças naturais, então se disporá a lutar seriamente do futuro. A verdadeira construção não está mais no efêmero
e em escala mais ampla pelo problema intelectual e moral, que triunfo dos resultados exteriores, mas sim em nossa alma, como
hoje é apenas um pressentimento. O futuro do mundo não é qualidade adquirida e como produto eterno. Esta é a vida maior.
como o concebeu Wells – hipertrofia do progresso mecânico – Ela não significa obtenção de vantagens, de prazeres; possui li-
mas a afirmação dos valores do espírito na coletividade. mites e fins mais vastos. Contém um programa de criação espiri-
Hoje se luta; lutamos todos, mais do que os nossos avós. tual, estende-se na eternidade, conquista, além do átimo evanes-
Amamo-nos. Odiamo-nos. Em qualquer circunstância, por cente e fugidio, a realidade imperecível. Luta e agita-se por uma
qualquer objetivo, porém nos abraçamos. A alma coletiva quer única finalidade: a realização de um ideal.
nascer; sempre nos sentimos incompletos diante da necessidade
de elaborar esta alma. Quanto mais evoluímos, mais nos senti-
A RECONSTRUÇAO DO TÚMULO DE
mos sintonizados e mais procuramos no próximo o nosso com-
SÃO FRANCISCO
pletamento. Somos compelidos a incluir em nossa vida uma do-
Um grande erro psicológico (1930)
se sempre maior de altruísmo, pois temos necessidade uns dos
outros, se bem que o egoísmo atávico nos divida. Todos senti-
mos falta de alguma coisa, que pedimos. Todos possuímos al- Revi hoje a nova cripta do túmulo de São Francisco. O olhar
guma coisa, que devemos dar. Esta compreensão de almas é espiritual, habituado a localizá-lo naquele ambiente onde o
necessária ao futuro da humanidade; do caos hodierno nascerá mundo o viu durante cem anos, ficou surpreso e desorientado.
um verdadeiro organismo. Somente da compreensão pode nas- Não se trata de discutir aqui as linhas arquitetônicas, as propor-
cer a coordenação, e desta, um funcionamento orgânico. Não se ções, o estilo, as cores ou coisas semelhantes. Sob o ponto de
trata somente de questão de psiquismo, de intelectualidade, de vista artístico e segundo os conceitos atualmente em voga, não
saber. O que tem importância na evolução do mundo são os fa- se teria, talvez, podido desejar nada de melhor. Harmonizou-se
tos interiores, dos quais depende todo o funcionamento social. o estilo da cripta sagrada com o de todo o imenso edifício das
Bastam poucas ideias simples, mas sentidas e vividas em larga duas igrejas. A sinfonia arquitetônica dos três templos, sobre-
escala. O que importa são os sentimentos de bondade e retidão postos como três vozes presas no hino da rocha emergente para
que cimentam e consolidam as relações sociais. As formas ex- o céu, é magnífica. O simplismo oitocentista, com a sua inge-
teriores das convenções coletivas não se equiparam aos impera- nuidade artística de querer inserir o estilo clássico no coração
tivos morais. Tudo converge para o mesmo ideal: o progresso de uma basílica trecentista, é uma dissonância que fere a nossa
mecânico nos liberta do trabalho material e embrutecedor; a mais refinada sensibilidade estética.
cultura nos torna mais espirituais; a finura das hodiernas condi- Tudo isto é indubitavelmente verdadeiro. Embora eu me
ções de vida sensibiliza o nosso sistema nervoso, que é a base sentisse otimamente predisposto – não obstante a recordação
da alma. Uma sensibilidade nova, talvez hipertrófica e mórbida do traçado da igreja, já observado com satisfação outras vezes
na impetuosidade do seu nascimento, assenhoreia-se do mundo – provei uma desilusão diante da realidade da cripta refeita.
e revolucioná-lo-á. Assim como nenhum ser humano, hoje, su- Por quê?
portaria os sistemas penais fundados na tortura, um dia também Uma primeira sensação, digamos de óptica, exterior de vas-
não haverá mais interesse ou vantagem, por mais forte que seja, tidão e de solidão nasce das razões seguintes.
que obrigue a humanidade a fazer uso das guerras. Estas não A cripta é maior, o que diminui a importância da coluna
desaparecerão graças a acordos internacionais, que não modifi- central onde está o túmulo, reduzindo-lhe a imponência. As pa-
cam a mentalidade humana, mas somente em virtude da nova redes, diferentes das antigas, agora se aproximam pela cor escu-
sensibilidade que dará ao homem civil o terror por qualquer ato ra e pelo material de construção (pedra) da cor e do material da
de violência. A ciência, por seu lado, aumentará a tal ponto o coluna central, de que resulta menor realce ao túmulo.
poderio de destruição, que o homem será constrangido a desis- Mas estas impressões de óptica podem ser colocadas em se-
tir da violência, que redundará sempre em dano coletivo e total. gundo plano diante da sensação principal, a mais forte, de cará-
A luta subirá, então, para o plano de problemas mais elevados, ter espiritual, a sensação de frio, de vazio, de desolação.
ainda não pressentidos hoje. Uma riqueza preciosa demolimos e perdemos irremedia-
Eis alguns aspectos coletivos da vida maior. Individual e co- velmente com a interposição desse estilo anacrônico – a aura
letivamente, todos somos construtores; o verdadeiro trabalho da psíquica do santuário. Lá onde o espírito sentia calor, agora sen-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 55
te frio. Lá onde havia a enchente de sensações, agora é a vazan- O estilo trecentista é lindo, mas no seu século. Agora é um
te, ainda mais sensível devido ao atual maior espaço material. anacronismo, construções de estilo trecentista, feitas quando os
Lá, onde nos sentíamos irresistivelmente arrebatados por um materiais e as necessidades eram tão diferentes, executadas em
ímpeto de fé, agora é palidez e desolação. pleno século vinte. Não sei o que dirão os pósteros desta imita-
Eu sei que tudo isto é sutil, evanescente, impalpável para ção, que demonstra a incapacidade de criar um estilo próprio,
alguns, e que deveria parecer desprezível em nossos tempos como todos os séculos o possuíram.
práticos e concretos. Disto não cuidam comissões de arte ou de Respeitemos, veneremos o estilo antigo, restaurando, reto-
arquitetos, naturalmente porque assim pensa o nosso século. cando e, sobretudo, conservando. Abandonemos a ideia de po-
A culpa, portanto, não é de ninguém em particular. Mas não der fabricá-lo hoje como qualquer produto industrial. Se certas
justifica o maior erro psicológico na reconstrução do túmulo de pinturas e arquiteturas nos atraem hoje é devido à maravilha do
São Francisco. A fé é fenômeno psicológico. Todas as vezes tempo que as dignifica, um período histórico denso de paixões,
que desejamos retocar um lugar desta natureza, é necessário e nelas andamos à procura de uma fé perdida.
tomar em consideração, sapientemente, as complexas e delica- Agradam-nos, por certo, linhas que pareceriam ingênuas e
das leis deste fenômeno, a fim de evitar danos irreparáveis, tal primitivas se executadas hoje. Se isto, no geral, é verdade, de ca-
como ocorreria caso alterássemos, sem atentarmos para as fi- pital importância será então para os lugares sagrados, onde a exi-
níssimas delicadezas acústicas, a forma do Scala de Milão ou o gência artística é subordinada a um fator muito mais importante:
feitio de um precioso estradivário. A fé, como todos os fenô- o fator psicológico. Repito: o que torna grande os santuários não
menos, possui as suas leis, e estas devem ser respeitadas. é tanto o vulto, a beleza das construções, a perfeição da arte, mas
sim a presença deste imponderável acumulado, alimentado pela
Tirou-se ao túmulo de São Francisco a sua característica
crença dos povos, reservatório de onde lhes emana a fé.
mais preciosa e mais bela, ou seja, a alma do lugar, aquele im-
Este imponderável será inconsciente e irremediavelmente
ponderável e invisível que atraía o mundo. O ruído de demoli-
prejudicado nestes casos, ainda quando obedeçamos às melho-
ção e reconstrução em torno do túmulo do Santo já foi uma
res intenções e aos critérios artísticos mais perfeitos.
profanação.
Duas considerações importantíssimas foram menospreza-
OS IDEAIS FRANCISCANOS DIANTE DA
das: 1) Um lugar sagrado é mais do que um recinto de arte;
PSICOLOGIA MODERNA (1927)
qualquer dissonância artística pode ser largamente compensada
por uma harmonia de fé; 2) A grandeza de um recinto de fé é
absolutamente independente da arquitetura ou da suntuosidade Seja-nos permitido falar de São Francisco, não como fenô-
e, muitas vezes, está na razão inversa destas. Frequentemente, meno histórico ou religioso, mas unicamente do Santo de Assis
como fenômeno espiritual, como fato psicológico daquilo que
alcançamos efeitos indesejáveis com muitas reconstruções, am-
não é lenda, erudição, culto, mas drama da alma, a tremenda re-
pliações e embelezamentos de recintos sagrados. Conforme
alidade interior, realidade que transcende os limites do ambien-
demonstrou Cristo, e depois São Francisco, a fé reside na inti-
te histórico no qual se manifestou. Realidade sempre presente,
midade do templo do coração e das obras. Somente, por último,
atual e vital, o fenômeno que supera o tempo e situa-se na eter-
nos majestosos edifícios.
nidade. Pode-se chegar a São Francisco utilizando-se, além dos
Na reconstrução do túmulo de São Francisco, tudo foi sabi-
meios usuais da análise histórica e do sentimento coletivo da
amente executado no que se refere à arte, ao trabalho, ao que,
religião, a via inusitada da intuição pessoal.
enfim, o dinheiro pode realizar, tendo sido, porém, destruído
São Francisco não é, de fato, filho exclusivo de seu século,
aquilo que era o sentimento do santuário, o que nos convida a mas de todos os tempos; vive também hoje, entre nós, sem ana-
orar e abrir a alma a Deus. cronismo. Se o desejamos entender não como pessoa, mas como
É certo que modificar alguns lugares santos, onde a alma conceito, sentiremos que Ele é permanente, atua em nosso meio
humana se refugia para se encontrar a si mesma e, no milagre como força social, cuja função histórica não se exaure jamais.
da fé, penetrar o mistério com o tato do artista ou do gênio, é Existem, na intercadência das perecíveis formas relativas, postu-
assunto para arrepiar os cabelos de qualquer homem conscien- lados eternos e absolutos, que superam a morte e nunca se esgo-
cioso, pois se trata de um problema que sobre-excede em im- tam completamente. Há movimentos psicológicos, individuais
portância qualquer questão de arte. ou coletivos, que volvem em ciclos, como se fossem fases da vi-
Num santuário, há algo mais do que as linhas arquitetôni- da coletiva, como se possuíssem um significado biológico, como
cas, os preciosos afrescos ou quaisquer tesouros de ouro e ge- se fizessem parte integrante do movimento harmonioso e equili-
mas. Alguma coisa o torna diferente de um recinto de arte, mui- brado das leis evolutivas da grande vida da humanidade. São
to maior do que o possamos encontrar alhures, valendo mais do Francisco, assim considerado, é um fenômeno atual, que se acha
que tudo e bastando por si só para fazer dele o lugar para onde sob as nossas vistas e que podemos observar diretamente. À se-
convergem as gerações. melhança de Cristo, é um conceito que jamais morre. Não morre
Este “quid” imponderável forma-se lentamente com os sé- nunca porque o ideal faz parte integrante da vida humana, que
culos e é mais complexo do que a chamada pátina do tempo, tende, através dos séculos, a fazer-se cada vez mais espiritual.
que se deposita igualmente sobre os edifícios profanos. Para Se o materialismo floriu e a civilização mecânica frutificou,
formá-lo, é necessária a visitação das multidões genuflexas, não saciaram a nossa alma, que, cheia de fome e de nostalgia,
transmitindo e acumulando numa dada ordem as vibrações, as esmola entre as velhas muralhas o perfume de uma fé que parece
quais se manifestam na ação sugestiva do lugar. perdida para sempre. A humanidade tem fome de ideais e está
Ao transpor a nova cripta, senti que todo aquele perfume es- presa pela preocupação econômica e mecânica. Não é lícito,
piritual se desvanecera. A bela pedra esquadrejada e sabiamente nem mesmo por inconsciência, esquecer que as leis da vida pro-
disposta podemos colocá-la em qualquer subterrâneo; é uma pe- curam um equilíbrio e que qualquer abuso é logo corrigido com
dra ainda muda e assim permanecerá até que gerações e gerações uma reação. O premente mistério da vida ensinou também que a
a consagrem, dando-lhe uma voz que por enquanto lhe falta. alma individual e coletiva, para viver, têm necessidade destas
Perguntei a mim mesmo se os afrescos poderiam modificar inelutáveis aspirações, sem as quais elas não se governam, não
a impressão. Imitar ricamente vale tanto quanto imitar pobre- caminham e não podem enfrentar confiantes o problema do fu-
mente. No hodierno retorno ao estilo trecentista predominam turo. A riqueza e a vertiginosa atividade dos nossos tempos dis-
as imitações, que, quando exageradas, fazem o olhar do obser- simulam uma dolorosa miséria interior, uma espécie de impo-
vador desejar outros estilos. tência espiritual para a elevação moral. Afogam-se todos num
56 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
imenso pântano de materialismo, onde jazem mortas as grandes Quando São Francisco, reeditando o Cristo, aconselhava a
alegrias da alma. O nosso progresso é aleijado; é hipertrofia pobreza, a castidade e a obediência, punha neste ideal a nega-
econômica e mecânica, que não compensa a atrofia espiritual, o ção absoluta dos instintos fundamentais da vida, dos instintos
grande mal dos nossos tempos. Diante desse mal agudo, volta- que o homem não inventou para si livremente, mas que lhe são
mos as nossas vistas para a fé dos tempos distantes e tenebrosos herança da longa evolução biológica. Instintos naturais, isto é,
da Idade Média, para as austeras e antigas catedrais, que pare- dados por uma lei da natureza – culpas e baixezas de que o ho-
cem, somente elas, depositárias de algum segredo. Triste e bela mem se deve despojar para ascender. São Francisco substituiu
a humilde e nostálgica procura da fé em séculos mais bárbaros por três renúncias, por três votos e por três negações o progra-
que o nosso. Tornamos a exumar avidamente, para interrogá-las, ma da vida secular, universalmente pregado em todos os tem-
as desajeitadas figuras trecentistas, formas toscas, filhas de uma pos, em nosso mundo. Por que tão radical e sistemática destrui-
técnica primitiva, de cujo estilo talvez nos ríssemos se não hou- ção da natureza humana? Podemos revogar as leis da vida,
vesse tanta fome de fé. Interrogamos a história e os documentos quaisquer que sejam, em nosso planeta? Aonde se deseja che-
para reconstruir e reviver aquilo que perdemos. À misteriosa gar com isto, e que se poderá colocar no lugar daquilo que se
alma distante do Santo de Assis pedimos, sobretudo, o segredo renegou? Quem é o Santo, e que pretende ele das grandes mas-
da sua paz, que há muito não possuímos. sas humanas, inertes como montanhas? O que representa na
A figura de São Francisco, assim concebida, não no limita- história da humanidade a figura deste pioneiro do ideal, que
do fundo histórico do seu século, mas no fundo apocalíptico da caminha na vanguarda do futuro?
