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A DESCIDA DOS IDEAIS

P R E F Á C I O ........................................................................................................................................................... 1

I. A DESCIDA DOS IDEAIS. ESTRUTURA DO FENÔMENO........................................................................... 3

II. A HUMANIDADE EM FASE DE TRANSIÇÃO EVOLUTIVA ..................................................................... 7

III. O CRÍTICO MOMENTO HISTÓRICO ATUAL. O INÍCIO DE UMA NOVA ERA. .............................. 10

V. A EVOLUÇÃO DAS RELIGIÕES..................................................................................................................... 40

VI. SINAIS DOS TEMPOS - JEAN PAUL SARTRE ........................................................................................... 42

VII. OS IDEAIS E A REALIDADE DA VIDA ...................................................................................................... 47

VIII. DESENVOLVIMENTO DO CRISTIANISMO ............................................................................................ 57

X. A CRISE DO CATOLICISMO........................................................................................................................... 68

XI. PSICANÁLISE DAS RELIGIÕES E ............................................................................................................... 74

ASPECTOS DO CRISTIANISMO.......................................................................................................................... 74

XII. CIÊNCIA E RELIGIÃO .................................................................................................................................. 96

XIII. TRABALHO E PROPRIEDADE ................................................................................................................ 102

Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)....................................................................................página de fundo


Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 1
Estes volumes finais, dos quais o presente faz parte, são im-
A DESCIDA DOS IDEAIS portantes não só porque derivam de um sistema conceptual or-
gânico, mas também porque, em de vez de se apoiarem numa
doutrina particular, apoiam-se sobres bases positivas e univer-
sais, tal como as leis que regem a vida e representam a mani-
PREFÁCIO
festação do pensamento de Deus em nosso plano de evolução.
Estas leis existem e, para funcionarem, como de fato sucede,
Para compreender o significado do presente livro, devemos não necessitam absolutamente de nossas opiniões. Elas cami-
vê-lo enquadrado no seio da Obra da qual ele faz parte. Esta é nham independentemente das verdades sustentadas por qual-
composta de 24 volumes, ligados sucessivamente um ao outro, quer grupo humano, seja ele partido ou religião, e, indiferentes
como anéis de uma cadeia. Cada um deles representa uma fase ao fato de as negarmos ou ignorarmos, continuam sempre fun-
da construção, um andar, de um edifício único, que constitui a cionando, como podemos verificar. Elas abrangem integral-
Obra. Tal estrutura não foi premeditada, mas se deveu ao fato mente a vida, e isto inclui também a vida espiritual, monopoli-
de cada volume ter sido vivido pelo autor, que teve representa- zada pelas religiões. O ponto de referência, portanto, é sólido,
do, no desenvolvimento da série, o espontâneo amadurecimento sendo ele visível, atual e objetivamente controlável, sem neces-
de seu pensamento e personalidade. sidade de mistérios, revelações, fé, reconstruções históricas ou
Vejamos, pois, em que ponto da Obra se encontra, em rela- fatos longínquos. Trata-se de um pensamento sempre presente,
ção aos outros, o presente escrito. O termo central dela é o li- que sabe falar e se fazer entender nos fatos, castigando-nos
vro O Sistema, preparado pelo volume Deus e Universo, atra- com as suas reações vivas e a sua lógica inflexível.
vés do qual o leitor é conduzido àquele, ambos completados Somente com tal visão realista, que abarca todos os aspec-
por A Grande Síntese, que os precede e projeta uma visão tos da vida, incluindo os espirituais, é possível convencer as
mais próxima e acessível, apresentando o aspecto evolutivo do novas gerações. É com esta finalidade de bem que a usamos e a
nosso universo. Colocadas assim as bases teóricas da doutrina, oferecemos para a salvação dos valores espirituais, apresen-
a ideia apresentada em O Sistema é então desenvolvido mais tando-a numa forma positiva, tal como se exige hoje, para que
detalhadamente no volume Queda e Salvação. uma ideia possa ser aceita. Novas correntes de pensamentos
Chegando a este ponto, após toda a teoria ter sido expos- estão agora amadurecendo rapidamente. O catolicismo, obri-
ta, entra-se agora, com os volumes que se seguem, na fase gado a se mover, a fim de não ficar abandonado para trás, está
das suas consequências e aplicações. Ela é agora transporta- chegando em último lugar, ofegante, e apressa-se em atualizar-
da ao terreno prático da sua realização, para controle de sua
se. Lançando Concílios, vota neles a favor do princípio da li-
verdade. Entramos na fase de conclusão da Obra. Assim nas-
berdade de consciência e procura um diálogo com as outras
ceu o volume Princípios de Uma Nova Ética, que se refere a
Igrejas cristãs, abrindo os braços aos irmãos separados, mas
problemas de moral, psicanálise, personalidade humana etc.
só para que eles façam o esforço maior de aproximação em fa-
A ele segue-se o presente volume, A Descida dos Ideais, que,
vor da Igreja Católica. Sua ação, assim, resume-se a movimen-
por sua vez, aborda o problema religioso, tema importante,
tar-se no sentido de salvar a sua posição de domínio.
pois é através das religiões que se realiza na Terra a descida
Por outro lado, o autor, a quem não interessa esta luta re-
dos ideais, interessando à vida no seu ponto central: a evolu-
cíproca pela defesa do próprio grupo, vê-se constrangido a
ção (a salvação, com o retorno a Deus). Estamos preparando
resolver seus graves problemas, que são de outra natureza,
o volume sucessivo a este, Um Destino Seguindo Cristo, no
qual se avança sobre as mais concretas consequências e rea- tratando de solucioná-los por si mesmo. Ele começa a pensar,
lísticas aplicações das teorias básicas, apresentadas na forma não mais se adaptando a representar, só pelo fato de ser um
vivida por um indivíduo que as aplica, transportando-as para fiel, o papel da tradicional ovelha do rebanho, obrigado à
a bancada das experiências e das provas da realidade cotidi- obediência da autoridade. Assim não se detém em inúteis dis-
ana, em contato com os fatos, tal como eles se verificam em sensões teóricas, mas, pelo contrário, dispõe-se a enfrentar e
nosso mundo. Então a visão global das verdades universais é resolver por sua conta os seus próprios problemas. Pode até
observada novamente, em suas particularidades, transferida achar inoportuno o fato de uma religião, que, ao contrário da
para outro nível e dimensão, em função de outros pontos de ciência, não é competente na matéria, ter de imiscuir-se nos
referência, situados em nosso plano de evolução. Assim, a seus assuntos, sem ser consultada. Então, pensa ele, sobre
atual zona de pensamento torna-se complementar da teoria que bases positivas apoia-se a prerrogativa na qual elas se
fundamental, pois esta constitui abstração longínqua da rea- arrogam o direito de invadir a sua consciência, entrando num
lidade de nosso mundo, enquanto aquela, pelo contrário, pro- terreno que é dele, onde, portanto, é ilícita qualquer intromis-
põe-se a submetê-la a controle experimental, para demons- são de estranhos? Para falar com Deus, não se necessita de
trar-lhe a verdade. Com Um Destino Seguindo Cristo, a se- intérpretes e tradutores. Isto constitui violação de domicílio
gunda Obra vai chegando ao fim. espiritual. O indivíduo consciente rebela-se contra esta falta
Os outros volumes, surgidos ao longo do caminho, represen- de respeito ao seu direito de pensar segundo a sua consciên-
tam ramificações dos conceitos fundamentais, onde se fazem cia e conhecimento, tanto mais que semelhante invasão auto-
exposições colaterais exemplificativas e complementares, para ritária se faz em nome de Deus.
melhor iluminar, detendo-se em problemas secundários. Trata- Por tudo isto, oferecemos nestes livros o conhecimento para
se de digressões que, originadas no tema central, comprovam- que o indivíduo pense e compreenda por si mesmo, a fim de que
no e aprofundam-no, pois ele é o ponto de referência de toda a ele forme uma consciência própria para sua vantagem, e não a
Obra. O quadro se completa em sentido não só universal, mas serviço dos interesses de um grupo. Sem nenhuma imposição
também particular, compondo-se de tantos elementos quantos nem obrigação de acreditar, ele aceitará apenas se quiser, li-
são os vários volumes, ligados ao longo da linha de desenvolvi- vremente, porque compreendeu e está convencido. Não pedi-
mento de um processo lógico “único”, evidenciado pela sua mos fé, não apresentamos mistérios, nem sequer recorremos a
continuidade. Só agora, que estamos no final e abarcamos com um alto nível teológico. Explicamos tudo claramente, para que
um olhar retrospectivo todo o caminho percorrido, pode apare- cada um veja e julgue por si próprio. O jogo medieval da obe-
cer de maneira evidente, sendo possível formar uma visão de diência, baseado no princípio da autoridade, não impressiona
conjunto, a unidade fundamental de toda a Obra. mais. Hoje, não se chega à adesão por sugestão ou obrigação,
2 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
mas sim por demonstração e convicção. Perante a não solici- que, no seio da cristandade, seja católica ou protestante, pre-
tada intromissão de terceiros na sua consciência, o indivíduo, valeceu o princípio involuído da rivalidade e da luta, e não o
por direito de legítima defesa, protege-se, assim como, em ple- do amor, princípio espiritualmente superior. Estamos, pois,
no direito, protege a sua casa e haveres contra qualquer inva- situados no polo oposto daquela unificação que o amor cris-
sor, ou até mesmo com maior direito, porque a casa do espírito tão deveria estar. Eis que à grande unidade de pensamento
vale muito mais. Deve-se respeitar a propriedade individual, e religioso não se poderá chegar senão pelas vias da ciência.
não há razões históricas ou teológicas que possam autorizar a E, espiritualmente, isto representa uma grande vantagem,
violá-la. No entanto, até mesmo ontem, estas violações foram porque uma ciência sincera e honesta, esclarecendo as posi-
realizadas por parte de quem possuía a autoridade e se atuali- ções, reforçará o verdadeiro espírito de religiosidade, que es-
zava ao longo do tempo, de modo que tudo ficava como se nada tá desaparecendo nas atuais religiões empíricas. A religião
tivesse sucedido, porque a autoridade, uma vez reconhecida científica, porque demonstrada como verdadeira, não pode
pelo fato de ser a mais forte, podia fazer e desfazer a sua ver- permanecer no estado de hipocrisia, impossibilitada de ser
dade como melhor lhe conviesse. Isto pode suceder somente na tomada a sério. Esta será a religião do Terceiro Milênio, feita
mente humana, mas não nas leis da vida, segundo as quais não não de autoridade e palavras, mas sim de livre convicção e de
é possível apagar gratuitamente nenhum erro, cujas conse- fatos. Não será proselitista, sectária, fideísta, dogmática, ex-
quências, pelo contrário, é inevitável suportar. clusivista, mas sim positiva, racional, demonstrada, convicta,
O presente volume, por tratar de problemas religiosos, é universal. Nossa Obra será compreendida quando o homem
de atualidade. Com ele, a Obra, depois de longo caminho, chegar a este mais avançado grau de evolução.
chega às suas conclusões também neste terreno. Isto num mo- A isto se chegará não só pela ação positiva e construtiva
mento em que o mundo se encontra perante graves problemas, das forças do Sistema, mas também pela ação negativa e des-
que exigem solução urgente, razão pela qual ele se pôs a pen- trutiva das forças do Anti-Sistema, ambas ativas em nosso
sar e tem necessidade de conhecimento. Encontramo-nos todos mundo. Em relação ao aspecto negativo, observamos agora
numa gravíssima hora histórica, de grandes decisões e trans- dois fatos convergentes, que tendem a levar o mundo a uma
formações. Já não serve o velho e cômodo método de esperar guerra atômica. De um lado, o velho egoísmo, o espírito de
que a autoridade espiritual decida, para descarregar sobre ela domínio e o instinto de violência, não obstante as religiões, fi-
as responsabilidades que nos pertencem. O indivíduo deve caram intactos no homem, ainda fechado na lei da luta, quali-
chamá-las a si, colocando-se de olhos abertos e ânimo sincero dade involuída do plano animal, situado no lado do Anti-
com os seus problemas, perante as honestas e sábias leis da Sistema. Do outro lado, com semelhante natureza, o homem
vida. Nestes livros, procuramos iluminar imparcialmente to- chegou repentinamente a ter em seu poder meios de destruição
dos os caminhos, para que o homem, por si próprio, encontre que, se antes eram limitados e, portanto, não podiam produzir
o seu, devendo ele mesmo pensar, compreender e decidir. Não senão efeitos limitados, hoje, sendo poderosíssimos instrumen-
buscamos obediência, e sim compreensão. Queremos ajudar, tos de extermínio, podem chegar ao aniquilamento da humani-
mas a vida exige que tudo seja ganho com o próprio esforço. dade. O homem não se encontra absolutamente preparado pa-
Ela chegou hoje a uma curva do seu caminho, depois da qual ra saber usar com sabedoria semelhante poder novo, pois a
será diferente e, por isso, exigirá métodos diversos. É para sua forma mental não progrediu com a mesma rapidez e pro-
este novo trabalho que procuramos nestes livros preparar o porção daqueles poderes, tendo pelo contrário permanecido
leitor para enfrentar o futuro. Por isto falamos aqui de ideais igual à do primitivo, dirigida em grande parte por velhos ins-
e de sua descida, fazendo-o de forma positiva, porque agora tintos. Em tal situação, é muito duvidoso que ele saiba fazer
trata-se de realizá-los a sério, passando das palavras aos fa- bom uso de tais meios. As duas condições, de fato, estão conec-
tos. Os ideais estão colocados exatamente neste futuro próxi- tadas: imensos poderes e instintos atrasados. Não se sabe re-
mo, que se aproxima a grandes passos, e eles são uma reali- solver as divergências entre os povos senão com a força, base
dade insuprimível, porque suprimi-los significa estancar o de todo o direito, e as religiões aceitam este estado de fato. Pa-
desenvolvimento da humanidade. ra quem ainda não se armou, não resta senão esperar a sorte
Neste futuro próximo, a ciência se prepara para demonstrar dos vencidos. É assim que a posse da bomba atômica se tornou
positivamente que o homem é também espírito e que, como tal, uma necessidade defensiva para todos. Hoje a guerra se trans-
ele sobrevive à morte, voltando depois a ter experiências no feriu para esta nova dimensão. Assistimos uma corrida univer-
plano de nossa vida física, prosseguindo cada vez mais em as- sal de produção dessas bombas, de maneira que o mundo se
censão, até percorrer todo o caminho evolutivo, que se realiza enche cada vez mais delas. Assim, cada dia aumenta a probabi-
com o retorno a Deus. Por este caminho se chegará a uma re- lidade de que se inicie uma explosão em cadeia, impossível de
ligião científica, que eliminará tanto o materialismo ateu como ser detida, o que significa uma carreira para a morte.
as religiões fideísticas. A ciência dominará positivamente o ter- A Obra surge neste momento histórico para explicar como
reno que hoje ainda se encontra nebuloso, nas mãos das religi- funciona tudo isso e, assim, levar à compreensão e à sabedo-
ões. Em vez de lutarem para eliminar-se, a ciência e fé se com- ria. É mais fácil não considerá-la. Mas não se pode impedir
pletarão inteligentemente, de forma recíproca. Teremos então que os fatos continuem a se verificar segundo nossa ótica,
uma religião científica e uma ciência religiosa. A natureza uni- conduzindo-nos às mencionadas conclusões. De resto, segun-
versal da ciência positiva eliminará o espírito exclusivista que do as leis da vida, o involuído tarda em compreender, não sa-
separa as religiões atuais, para fazer delas, em vez de diversos bendo aprender a evoluir senão através da dor. A vida sabe
aspectos de verdades em luta, uma só verdade universal. disso e o trata de acordo. Com semelhante biótipo não se pode
Não é por meio das tentativas do atual ecumenismo cató- chegar à compreensão por outro caminho. A tal resultado
lico que se chegará à unificação do pensamento religioso conduzirão dois fatos: 1) A evolução, que impulsiona o homem
mundial. Este ecumenismo tende a uma unificação muito mais para frente, amadurecendo sua mente; 2) A dor, que o castiga,
restrita, apenas entre parentes da mesma família religiosa. obrigando-o a pensar. É em tal momento histórico e sobre se-
Ele pode, em substância, reduzir-se a um chamado à casa pa- melhante quadro de acontecimentos apocalípticos que aparece
terna no sentido da absorção de ortodoxos e protestantes no a Obra, da qual o presente volume faz parte.
catolicismo, para que se submetam a Roma. Por outro lado, a
antítese plurissecular entre Reforma e Contra-Reforma, prova S. Vicente, Natal de 1965.
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 3
I. A DESCIDA DOS IDEAIS. transformou, para adaptá-lo às suas necessidades, e, quanto mais
ESTRUTURA DO FENÔMENO hostil é o ambiente, tanto mais dura, violenta, feroz e desapieda-
da é a luta para sobreviver. Além disso, corresponde aos princí-
Observaremos neste volume, sob vários de seus aspectos, pios que regem a estrutura de nosso universo o fato de ser a vida
um fato fundamental na técnica de realização da evolução, tanto mais carregada de dificuldades e dores quanto mais involu-
constituído pelo fenômeno da descida dos ideais. Que significa ída ela for, isto é, quanto mais longe estiver do S e mais próxima
isto, porém? Descida de onde? Costuma-se dizer do alto. Mas, se encontrar do AS. Com a transformação do ambiente e a con-
que é o alto? O alto é o Sistema, que, na cisão do dualismo, re- sequente melhor satisfação das próprias necessidades, diminui a
presenta Deus ou o lado positivo, em oposição ao lado negati- necessidade de lutar, reduzindo a violência e a ferocidade exigi-
vo, dado pelo Anti-Sistema, na posição antagônica de anti- das para sobreviver. Com a diminuição das resistências hostis à
Deus. Para abreviar, indicaremos o Sistema por S e o Anti- vida do homem, ele pode, sem perigo para si, diminuir a parcela