história da humanidade, é de uma grandiosidade imponente. Estas são perguntas que o homem de outros tempos não sen-
Na intimidade desse fenômeno psicológico, sente-se o dra- tiu necessidade de responder, mas que nós nos fazemos angus-
ma do espírito individualmente vivido, sobretudo pelo Santo de tiosamente. Certamente, é necessário um esforço para sair do
Assis, que, num paroxismo de paixão, sozinho, elevou à onipo- dilema da interpretação dos séculos. A figura do Santo forra-se
tência a alma humana, fortalecendo a mente e o coração. Seja- da nebulosidade do misticismo e das concepções tradicionais da
nos permitido observá-lo como fato individual, no seu primeiro fé, distante da vida no mundo objetivo e positivo das leis bioló-
e excelso representante, assim como nas tentativas e reprodu- gicas. Para expor um conceito novo, é sempre necessário cons-
ções individuais dos sectários e imitadores. Permita-se-nos per- truir desde os alicerces. Vias desconhecidas, vias perigosas, é
guntar, com aquela franqueza que os nossos tempos exigem, evidente, mas vias novas, audazes e mais profundas, que termi-
sem os ornamentos da retórica e o peso da erudição, que signi- nam na eterna apoteose do Santo.
ficado teria, na alma do Santo, a sua psicologia de exceção e Firmemo-nos em critérios e conceitos cientificamente obje-
como o entenderá aquele que intente imitá-lo. tivos, a fim de que a nossa fé não seja uma sentimentalidade
A figura de São Francisco representa, por outro lado, um pessoal e evanescente, mas possua, ao contrário, as bases sóli-
fenômeno psicológico coletivo; transforma-se em conceito que das da razão e da indagação positiva.
supera o tempo e é sempre atual; torna-se símbolo de ideias e O século dezenove criou, com Darwin, a teoria da evolução,
tendências da sociedade humana, fazendo parte das leis do demonstrando-a no campo biológico. O cristianismo já o havia
progresso. Em suma, é uma força biológica evolutiva na histó- afirmado no mundo espiritual, falando-nos da escola da dor e fa-
ria da humanidade. zendo objetivo da vida o aperfeiçoamento moral. Os dois concei-
Este exame será conduzido por meio de conceitos absolu- tos que, no último meio século, foram considerados opostos e
tamente modernos e científicos, tratando-o como fenômeno inimigos, constituindo pomo de discórdia entre duas escolas de
eterno e permanentemente verdadeiro, embora “traduzido” na pensamento que se guerreavam, o materialismo e o espiritualis-
linguagem diferente da psicologia moderna. Somente assim po- mo, não são senão o mesmo conceito de progresso, tão espontâ-
deremos atingir o alvo que colimamos: reviver na atualidade a neo e instintivo, que se nos imprimiram no corpo e na alma. Bio-
palpitação de um fato distante, misturando o fenômeno psicoló- logicamente, o homem é o resultado de longa evolução animal.
gico da vida interior de um santo com a nossa vida interior, in- Espiritualmente se afastou do mundo animal, do qual emergiu
dividual e coletiva. graças ao sistema nervoso, à psique, ao espírito, à alma. Compôs
Para isto, é necessário um trabalho de apuração. É preciso o quarto reino – depois do mineral, vegetal e animal – o reino es-
abolir, por um momento, os sete séculos que nos distanciam do piritual, uma raça que possui em si o divino; um divino ainda não
drama real; séculos que o observaram, interpretaram e senti- emancipado da animalidade, mas que, por esta emancipação, e
ram diversamente. A nossa interpretação será mais rude, mais somente por ela, luta desesperadamente, todos os dias.
franca; sem dúvida, mais profunda. O clarão rápido do gênio Basta isto para integrar em nossa mentalidade cientifica a
foi assimilado durante longos séculos pela alma coletiva. A concepção do fenômeno da santidade. Em que pese a Lombroso
tradição, a literatura, a religião, partindo de pontos de vista di- ou à medicina moderna, o santo é um ser superior, e não um
ferentes, construíram um edifício cujo peso a força de um só anormal ou um doente às voltas com a neurose, não um expulso
homem não pode suportar jamais. Façamos abstração, por um da vida, um pária diante da normalidade medíocre, vil e inepta,
momento, de tudo isto, porque o monumento grandioso e de que se julga com o direito de decretar as leis da conduta humana.
imenso valor nos impede de ver a nudez do conceito originá- Tal conceito é antivital, é monumento da imbecilidade humana.
rio, impede-nos de ver com os nossos olhos, de sentir com a O santo é o supremo ideal, o pioneiro do futuro, uma antecipação
nossa alma, de julgar com a nossa mente, por inadaptação às no tempo, uma perfeição ainda não alcançada pela mediocridade
necessidades dos nossos tempos. Examinemos a psicologia do humana, mas somente pelos maravilhosos e singulares seres de
Santo de Assis com olhar mais penetrante do que o dos séculos exceção, já no ápice da escala evolutiva. O santo é um herói e um
passados, e talvez sintamos em nossa própria alma o arrepio de mártir, porque sacrifica todas as suas alegrias e toda a sua vida
um drama que, posto a nu, será mil vezes mais verdadeiro e para realizar de forma concreta as instintivas antecipações do fu-
maior. São Francisco não será o fenômeno histórico ultrapas- turo, que são os ideais; arrasta, não com palavras vãs, mas com o
sado, mas um ser que vive conosco, que palpita com os tor- exemplo de um caso vivido, as grandes massas humanas ignoran-
mentosos problemas da nossa alma e os resolve. Observemos a tes, vis e inertes, pela via dolorosa e luminosa do aperfeiçoamen-
paradoxal negação dos instintos humanos, o radical trasborda- to e do progresso. O santo é um gênio. Há os especializados no
mento de valores que, seguindo as pegadas do Cristo, foi São campo do pensamento abstrato, da arte, da ciência; grandes, mas
Francisco. Aquilataremos, então, sua influência revolucionaria unilaterais, incompletos. O santo é grande no campo ético, lá on-
nas almas individuais e na alma coletiva. de se alcança a última síntese de todas as aspirações humanas in-
◘◘◘ dividuais e coletivas, o ideal que mais interessa à humanidade e
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 57
comove os séculos, porque é o resumo de todas as conquistas humana. Dor sapiente, que transpõe todos os umbrais, penetra
humanas na peregrinação para o Alto. todos os corações, sem que a sabedoria, a riqueza ou o poder
O santo se nos apresenta na ribalta da vida, levando consigo possam resistir-lhe. Onde quer que surja, abala e destrói; a sua
uma concepção própria. Vimos o que é o santo em si. Observe- escola consegue amadurecer todos sem distinção, ponderada-
mo-lo agora em relação àqueles que se chamam, individualmen- mente e segundo as forças de cada um! A dor, força providen-
te, os seus semelhantes; em relação aos homens que estudam a cial, impõe a todos um mínimo obrigatório de aperfeiçoamento.
nova e estranha psicologia. Admirando-se por não encontrarem É a primeira prática da virtude, direi quase forçada, um mínimo
igual ressonância da lei dentro de si, chamam-lhe louco, escar- de renúncia às alegrias materiais, que nos encaminham à grande
necem dele primeiro, para depois ficarem atônitos e maravilha- renúncia e ao grande superamento do ideal franciscano.
dos, terminando sempre na veneração. O santo combate todos os Daquele mínimo obrigatório a este máximo voluntário, exis-
instintos e tudo renega para reafirmar-se no mundo superior, te uma série de lutas e de esforços em todos os níveis, com infi-
obediente à nova natureza e segundo nova lei maior e mais livre. nitas gradações de velocidade e acelerações sobre o caminho da
O santo ousa, sozinho, rebelar-se contra as forças tremendas que evolução. Há o que vai lentamente e o que tem pressa. Há o que
são as leis da natureza, as leis da animalidade ainda não supera- desejaria voltar atrás para revolver-se na lama e o que segue em
das e vencidas. Ele, neste sentido, é o maior lutador e triunfador, marcha forçada, ardente e consumindo-se na avidez espiritual.
porque não escolhe para inimigo os homens, como o fazem os Tanto aspira ao Alto, que tenta quase forçar as leis da vida para
lutadores da Terra, mas as forças cósmicas. Não conquista os chegar logo. Cada um executa o seu trabalho segundo as suas
povos, mas muito mais, as leis biológicas. É reformador e revo- próprias aspirações e recursos.
lucionário porque revolve, destrói e reedifica a própria natureza Observemos um instante a fatigante ascensão do homem
humana. É o libertador, no sentido biológico, o único verdadei- curvado sob o peso da própria evolução. O espetáculo desta po-
ro; é o redentor da humanidade. O Evangelho do Cristo e a vida bre raça humana, assediada por milhares de necessidades,
de São Francisco não são senão o código e a experiência deste atormentada pelos próprios instintos inferiores, sujeita a uma
superamento biológico da redenção. implacável lei de feroz vigilância e que deve, portanto, purifi-
A virtude representa a norma desta redenção, o artigo do car-se, inspira, algumas vezes, sincera piedade. Constrangida
novo testamento e da lei nova que conduz à vida superior. O pela dor, deve separar-se de tantas alegrias que, em suas mãos,
santo realizou-se, enquanto a humanidade, indolentemente, pre- se tornam ilusões. Deve elevar-se, percorrendo de novo a via de
fere vencer distâncias incalculáveis por caminhos errados. Nele, glória, perdida num átimo de rebelião, tal qual o anjo soberbo
a lei atroz e feroz do egoísmo e da luta pela vida é substituída no longo caminho dos milênios. Que atroz condenação ter na
pela lei da bondade e da justiça. pupila o sonho de uma felicidade completa e senti-la sempre
Não mais a força, mas a justiça como irresistível necessida- imensamente distante. São Francisco, como o Cristo, deseja au-
de da alma humana. Não nos damos conta da negação cotidiana xiliar a humanidade, a fim de elevá-la à redenção. E o faz por-
que tem conhecimento da distância que separa o ideal da reali-
que a realidade opõe ao ideal. O ideal existe e vive na forma de
dade, e também consciência do imenso esforço requerido ao
espírito, potente e indestrutível. Não nos preocupamos se a prá-
homem, tal como ele é. Este contraste entre o ardor da própria
tica desvirtua o significado da virtude. Onde domina a amarga
paixão e a resistência passiva da humanidade inferior e atrasa-
lei do mais forte e as aspirações são muito vãs, cada um exige
da; este frenético e inútil embate da própria alma veemente con-
virtude no próximo, porque a negação e a renúncia constituem
tra a apática alma cega das grandes massas humanas; esta hu-
nele um estado de debilidade, o que, para o mal, é um estado
milhação do próprio espírito, humanamente cansado, no limiar
útil à sua expansão. No triste mundo da realidade humana o
da grande redenção, deve ter sido o verdadeiro drama da alma
bem é útil; faz-se da virtude do próximo um alvo para agredi-lo do Santo de Assis, quando na plenitude da luta e no fervor do
e obter melhor proveito, e não um meio de ascensão espiritual. maior sacrifício. Somente quem viveu tais conceitos e bradou
Conforta-nos a esperança do transformismo do bruto presente. ao vento, inutilmente, o grito de uma grande paixão incompre-
A divina justiça, mesmo no mundo inferior, reina em perfeito endida, pode conhecer a razão e sentir a impressão causada pelo
equilíbrio; a despeito de tudo, o esforço individual para evolver drama espiritual há sete séculos distante de nós.
é sempre possível, e isto basta. Existe, efetivamente, tão enorme distância entre a psicologia
As virtudes franciscanas são três: pobreza, castidade e obe- franciscana, que ensina ao homem a conquista de si mesmo, e a
diência. São um trasbordamento de todos os valores humanos, a psicologia corrente, que a primeira parece utopia, tal o contraste
renúncia completa, que antes de ser redenção e reconstrução do que a separa. Podemos, todavia, perguntar o que representa a
super-homem, é a negação absoluta do homem. Fazem um vá- psicologia comum para arrogar-se o direito de infalibilidade,
cuo pavoroso lá onde se move toda a psicologia humana e se somente por ser produto da maioria. Podemos perguntar ainda se
agitam os mais profundos instintos. O santo pode não sentir a os seus conceitos não são, ao invés, muito relativos e discutíveis,
vertigem desse vácuo, mas o que sentirá o homem comum? Es- ou pior, se não são, deveras, a codificação de instintos atrasados,
te se utiliza, como a raça animal, dos instintos da fome e do se- a norma de vida pouco nobre que somente o baixo nível de vida
xo e, como animal, luta pela nutrição (continuação da vida in- do homem pode considerar conveniente. No entanto duvidamos
dividual) e pelo amor (continuação da espécie). A sua escola é de tudo isto e entregamo-nos ao ceticismo, hoje em moda, des-
a psicologia do egoísmo; a sua lei, a feroz e desapiedada luta truindo a fé íntima para cair no nada. Invade-nos, então, o terror
pela seleção do mais forte, em nível de vida baixo, que não do vazio e a necessidade de nos modificarmos. Permanecemos
imagina sequer poder superar. O homem, neste estado, é extre- inertes e vencidos, a olhar de longe, desanimados, a rocha ina-
mamente lento na evolução. O pendor pelas coisas baixas e a cessível da santidade. Somente poucos espíritos gigantes com-
ignorância das altas o tornam indiferente diante dos problemas pletaram a rebelião total e souberam reconstruir, realizando,
mais substanciais. Eis que aparece o santo e sulca o céu como num salto milagroso, o esforço titânico de superar as leis huma-
um meteoro luminoso, deixando atrás de si um rasto de luz. nas e viver uma lei de ordem superior. Para nós, pobres mortais,
Mas quem observa, quem compreende, quem jamais pode ima- o ideal é belo, fascinante miragem distante que olhamos enleva-
ginar uma fuga da Terra? O homem observa indiferentemente e dos, emudecendo e suspirando. As férreas leis da natureza estão
volve a olhar para baixo, a fim de acariciar a matéria. O prato prontas a nos arrastar em seu ciclo e a nos disputar à angelitude.
que a pastagem oferece é, para a ovelha, todo o universo. O homem vacila nesta bifurcação entre humanidade e divindade;
Então, entra em cena a dor, porque, no equilíbrio da vida, tenta o voo e cai dolorosamente na terra. Eis o grande drama
necessitávamos de uma força capaz de impulsionar a elevação psicológico do santo e o drama humano, triste e piedoso.
58 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Os dois dramas se olham e se fundem na tremenda luta apo- franciscanos é grande até mesmo no campo social. As verdadei-
calíptica entre o bem e o mal, sintetizando o momento biológi- ras revoluções são as que partem do coração de cada um; as que
co do nascimento do anjo no homem. atingem a substância e deslocam a posição da alma individual;
As três virtudes franciscanas representam o ciclo da reden- as que representam a soma da mudança íntima, individual. Para
ção, isto é, a destruição completa do homem e a reconstrução reedificar a coletividade, é preciso antes reedificar o homem.
total do super-homem. Elas desejam, antes de tudo, destruir Que sociedade maravilhosa aquela em que o indivíduo fosse
profundamente a animalidade humana, desferindo-lhe um golpe moralmente bem mais forte.
mortal, a fim de eliminá-la. Pobreza, castidade e obediência são Participamos de uma grei que não pode oferecer nenhuma
para o homem comum uma espécie de morte, pois são a nega- segurança à alegria e nenhuma confiança à felicidade. Uma le-
ção absoluta dos instintos básicos da personalidade humana. galidade forçada, mais repressiva do que preventiva, não pode,
Sobre as cinzas desta destruição se inicia o longo trabalho de senão relativamente, dominar a alma humana, onde está a fonte
reconstrução. A abjuração é apenas transitória, um meio para do bem e do mal. O indivíduo não possui, como defesa contra
alcançar a mais potente afirmação do eu. A renúncia não é se- todos, senão o emprego das próprias energias para guerrear.
não a primeira fase, que preludia a perfeição. Deve ser, com Um instante de fraqueza pode fazê-lo perder, tornando tudo su-
certeza, bem triste o vazio deixado por esta negação tão com- jeito às contingências da vida. Onde não há segurança, que bem
pleta de si mesmo em quem não possui no próprio temperamen- pode ter valor? Eis a revolta do santo. Sabendo que unicamente
to os recursos espirituais para preenchê-lo e substituir por algo o amor ao próximo valoriza todas as lindas e infinitas maravi-
melhor a destruição da própria natureza inferior. Destruir sem lhas da Terra, ele nos move para a conquista deste amor, base
saber reconstruir é criar dentro de si um vácuo triste como a principal da estrutura social e condição imprescindível para
morte, que será ainda mais pavoroso se tentarmos preenchê-lo existir um verdadeiro organismo coletivo.
com os mesmos instintos sobreviventes, adaptados pela hipo- Temos, então, no Santo de Assis, o primeiro cavaleiro ar-
crisia. O significado da renúncia está todo na reconstrução. Re- mado pelo amor, encabeçando nova cruzada, tendo como lema
construção é a chave do enigma; sem ela o ideal franciscano é a fraternidade, a fim de lutar contra o interesse, o egoísmo, a
uma loucura. A grande dificuldade e o grande triunfo residem traição humana e tudo aquilo que constitui força desagregante
no reconstruir mais alto. da sociedade. Ao lado do santo, o quadro de uma sociedade
São Francisco, grande senhor de recursos espirituais, foi um fundada sobre princípios diferentes – o sonho realizado. O pri-
mestre na reconstrução. Completa é a concepção que ele viveu; meiro clarão interior é a necessidade de ser pobre, a necessida-
antes de ser crítica ou demolidora, é reedificadora. Não tanto a de de morrer também de fome para não ser preso como escravo
negação do humano, mas sim a afirmação do divino, um verda- na engrenagem das atrações humanas. O trabalhador do ideal,
deiro domínio da natureza. Ele teve a coragem heroica de viver livre, afasta-se dos profanos, dos interesseiros, dos negocistas,
a sua reconstrução de homem no meio de uma humanidade es- dos produtores de dinheiro, que atropelam porque não veem as
piritualmente bárbara como a nossa; de viver a lei de ordem delicadíssimas flores do pensamento e do sentimento. A neces-
mais elevada, que os seus semelhantes não podiam compreen- sidade de afastar de si a triste população agressiva e sem escrú-
der e julgavam loucura. Onde nós, pobres mortais, devemos pulos impõe-se ao homem idealista para que possa dar o fruto
contentar-nos com insignificantes aproximações, ele obtém a da sua vida. É um fruto amadurecido pelos tormentos, que a
plenitude da realização. Não desejou destruir no homem senão humanidade colheu sem pagar, ou pagou somente com glória
o que havia nele de baixeza e de animalesco; não combateu a póstuma. A grande batalha tem início contra a própria natureza
atividade dos sadios instintos humanos, mas os seus abusos; humana e contra a psicologia coletiva, por meio de um exemplo
não perdeu jamais de vista o objetivo principal, que é a recons- concreto, uma realização vivida pelo ideal. O mundo, a princí-
trução de um homem melhor. Combateu o amor, mas apenas na pio, olha, depois despreza e, em seguida, devagar, compreende,
sua mais baixa forma de sensualidade, deixando-o sobreviver, liberta-se e, afinal, se prepara para seguir o exemplo. Esta assi-
até mesmo fomentando-o como ímpeto de altruísmo em relação milação do ideal por parte da alma coletiva é uma prolongada
ao próximo, como ímpeto de alma para Deus. Combateu do luta secular, porque se traduz numa cadeia de grandes homens
mesmo modo a riqueza e a propriedade no seu sentido de cobi- que se dão as mãos e sucedem-se, traçando a estrada. Há uma
ça, de avidez, como fontes de tantos ódios e de tantas dores, série de tentativas e de esforços que a humanidade faz para
mas jamais no sentido de trabalho. Desejou, antes de tudo, a concretizar o pensamento, lenta e arduamente, até à realização
atividade fecunda e depois a distribuição dos bens com probi- completa. A vitória pertencerá à humanidade futura. São Fran-
dade e altruísmo. Contrariou desta maneira a expansão da per- cisco é ainda hoje o símbolo da sociedade em formação, repre-
sonalidade humana somente no seu aspecto inferior de orgulho, sentando uma tendência, uma esperança, uma expectativa, um
violência, avidez de domínio, deixando-lhe em compensação trabalho a cumprir. Neste sentido, está vivo ainda hoje, como
uma afirmação muito maior e mais completa no campo do espí- estará sempre, entre os homens.
rito. Desejou, em suma, a transfiguração do homem. Pobreza é a virtude que tende a eliminar da alma humana,
Eis a importância individual e o significado de cada uma onde se encontram as suas raízes, a rivalidade entre ricos e po-
das virtudes franciscanas. Individualmente, elas significam bres, estimuladoras de tantos estudos, de tantas tentativas de re-
progresso espiritual; o superamento da matéria; a libertação das formas econômicas, de tantas lutas políticas ineficazes e esté-
formas de vida inferior; a emancipação do homem da animali- reis. A pobreza franciscana é, antes de tudo, um ensinamento de
dade e das suas leis cruéis e ferozes de luta pela seleção do renúncia aos ricos, para o uso parcimonioso dos próprios bens,
mais forte; a atividade num campo mais alto; a conquista de e não abusivo. Aos pobres, que não são nada mais do que ricos
uma forma superior de vida mais completa, mais livre e mais sem dinheiro, aconselha igual renúncia. Nenhuma inveja e pa-
intensa. Os ideais franciscanos auxiliam a alma humana a sair ciência nas privações. Ensina a ambos a vitória sobre a avidez,
da sua crisálida de animalidade, onde se encontra presa, deba- que os separa, armando uns contra os outros, com tanto dano
tendo-se dolorosamente, e guiam-na para o único e real pro- comum; pede a abdicação dos baixos apetites e a formação de
gresso, que tende para aquela felicidade superior, alcançada valores mais altos, que saciam, alimentam e são gratuitos. Ad-
somente após dominar-se as forças inferiores, para uso e gozo voga a destruição de uma fome vulgar e a geração de um desejo
de uma consciência vasta e de uma paz mais profunda. mais nobre, passível de ser saciado.
Tudo o que age no indivíduo não deixa também de produ- Castidade é a virtude que tende a suprimir da alma humana
zir suas repercussões no caráter coletivo. O benefício dos ideais os mais degradantes instintos, a explosão cega das forças natu-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 59
rais, tudo o que nivela o homem à besta. A castidade francisca- Acabamos de analisar os ideais franciscanos de aperfeiçoa-
na é, antes de tudo castidade no espírito, que confere ao indiví- mento moral sob o ponto de vista individual e social, interpre-
duo a posse de si mesmo, o domínio sobre as leis da natureza, o tando, através da nossa mentalidade moderna, sua grande psico-
uso inteligente das forças biológicas. Esta virtude não propende logia de exceção, na qual encontramos uma afirmação lógica,
à destruição do amor, desta grande força de coesão que domina racional e profunda. Repousemos a nossa mente na contempla-
o universo. Não impõe a morte do amor, mas a purificação de ção da sua grande beleza moral, uma criação estética inteira-
suas formas inferiores. Torna-se mais consciente, mais elevado mente do Cristo, ignorada pelo requinte grego. São Francisco é
e mais profundo. Perde a significação de função animal com uma figura maravilhosamente complexa, figura que resume em
objetivo de reprodução, como ato individual de expansão egoís- si todo o homem, feita de pensamento e sentimento, de cérebro
tica, para ser um ato consciente das finalidades da raça, consci- e coração. Observemo-la com aquela paixão e aquela pureza
ente das exigências da coletividade, um amor disciplinado, mo- próprias das almas simples.
ral e subordinado a ideais superiores. Sublimá-lo significa ainda São Francisco é mente, São Francisco é coração. É profun-
mais: significa consciência das necessidades e das exigências deza de conceito, é intensidade de paixão. Ele é a grandeza
alheias, respeito pela liberdade do vizinho, altruísmo, amor ao completa. Não é, como muitos gênios, unilateral e hipertrófico
próximo, fraternidade, coordenação da atividade individual. Eis no intelecto ou no sentimento. O pensamento é luz fria que po-
o milagre da evolução do amor, força imensa de coesão social. de iluminar esplendidamente a estrada, mas opera sem o calor
Mas isto não basta. Elevado ao máximo de altruísmo, de uni- do sentimento, que reconforta, aquece e consola.
versalidade, de dedicação e de sacrifício, elevado aos mais altos São Francisco é intelecto. O seu idílio, o seu sonho, a sua
vértices da perfeição, o amor é o amplexo da alma a todas as paixão são baseados numa concepção profunda, potente, auda-
criaturas. Deixa de ser a negação separatista representada pelo ciosamente projetada no tempo. Ele foi, acima de tudo, um
egoísmo e torna-se a expansão completa do eu em tudo o que grande pensador, precisamente porque não se estendeu pelas
existe, a fusão da alma com Deus. vias da análise, alcançando tudo rapidamente, pela intuição. Foi
Obediência, no mais amplo sentido, é humildade; é a virtude um prodígio do pensamento, justamente porque apanhou as
que suprime a expansão exagerada do eu, a qual leva inevita- conclusões num átimo. Das mesmas conclusões que a ciência
velmente à luta contra a expansão da personalidade do próximo. moderna tarda muito para alcançar deu-nos ele a síntese no iní-
Neste mundo em que ninguém olha o próprio semelhante como cio de sua vida. Os santos, que são os trabalhadores do ideal, no
a um irmão, em que a infelicidade alheia possui em si a medida exercício de suas elevadas missões, devem possuir, ao contrário
da própria expansão, em que a agressividade inconsciente e mú- da nossa ciência, a segurança e a rapidez das conclusões. A sa-
tua tende a expandir-se ao infinito, a virtude da humildade fran- bedoria da intuição é a sabedoria simples e profunda das gran-
ciscana é o mais enérgico e salutar corretivo. Antídoto de toda a des almas, que resolve, inocentemente e com a simplicidade de
desordem, de toda a insubordinação, de todo arrivismo, canaliza uma criança, os maiores problemas da vida, diante dos quais a
o indivíduo nos moldes da reciprocidade social. Exercício para ciência se cala e o homem abaixa a cabeça, desanimado. É
eliminar em cada um os instintos atávicos de agressividade, en- grandioso agir desta maneira, sem ostentação e sem erudição,
fraquecendo-os cada vez mais, torna o indivíduo mais coordena- humildemente e quase sem aparecer, com os problemas mais
do com o organismo coletivo e mais adequado para viver na so- altos e mais profundos. São Francisco, humildemente, apode-
ciedade. As células tornam-se mais aptas a viver no organismo rou-se dos problemas dos povos e dos séculos; viveu conceitos
coletivo, conquistando maior coesão, a qual não seria possível universais; solucionou questões de psicologia coletiva, de or-
sem aquele cimento psicológico dado pela consciência que o in- dem moral, econômica e social, questões que os grandes ho-
divíduo tem da coletividade. Apenas a superior virtude francis- mens, na prática, ainda não resolveram definitivamente. Tudo
cana nos pode dar a subordinação do eu ao todo, a extinção do isto São Francisco viu e sentiu; brindou-nos com as suas con-
fermento desagregante do egoísmo e a realização de uma cons- clusões; viveu-as, sobretudo.
ciência coletiva. Não mais um sistema de agressão, mas de co- São Francisco é coração. É muito mais do que um grande
ordenação, tão indispensável ao progresso social. conceito: é uma grande paixão. O trabalho do cérebro precedeu
Eis o grande mérito das virtudes franciscanas na coletivida- claramente ao do coração, especialmente no período juvenil da
de. Todas elas tendem ao mesmo fim: a formação de mais har- crise psicológica. Foi um trabalho intuitivo, rápido e conclusi-
moniosa e elevada estrutura social. Elas, antes de tudo, agem vo, uma breve síntese posta à frente de uma vida de realiza-
sobre o homem, melhorando-o, transformando-o em cidadão de ções. Quando, tempos depois, numa triste tarde de inverno,
crescente dignidade para uma sociedade mais digna. Agem cheio de júbilo, entendia-se com aquela flor, e assim, em toda a
também desta maneira sobre a coletividade, transformando-se sua simplicidade, quase sem dar conta, lançava a concepção
em força de progresso social. O indivíduo, por sua vez, encon- mais ousada que a humanidade conhece, esboçava e explicava
trará sempre mais facilmente a posição que corresponda às pró- também, numa forma sublime, a natureza da sua grande paixão
prias necessidades e ao valor intrínseco que ele representa, isto de elevar-se e de amar, exaltada na sua veemência e capaz de
é, uma porção sempre maior de felicidade. As virtudes francis- consumir as forças insuficientes do organismo humano. Esta
canas, como tudo o que é progresso, conduzem à realização paixão lhe proporcionou a força tremenda para impor-se às leis
deste grande sonho humano: a felicidade. inferiores da natureza, para subordinar-se às necessidades de
É consolador, diante da dolorosa realidade da vida, conside- uma lei superior, mostrando-nos realizada a altíssima concep-
rar esta concepção de uma humanidade superior, bem mais ci- ção do ideal. Esta paixão o fez viver e morrer, proporcionou-
vilizada e bem mais consciente, dona de si mesma e das forças lhe o frenesi de elevar-se, tornou-o santo no sofrimento, fê-lo
que contém. Jamais devemos ser pessimistas, pois a vida é um triunfar do grande terror dos homens – a dor – e, depois, con-
organismo que funciona de modo sabiamente complexo; ali- sumiu e destruiu o débil arcabouço humano. Andou sempre
menta-nos a esperança de ver realizada aquela concepção. A cantando o seu sofrimento interior na forma mais doce e mais
humanidade pode e deseja subir. As leis biológicas o exigem. gentil de sua primorosa sensibilidade, perfez a sua vida doloro-
Havemos de subir, com ou sem São Francisco, em obediência a sa, em nossa Terra, cantando sempre. A sua paixão era amor.
leis inflexíveis da vida. Em qualquer estado social, em qualquer Quando o amor é muito grande, as formas humanas não lhe
momento histórico, agora e sempre, somente nos elevaremos bastam mais, o ponto de vista comum não mais satisfaz e é re-
através da experiência das virtudes franciscanas a nós legadas. jeitado com repugnância pela alma. Procura abraçar todas as
◘◘◘ criaturas, mesmo o bruto, mesmo o inimigo. Esforça-se por
60 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
achar alegrias mais profundas e uma união que somente pode forma de conquista dinamicamente titânica, no contraste apo-
ser completa se existir o amplexo supremo da alma com Deus. calíptico entre o bem e o mal, do que na sua forma pacífica de
Ele levou sempre consigo este amor tão vasto e tão novo, pa- conclusão agradável, como o fez Manzoni, de modo tão cris-
decendo e esmolando, de porta em porta, um pedaço de pão. tãmente tranquilo. Não se trata somente desta particularidade;
Não sentia, todavia, fome de pão, mas do amor puro e verda- a prova é concebida segundo a psicanálise, com indagações
deiro da alma, que, para ele, existia em pequena dose sobre a sobre o subconsciente e sobre o desenvolvimento da consciên-
Terra! Viveu com a sua paixão num mundo repleto de ódios e cia, em contato transitório com o ambiente. Desde que se repi-
cobiças, tão diferente das necessidades da sua alma que, num tam, certas posições do espírito, aprofundando-se do conscien-
dia de sua juventude, se lhe deve ter afigurado venenoso ou te ao subconsciente, geram, por assimilação contínua do exte-
envenenado. Viveu num mundo frio e hostil, que não oferecia rior, novas capacidades, atitudes, qualidades e potência do eu.