Sistema por AS. O fenômeno central de nosso universo é a evo- de energia que deve consumir na luta. É assim que o sistema de
lução. Ela representa o trabalho de reconstrução do S a partir de violência tende, pouco a pouco, a ser eliminado.
suas ruínas, que constituem o AS. Segue-se, em consequência, Mas, com isso, cessará a luta por completo? Não. A luta
que a evolução contém diversos graus de aproximação ao S. O para transformar o AS em S não pode cessar senão no ponto
homem encontra-se num desses graus; o animal, num mais final da evolução, ou seja, quando se alcançar o S, com a anu-
atrasado; o super-homem, num mais adiantado. lação do AS. A luta nasceu da cisão no dualismo e não pode
O alto significa, portanto, um grau mais evoluído em compa- desaparecer enquanto esta cisão não for sanada, reabsorvendo
ração com um menos evoluído, que, em relação ao primeiro, po- o dualismo com a reunificação de tudo no S, através do retor-
de ser definido como involuído. Descida dos ideais do alto signi- no de tudo a Deus.
fica transferir a lei de um nível biológico mais avançado para um A luta não cessa, transforma-se. Quando a humanidade
menos avançado. Isto representa, para quem vive neste nível, começa a se reunir em grupos sempre mais vastos, organizan-
uma antecipação da evolução, porque a influência do ideal per- do-se em sociedade, a ajuda recíproca no comum interesse da
mite realizar a passagem para aquele mais alto nível biológico. defesa torna menos dura a luta contra o ambiente, tendendo,
Ao conceito de descida dos ideais poderemos dar uma base posi- portanto, a fazer desaparecer, como menos urgente, o sistema
tiva, aderente à realidade da vida, assim como aos efeitos deste da força e da violência, que tão profundas feridas deixa em
fenômeno poderemos dar depois um sentido espiritual, não só de quem lhes sofre os efeitos. Nesse momento começa, com a
evolução biológica positiva, mas também de subida para o ideal, disciplina das leis, um processo de ordenação da vida e de cer-
de ascensão das almas em direção ao Céu. Usa-se neste caso ou- ceamento daquele sistema, que, mesmo podendo momentane-
tras palavras e imagens. Mas, desse modo, podemos saber o sig- amente beneficiar quem o pratica, é uma constante ameaça pa-
nificado delas com base num positivo ponto de vista biológico. ra aqueles contra quem ele é utilizado. Que pode fazer então o
Uma tal colocação do problema nos dá a chave para com- indivíduo, quando ele, desta maneira, precisa lutar cada vez
preender a estrutura e o desenvolvimento do fenômeno desta menos contra um ambiente já dominado sobretudo pelos seus
descida. Se, de um lado, temos o alto, que significa níveis de semelhantes, que o cercam e o oprimem, para torná-lo inócuo,
evolução mais avançados, temos de outro lado o nosso mundo, procurando envolvê-lo e prejudicá-lo.
que representa níveis mais atrasados. O fenômeno da descida Então a luta se torna mais sutil, processando-se de forma
dos ideais é dado pela conjunção destes dois termos, que se legal e moral, armada de astúcia, fraude, engano e dissimula-
aproximam um do outro, o lado S tomando corpo no biótipo ção. Esta é a fase atual, na qual a violência, pelo menos dentro
evoluído, e o lado AS no biótipo involuído. Na realidade, trata- dos limites de um país, é condenada como delinquência, apesar
se de duas ideias ou princípios distintos, que, incorporando-se de, no caso de ocorrer fora dele e durante a guerra, ser conside-
nestes dois biótipos opostos, entram em contato através das rada um ato honorífico e de valor. Se, no entanto, a violência é
ações e reações de cada um deles, com a finalidade de realizar a hoje condenada, a astúcia e o engano estão em plena vigência,
evolução. Tal fenômeno é dirigido pela lei de Deus, que, com como método de luta pela vida. Com este método, perante as
esta descida, está empenhada, assim como o destino de quem leis, não se procura obedecer, mas sim evadir-se, assim como,
trabalha apoiado nesta lei, em realizar a salvação do ser. perante o próximo, não se procura colaborar, mas sim explorar.
Para compreender o fenômeno da descida, é necessário, an- Todavia ser agredido e roubado legalmente já representa um
tes de tudo, entender como funciona a lei biológica terrestre no certo progresso em comparação a ser assassinado na estrada. A
nível humano e quais as técnicas com que suas formas evolu- própria técnica do delito está, portanto, submetida à evolução,
em. A existência no plano animal-humano baseia-se na lei da sendo hoje possível observar que, com isso, evita-se sempre
luta pela vida. No entanto esta não é uma lei universal e defini- mais a violência e o derramamento de sangue, para não agravar
tiva, mas apenas relativa a este plano e, por isso, destinada a a pena legal, procurando-se a posse com artes mais sutis, atra-
desaparecer com a evolução. Como pode isto suceder? vés do furto, que é mais vantajosa.
Eis o que se apresenta na realidade. O ser quer viver e, por Vejamos agora aonde nos levará este processo de evolução
isso, luta. Mas por que motivo é necessário lutar para viver? da luta. A razão fundamental dela é sempre a mesma: sobrevi-
Porque o ambiente é hostil e a vida, com o fim de assegurar sua ver com o menor esforço possível. A vida está pronta a aceitar
continuidade, cria com superabundância, para depois selecionar tudo o que leva para este fim, buscando o máximo rendimento
os melhores, abandonando os outros à morte. Assim, se alguma em termos de bem-estar, com o mínimo dano próprio. Ora, ape-
espécie encontrar oportunidade e for favorecida por um ambi- sar de em menor grau do que o da violência, o sistema astúcia-
ente adequado, torna-se potencialmente capaz de ocupar todo o engano ainda contém um mal, dado pelo prejuízo resultante pa-
planeta. Mas eis então que, além da adversidade dos elementos, ra os vencidos, os escravizados e os esmagados. A violência
surge a competição entre indivíduos e raças, justamente como mata a vítima. A astúcia a deixa viva, mas arruinada. As feridas
consequência daquela geração superabundante. Ora, quanto permanecem impressas no subconsciente e não são esquecidas.
mais faltar a cada um o espaço vital e os meios para sobreviver, Antigamente, os vencidos, se quisessem sobreviver, eram obri-
tanto mais se torna feroz a luta para conquistá-los. É assim que gados a se fortalecer cada vez mais. Porém, agora, pela mesma
a luta se torna inevitável, assumindo uma forma tanto mais fe- razão, são obrigados a se tornar cada vez mais astutos e inteli-
roz quanto mais primitivo é o ser, porque, quanto mais ele é gentes. Eis que novamente, também aqui, o mal é automatica-
primitivo, tanto mais lhe é hostil o ambiente, que ele ainda não mente levado à sua autodestruição.
4 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
Manifesta-se assim uma tendência a cercar e restringir gra- grupo, ou seja, do recinto da confraternização, existe a guerra,
dualmente o sistema da astúcia, por duas razões: 1a) Porque o mas dentro dele há liames de interesses comuns, onde o não
homem se dará conta do imenso custo que o consequente méto- provimento à sobrevivência dos outros significa atraiçoar-se a
do da desconfiança, pelo fato de exigir controle contínuo, repre- si mesmo. Quanto mais o grupo de que se faz parte aumenta,
senta como dispêndio de energia e perceberá o quanto é contra- tanto mais o egoísmo se dilata e a guerra é afastada para mais
producente tal método, pelos atritos produzidos e pelos danos longe, afastando-se para limites cada vez mais distantes. Quan-
provocados no vencido, cujo resultado é a geração de um mate- do esta aliança de egoísmos se tornar universal, não haverá
rial negativo que, permanecendo em circulação na atmosfera mais lugar para a guerra. Então, terá desaparecido aquilo que
respirada por todos, não pode acabar senão caindo em cima de chamamos de egoísmo, ou seja, aquele egoísmo restrito a um só
alguém; 2a) Porque, existindo a probabilidade de que todos so- indivíduo, pois ele se haverá estendido tanto, que abraçará to-
fram estas duras consequências, compreender-se-á não somente dos num egoísmo universal, o qual chamamos altruísmo. Hoje,
a contínua ameaça e a falta de segurança que tal método repre- a multiplicação dos contatos, devido aos novos meios de comu-
senta, mas também a imensa vantagem que é para todos seguir, nicação, começa a encaminhar a humanidade para ampliações