nenhuma oportunidade aos seus desejos mais ardentes. Mundo Um processo que é desenvolvimento de consciência, formação
incompreensivo e divorciado dele, onde todos facilmente ape- e dilatação da personalidade, meta última de todas as ascen-
nas se encontram a si próprios. Neste mundo, não se lhe depa- sões, a única que pode, na vida, justificar o erro e a dor.
rou outro trabalho a não ser o heroísmo do sacrifício. Faminto ◘◘◘
de amor, com o qual revestia cada ato de sua vida, implorava-o Goethe pinta sobre a tela desta profunda tese filosófica os
humildemente por esmola. Vestiu-se de pobreza, nutriu-se de sonhos ousados de vasta fantasia, usando consumada arte de
renúncia, até à apoteose do Alverne e ao sacrifício da vida, até poeta. O espírito viaja de visões em visões, perseguindo as fi-
à extrema abnegação e ao máximo de doação de si mesmo, até guras de uma esplêndida fantasmagoria de quadros. Todo o
ao êxtase sublime, no amplexo sobre-humano no qual a alma mágico poder de Mefistófeles não é, no fundo, senão uma ex-
se funde com Deus. traordinária capacidade criativa de representações interiores,
que nos conduz desta maneira a pleno mundo astral. Faz-nos
O PROBLEMA DA VIDA E DO ALÉM viver na parte mais profunda do eu, no subconsciente, onde a
NO “FAUSTO” DE GOETHE (1931) imagem é realidade, realidade dinâmica e ágil, como o é toda a
visão profunda do espírito, realidade liberta de todos os férreos
O encontro inesperado, em plena maturidade espiritual, com liames das leis da matéria, mais livre e móvel, como a lei do
a gigantesca visão goethiana, sentindo-a, com a alma vibrante imaterial. Os contatos com o além, que emerge da sombra, fa-
da luta cotidiana, no seu aspecto mais profundo de ascensão es- zem-se aqui mais vivos e imediatos. No drama goethiano, nós
piritual, revivendo-a em seguida, ao alcançar, por outras vias, lhe transpomos o limiar. Não há, contudo, partida sem regres-
como Fausto, todos os quadros da vida até à última síntese – eis so. Todo o drama flutua além do mundo humano, no grande
uma experiência tremenda que não mais desaparece da alma, à mistério do além, sem, todavia, abandonar a Terra. Regressa, a
maneira de todas as impressões que são eternas e infinitas. cada passo, à nossa vida e ilumina-a toda com a luz do eterno.
Eu que havia admirado, sem paixão, Shakespeare e Milton; Não é um abandono, um ausentar-se, mas um interpelá-la, um
que em Vítor Hugo quase me cansava do estilo muito frondoso explicá-la, para agigantá-la no infinito. O além se nos penetra
de retórica superabundante, reencontrei em Goethe a emoção para elevar o sentido das nossas vicissitudes até um significado
que somente Dante já me havia dado, a vertigem das grandes altíssimo. O eterno desce e concentra-se no átimo fugidio, e es-
alturas, porque a alma treme somente diante de uma arte que te expressa e abraça todo o eterno; os dois grandes aspectos
nos transporta às origens da vida. complementares, como as duas metades de um todo, dois ex-
A peregrina beleza do Fausto reside em que a realidade pro- tremos da vida, se fundem no amplexo de uma única visão. No
funda da vida, aquela que raros espíritos veem e vivem, é ele- drama goethiano a comunicação entre os dois mundos se efe-
vada aos primeiros planos, como substância do drama. Goethe tua a todo instante; o além, não mais velado e distante, apare-
sentiu, instantaneamente, por intuição, a concepção filosófica ce-nos próximo e palpitante. É esta tragicidade no supranormal
da qual participaram Buda e Cristo, que se completará em for- o que mais perturba e arrebata.
ma dedutiva e analítica na síntese científica dos séculos futuros. Se bem que o mundo, na época da lenda do Fausto, palpi-
A tragédia de Fausto é a maior tragédia humana, a ascensão tasse ainda com os diabólicos terrores medievais (o Fausto de
do ser, não mais aos níveis da evolução orgânica, mas na sua Goethe descende diretamente do Doutor Faustus, de Cristopher
manifestação mais alta, na evolução espiritual. Em Fausto, a Marlowe, cuja comédia foi levada da Inglaterra para a Alema-
vida se dilata na eternidade e completa-se, além dos limites nha no século XVII, por artistas ambulantes), estando Caglios-
humanos do nascimento e da morte, no absoluto, onde encon- tro próximo da ciência espiritualista, como no Geiterseher, de
tra a valorização do nosso mundo relativo e transitório; a vida Schiller; se bem que tal lenda confinasse com o charlatanismo
aí é a vida do espírito no infinito. Do infinito, seu elemento, e fosse amálgama de neurose e de fanatismo religioso; se bem
desce ao finito, numa encarnação variável, em que a fantasia que desconhecida fosse ainda a função da mediunidade, Go-
como que se realiza na forma e a irrealidade parece enquadrar- ethe, entretanto, com o seu gênio, intuiu com clareza o aspecto
se no conceito; em que as ilusões de todas as nossas vicissitu- de alguns fenômenos como a desmaterialização, que é continu-
des humanas são reduzidas ao seu verdadeiro valor, represen- amente trazida à cena, recordando o dissolver-se de Katie
tando uma série de provas, logicamente ligadas, segundo um King, de William Crookes. Assim Euphorion e Helena se dis-
desenvolvimento que se chama destino, tendentes a um objeti- solvem, o Pudel torna-se um “fahrender Scholastikus”. Os ato-
vo que se coloca além da vida, para o qual ela ascende. Os res, em cena, parecem escolher o movimento vertical com a
quadros de Fausto são as experiências da nossa existência; a mesma desenvoltura com que os mortais se movem horizon-
eternidade os atravessa, objetivando o nosso aperfeiçoamento, talmente, dando-nos a impressão de uma quarta dimensão.
por isso é que Goethe concebeu as provas em forma de grada- Movendo-se os atores somente no espírito, a viagem de Fausto
ções e de progressões. Desta maneira, no Fausto, esta forma da não se realizou no espaço.
ascensão humana, que é a prova, decorre mutável e progressi- “Afunda pois! Poderei também dizer-te: sobe! É o mesmo”,
va, numa série de esplêndidas visões, para expressar-se tão diz Mefistófeles a Fausto, ao indicar-lhe a estrada do além,
humanamente como de fato acontece na vida, isto é, no seu aonde eles vão à procura da bela Helena e de Páris. O mundo
termo final, na tarde da velhice. É mais linda, mais profunda- mitológico da Grécia clássica, estranhamente sonoro para nós,
mente verdadeira a concepção da vida na sua forma de luta, in- latinos harmoniosos, é todo revivido na sobrevivência no além,
certa e susceptível de quedas, mas capaz de vitória; na sua em áspero verso germânico. Multidões de espíritos invisíveis,
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 61
sem outra manifestação a não ser um pensamento e uma voz, “Der Herr. – So lang er auf der Erde lebt,
tomam parte a todo instante no drama, que está repleto de per- So lange sei Dir's nicht verboten.
sonagens incorpóreos. E, para aqueles que possuem um corpo, Es irrt der Mensch, so lang'er strebt.
é um aparecer e desaparecer, um concretizar-se e um dissolver- Und steh beschamt, wenn du bekennen musst
se contínuo, um fazer-se e um desfazer-se sucessivo da forma Ein guter Mensch in seinem dunkeln Dranges
exterior. Os personagens, à guisa de materializações espíritas, Ist sich des rechten Weges wohl bewusst.”
talvez em virtude do imenso poder mediúnico de Mefistófeles, (“Senhor. Durante a tua vida na Terra,
despem com toda a desenvoltura as suas vestes corpóreas, com Isto não te era proibido.
a facilidade com que se muda de roupa, e continuam decla- O homem erra enquanto luta pelo progresso,
mando no além. Goethe mostra-nos um tipo estranho de ator, Envergonhando-se quando é obrigado a confessar.
um ator sem corpo ou que, se o possui, não se preocupa em Um homem bom está ciente do caminho certo,
perdê-lo, porque nada perde com este da sua parte mais verda- Mesmo quando os impulsos contrários o açoitam.”)
deira e mais profunda, a sua personalidade. Sublime ingenui- É o bem que abandona o Fausto ao mal, porque ele o aco-
dade cênica, que esconde um profundo conceito filosófico! A lheu; e Mefisto, cônscio da sua posição subordinada, pede-lhe
identidade imutável do espírito através de qualquer que seja a permissão: “Wenn Ilhr mir die Erlaubnis gebt” (“Quantas vezes
mudança de forma, o eu que permanece inconfundível e inalte- me dão permissão”). Somente depois desafia, e o desafio é tre-
rável através de todas as aparências humanas. Margarida mor- mendo. A voz do bem, pressentindo, todavia, a derrota final do
re, mas o seu espírito e a sua voz continuam. E chama, num mal, adverte-o e o confunde.
doce apelo: Henrique! Henrique! Estamos em pleno mundo Surpreendente conceito, soberano, dominante, se não no
mediúnico, sensível na veste palpitante do drama, fundido com pormenor, indubitavelmente nas grandes linhas do funciona-
a mais profunda concepção filosófica. mento orgânico do universo, conceito de um equilíbrio admi-
◘◘◘ rável, tão anti-schopenhaueriano, otimista e completo, que so-
O conteúdo dramático do Fausto não é entretido com cho- bressai com evidência em Goethe. Esta devia ser a concepção
ques de paixões humanas, como o é, por exemplo, prevalente- filosófica da sua vida, que Fausto interpreta e resume. Revela a
mente, em Maria Stuart, de Schiller, iluminadas por um concei- ideia de Deus-Lei, organismo de leis absolutas e invioláveis,
to ascensional de redenção; é um contraste imensamente mais segundo as quais todas as forças do universo se movem inces-
vasto, dado pela luta apocalíptica entre as duas maiores forças santemente no transformismo fenomênico, no seio de um equi-
da vida, o bem e o mal. Fausto é o símbolo do homem que se líbrio espontâneo e supremamente justo. Como em nosso Dan-
agita entre estas duas forças. Ascende em Dante, redime-se em te imortal, o drama goethiano é o drama do universo. Que con-
Vítor Hugo e santifica-se em Cristo, o símbolo do homem que traste com o: “To be, or not to be, that is the question” 17, que
luta e, lutando, evolve até à última síntese. Mefisto é o espírito pôs o problema, sem resolvê-lo: “puzzles the will, and makes
que nega: “Ich bin der Geiút, der stets verneint! Ein Teil von us rather bear those ills we have than fly to others that we
jener Kraft, die stets das Böse will stets das Gute schaft” (“Eu know not of.” (“confunde o desejo, e faz-nos antes suportar os
sou o espírito que sempre nega! Uma parte dessa face que males que possuímos do que voar para outros que desconhe-
sempre quer o mal, mas de que resulta o bem”). Ele é a nega- cemos”). Que impotência filosófica nesta incerteza que não
ção de tudo o que possa ser bem, verdadeiro, belo, sublime, pu- conclui! Que distância da alma carducciana! 18 É o eterno que
ro. É a antítese, a sombra do bem, é a contradição que condici- transparece e lampeja a cada passo em Goethe, mostrando-nos
ona o triunfo do verdadeiro. Esplêndido contraste de treva da uma beleza substancial que, sozinha, pode valorizar o esplen-
qual nasce a luz. Em Goethe, os personagens são símbolos, são dor das formas e nos dar a profunda poesia do conceito, so-
a representação de uma força cósmica. Mefistófeles sintetiza a mente no qual reside a verdadeira arte.
mentira, a traição, a destruição. Externamente, é todo luzidio e O Céu e a Terra assistem, no Fausto de Goethe, ao grande
refinado, cortês e atraente; internamente, é o egoísmo a malda- drama do bem e do mal e intervém nas agitações das ascensões
de, a baixeza, um tipo que a sociedade humana conhece bem. humanas. Os coros dos anjos, contrastando com as falsas insi-
Mefistófeles é uma força que, para demolir tudo, demole, antes nuações de Mefisto, acompanham todo o conflito espiritual que
de tudo, a si mesma. É um gigante que contradiz logo a sua turbilhona na alma de Fausto. E surge a hora pavorosa e turva
grandeza e torna-se falso e ridículo. É um herói, o mais fraco e do mal, não um mal como o da agonia do Getsêmani, mas um
o mais miserável dos heróis, que inspiraria piedade se não pro- mal na plenitude do seu efêmero triunfo. Nada se podia imagi-
vocasse aversão. Mefistófeles não é a dor que laboriosamente nar de mais tremendamente macabro do que o vertiginoso pan-
edifica no eterno, condição transitória de uma felicidade impe- demônio da Walpurgisnacht19 sobre o fundo do Brocken20. Tal-
recível, mas é a alegria fácil, usurpada, imerecida, que logo de- vez somente a áspera lenda germânica, referta de bruxas e de
saparece para conduzir ao sofrimento. É um falso prazer, pronto diabos, de terrores e de trevas, poderia fornecer-lhe motivos.
a desagregar-se a cada instante e a transformar-se em dor. Es- Nem Goethe, que conhecia perfeitamente a Harzgebing e as re-
tamos nas estradas da descida, da involução para a animalidade, giões de Schierke e Elend, poderia encontrar um fundo mais té-
em antítese à via ascensional, onde o espírito triunfa. trico e desolado para a sua representação, que depois o nosso
Do outro lado as forças do bem (ainda que não sejam no Boito21 devia reproduzir tão magnificamente em forma musical.
Fausto tão estritamente caracterizadas como se apresentam em
Mefistófeles as forças do mal) não são, todavia, menos pode- 17
“Ser ou não ser, eis a questão” (N. da E.)
18
rosas. Se são concebidas de maneira mais impessoal, é para Referência ao poeta italiano Carducci, Giosuè (1835-1907)
19
exprimir a sua universalidade, é para dizer que o bem é a re- Walpurgisnacht – “A Noite de Valburga” era na Alemanha medie-
gra, o mal a exceção. O que condiciona e limita o mal é o val, segundo as crendices populares em voga, aquela em que se reuni-
bem, lei universal. O bem não se localiza, não se personifica, am os espíritos malignos e as feiticeiras, no alto do Brocken.
20
porque é o hálito de todo o universo, abraça no seu âmbito to- Brocken (ou Brock) – elevada e granítica montanha, na Alemanha,
onde, conforme as superstições medievais, imperava o chefe das forças
do o mundo do mal. Mefisto encontra os seus obstáculos e não do mal, “o Senhor Uriano” (Herr Urian) na versão do Fausto de Goethe.
pode transpô-los. Como princípio, é tolerado; mas, como con- 21
Boito – Referência ao grande poeta e compositor italiano Arrigo
dição e como explicação, possui o seu campo limitado. No Boito (1842 -1918). Escreveu libretos para “La Gioconda”, “Otelo” e
prólogo, no Céu, as duas grandes forças olham-se face a face, “Falstaff” (estes dois últimos musicados por Verdi) A ópera mais
por uns instantes, sem véus: famosa de Boito é justamente “Mefistófeles”. (N. do T.)