pelo contrário, o método da sinceridade e da colaboração. altruístas cada vez maiores do velho egoísmo.
É por este caminho que, por fim, o sistema de luta acabará Segundo as três mencionadas fases de evolução, verifica-se
sendo superado. Esta transformação corresponde a um processo igualmente o fato de que os meios fraudulentos substituem os
de saneamento do separatismo, fruto da queda. Com isso, será violentos, da mesma forma como, depois, os métodos colabora-
alcançada a reunificação, fruto da reconstrução evolutiva. Neste cionistas substituem os fraudulentos. Agora, a humanidade se
processo, os elementos separados tendem sempre mais a se re- encaminha para entrar nesta terceira fase. Assim se transforma-
unir, até se fundirem, reconstruindo o seu estado orgânico ori- rá também para o homem a lei da luta pela vida. Trata-se, na
ginal. Temos, pois, três fases, que representam as possíveis po- verdade, de uma fase que, apesar de numa forma mais simples e
sições em que o homem pode se encontrar: limitada, já foi alcançada, por exemplo, pelas abelhas e pelas
1o) O homem isolado, que luta contra a natureza – Plenitude formigas, fato com o qual se comprova que a vida já conhece
do método da força-violência. tais métodos. Caminhando-se em frente no caminho da evolu-
2o) O homem reagrupado em sociedade, que deve, portanto, ção, primeiramente a violência diminui em favor da fraude, mal
lutar menos contra a natureza, mas que permanece ainda rival menor que substitui o maior, depois a fraude, por sua vez, di-
dos outros componentes do grupo – Desuso do método força- minui em favor da sinceridade e da colaboração. Com isto, ex-
violência, o qual é substituído pelo método da astúcia-fraude. plica-se a razão pela qual existe em nosso mundo a mentira,
3o) O homem integrado no estado orgânico de coletividade, que é portadora de uma função biológica, e compreende-se
que, pelo fato de haver, com o método precedente, desenvolvi- também por que a evolução levará à sua futura eliminação.
do a inteligência, acabou por compreender quão contraprodu- Será uma grande conquista e um alívio para todos libertar-
cente é o sistema astúcia-fraude e quão vantajoso é superá-lo – se do peso da hipocrisia, da fadiga de praticá-la e de suportá-la.
Adoção do método da sinceridade-colaboração, para alcançar Com o desenvolvimento da inteligência, a humanidade chegará
com menor esforço um maior bem-estar. a isto, e o mesmo acontecerá também em relação à guerra. As
O problema está em desenvolver a inteligência, para se che- religiões e a moral representam a descida dos ideais e traba-
gar a compreender qual é o método de maior vantagem. Mas é lham neste sentido, para libertar a humanidade dos métodos
justamente para alcançar este objetivo que o erro produz sofri- fraudulentos da luta pela vida, substituindo-os por um senti-
mento. É por isso que, enquanto não se aprende a eliminá-lo mento de solidariedade social e de ajuda recíproca, num estado
com uma conduta reta, a ignorância significa dano. Vive-se e de colaboração e convivência pacífica. O que nos impede de
sofre-se exatamente para se aprender. chegarmos a viver numa posição mais vantajosa para todos é
Atualmente, a humanidade se encontra na segunda das três somente a ignorância. E não há outro método para eliminá-la,
referidas posições. Assim se explica como hoje, na Terra, os senão sofrer as duras consequências do estado atual. Sofrer até
ideais, incluindo aqueles representados pelas religiões, tendem ser obrigado a procurar aquela posição melhor – que, com a ex-
a se manifestar em forma de hipocrisia, gerando então a indús- periência adquirida, pode ser encontrada mais facilmente – e
tria da exploração do sentimento religioso. depois, para permanecer nela, compreender, com o desenvol-
Este desenvolvimento em três graus pode parecer como uma vimento da inteligência, que isso é melhor. Trata-se de conquis-
supressão do egoísmo em favor do altruísmo, mas significa na tar novas qualidades, porque não adianta sobrepor novos siste-
realidade a sua dilatação e ampliação, e não destruição. A vida, mas econômicos, sociais ou políticos a indivíduos imaturos.
sempre utilitária, não permite desperdícios inúteis para os seus Trata-se de eliminar o atávico antagonismo individual, desen-
fins, de modo que não admite altruísmos completamente nega- volvendo o espírito de associação, de modo que as forças dos
tivos, totalmente improdutivos. Ela não passa, portanto, do ego- indivíduos isolados não se eliminem, destruindo-se numa luta
ísmo para um altruísmo como um fim em si mesmo, mas so- recíproca, mas, ao contrário, possam se somar num estado de
mente quando isso representa uma vantagem. É por essa razão cooperação. Assim se obtém um rendimento imensamente mai-
que ela supera o método da luta entre egoísmos rivais e o subs- or, tornando-se muito fácil resolver o problema da sobrevivên-
titui pelo método mais produtivo da solidariedade humana. A cia, biologicamente fundamental.
vida não alcança o altruísmo através de sacrifícios contraprodu- Na terceira das três referidas fases, a orgânica, a atividade
centes, que constituem renúncia antivital, mas sim através de que se substitui à luta do primeiro e do segundo tipo é o traba-
um egoísmo vital, porque utilitário e sempre mais vasto. Então lho. O ambiente onde se vive foi gradualmente domesticado
o altruísmo não significa mais mutilar-se a si próprio em favor com a civilização, através das leis e da educação. A violência
do egoísmo dos outros, mas sim em ver-se a si mesmo refletido foi eliminada da vida social, tendo-se compreendido, por fim,
no próximo, incluindo-o no próprio egoísmo. Desse modo, como é contraproducente esforçar-se tanto para se enganar re-
forma-se o primeiro núcleo, destinado a se dilatar sempre mais. ciprocamente. Pode-se, então, alcançar a terceira fase num am-
Começa-se com um pequeno egoísmo do casal, do qual nasce biente não mais hostil, entre companheiros não mais rivais,
depois o do grupo familiar, de onde se chega depois ao de gru- porque agora, trabalhando todos juntos, o problema da sobrevi-
pos sempre mais vastos: a aldeia, a casta, o partido, a nação e, vência está resolvido, não havendo mais a necessidade de usar
por fim, a humanidade. Trata-se de um progressivo processo de o método da luta, que era inicialmente necessário para sobrevi-
unificação, segundo o princípio das unidades coletivas. Fora do ver. Mais adiante, observaremos quais outros problemas podem
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 5
surgir depois, quando se supera também esta fase. Veremos crimes. Quanto ao significado daquela crucificação perante o
quais os perigos oferecidos por um bem estar assegurado para Céu, ao mundo não lhe interessa saber. Hoje culpa-se os judeus
um biótipo que, ainda provido da velha forma mental, propor- por deicídio, como se fosse possível matar Deus! Se assim ti-
cionada aos métodos de vida precedente, não está habituado a vesse sido, eles seriam os seres mais poderosos do universo. No
isso. Neste capítulo basta haver constatado a necessidade bioló- entanto aquele delito não foi apenas de um povo, mas sim de
gica pela qual a evolução deve levar à realização do princípio toda a humanidade, que o repete até hoje, perseguindo inocen-
de solidariedade social, baseado sobre o fato positivo da utili- tes, inclusive em nome de Deus. Segue-se, então, que tão gran-
dade de se associar, para melhor vencer na luta pela sobrevi- de escândalo não deu resultados positivos.
vência. É assim que se passa da fase de antagonismos entre As resistências das coisas velhas são imensas. Enquanto o
egoísmos rivais à da colaboração. Nesta nova posição, o indiví- egoísmo das vítimas, seguindo as leis do plano humano, não
duo se sentirá muito mais protegido e com mais potencialidade, conseguir organizar-se para se impor ao egoísmo dos que provo-
porque não se encontrará mais isolado dentro de uma natureza cam os danos, obrigando-os a respeitar os direitos de todos, ha-
hostil, cercado por inimigos, mas sim integrado e funcionando verá sempre lugar para os desonestos, com vantagem para eles e
como elemento dentro de um grande organismo. prejuízo para os demais, não se passando jamais à fase de acor-
A utilidade da associação para vencer na luta pela vida é um do e equilíbrio, na qual se supera esse sistema. Este fato justifica
fato positivo, portanto, uma vez que a vida é utilitária, torna-se e torna necessária a presença das leis e das respectivas sanções