62 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
A festa agita-se nas danças sapateadas; é toda pompa e alegria, traição era Mefisto! A sua habilidade reside na minúcia, a sua
culminantes num triunfo que revela grandiosidade. É sem dúvi- finíssima lógica é a mísera lógica da astúcia, que edifica sobre
da uma festa, um triunfo, mas, como tudo, é alterado e falso, o terreno inseguro da falsidade. A orientação do seu sistema é
pervertido e ridículo! O brilho é treva; a música é fluxo de es- errada, porque o egoísmo e a mentira são forças essencialmente
tridores; a multidão é estranha, sórdida e vil; o triunfo é insulto desagregantes, desprovidas de capacidade coesiva e construti-
e ludíbrio. Que escumalha infernal de espíritos imundos e cari- va, enquanto o amor e o sacrifício, tão inermes e débeis na apa-
caturais! Que áspera e tétrica sinfonia aquela espantosa fila de rência, possuem a potencialidade dinâmica das grandes obras.
bruxas nórdicas em fuga, todas nuas, cobertas de unguento, ca- Não é o amor, mas o prazer que trai Gretchen; não é o trabalho,
valgando vassouras pela pavorosa charneca de Brocken, en- mas a especulação simbolizada na invenção de Papiergeld e
quanto a música louca do sabá, digna de Berlioz, bate o ritmo semelhantes convenções financeiras que conduzem à ruína.
de uma satisfação feroz! O espírito que nega, nega, antes de tu- Fausto, entretanto, oscilando de prova em prova e de ilusão em
do, a si mesmo. Na festa de Walpurgisnacht existe a manifesta- ilusão, continuamente ascende. A sua longa viagem foi no
ção de uma força que se anula na impotência, um aparato de mundo espiritual. No último momento, quando, rejeitadas as
glória que é todo um escárnio, um tripúdio que é triste como propostas corruptas, pede um trabalho honesto e fecundo, Me-
uma condenação, um grito de satisfação que é um ulular de de- fisto consente, sem suspeitar o início da reabilitação de Fausto:
sespero. A Walpurgisnacht é a personificação das forças do mal o diabo acaba sendo enganado. Pouco a pouco, o deserto e a
no seu efêmero triunfo; é o mais desconjuntado canto da vida desolação, simbolizados na Walpurgisnacht, se transformam,
que submerge num desprezo louco de destruição. É a involu- por obra do trabalho e do amor, em estado de fecundidade e de
ção, a descensão efetivada, o regresso rumo à animalidade, é o bem-estar. Fausto encontrou finalmente a estrada das ascensões
triunfo da besta feroz, é o inferno, onde o espírito está morto. É humanas e a libertação da dor e do mal. A estrada não estava
uma humanidade que delira, louca e embriagada, ávida e falsa, nas alegrias fáceis da Averbach Keller, em Leipzig, nem na ri-
como a nossa. Desejaria rir com Goethe pela sátira esplêndida. queza, nem no poder, nem na glória (vaidade napoleônica), mas
As forças da vida estão vivas em Fausto; agitam-se galo- além de tudo isto, além de todas as ilusões humanas, onde exis-
pantes como no mar tempestuoso; condensam-se num vórtice te uma fonte de pureza capaz de dessedentar todas as bocas:
para arrastar o homem e, depois, arremessá-lo ao alto, para o “Das ist der Weisheit letzter Schluss:
Céu. O turbilhão desencadeado do mal tem a sua hora e deve Nur der verdient sich Freiheit wie das Leben,
resolver-se numa função do bem. A doce e ingênua Margarida, Der täglich sie erobern muss.”
uma das mais belas criaturas goethianas, encontra-se, enquanto (“Isto é a última conclusão da sabedoria:
ora no grande templo gótico, em pleno poder do triste espírito Somente aquele que conquista diariamente
que lembra traição: A sua vida merece a liberdade.”)
“Böser Geist. Wie anders, Gretchen, war dir’s, Enfim, o equilíbrio, temporariamente perturbado, restabele-
Als du noch voll Unschuld ce-se. O mal volta à sua prisão, Mefisto precipita-se no seu rei-
Hier zum Altar tratst.” no, e Fausto ascende na sua apoteose:
(“Espírito mau: como te sentiste meiga Margarida, “Gerettet ist das edle Glied
Quando ainda completamente inocente Der Geisterwelt vom Bösen:
Te aproximaste deste altar.”) Wer immer strebend sich bemúht,
Na alma desolada da aflita ressoa: Den können wir erlösen.”
“Dies irae, dies illa (“O nobre companheiro está salvo
Solvet saeclum in favilla.”22 Do mundo dos espíritos do mal:
Mas a crente, que havia rezado tanto: “Ach neige, Du Sch- Aquele que sempre se esforça incansavelmente,
merzenreiche, Dein Antlitz gnädig melner Not!” (“Oh! vinde a Podemos libertá-lo para a sua ascensão.”)
mim, vós que sofrestes tanto, tende piedade do meu padecer!”),
volta-se moribunda para o supremo tribunal, e uma voz do alto GÊNIO E DOR (1935)
anuncia: “Ist gerettet!” (“Está salva!”). A presa escapa, então,
das garras de Mefisto, que, desesperado, volta a reafirmar a Os êxtases musicais, como a visão do místico e a contempla-
Fausto o seu poder. Mas também ele se libertará. É sobre a sua ção do pensador, são portas abertas ao infinito. Quando o gênio
cabeça que mais tremendamente se desencadeia a tempestade. cria, a existência revela-se então inegável, porque, naquele mo-
Já ia levar aos lábios o cálice fatal para libertar-se do peso da mento, ela se acha visivelmente em ação. Escutamos estupefatos
vida, envenenando-se, quando ressoa o canto salvador da res- aquela voz, que não possui timbre humano, surgindo do mundo
surreição, no alegre repique prolongado da Páscoa: do eterno. Nos arrebatamentos, o pensador sente a verdade; o
“Christ ist erstanden! Selig der Liebende, der die be- místico, a bondade e o amor; o artista, a beleza. O arrebatamen-
trübende, heilsam und übende Prüfung bestanden” (“Cristo to, porém, é sempre o mesmo e constitui a nota fundamental do
ressuscitou! Salve o Amado que foi submetido a tão triste e mesmo fenômeno, ausentar-se da Terra e atingir outras esferas,
santa provação”). manifestações que, por serem super-reais, parecem sonhos irre-
Fausto está salvo. Mas logo é cercado e preso nos enredos ais, mas são verdadeiras, pois a alma humana as tem admirado
do mal, que concentra nele todas as suas forças. O pacto é fir- em todos os tempos, prendendo-se-lhes irresistivelmente.
mado com sangue. Mefisto entra logo em ação numa fantasma- Todas as altas revelações do espírito, por enquanto tidas pe-
goria de criações e de vitórias que enfim se desfazem no erro. la ciência como anormais, somente porque são supranormais, e
Qual é, todavia, o ponto fraco, a pilastra que faz ruir todo o edi- não produto da cinzenta mediocridade, indiscutivelmente exer-
fício? Quanta astúcia no negociar, quanta finura psicológica no cem fascinação mesmo no ser mais involuído. São centelhas
enlaçar sem ser notado, no fingir-se de santo e de homem hon- descidas diretamente do céu, sem o uso da razão. A alma as re-
rado (como o fez junto de Marta) e que artista da mentira e da conhece e as absorve na sua avidez: servem-lhe de alimento.
A alma humana tem de ser analisada não no tipo medíocre,
22
“O dia da ira, aquele dia em que (o Senhor) dissolverá o mundo em onde permanece adormecida, em estado embrionário, mas no
cinzas”. – Referência à Justiça Divina, conforme várias profecias, em gênio, que prepara a sua maturidade e a excede, ultrapassando
versos de um hino religioso atribuído ao primeiro biógrafo de São muitas vezes os limites do concebível. Somente neste, ela se
Francisco, o frade Tomás de Gelano. (N. do T.) manifesta em toda a sua plenitude, conseguindo superar a vida
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 63
orgânica, separar-se do corpo e enfrentar o além. É assim que o Por que a vida dos gênios é frequentemente argamassada na
gênio, seja artista, místico, pensador, seja musicista, santo, he- dor? Por que o destino se lhes apresenta como inexorável con-
rói ou condutor, encontra-se, no momento em que age como tal, catenação de provas convergentes muitas vezes sobre o ponto
num estado de ativa e consciente mediunidade. mais vital do seu próprio gênio? Talvez porque este é também o
Quando Chopin compunha ao piano maiorquino os famo- ponto de maior força, de provas maiores do que as médias, para
sos prelúdios na Cartuxa de Valdemosa, com certeza via fan- que a alma possa encontrar uma resistência adequada à sua
tasmas vagando de cela em cela, talvez os monges do velho grandeza, um testemunho proporcional à sua elevação. Provas
convento. George Sand escreve: “Ao regressar às dez horas da específicas para que a alma se exercite pelo lado de sua maior
noite, encontro-o pálido, os olhos cerrados e os cabelos sobre a potência. Certamente, não se alcança esta compreensão através
testa, diante de seu piano. Era necessário algum momento para dos conceitos comuns de uma vida exterior que visa apenas o
se reconhecer a si próprio. Fazia esforço para sorrir e tocava prazer. Mas somente assim podemos explicar a surdez de
coisas sublimes que havia composto durante nossa ausência... Beethoven, a tuberculose de Chopin, a cegueira de Milton, um
Executava o seu prelúdio, chorando. Quando nos viu entrar, Leopardi disforme e sofredor, um Schubert e um Mussorgsky
soltou um grito estranho e disse, depois, com ar confuso e tom atormentados, um Nietzsche e um Poe loucos. Convido a ciên-
misterioso: – Ah! Eu sabia perfeitamente que vocês estavam cia a explicar-me por que a moléstia, a deficiência orgânica,
mortos!... Não distinguindo mais o sonho da realidade, acal- pode dar tanta força ao espírito, tanta fecundidade ao pensa-
mou-se e quase adormeceu ao piano, persuadido de que tam- mento, tanta saúde e potência à personalidade. Ou, em outros
bém ele estava morto”. O eco da tempestade dos elementos se termos, por que razão o patológico pode conter o supranormal.
transformava na sua alma em tempestade de ideias e de senti- O conceito de uma crueldade do destino, portanto blasfêmia
mentos. Naquele estado de transe, a sua alma alcançava as raí- contra a Divindade, ou de uma insuficiência diretiva ou de uma
zes da vida e a profundidade dos fenômenos, onde se encontra casualidade caótica é simplesmente pueril num organismo uni-
a essência, onde o todo é UNO. versal tão preciso. No entanto, com este conceito muito mais
Quando Chopin improvisava, sempre em presença de um amplo, tudo se explica. A dor é a estrada mestra de toda a ascen-
restrito público de amigos, mandava reduzir as luzes, recolhia- são espiritual, que não pode ser conquistada sem fadiga. A dor
se e procurava a nota azul, que se pode chamar a nota de sinto- prepara o caminho às profundas introspeções; revela o que se
nização entre a sua e a alma alheia. encontra além da superfície; desperta o espírito, que poderia, fa-
Notamos a paralisação do fenômeno inspirativo diante de talmente, adormecer no bem-estar; submete-o a contínua ginás-
um público heterogêneo e de estranhos não sintonizados, dos tica, que lhe desenvolve as melhores qualidades. Embora a natu-
quais Chopin sempre fugia, fenômeno esse semelhante ao do reza humana inferior sofra e se revolte, a dor é salutar e fecunda
círculo mediúnico. Daí deveria resultar a música. maceração, que purifica e multiplica todas as forças do espírito.
A mediunidade física é um estado de passividade diante das Somente a dor sabe desnudar a alma e arrancar-lhe aquele grito
forças do além, que interferem quando e como desejam, domi- que não admite mentira. A reação à dor é certamente diferente
nando o fenômeno; a mediunidade inspirativa é, ao invés, um em cada indivíduo, revelando-lhe sempre a natureza íntima.
estado de máxima atividade e consciência perante tais forças, Das três cruzes iguais sobre o Gólgota partiram três gritos
que ela penetra e domina. São os dois extremos. O médium ati- diferentes. No bruto, o grito é brutal; no grande, o grito é su-
vo, consciente do próprio trabalho, dono das forças que governa blime. Então a dor é santa e abençoada, porque revelou a bele-
ativamente, ousa bater às portas do mistério para interrogá-lo. za de uma alma.
Elas não se abrem frequentemente, a não ser diante de um apelo Desta maneira, a dor martela os espíritos gigantes com for-
desesperado ou de uma paixão violenta, capaz de romper os se- ça gigantesca, para levá-los à ascensão gigantescamente pura.
gredos zelosamente defendidos pela Lei. Ressonâncias profundas devem produzir nestes hipertróficos
É necessário, muitas vezes, a coragem insensata, a vontade do pensamento e do sentimento os golpes duríssimos do desti-
desesperada, o impulso frenético de uma dor imensa, o ímpeto no. Evidentemente, suas obras foram criadas entre os espasmos
da fé que não mede a profundidade do abismo. Apenas, então, de uma grande dor. Por isso puderam dizer: “eu espero que a
as portas se abrem, as fronteiras do concebível apresentam dila- minha dor venha, porque somente ela me poderá arrancar o
tações repentinas, quase tímidas; o gênio, num gesto supremo, grito da alma”.
levanta-se sobre as muletas da dor, sofrendo, vacilando na figu- Sentimos em tudo isso a força da criação, que tem na dor
ra gigantesca, fixa o olhar no inconcebível e vê. Ele mesmo ig- um açoite: flagela o espírito, impede qualquer repouso, excita-
nora a sua grandeza no átimo da concepção, porque se unificou lhe as mais profundas reações, valoriza-lhe o poder de ação.
com o todo. O seu gesto potente assaltou de improviso o cora- Assim se compreende a transumanização que a dor, e somente
ção do mistério, que estremeceu e respondeu à voz da dor e do ela, possui. Para o gênio, a vida humana não é senão preparação
amor. Então, um rasgo do infinito lampejou sobre a Terra. para uma vida mais alta; os mesmos clarões que o cegam, tam-
Desejaria passar em revista a vida de muitos gênios, para bém nos atingem a nós; a realização de sua vida não está aqui
demonstrar que, neles, este tipo de mediunidade consciente e em baixo; para ele, a morte não é o fim, mas libertação.
ativa, a mais alta e a mais verdadeira, é normal. A maturidade Os gênios podem inverter os nossos conceitos humanos,
avançada desses seres, revelada desde a mais tenra idade, ex- porque pertencem a raças super-humanas, que não aparecem
plosiva no seu aspecto típico, sem qualquer experiência ou na Terra senão como exceção. “Pobre Beethoven”, conforme
exercício de preparação humana antecedente, mostra-nos a sua escrevia ele sobre si mesmo, “este mundo não te proporciona
preexistência em outras formas de vida. Períodos de formação felicidade e somente nas regiões do ideal podes encontrar a
sem os quais nada se cria, por uma lei de proporcionalidade en- paz”. Que diferença entre o homem abençoado e o de senti-
tre o efeito e a causa. O atavismo é absolutamente insuficiente mentos saciados.
para demonstrar tais florescências de exceção num campo de Nós, homens comuns, possuímos e sentimos mais forte-
mediocridades. Tudo isso reforça o conceito e oferece a prova mente no plano inferior do mundo animal, feito de lutas cruéis
de que a vida não é senão a passagem da alma proveniente de e violentas. Carregamos a verdade atávica do corpo, a tão co-
algum plano, em direção a outro plano. Os medíocres não con- nhecida lei da natureza; somente secundariamente e com es-
seguem encontrar estas provas, em si tão evidentes, porque são forço, alcançamos a mais alta verdade do espírito, que é para
os verdadeiros cidadãos da Terra, suficientemente selvagens e os gênios a verdadeira e a espontânea lei da natureza. O tipo
insensíveis para viver nela, comodamente. médio, debatendo-se nas formas inferiores de atividade, poderá
64 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
criar, qualquer que seja sua condição humana ou sua riqueza, Provavelmente acharão estúpida uma história que não propor-
poderá também, por um momento, saciar-se de toda a vaidade ciona o arrepio do delito. Aqui, entretanto, conforme veremos,
que a sua inexperiência deseja, porém permanecerá sempre li- desejamos focalizar outros fatores psicológicos, de muito maior
gado e condenado a essa vaidade, fechando-se-lhe assim o valor, não pertinentes à parte menos evoluída da sociedade hu-
acesso à alta esfera do pensamento, da qual o gênio, por mais mana. Esta, para satisfazer ao seu orgulho de parecer civilizada,
trespassado e crucificado que se encontre, olhá-lo-á sempre enverniza os instintos bestiais com a psicanálise, os complexos
com piedade. Quanto mais merecemos o céu, tanto mais inca- freudianos, o subconsciente e vários “elmos” científicos, diabo-
pazes e infelizes somos sobre a Terra. licamente faminta de destruição. A isso é obrigada até ao fun-
A dor, nos grandes, assume também a forma de renúncia, do, até à alma, pela chamada civilização, em busca de psicopa-
que é o superamento das formas inferiores. O destino a impõe tias e de todas as perversões. A sã moral não é criação artificial
com inúmeros dissabores, para que se acelere a evolução espiri- de uma religião, mas está escrita para todos nas leis da vida.
tual e se opere a transformação do amor humano em amor divi- Uma imprensa traidora, com finalidade de lucro, desfruta e ali-
no. O calvário é a base natural do fenômeno da sublimação dos menta tais aberrações, oferecendo aos instintos bestiais uma sa-
grandes. A renúncia dos prazeres humanos não é senão a ex- tisfação psicológica ideal. Desta forma, tudo vai sendo louca-
pansão dos horizontes espirituais. O destino não é cruel quando mente abalado. Prossigamos, contudo, a nossa história.
inflige a morte para dar vida maior e luminosidade à alma. Aquele homem não somente conhecia a casa, onde penetra-
“Durch Sturm empor”, (“arrastado para o alto pelo venda- ra com a ajuda do criado, mas também os hábitos do seu pro-
val”) dizia Beethoven no meio do furacão, sempre senhor do prietário, que era um homem estranho. Vivia solitário naquela
seu destino, mesmo no mais profundo do sofrimento. O ho- rica mansão, desfrutando uma renda que possuía por direito de
mem somente é verdadeiramente grande e viril nas lutas contra herança.
as forças titânicas do seu carma, nunca porém nas lutas contra Revelava costumes exóticos este homem, que, em ótimas
os seus semelhantes. O destino da grei humana é frequente- condições de saúde e de riqueza, poderia gozar a vida. Pela ma-
mente incolor, há no alto, porém, destinos titânicos, que nos nhã, passeava pensativo pelo jardim. Fazia as refeições sozinho.
proporcionam o arrepio do infinito, destinos que sobrepairam Consumia a tarde e a noite escrevendo. Parecia procurar em seu
abismos, nos quais se alternam regiões de terror, de paixões e mundo, imensamente distante, qualquer coisa inatingível. O seu
de angústias, nos quais ribomba a tempestade de Deus. Desti- olhar mergulhava nos outros olhares, buscando a alma, e se re-
nos que os gigantes souberam agarrar pela goela para travar traía com tristeza. Existia entre ele e os seus semelhantes uma
uma luta digna da sua grandeza. espécie de barreira de incompreensão. No seu meio, era julgado
Eles podem dizer: “Venha, oh! luta, para que eu possa bater- como maníaco e tolerado porque inofensivo.
me e vencer”. O ladrão, ali presente, considerava as coisas sob um ponto
de vista inteiramente utilitário. Aquela casa e aquele homem
SÉTIMA PARTE – NOVELAS se prestavam a um furto – meio rápido para ganhar sem traba-
lhar. Verdadeiro tipo de involuído, agradava-lhe o risco, a
EM BUSCA DA JUSTIÇA aventura audaz, o golpe do aventureiro, não o trabalho orde-
nado do homem acostumado a integrar-se no organismo soci-
TRÍPTICO (1953) al. Era um retardatário, mais adaptado a viver com os selva-
gens, em guerra, entre as feras. Nada sabia fazer senão roubar.
I. A JUSTIÇA ECONÔMICA Ninguém o educara ou lhe ensinara a realizar algo melhor. A
civilização não lhe dera a bondade evangélica do ama ao teu
Era uma noite de chuva e de tempestade. A cidade imensa próximo, princípio para ele situado no inconcebível, no entan-
repousava, no sono, do seu febril trabalho diurno. A hora to lhe proporcionara ao menos alguma coisa. Havia ao menos
avançava; os quarteirões aristocráticos, mais demorados para polido os seus instintos, refinando-os, como as feras apuram
adormecer, porque menos sedentos de repouso, descansavam os sentidos para melhor atacar e vencer na luta pela vida. Era
em silêncio. artista do crime. Amava saquear sem causar danos físicos à
Ao longo de uma avenida arborizada, separando duas filas vítima, alcançando o útil com o menor aborrecimento e o me-
de residências de luxo, um homem esgueirava-se como sombra, nor perigo possível. Esta era a única modalidade de civiliza-
revelando na desenvoltura do andar o hábito de saber esconder ção que a sua natureza atrasada soubera captar. Na guerra que
intenções suspeitas. Vemo-lo agora junto ao ponto desejado. as nações civis fazem entre si, ele se encontraria bem a vonta-
Não é a porta principal do jardim, mas uma outra, para serviço, de e seria talvez glorificado como herói. Mas a guerra não
junto à parede lateral, que se encontra aberta. Ele a transpõe e existia para que pudesse explorá-la. Numa revolução, seria al-
entra com desembaraço, como se estivesse regressando à sua guém e faria boa carreira. Contudo não havia revolução. Da-
casa. Fecha-a e atravessa o jardim. das as circunstâncias muito pacificas que o ambiente lhe ofe-
Outra pequena entrada de serviço, no lado posterior da casa, recia, fazia aquilo que podia.
está aberta, e ele passa por ela. Conhece a habitação, onde já es- Estes dois homens encontravam-se agora debaixo do mesmo
tivera trabalhando para os antigos proprietários, há muitos anos teto, estavam prestes a encontrar-se com suas psicologias, seus
atrás. Com a cumplicidade de um dos empregados atuais, que julgamentos e seus métodos de vida. O ladrão subia as escadas
viera a conhecer posteriormente, organizara um golpe. cautelosamente. Conhecia todos os recantos. Sabia que, no dor-
Como se vê, não existe aqui nenhum mistério policial, ne- mitório à direita, no patamar superior, o patrão dormia e que, à
nhum delito macabro, nem caçada para apanhar um criminoso. esquerda, estava o quarto onde encontraria o dinheiro. O criado
Fugimos da tão difundida psicologia de criminosos malogrados deixara as portas abertas, saindo para o seu dia de folga. Sabia,
e, por isso, apresentamos o fato como simples e banalíssima também, por ter verificado da rua, que a luz do dormitório onde
tentativa de furto, arquitetado com as costumeiras astúcias, mui- o dono frequentemente ficava acordado até ao amanhecer, esta-
to conhecidas através dos cinemas e dos jornais. Ao viciado lei- va acesa. Sabia, ainda, que aquele homem era sereno e, por con-
tor moderno, amante das emoções fortes e intoxicantes dos ro- seguinte, não o intimidava. Agia com segurança absoluta.
mances amarelos, isto parecerá qualquer coisa de insignificante Uma vez no patamar superior, entrou no quarto visado, sen-
e cansativo pelo seu trivial, que não excita a curiosidade malsã do os seus passos abafados pelos tapetes macios. Silêncio. Viu-
com psicopáticas complicações e cerebralismos criminalóides. se num escritório e reconheceu a escrivaninha iluminada pela
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 65
luz débil da rua, suficiente para o seu trabalho. Aproximou-se e O ladrão começava a compreender e não conseguia se refa-
observou. Possuía as chaves das gavetas. A promissora devia zer da surpresa. No seu primitivismo, encerrado na estreita
ser a terceira ou a quarta à esquerda. Experimentou uma e de- psicologia do egoísmo, suspeitou, a princípio, que tais incrí-
pois a outra, revolvendo o conteúdo. Não encontrava nada. Re- veis palavras poderiam esconder uma trama e aguardava o apa-
vistou ainda. Começou a sentir-se nervoso, porque ambicionava recimento de uma arma ou um movimento de assalto. Mas na-
a fuga sem ser observado. Mas não encontrava nada. Tentou as da disso surgia. Como não se sentia ameaçado, foi esporeado
do lado direito, abrindo a segunda gaveta, revistando-a. Num pela curiosidade e pela esperança de poder receber dinheiro
gesto precipitado, derrubou qualquer coisa, que caiu no tapete daquele louco, não obstante a sua triste posição; continuou es-
com um baque surdo. O ladrão imobilizou-se, espantado. Esta- cutando, divertindo-se com a cena, mas sempre atento ao seu
ria realmente dormindo o patrão? Teria ouvido? desenvolvimento.
No aposento à direita, outro homem estava em outras lidas. Sentaram-se. O dono da casa prosseguiu: “Amigo! Suponho
Apagara, havia pouco, as luzes e procurava em vão adormecer, que sejas comunista ou pelo menos simpatizante. Não imaginas
enquanto, num estado de meio sono, o seu espírito continuava a que eu também o sou, mas, como vês, de modo diferente da tua,
desenvolver a ordem dos conceitos sobre os quais escrevera até uma forma que não entendes. Quero dizer-te que a justiça social
àquela hora da noite. Preso aos seus pensamentos, não prestou é a grande ideia para a qual o mundo caminha. Quem usa a es-
atenção ao ruído que viera do quarto vizinho. Tinha em mente pada morrerá pela espada, e quem usa a violência será destruí-
outras preocupações. De improviso, surgira a solução lógica de do. Os nossos dois comunismos são antípodas. O teu parte dos
um problema que o angustiava havia dias – contraste de concei- direitos; o meu, dos deveres, de que não cogitas. Usas a violên-
tos que parecia sem saída. E, agora, repentinamente, da profun- cia e, por isto, estás aqui; eu uso a bondade. É verdade que nem
deza de si mesmo, quando se ia abandonando ao sono e já não a todos os homens da minha classe social são como eu. Nisto
buscava mais, eis a solução imprevista, como se outro houvera crês, e isto te autoriza a violência. Verdade é que tens também
respondido. Sentia-se pasmo e ao mesmo tempo entusiasmado deveres, mas não pensas senão nos direitos. Como é possível
pela beleza e logicidade da solução. Acabou despertando, acen- uma sociedade que só alegue os seus direitos? Não seria um or-
deu a luz e levantou-se para ir logo registrar no seu escritório a ganismo, seria um bando de lobos que se entredevorariam. Por
concepção maravilhosa antes que ela se dissipasse, materiali- que não pensaste no dever de trabalhar, de dar qualquer coisa à
zando-a, agora que estava bem clara em sua mente, nas suas sociedade da qual exiges o necessário? Por que, antes de roubar
particularidades. Sabia que se não a fixasse logo, ela se desva- ou exigir com a violência, não pensaste em ganhar com o traba-
neceria, reaparecendo depois deformada e estranha. Entrou no lho? Eu mesmo trabalho, no campo do pensamento, mas traba-
aposento contíguo e acendeu a luz. O ladrão ficou em pé, gela- lho. A minha vida dá fruto à sociedade. Tu és um parasita. Por
do, em plena luz. Os dois homens se defrontaram. que não aprendeste a respeitar o fruto do trabalho e da inteli-
Olharam-se, mas com que olhar diferente! Cada um proje- gência dos outros? Quem possui nem sempre é parasita; às ve-
tou no outro a sua alma. O ladrão, aterrorizado pelo perigo imi- zes é um centro de atividade fecunda para muitos. É tão bestial
nente e o golpe fracassado, pensava agredir ou ser agredido. Es- este ódio de classe, indiscriminado, agressivo, buscando con-
ta era e lei do seu plano e do seu espírito. O dono, perplexo pela quistar a riqueza não com o trabalho e a inteligência, mas pelas
presença de um estranho, e aborrecido com o fato imprevisto, vias da violência! Não sabendo respeitar o fruto das atividades
pensava no tesouro dos seus conceitos já em fuga, agora perdi- alheias, como poderá esperar que, em idênticas condições, seja
dos com o incidente. Habituado ao autodomínio, rapidamente respeitado o fruto do teu trabalho?”.
se refez para enfrentar a nova situação. Olhou para o ladrão O larápio, sem se interessar em absoluto por tudo que estava
com piedade, e este, que esperava uma agressão, desarmado por ouvindo, aguardava a conclusão do discurso. O dono da casa
aquele olhar, não agrediu. compreendeu que havia ido muito longe nas suas explicações
Os dois homens permaneceram frente a frente, olhando-se. teóricas e regressou aos limites psicológicos do seu interlocu-
Dois homens, duas classes sociais, dois extremos opostos, eco- tor, isto é, ao problema próximo e pessoal, e disse-lhe: “Con-
nômica e espiritualmente, dois mundos. Aquele cruzamento de cluindo, amigo, a ti não interessa se eu trabalho e se neste mo-
olhares já havia estabelecido uma ponte entre os dois. O propri- mento me libertarei das riquezas para mim supérfluas, ou se as
etário foi o primeiro a dirigir a palavra: conservarei para que frutifiquem, sobretudo para o bem dos ou-
“Amigo, não te atemorizes, compreendi tudo. Afirmo, não tros. Este é um assunto meu. Interessa-te somente resolver o
temas. Serás hóspede em meu lar, porque és meu semelhante e problema da tua vida. Quem possui mais meios, mais inteligên-
meu irmão. Não tenho outro desejo senão o de te fazer o bem. cia e cultura, tem mais deveres. Sou eu, portanto, quem deve ir
Não penses, portanto, em lutas e agressões. Poderás sair quando ao teu encontro. Desejavas apoderar-te do dinheiro que era
desejares, livre, protegido por mim”. guardado nesta gaveta. Não o encontraste porque estava sobre a
“Uma outra coisa, porém, me impele para te ajudar. Tu te escrivaninha, onde eu o deixara depois de ter dado uma parte a
arriscaste muito para vir buscar este dinheiro. É um trabalho er- outrem. Este já se destinava aos pobres. Portanto é teu. Estava
rado, mas é também um trabalho. Quanto a mim, não arrisquei diante dos teus olhos e procuravas em outro lugar. Ei-lo, e que
nada, não lutei para ganhar dinheiro, porque o herdei. Perante te ajude a viver. Emprega-o bem, para que possas subir. Podes
Deus estamos, talvez, nas mesmas condições, se bem que eu es- ir, és livre. Ninguém saberá que estiveste aqui”.