inevitável que ela evolua nesta direção. Por isso é fatal que se punitivas, para estabelecer uma ordem na sociedade. Mas tam-
acabe passando ao sistema orgânico de cooperação, em substi- bém justifica a rebelião, quando essas leis não correspondem à
tuição ao atual de guerras econômicas, de luta entre classes so- justiça, sendo feitas por um grupo dominante e a favor dele. Daí
ciais e de guerras armadas para a destruição universal. Mas co- a origem da revolta para estabelecer uma ordem que dê cada vez
mo poderá, na prática, surgir uma substituição tão radical de menos vantagem para apenas uma parte e seja sempre mais uni-
método? O sistema da força, assim como o da astúcia, mesmo versal, defendendo os interesses de um número cada vez maior
sendo o segundo mais refinado que o primeiro, são sempre ba- de pessoas, até chegar a abranger a todos. Então terá sido reali-
seados num egoísmo fechado em si mesmo e na consequente zado o salto biológico, vivendo-se num regime de altruísmo, jus-
desonestidade para com o próximo. Ora, abrir este egoísmo em tiça e honestidade. Permanece, então, de pé o princípio funda-
direção ao próximo, assumindo a consequente honestidade para mental de que a vida não dá nada gratuitamente, mas apenas
com ele, constitui uma profunda transformação de tipo biológi- oferece aquilo que ganhamos com nosso esforço. O ser quis rea-
co, um salto evolutivo para um nível superior, representando lizar a descida do S para o AS, mas, agora, são suas as conse-
um amadurecimento que leva a um modo totalmente diverso de quências. Para executar a subida do AS para o S, cabe-nos o tra-
conceber a vida, o que não é fácil realizar. De que meios dispõe balho de conquista e construção. Cristo apenas nos mostrou o
a natureza e que métodos ela usa para alcançar tal objetivo? caminho, colocando-se à frente com o exemplo. Compete-nos
O processo, como podemos observar, já está em ação. Para percorrê-lo com nossos próprios pés. Isto significa que o ideal
eliminar o atual regime de rivalidade, não há outro meio senão nos é oferecido do Céu como uma proposta de trabalho. Cabe,
a reação das vítimas, que deverão impor, com a persuasão dos pois, ao homem traduzi-lo em realidade, vencendo todas as re-
meios coercivos, o sistema da honestidade, de modo que fique sistências do AS, que se opõem à reconstrução do S.
ferido quem pratica o regime da rivalidade, único processo para ◘◘◘
compreender que não é salutar repetir o erro. Quando os débeis Agora que examinamos as bases positivas do fenômeno da
e os ingênuos não se deixarem mais enganar, tendo a indústria descida dos ideais, podemos melhor compreendê-lo e ver por-
da mentira deixado de dar fruto, não haverá mais razão para que que eles descem ao ambiente humano, cuja lei fundamental é a
ela continue sendo praticada. Então ela será abandonada, como luta pela vida. Podemos compreender também por que, não
se faz com todas as coisas que já não dão mais rendimento. obstante tanta diversidade, eles procuram enxertar-se num am-
Mas, para que isso seja assimilado como qualidades do indiví- biente que é a sua absoluta negação. Isto se explica com a lei da
duo, é necessário que, por longa repetição, os desonestos cons- evolução. Quem, no caminho da ascensão, está em posição
tatem em si mesmos, pela sua própria experiência, os resultados mais adiantada é submetido a um processo que, para ele, consti-
danosos do seu método, adaptando-se, então, ao outro método, tui retrocesso involutivo, a fim de tornar possível realizar aqui-
que, ao invés de produzir aqueles resultados, oferece vantagens lo que, para o mundo, situado numa posição atrasada em rela-
anteriormente desconhecidas, tornando-se deste modo, por fim, ção a ele, constitui um avanço evolutivo. Dizemos “ele” porque
vantajoso para todos. Trata-se de vencer todas as resistências da os ideais tomam corpo (dado que tudo na Terra adquire uma
ignorância, que faz acreditar no contrário. Trata-se de mudar de forma) primeiramente numa pessoa viva, que os afirma e os
forma mental, passando para uma nova, o que representa uma lança, e, em seguida, nas instituições, que os representam e os
verdadeira criação biológica. Para se fixar na raça, tudo isso transmitem. Precisamente assim se organizam as religiões, que
deve entrar nos hábitos sociais, através de um esforço tenaz de são o canal mais importante da descida dos ideais à Terra. Co-
imposição, com um impulso constante nesta direção. mo se realiza então este fenômeno e o que sucede quando tal
O Evangelho, entendido apenas no seu aspecto negativo de realidade, verdadeira no Céu, pretende enxertar-se naquela tão
sacrifício, santifica o indivíduo que o pratica, mas encoraja os diferente realidade biológica, verdadeira em nosso mundo?
desonestos em seu método de exploração. Enquanto os prejudi- Na Terra, o homem está de fato sujeito a leis bem diferentes,
cados não reagirem, a sua paciência funcionará como fábrica de que, nada tendo de ideal, obrigam-no a se ocupar em primeiro
vítimas. Se os crucificadores de Cristo tivessem recebido uma lugar do problema da sobrevivência. É natural, portanto, que,
lição imediata, não teriam ficado encorajados pelo seu fácil su- para este objetivo, ele procure utilizar-se daquilo que encontra,
cesso, que lhes ensinou uma verdade totalmente diferente, se- inclusive dos ideais. Estes, por sua vez, querem utilizá-lo para os
gundo a qual não é o amor, mas sim a força e o engano que são seus fins, que são totalmente diferentes. Aos ideais interessa a
premiados. Estamos na Terra, e não nos céus, e aqui a realidade salvação da alma, para a grandeza do espírito, mesmo que seja
biológica nos ensina que o ideal, para se enxertar na vida, deve com o sacrifício da vida terrena. Ao homem interessa sobretudo
seguir as leis deste nível. Em relação à Terra, a crucificação de a vida terrena, porque esta é concreta e atual, somente se interes-
Cristo pode ter tido a função de um escândalo, mostrando ao sando pela outra, quando se trata de deixar a presente. As duas
mundo, durante milênios, a vergonha da humanidade, para que posições estão invertidas uma em relação à outra. É natural,
ela compreendesse a má ação e deixasse de repetir semelhantes então, que cada um dos dois princípios, para não se perder nesse
6 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
antagonismo, deva buscar o interesse comum. É assim que, apenas nas duas formas que lhe serviam: desprezando-o quando
quando uma religião dita normas de vida para transformar o estava vivo e explorando-o depois de morto. Pelo fato de repelir
homem, este procure transformá-las num meio para satisfazer o método da força-violência assim como o da astúcia-fraude, o
as suas necessidades de vencer na luta pela vida. Deste modo, homem do terceiro grau evolutivo, de tipo evangélico, seguidor
ele adapta a religião às suas próprias comodidades, de maneira de Cristo, não é apto para sobreviver no ambiente terrestre. En-
que esta lhe sirva, não a aceitando, se ela não lhe servir. Se a tão o ideal seria levado a termo somente por poucos pioneiros,
memória de Cristo chegou até nós, isto se deve em grande parte rapidamente liquidados, e nunca poderia se realizar no seio de
à concessão do Imperador Constantino, que permitiu o poder nossa humanidade. Isto no entanto significaria o fracasso dos
temporal dos papas, pelo qual o sacerdócio se tornou hierar- planos da evolução. Mas, se isto não pode acontecer, como en-
quia, administração de bens, atividade política e carreira. Mas, tão a vida soluciona o problema?
para que se continuasse a falar de Cristo, não havia outro meio, Os primeiros seguidores do ideal são poucos, mas têm de
senão transformá-lo em algo deste mundo. Mal necessário, que arrastar consigo muitos, com a palavra e o exemplo. A descida
é tanto mais grave, quanto mais primitiva for a humanidade, dos ideais somente alcança o seu objetivo, quando tais princí-
mas que, com o tempo, vai desaparecendo, porque a tarefa da pios, por terem sido aceitos em massa, tornam-se um fenômeno
evolução é eliminá-lo. É inevitável, portanto, que, para tornar coletivo. Antes desta última fase do seu desenvolvimento, os
possível a aceitação de um ideal na Terra, ele deva descer ao ideais se encontram no mundo apenas no estado de germe. Cris-
nível de quem vai aceitá-lo, pois este é o dono do ambiente ter- to, até agora, é apenas uma semente que busca crescer. Quantos
restre, onde o fenômeno deve realizar-se. E isto deve acontecer milênios faltarão para que possa chegar a ser uma árvore!
para que o ideal não fique excluído da vida. Daí se conclui que a moral evangélica – para a finalidade da
Os seres nos quais tomam forma os dois princípios opostos evolução, que é a salvação de toda humanidade, e não de apenas
são, de um lado, o biótipo evoluído, com o gênio, o santo, o poucos casos isolados – é de tipo coletivo, ou seja, não é reali-
profeta ou o super-homem, e, de outro lado, o biótipo normal zável numa sociedade de tipo inferior, formada por involuídos,
animal-humano. O primeiro é o motor da evolução, o elemento onde aquela moral, assim como sucedeu com Cristo, rapidamen-
ativo. O segundo é o elemento passivo, que se deixa arrastar te liquida o indivíduo que a vive. Ora, a vida pode sacrificar al-
pelo primeiro. Um ideal demora milênios para ser assimilado guns poucos indivíduos na sua economia, quando isto lhe serve
e, quando já cumpriu sua função, por ter sido todo utilizado para os seus superiores fins evolutivos, mas não pode perder to-
num sentido evolutivo, é substituído por outro mais adiantado, da a massa, em favor da qual precisamente se realiza este sacri-
a fim de que a humanidade possa continuar progredindo. No fício. O problema fundamental da vida é a sobrevivência, en-
fundo trata-se de uma troca na qual cada um dos dois termos quanto a evolução é questão somente secundária, quando haja
dá e, em compensação, pede alguma coisa. O ideal se oferece, uma oportunidade. Eis que o Evangelho, para poder verdadei-
pedindo ao homem o esforço necessário para progredir, e o ramente realizar-se como prática, e não apenas como pregação,
homem trata de ganhar materialmente o mais que pode e com a presume um estado de reciprocidade que somente será possível
menor fadiga possível, utilizando o ideal na Terra apenas para aparecer quando a humanidade, por evolução, tiver alcançado a
esta finalidade. É assim que surgem como seus representantes terceira fase, com a organização coletiva, na qual a moral do de-
os ministros de Deus, formando a casta sacerdotal, que, pelo ver não se resolve numa espoliação por parte de quem não a
fato de cumprir um serviço, estabelece a indústria da religião, aplica em prejuízo de quem a aplica, mas resulte de um equilí-
formando a base terrena indispensável para tornar possível o brio dado pela correspondência dos direitos e deveres de cada
ideal tomar forma no plano humano. um com os direitos e deveres do próximo. Somente então o
Para os cidadãos da Terra, tudo está em seu lugar, de acordo Evangelho será aplicável em grande escala, porque não repre-
com a lei do seu plano. Deste modo se explica a razão pela qual sentará uma ameaça, mas sim uma ajuda para a sobrevivência.
os ideais, quando são trazidos ao nível humano na Terra, não se Se praticar o Evangelho pode ser antivital para o evoluído
nos apresentam íntegros, mas sim torcidos e adaptados. Natu- isolado no atual mundo involuído, que tem de fato o cuidado de
ralmente, isto é adequado ao homem normal, que faz para si o não o aplicar, esse Evangelho pode, pelo contrário, outorgar
trabalho desta adaptação, mas não para quem assume os ideais vantagem e bem-estar num mundo de evoluídos, onde só se po-
a sério e, por esta razão, encontra-se isolado ou, até mesmo, ex- de usar o método da terceira fase, de sinceridade e colaboração,
cluído e condenado. Deste último tipo, perante a destruição dos que é o único capaz de permitir a eliminação da luta com o mé-
valores morais, tomamos o partido nestes escritos, tratando de todo da não-resistência. Por si só, transformar-se em cordeiro
salvar o que for possível. Quem se encontra deslocado na Terra entre lobos serve apenas para acabar sendo devorado por eles e
não é o involuído, que está em sua casa, no seu ambiente, mas assim engordá-los. Por isto o evoluído não pode tornar-se invo-
sim o evoluído, que procura levar até lá o ideal. Para poder rea- luído, já que o seu destino está marcado. Seria absurdo que, a
lizar a sua missão, ele se encontra na merecida posição de con- longo prazo, a vida desperdiçasse as suas energias com o fra-
denado a um retrocesso involutivo, o que é um castigo tremen- casso daquilo que ela possui de melhor. Eis que todo este jogo
do. É o mesmo que condenar um homem culto e civilizado a sobre o qual se baseia a descida dos ideais não pode terminar
viver entre antropófagos, transformados em seus semelhantes, a senão alcançando o objetivo para o qual existe, isto é, um des-
cujos hábitos ele deve adaptar-se. Tendo por instinto a prática locamento da humanidade em sentido evolutivo.
da sinceridade e da colaboração, ele deve viver submerso num Por todos estes motivos, apesar do evoluído realizar uma
mundo de hipocrisia e fraude. E já vimos anteriormente quais grande função biológica, o ideal evangélico, transportado para o
são os diversos graus de evolução. terreno da realidade da vida, torna-se uma utopia, como coisa
Podemos assim entender o que significa transportar um in- fora do lugar. A sociedade humana funciona com princípios
divíduo do terceiro grau ao segundo, fazendo uma ideia do opostos. Não é o estado orgânico colaboracionista que prevale-
martírio necessário para que ele possa realizar, no seio de um ce, mas sim o sistema de grupos, dentro do qual se entrinchei-
ambiente biológico involuído, o trabalho de arrastá-lo a um ram os interesses, numa espécie de castelo medieval, fechado e
nível mais alto. armado contra todos os outros castelos. Portanto uma pessoa não
Transportado ao mundo dos involuídos, o evoluído encon- é julgada pelo seu valor, mas sim pelo fato de estar dentro ou fo-
tra-se em condições de inferioridade na luta para a sobrevivên- ra do próprio grupo. Então a primeira pergunta que se faz é: “Ele
cia. Se, para ele, existem compensações celestiais, isto é coisa é um dos nossos?”. Se for, perdoa-se-lhe muita coisa, mas, se
que não interessa para o mundo. A Cristo o mundo respondeu não for, mesmo que seja santo, ele é sempre um inimigo e, por-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 7
tanto, está errado, devendo por isso ser condenado. Quando se pátria o segue e o protege, para tornar possível ele cumprir a sua
apreciam as qualidades de um indivíduo, isto não se faz impar- missão. Se esta lei permite que o involuído elimine tal indiví-
cialmente, mas sim em função da possibilidade de explorá-las duo, assim o faz somente quando tenha chegado a hora que con-
para o serviço do grupo. Uma vez que o objetivo maior é a so- vém ao evoluído ir-se embora, porque a sua missão foi cumpri-
brevivência, tudo é concebido e realizado apenas em função de- da. A lei de Deus é a verdadeira dona de tudo, inclusive do invo-
la. O grupo se forma e existe precisamente para este fim, no qual luído e do mundo. Ninguém pode deter o processo da descida
todos os membros estão sumamente interessados. Esta é a força dos ideais à Terra, pois eles realizam os objetivos da evolução.
que os mantém unidos, porque a união os fortifica para se de- Os obstáculos ficam limitados no espaço e no tempo, tendo sido
fenderem e vencerem. Assim a apreciação de uma pessoa, con- dado a eles o poder de resistir, mas não de vencer.
forme ela se encontre dentro ou fora do grupo, torna-se muito Eis o significado, a técnica, os instrumentos e as consequên-
diferente. As valorizações humanas são, deste modo, torcidas cias da realização na Terra do fenômeno da descida dos ideais.
em função desta necessidade de luta. Se quisermos julgar objeti-
vamente um indivíduo pelo que ele realmente é, devemos pri- II. A HUMANIDADE EM FASE DE
meiro despojá-lo das suas atribuições exteriores, prescindindo TRANSIÇÃO EVOLUTIVA
da sua posição social e despindo-o de todos os adereços com que
se cobre e se esconde, pois só assim poderá aparecer sua verda- É inevitável que as concepções humanas sejam antropo-
deira pessoa, em vez dos seus sucessos sociais. mórficas, pois foram conquistadas por um cérebro humano,
Na Terra, portanto, tudo existe em função da luta. O indi- como resultado das experiências vividas e, portanto, em função
víduo deve ocupar-se em primeiro lugar deste trabalho e vale dos conhecimentos adquiridos no ambiente terrestre. Como
na medida em que pode ser utilizado para este fim. Eis que a pode a mente humana, que é um produto de nossa vida, conter