teja protegido pelas leis e tu não. Dá-me a tua mão e dize-me Enquanto assim falava, colocou o pacote de dinheiro em su-
no que te posso auxiliar”. as mãos, o mesmo que o ladrão queria roubar. Desta maneira, o
E estendeu a mão ao visitante que a aperta automaticamente, furto que poderia perder um homem, transformou-se em auxilio
procurando compreender enquanto escutava. O dono da casa capaz de redimi-lo. Foi assim que o padre Myriel salvou o for-
continuou: “Dize-me no que posso auxiliar-te, porque me escra- çado Jean Valjean em Os Miseráveis, de Vitor Hugo. O ladrão
vizo a deveres que não possuís. Junto de Deus estamos exata- apanhou o dinheiro, obtido por uma via tão estranha e imprevis-
mente nas mesmas condições. Diante de ti tenho uma agravante, ta. De qualquer modo, tinha alcançado o seu objetivo. E isto era
pois não me encontro em necessidade. Talvez seja por isso que para ele a coisa principal. Se o outro era louco, não lhe impor-
nunca fui tentado a roubar, enquanto que a ti muitas coisas te tava: o dinheiro estava em seu bolso.
faltavam, a ponto de te arriscares desta maneira. Todos nós te- O dono da casa o examinou por um instante, pôs uma das
mos não só o direito, mas também o dever de viver. Sou eu, por- mãos sobre o seu ombro e assim concluiu suavemente: “Agora
tanto, que estou em débito contigo e desejo saldá-lo agora”. vai, amigo. Quem sabe quantas más lições recebestes? Utiliza
66 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
esta advertência; que ela te acompanhe e te auxilie a redimir-te. instrumento de prazer, para elevá-la e enobrecê-la, e não para
Vai, mas lembra-te de que estou aqui para continuar a auxiliar- afligi-la. O verdadeiro macho fecunda, sobretudo, o espírito.
te e assim completar a obra. Não esqueças o teu novo amigo. A Decidiu-se. Devia fazer o bem. Devia salvar aquela mulher.
minha casa está aberta. Volta quando desejares. Este dinheiro Dirige-lhe a palavra. Palavras simples para iniciar um co-
não durará sempre. Entretanto procura lembrar tudo que te fa- nhecimento: “Menina, a primeira coisa de que tens necessidade
lei, mudando de vida. Se desejas fazê-lo, volta e ensinar-te-ei é de restaurar-te. Vamos cear”. A mulher aceitou, porque isto
como viver honestamente do seu trabalho. Somente quem não fazia parte do ritual, e assim mataria a fome. Entraram num sa-
pode trabalhar tem direito à esmola. O teu direito de homem lão resplandecente. Ela escolheu um canto mais afastado, enver-
sadio está somente no trabalho. Vai, amigo. Estarei sempre às gonhada de si e do seu vestido simples, sua única riqueza. Não
tuas ordens quando desejares vir espontaneamente”. conhecia aquele mundo que lhe pareceu maravilhoso. Admirava
O ladrão compreendeu que desta vez passara sem castigo e os espelhos, as mesas bem arrumadas, as vestiduras finas das
que, embolsado o dinheiro, não tinha nada mais a fazer naquela senhoras. Sentiu-se invadida por uma onda de bem-estar e fe-
casa. Balbuciou confuso qualquer coisa. Vendo o caminho li- chou os olhos como se sonhasse grande sonho de felicidade. De-
vre, ganhou rápido as escadas e, pelas mesmas portas abertas, sejava saboreá-lo, prolongá-lo, prendendo-se nele. Tudo isto
alcançou a rua num átimo. Ali, a passos rápidos, deslizou, co- contrastava com a triste realidade cotidiana do seu casebre, situ-
mo uma sombra, na noite. ado nos arredores da cidade, onde não ouvia senão as vozes ás-
Passaram-se meses e anos. Aquele senhor esperou. Mas o peras de seus familiares. Uma música leve a embalava no sonho.
ladrão jamais voltou. Viver, gozar! Pobre criatura! Parecia-lhe que ali todos eram feli-
zes, porque ignorava a realidade; ainda não conhecia os sutis
II. VERDADEIRO AMOR venenos da vida, escondidos sob os esplendores mundanos.
Como pareciam satisfeitas aquelas senhoras! Possuíam ves-
Era uma tépida e encantadora noite de luar. Nos jardins de tidos, joias, eram respeitadas, servidas. Dentro em pouco, volta-
um parque da grande cidade, se bem que em hora avançada, ria à rua. Não tinha direito a nada, nem mesmo ao amor. Devia
ainda se demoravam muitas pessoas. Pares de namorados vaga- vendê-lo para comer. Aquelas dispunham também do amor, de
vam pelas alamedas. A hora, a estação, o local, tudo parecia tudo. Damas ricas, talvez piores do que ela perante Deus, podi-
convidar ao amor. As estrelas olhavam do céu a sorrir. am andar com a cabeça alta, porque possuíam recursos, armadas
Um homem atravessava o parque pensativo e absorto. Tal- de legítimas posições formais que as defendem diante da socie-
vez fosse o mesmo que conhecêramos na história precedente. dade, juridicamente colocadas sob as instituições da propriedade
Resolvido, diante de Deus, o seu problema econômico, pondo a e do matrimônio, tendo o direito ao luxo, à liberdade no amor. E
sua riqueza a proveito do próximo e dando à sociedade o seu sabem como fazê-lo, amparadas por defesas oportunas.
justo tributo de trabalho, preparava-se agora para enfrentar ou- Ela despertou do sonho. Intuía vagamente, sem poder preci-
tros graves problemas. sar a situação. Nada daquilo que via era para ela, pobre verme
Enquanto andava por um caminho solitário, vê uma mulher indefeso no meio da estrada onde todos pisam. Fumegava à sua
sair da sombra onde se escondera da luz do luar e dos lampiões frente um prato suculento, de apetitoso perfume, que lhe avivou
do parque. Observou-a vindo ao seu encontro, com acenos sus- a fome. Começou a refeição. Comia lentamente, procurando
peitos. Ele a olha. É jovem, com um ar embaraçado, como de multiplicar o sabor com todos os acessórios ao alcance de suas
menina inexperiente que não sabe ainda oferecer-se a todos e mãos, condimentos, legumes, para que a ceia se desdobrasse.
não consegue fazê-lo senão com pudor. Ele a observa ainda. Saciava o estômago habituado ao jejum. O amanhã era incerto,
Parece que ela tem medo e fome ao mesmo tempo, e que a fo- seu companheiro não a perturbava, evitando conversar; parecia
me a induz a vencer o medo. Ele, habituado a olhar na alma, imerso não nas sensações elementares da jovem, mas num so-
compreendeu e sentiu que o seu coração era invadido por infi- nho diverso. Também ele observava aquele mundo elegante,
nito sentimento de piedade. mas sem inveja e com piedade. Sabia qual triste realidade se
Assim, andaram juntos, sem falar. Ela, vendo-se aceita, se- ocultava atrás daqueles esplendores. Verificava que reina na
guia tímida, obediente, em expectativa, enquanto ele pensava: Terra a lei do mais forte e que não existe piedade para os fra-
“Há realmente injustiças sociais, além das injustiças econômi- cos. Entre aquelas damas respeitáveis e a jovem que ele havia
cas. Não existem somente as vítimas das pobrezas. Quantas ou- recolhido na rua existia uma única diferença: as damas perten-
tras misérias que somente o amor ao próximo pode fazer desa- ciam à classe dos vencedores; a jovem, à dos vencidos. Somen-
parecer! Eis aqui uma vítima da prostituição, talvez já sacrifi- te por este motivo ela não era respeitada: vendia-se porque ti-
cada no altar do egoísmo humano. Sou um homem que decidiu nha fome. As outras eram respeitáveis; não se vendiam porque
seguir as leis de Cristo. Darei o meu óbolo pessoal para atenuar não tinham fome. Permitiam-se o luxo até de pregar a virtude
a injustiça da miséria moral que é a prostituição da mulher. As- Como é fácil proclamá-la, exigindo-a aos outros! Mas como é
sim como, diante do pobre, é o mais rico quem tem mais deve- dura a virtude exigida de nós mesmos! Pregadores fáceis pulu-
res e, diante do inepto, é o mais inteligente, assim diante da mu- lam pelo mundo. Em nome da virtude, podem satisfazer aos
lher, a parte mais fraca, é o homem que tem mais obrigações. A seus instintos de agressividade contra o próximo; da condena-
culpa da prostituição reside no egoísmo do homem que desfruta ção deste fazem o pedestal para o próprio orgulho. Desta forma
da fraqueza da mulher, que deve ser sagrada”. se conduz sobre o terreno da moral a luta cotidiana pela vida,
Diante daquela infeliz, sentiu vergonha de seu sexo forte, procurando colocar-se em posição de superioridade, como juí-
que usa a força para desfrutar o ser débil que se lhe entrega. Su- zes, diante do pecador, para esmagar o rival. Uma mulher pode-
ga-lhe o fruto, para depois jogar fora a casca. Nesta casca per- rá esperar bem pouco de outra mulher.
manece uma alma desprezada e despedaçada, que o homem ti- Do homem vil é que se espera o dever da redenção. Para
nha o dever de elevar ao alto, através do amor. Ao invés, prosti- ele, o amor é um incidente. Para a mulher, a vida. É ele que
tuiu-a com o seu egoísmo. Rugiu no coração daquele homem o educa a mulher, adaptando-a a si mesmo. É a mulher que, por
sentimento de revolta contra um mundo tão vil, despertando nele sua natureza, obedece e adapta-se ao homem. As leis, antes de
outra virilidade bem diferente da que apenas fecunda a fêmea e perseguir a prostituta, que é o efeito, deveriam atingir o homem,
depois a abandona. Olhou para o céu, dilatou o peito, sentiu-se que é a causa. É a procura que cria a oferta. Todavia nenhum
homem forte, potente no espírito, macho integral, aquele que se legislador fará jamais uma lei contra a vileza do seu sexo. Pelo
aproxima da mulher para protegê-la, e não para desfrutá-la como fato de estar junto do homem, se este é um delinquente, a mu-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 67
lher tentará descer até à sua delinquência. Se é um santo, ela tua casa deve ser muito longe, se é que tens casa. Dormirás so-
procurará subir até à sua santidade. A mulher é sempre a com- zinha, com outro amor que eu te ensinarei e que te fará mais
panheira menor do homem, fazendo tudo por ele, para que se feliz. Amanhã me verás; ensinar-te-ei outra vida, sem humi-
sinta satisfeito. É capaz do sacrifício de uma vida de desprezo e lhação, feita de alegrias verdadeiras”. Deixou-lhe o seu ende-
de abjeção. O grande egoísta esquece os seus deveres; o mais reço. Saíram. Ele a conduziu para a casa de uma senhora amiga
forte deve ajudar o mais fraco, e não roubá-lo. Desta forma, o que a hospedou.
homem educa para si a mulher, feita de astúcia e traição, armas No dia seguinte, acompanhada daquela senhora, a jovem
necessárias para a sua defesa. O verdadeiro amor, do verdadeiro voltou a procurá-lo. Conseguiu-lhe trabalho honesto na resi-
macho, não explora a mulher para o seu gozo, mas protege-a, dência de boa família, a cuja amizade soube corresponder.
educa-a, fazendo-a sua colaboradora no mais viril e potente tra- Nesse novo lar, continuou a falar-lhe sobre o verdadeiro amor,
balho da vida, que é o da ascensão no bem para Deus. o amor fiel, o amor que existe somente na alma, o único que
Assim pensava o nosso protagonista, enquanto lambiscava, resiste à desventura, à morte. Ela compreendeu tudo, comovi-
tomado de imensa piedade pela triste companheira. Deixou que da e grata. Mais tarde se casou, teve a sua família, o seu mari-
ela se satisfizesse à vontade, que aproveitasse a hora de ilusão. do, os seus filhos. O nosso homem desapareceu, porque a sua
Diminuía o número de pessoas no restaurante, parecendo agora obra estava terminada.
tudo mais calmo. A jovem, atenta ao ambiente que a cercava, Não mais a viu. Perdeu-a de vista. Todos os anos, porém,
não aparentava surpresa diante de um interlocutor tão tacitur- pelo Natal, o carteiro lhe trazia uma carta em que se liam estas
no. Parecia até evitar este desperdício de tempo na conversa- poucas palavras: “Não o esquecerei jamais. O senhor me ensi-
ção. Comia tranquilamente, enquanto vagamente intuía qual- nou o verdadeiro amor e salvou-me. Sou feliz com a minha fa-
quer coisa que lhe dava um sentimento de confiança. Em pou- mília e esta é a sua obra. Não o esquecerei jamais”.
cos instantes, sentiu esvair-se a sensação de desconfiança que Ele, em cada Natal, lia esta pequena carta, chorando de ale-
lhe havia dado, a princípio, aquele vulto desconhecido. Sentiu- gria. Desta vez o ser, a quem ele havia feito o bem, compreen-
se protegida e fitou-o surpreendida. Ele tomara uma decisão. dera e, por meio de uma carta, voltava todos os anos.
Seus olhares encontraram-se.
Todavia, ele continua ainda calado. Diante dos seus olhos, III. O ENCONTRO CONSIGO MESMO
uma visão. Via a louca Herodíade que, odiando João, o Batista,
por condená-la pela imoralidade, instigava a filha Salomé a pe- O protagonista das duas histórias precedentes, ao pôr-se em
dir a Herodes a morte daquele que resistira à sua beleza. Viu-a contato com aqueles dois indivíduos tão diferentes, havia de-
recebendo da dançarina Salomé a bandeja com a cabeça de Jo- frontado os problemas fundamentais do ser humano: o da fome
ão. E quem diria que Herodíade havia de morrer pouco depois, e o do amor. Um dia encontrou-se com outro ser e com outros
vítima de um cancro na boca blasfema. Nessa época, o encontro problemas. Encontrou-se consigo mesmo. Nada de excepcional.
do homem com a mulher era brutal. O drama precipita-se num É coisa que acontece a todos os homens inteligentes, assim que
epílogo de destruição para ambas as partes. A adúltera era ape- atingem certo grau de maturidade. Não é, portanto, um caso ex-
drejada. A Lei era então uma espada que simplesmente cortava traordinário, e deve ser interessante falar a seu respeito.
e matava. Tempos violentos e ferozes, nos quais os princípios Este seu outro eu havia observado, calmamente, das pro-
da Lei se proporcionavam à dureza dos homens. fundezas do seu ser, o pensamento e a ação nos dois casos pre-
A visão continuava. Cristo fala aos perseguidores da adúl- cedentes, julgando tudo sem falar. E agora, em hora de paz e
tera: “Aquele que entre vós esteja isento de pecado, atire a de silêncio, tomava a palavra: “Amigo, sou o mais profundo de
primeira pedra”. E depois, voltando-se para a mulher: “Nin- ti mesmo; surjo na tua consciência, vindo daquela infinita pro-
guém te condenou? Pois bem, nem eu te condeno. Vai e não fundidade onde, distanciado imensamente da tua consciência
peques mais”. normal de homem, Deus está. Apresento-me porque, da super-
Eis uma nova cena: mulher famosa e pecadora, prostra-se fície de tal consciência, apta à vida cotidiana de relação, dese-
aos pés do Cristo, banha-os com as suas lágrimas, enxuga-os jaste sondar o mundo das causas. Impondo-te perguntas, dese-
com os seus cabelos, beija-os e unge-os com perfumes. Cristo jaste olhar de frente e pesquisar com coragem o pavoroso
lhe diz que as suas faltas eram perdoadas porque muito amou. E abismo que está na profundeza de todos e de que muitos desvi-
acrescentou: “Aquele que menos perdoa, menos ama. Vai, per- am o olhar, espavoridos. Foi assim que me despertaste e sem-
doados são os teus pecados”. pre mais me despertarás. Isto te custou muito trabalho, traba-
Neste encontro do homem com a mulher, aparece uma luz lho considerado inútil pelo mundo, absorto em utilidades ime-
nova, uma espiritualidade antes ignorada, uma amplidão de vis- diatas. Realizaste grande feito e te julgavas sozinho porque in-
ta e uma liberdade que antes não se podiam conceber. A reação compreendido e condenado pelos homens. Mas não estás a sós.
à culpa é um perdão. Por uma lei mais elevada – o amor, acima Das profundezas fala a voz de Deus, tanto mais clara e mais
da justiça mecânica – pode-se fazer de uma pecadora uma san- forte quanto mais souberes despertar conscientemente nesta
ta: Maria Madalena. A bondade desponta como função salvado- profundidade. Escuta-a. É a tua grande amiga que te auxilia a
ra e criadora, sem a punição que lembra a vingança e prende a maturação. Tem pena dos teus semelhantes que te desprezam,
alma, para conduzi-la a Deus. Diante deste novo apelo lançado porque eles vivem de ilusões”.
pelo Cristo em direção positiva, a velha atitude do Batista pare- O homem escutava, confortado. Conforto agradável em hora
ce qualquer coisa de estéril e negativa. de esgotamento. Estava cansado. A sua natureza humana nor-
O nosso homem acorda de seu sonho. Durante o devaneio, mal, porém, sofria e revoltava-se. Por que não gozar a vida? Por
firmara a decisão de não odiar o pecado, porque assim acaba- que lutar tanto e sofrer? Ninguém o prezava por este motivo; era
ria por odiar o pecador. Jamais fazer da virtude um direito pa- considerado um néscio. Por que andar assim contra a corrente
ra condenar ou instrumento para perseguir. Ter sobretudo pie- geral? Por que renúncias? Quem lhe pagaria por tudo isto? Não
dade do pecado, para se apiedar do pecador. Com a força da era loucura desperdiçar as suas economias? Não são loucuras a
bondade, do exemplo, da virtude, com o próprio sacrifício, santidade, os ideais, os heroísmos? Não é tudo isso, para a vida,
salvar aquele que pecou. um salto perigoso que o homem de bom-senso deve evitar? De
O nosso homem volta-se para a jovem e fala-lhe: “Não é fato, o homem normal admira estas coisas, mas somente como
possível amar sem amor, como um animal. Continuarás o teu fábula e lenda, sem jamais suspeitar que todos podem e devem
romance numa bela residência onde eu te deixarei, porque a realmente realizá-las. Por que continuava ele, ao contrário, fas-
68 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
cinado e desejava vivê-las? Não podia ter sido isto simplesmente ventude para gozar, mas se desprendera de tudo isto pelo seu
a sugestão de exemplos que eram postos em destaque e utiliza- sonho de louco – fazer o bem ao próximo. Isolara-se, porque se
dos por grupos, como bandeira? Onde jamais o homem faz al- colocara fora do normal. Para que lhe servia tudo isto? Insensa-
guma coisa sem esperar retribuição e exalta o seu semelhante tez sua acreditar poder convencer os homens. Estes se riam dele
sem um interesse próprio? Cansado e triste, depois dos maiores e voltavam-lhe as costas. Quando, com a sua simples e muda
impulsos e sacrifícios, era às vezes atormentado pela dúvida. presença, mostrava reprovação com o seu exemplo, o mundo o
Sacrificar-se pelos outros é duro; todos abusam e desfrutam condenava, respondendo-lhe com rude exprobração. Qual dos
da bondade, correndo para onde existe o que tomar e somente dois tinha razão: o seu altruísmo ou o egoísmo dos outros, os
para tomar. Por fazer o bem se tornou pobre e, como tal, foi homens cheios de direitos ou ele, todo cheio de deveres?
desprezado. Precisava ganhar a vida na luta cotidiana, pois se O nosso protagonista sentou-se. Estava cansado. Apoiou a
colocara entre os necessitados. O mundo lhe mostrava tacita- fronte sobre as mãos e chorou. A luta o consumia. Entretanto,
mente a sua desaprovação, abandonando-o sozinho; o mundo ele a amava; sentia brilhar nela centelhas de luz. Apenas volta-
não o amava, ele representava uma exprobração e uma conde- da a calma, o seu eu profundo falou-lhe de novo: “Amigo, a
nação com apenas a sua presença, a sua conduta e o seu silên- tua fadiga é a mais proveitosa na vida, a única que produz fru-
cio. Se todos, desde que o mundo é mundo, tivessem agido do tos eternos. Nesta maceração que te atormenta, tu te maturas e
mesmo modo, que revolução não se teria realizado! Por que evolves. Tudo, menos isto, acaba sendo destruído pelo tempo e
continuar sacrificando-se pelo bem desta gente que não o sabia pela morte. Não te agites, repousa. Fizeste o esforço tremendo
interpretar? Sabia que, em casos semelhantes, o reconhecimen- para sair da baixa corrente do mundo, a fim de atirar-te numa
to não vem senão depois da morte, isto é, quando o homem su- outra, entre os braços de uma lei mais alta. Esta te prendeu en-
perior não pode mais falar nem agir; somente então ele passa a tre as suas espirais, arrebatando-te. Abandona-te nela e deixa-
servir aos objetivos de grupos, transformado em bandeira, atrás te levar. Deus deixa ao homem a semeadura, no entanto cabe a
da qual é mais fácil a defesa na luta pela vida. Se, na Terra, não Ele, como obra Sua, fazer crescer a semente. O bem que fizes-
conseguia nada, conquistaria ele verdadeiramente valores abso- tes, tanto rodará nos circuitos das forças cósmicas, que voltará
lutos? E onde estavam eles? Sim! O seu eu profundo falava a ti. O mal que o mundo faz, tanto rodará, que voltará a ele,
bem. A sua voz vinha de longe, como se fora um sonho, en- porque quem faz o bem ou o mal o faz a si próprio. A Lei rea-
quanto a voz hostil do mundo e a dura realidade estavam bem ge conforme nós agimos, e o mal retorna sobre nós mesmos.
próximas e claramente visíveis. Coragem! Escolheste a vida mais dura, porém a mais elevada,
Tal é o contraste entre a natureza humana e a divina, contras- a mais verdadeira. Deixa gritar o mundo dos inconscientes,
te que nasce em cada homem quando esta última floresce nele e que apenas creem nas vantagens imediatas, esperando a vitó-
se faz progressivamente mais forte, até o dia em que o domine e ria, quando na realidade, estão sendo derrotados. Deixa que os
tome a direção suprema. Vejamos em nosso protagonista como mortos sepultem os seus mortos. Os utopistas que vivem de
as duas naturezas falaram, cada uma por sua vez. Ele havia saído ilusões são os homens que creem somente nos poderes huma-
de casa entristecido com uma prova de ingratidão e incompreen- nos e na riqueza, coisas que os atraiçoam continuamente. Pros-
são. Sozinho, subira até ao alto de uma colina de onde se domi- segue, porque estás no caminho. Não voltes atrás. Não pares.
nava a cidade, e deste sítio contemplava o horizonte, a paisa- O teu sonho jamais te atraiçoará. O teu sacrifício não propor-
gem, aquelas vidas cheias de vozes mil. E perguntava-se: “Por ciona o rendimento imediato e transitório que dão as coisas do
quê? Por que corre toda aquela gente, que miragens segue, que mundo. Os teus lucros, profundamente amadurecidos no tem-
realiza e conclui? Cada um possui uma finalidade particular, po, serão sólidos e estáveis. Esta é a verdade para ti e para
mas para onde vão? Cada um possui o seu objetivo próximo, quantos escolheram a tua mesma estrada.
imediato, mas conhece os grandes objetivos distantes da vida? “Entre todas as batalhas, tu escolheste a maior da vida, a
Cada gota ignora a grande corrente na qual vão ter todas as go- que exige mais audácia: a escalada para o céu. Escolheste a via
tas. Todos fazem tantas coisas, acreditando alcançar outras de- íngreme e direta. É natural que seja a mais cansativa. Tu te
pois. Mas que significa tudo isto, qual o fim de tudo isto?”. abrasas na jornada porque vives a evolução em síntese. Os ou-
A sua natureza humana voltava a falar nele. Valia a pena tros a vivem diluída em longas experiências, avançam e retro-
sacrificar-se por este mundo indigno? O seu sacrifício não se cedem a cada passo, vítimas da ilusão em que desejam acredi-
tornava inútil como uma gota de água no oceano? Como podia tar. Deixa-os na sua lenta experimentação de análise, num labi-
a sua revolta abalar o mundo? Não era inútil o seu esforço? Não rinto de particularidades. Arrastas a tua rede e recolhes o pes-
era isto uma ilusão? Ou antes, não estaria o mundo iludido ao cado, enquanto outros ainda estão começando a tecer a sua.
seguir atrás de uma quimera somente para atrair mais dores? Eles, um dia, após árduas refregas, que atenuarão as duras an-
Ao invés de condená-lo, não poderiam os outros imitá-lo no gulosidades do egoísmo, também aí chegarão lentamente, des-
dever de salvar a humanidade? Não era o seu sacrifício um de- cobrindo o roteiro. Tu és um arauto com a função biológica não
ver, não havia outro mundo de justiça, onde ele receberia o de conservar o passado, mas de explorar o futuro, de vivê-lo
prêmio independentemente dos juízos humanos? Mas quantos como outros precursores, para fixar na Terra a nova lei do
amigos possuía que sabiam aproveitar e gozar este mundo! E Evangelho, que, na prática, ainda é desconhecida no mundo.
ele nunca soubera se aproveitar de nada! Gozar, gozar, eis a “Vai. Cada um não pode viver senão segundo a sua nature-
grande miragem. E ele a destruiu com as suas próprias mãos. za. No teu longo passado, tu te construíste assim. Fizeste o teu
Nascera rico e renunciara aos bens de herança, porque achava destino com as tuas mãos e agora não podes desertar. É fatal
que o seu dever era viver apenas do próprio trabalho, com o que sofras ajudando o próximo, porque é da Lei que quem
qual pagaria o seu tributo à sociedade. Por este motivo foi jul- mais possui mais deve dar. Tu mesmo não podes parar. A tua
gado imbecil. Utilizara a força econômica que a riqueza lhe sede de subir te queima. É fatal esta tua posição. É fatal que os
proporcionava, não para a sua satisfação própria, mas pelo bem outros se revoltem e te condenem, que se sintam abalados com
dos outros. Foi considerado um imbecil. Jamais se aproveitara o teu exemplo, para que assimilem algo e elevem-se um pouco.
da fraqueza da mulher. Recusara dinheiro ganho num jogo en- A condenação que te dão é o preço que tu, mais avançado, tens
tre amigos, porque não era fruto de trabalho, jogo este imposto o dever de pagar para a evolução deles. Esta é a tua prova. O
pelos próprios companheiros. Classificaram-no como imbecil. trabalho é, contudo, útil para os outros e para ti. Não se pode
Jamais se utilizara da sua inteligência para aparecer em desta- semear sem sacrifício, mas cada semente germinará numa no-
que no mundo, da sua posição social para dominar, da sua ju- va. Que tenhas a certeza disso. Cada criatura que beneficiaste,
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 69
mesmo que não volte mais a ti ou te cubra de ingratidão, retor- estava junto dele na pessoa do próximo, que ele queria auxiliar.
nará um dia, porque cada pensamento ou cada ato, após per- Não sabia, contudo, explicar por que tanta alegria tinha, de im-
correr o circuito das forças cósmicas, tornará à sua causa. Cada proviso, invadido a sua alma, tanta paz, tanta força, tanta certe-
exemplo teu foi visto por muitos e permanece escrito no livro za. É árduo, a princípio, aplicar a máxima: “Ama ao teu próxi-
da vida; se foi condenado e afogado na incompreensão, não mo como a ti mesmo”, mas, depois, o amor retorna de todos os
importa, ele representa um impulso indestrutível que tornará a lados, realizando o paraíso. E agora, o amor que ele, incompre-
ti na mesma forma de bem com que o geraste. Exulta na dor; endido e condenado, havia dado a todos, voltava-lhe como feli-
ajudando os outros a redimirem-se, estás redimindo a ti mes- cidade, porque é a lei de Deus. Sentiu-se, então, unido ao todo,
mo, criando o teu paraíso”. operário na obra divina.
O nosso homem agitou-se como se acordasse de um sonho. Levantou a cabeça e sacudiu-a. Confirmou-se na sua deci-
Levantou-se. O lampejo vivo das profundezas da alma o havia são. Jamais duvidaria. A potência do espírito vencera para
iluminado. Nova luz brilhava nos seus olhos. Que potência, en- sempre.
tão, existia na profundidade do espírito para emergir deste mo-
do e transformar o homem? As suas dúvidas desvaneceram-se
como névoas; reencontrara a sua própria consciência. Não se FIM
sentiu mais sozinho, nem cansado, nem pobre, nem triste. Deus
O MISSIONÁRIO
Vida e Obra de Na primeira semana de setembro de 1931, depois da grande decisão fran-
ciscana, Cristo novamente lhe apareceu e, desta vez, acompanhado de São

Pietro Ubaldi Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-
tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de
Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.
Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-
(Sinopse) gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua
missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a
mesma linguagem e conteúdo divino.
O HOMEM No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-
nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem
Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-
18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do
onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi- mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros
ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-
as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:
grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais 01) Grandes Mensagens
e os prazeres deste mundo. 02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito
Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo
03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento
franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia
sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci- 04) Ascese Mística
onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei- 05) História de Um Homem
ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As- 06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão
sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana. 07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio
Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen- 08) Problemas do Futuro
te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual. 09) Ascensões Humanas
A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien- 10) Deus e Universo
tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos
Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além
praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no
de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-
interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à
se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra
família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas
ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos
lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade
na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.
se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e
O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-
aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-
ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-
ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-
dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um
ência a palavra “evolução”. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a
ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-
leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-
são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-
carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-
pletar sua tarefa missionária.
piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-
Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de
nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.
conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-
Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-
guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-
mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se
posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um
poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-
convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno
tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e
lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para
religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX.
com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-
Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-
sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.
mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A
Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-
Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-
cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em
ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano
São Vicente, no edifício “Iguaçu”, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.
Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como
Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício “Nova Era” (coin-
prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.
cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça
Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-
22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-
colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina
tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada
educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para
brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:
o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-
11 ) Profecias
fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-
va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino. 12 ) Comentários
Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos. 13 ) Problemas Atuais
Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: 14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo
Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em 15) A Grande Batalha
1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975). 16 ) Evolução e Evangelho
Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con- 17) A Lei de Deus
ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma- 18) A Técnica Funcional da Lei de Deus
trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de
19 ) Queda e Salvação
pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando
aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a 20 ) Princípios de Uma Nova Ética
maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi 21) A Descida dos Ideais
assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran- 22 ) Um Destino Seguindo Cristo
ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava 23 ) Pensamentos
todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente. 24) Cristo
Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-
Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa
– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande
transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-
Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,
durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-
humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São
– Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha. José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-
A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – “Gêne- do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de
se da II Obra”): dos 5 aos 25 anos  formação; 25 aos 45 anos  maturação in- poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.
terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos  Obra Italiana (produção concep- A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma
tual); dos 65 aos 85 anos  Obra Brasileira (realização concreta da missão). nova concepção de vida.

You might also like