parte mais dolorosa da vida do evoluído, quando não morre an- elementos de juízo e uma unidade de medida que ultrapassem
tes, é a sua glorificação, porque, mesmo conseguindo com isto os limites dela? A nossa capacidade de conceber baseia-se e
enxertar um pouco de ideal na vida, começa a sua exploração, eleva-se sobre elementos oferecidos pelos nossos sentidos, que
sendo então submetido às finalidades humanas, quando se bus- representam uma abertura para o exterior, estando restritos
ca sua adaptação e se dá origem ao seu emborcamento a servi- apenas a uma determinada amplitude do real e a uma determi-
ço do mundo. A maior paixão de Cristo não foi certamente a nada ordem de fenômenos. Tudo aquilo que estas vias de co-
do Gólgota, mas sim a sua longuíssima crucificação, que já du- municação impedem a passagem não é percebido e, portanto, é
ra dois mil anos, a serviço dos interesses dos homens. Para o como se não existisse para nós. Trata-se, por conseguinte, de
evoluído, a vida não pode ser senão missão e sacrifício. O seu um material bem limitado aquele que nós podemos obter atra-
triunfo está na morte, que o liberta do grande sofrimento do re- vés destes meios, com os quais foi construída no passado a
trocesso involutivo, restituindo-o ao seu plano de vida. É assim nossa forma mental, que é o instrumento com o qual hoje jul-
que a sua posição negativa no mundo torna-se positiva no Céu. gamos. Não podemos, portanto, elevar as nossas construções
Ele trabalha para a realização da evolução, explicando com a ideais senão com este instrumento e sobre estas bases simples,
palavra e contribuindo com o exemplo, para que se compreen- dado que não possuímos outros elementos. Por esta razão, tudo
da a utilidade de se empregar o método da honestidade e da co- o que está além destes limites encontra-se fora de nossa com-
laboração, em vez da força e do engano. O mundo ri-se dele, preensão, não sendo concebido nem concebível. Assim, se pre-
tratando-o como um ingênuo. Quando este ser abre os braços tendemos elevar-nos a concepções superiores, não podemos
para colaborar, os outros, farejando nele o indivíduo honesto e fazê-lo senão com estes nossos meios, ou seja, com a nossa
inócuo, acabam por escravizá-lo e espoliá-lo. A morte liberta o mente limitada, que tende a reduzir tudo às formas do seu con-
evoluído de tudo isto e o restitui ao seu mundo, que é feito, pe- cebível, pois ela, por força das circunstâncias, não pode e não
lo contrário, de justiça, onde ele deixa de ser um inepto, pois lá sabe pensar senão antropomorficamente.
a sabedoria do indivíduo consiste em conhecer o mistério do Se nós percebemos somente uma pequena parte da realida-
ser e, consequentemente, atuar com retidão, e não em descobrir de, o que haverá então além dela? Apenas recentemente, com
as tramas do próximo, para tirar proveito. meios indiretos, pelas vias da ciência, o homem começou a se
Que pode fazer ele na Terra? A sua posição aqui é clara. Na dar conta de tudo isto. Ele também viu que nem sequer esta par-
Terra, ele é estrangeiro. Tivemos de falar do evoluído porque ele te percebida por nós é a realidade, mas apenas uma interpreta-
constitui o instrumento da descida dos ideais, nosso tema atual. ção dela, pois se trata de algo obtido através dos nossos limita-
Continuando a ser cidadão do seu tão diferente mundo, ele desce dos sentidos e interpretada com o instrumento de nossa mente,
para viver a sua verdade, que não pode ser desmentida. Esta sua relativa ao ambiente terrestre. Pode acontecer, então, que o pro-
posição, ainda que lhe imponha tremendos deveres, desconheci- duto de nossa interpretação seja somente uma distorção da rea-
dos do involuído, também representa para ele um direito e uma lidade, condição pela qual o que julgamos ser a realidade não
força. Cada ser funciona segundo a lei do plano ao qual está li- passaria de uma projeção antropomórfica, construída por nós
gado, levando-a consigo aonde quer que vá, seja como utilidade com as ideias fornecidas pela nossa vida.
ou seja como fardo. O evoluído, que, por sua natureza, não entra Mas há também um outro fato que influi sobre o nosso mo-
na luta do mundo, mas que, para tornar possível o comprimento do de conceber. Se tudo o que existe está englobado no trans-
de sua missão, tem de resolver o problema da sua sobrevivência, formismo universal, então nem sequer as nossas concepções
deve possuir seus próprios meios de defesa e proteção. Trata-se podem escapar desse processo, razão pela qual elas têm de ser
de um cordeiro que tem de sobreviver entre lobos, de um evan- relativas e progressivas. É indiscutível que, se o universo se
gélico que usa o método da não resistência num campo de bata- transforma por evolução, também por evolução se transforma o
lha. E a defesa deste indivíduo interessa à vida, porque ela ne- órgão mental com o qual o percebemos e julgamos. Portanto
cessita dele, uma vez que entregou a ele a tarefa, para ela fun- tudo é visto sucessivamente de diversos modos, cada um dos
damental, de promover a evolução. Será possível que ao involu- quais representa uma determinada realidade, relativa ao indiví-
ído inconsciente e destruidor tenha sido deixado o poder de li- duo que a observa e ao momento que ele faz a observação. Eis
quidar o evoluído, impedindo assim o desenvolvimento da evo- que não possuímos das coisas senão estas nossas sucessivas e
lução? Será possível que o mal realmente vença o bem, que o in- relativas representações, realizadas por nós mesmos. Julgamos
ferior vença o superior? Mas, se é certo que o evoluído é um ter alcançado a realidade, mas esta é apenas a realidade que o
exilado em terra estrangeira, é verdade também que a lei de sua indivíduo alcança por si mesmo, naquele dado instante, a qual
8 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
varia com o observador e o momento, modificando-se para di- A esta concepção de uma estabilidade definitiva o homem
ferentes observadores e, com o decorrer do tempo, para o mes- pode ter chegado também pelo fato de alguns aspectos da rea-
mo observador. É assim que as nossas verdades não expressam lidade acessível a ele lhe indicarem isto, se bem que em senti-
outra coisa senão a maneira pela qual elas são vistas e concebi- do relativo. O transformismo em que ele está submerso pode,
das por cada um num dado momento. As verdades são, portan- de fato, apresentar algumas zonas ou fases de imobilidade, as
to, relativas ao observador e progressivas no tempo. quais, no entanto, podem verificar-se apenas como temporário
Uma vez que tal condição depende da estrutura do ser huma- descanso ou pausa no caminho, numa aparente suspensão mo-
no, então ela permanece verdadeira também no campo das ver- mentânea do movimento, que mesmo assim continua, porém
dades filosóficas, religiosas, morais, sociais etc. Nenhuma forma não mais como manifestação exterior, e sim como amadureci-
de existência parece ser possível, se não for considerada como mento profundo, no qual a existência prepara as suas muta-
um vir-a-ser, e o homem deu-se conta de que tudo é movimento, ções, perceptíveis só quando elas se manifestam na forma exte-
seja no universo físico, no dinâmico ou no espiritual. No campo rior. É assim que o vir-a-ser da existência pode parecer sus-
das verdades acima mencionadas, o transformismo evolutivo é penso, dando a ilusão de imobilidade definitiva. Então é possí-
ainda mais evidente, porque a psique é ainda mais móvel e varia vel, no meio da relatividade, surgirem pontos aparentemente
mais rapidamente com a evolução, em função das fases sucessi- fixos e definitivos, momentos de estabilidade nos quais se é
vas que ela atravessa. Tais verdades também estão em contínuo levado a crer que a imutabilidade tenha sido alcançada, apesar
movimento, sendo relativas e progressivas. Este é o patrimônio de não serem eles nada mais do que repousos e paragens pas-
mental que nos é dado possuir, o qual se resume em representa- sageiros no transformismo. De fato, eles não passam de transi-
ções antropomórficas limitadas e a verdades progressivas. tórias posições de equilíbrio, prontas a se romperem, para re-
No entanto esta mesma progressiva relatividade leva consi- tomar o caminho. Trata-se de uma momentânea estabilização
go, implícita, a sua compensação. A ideia do transformismo de forças contrárias, que se neutralizam no equilíbrio dos im-
em marcha exige a ideia de um ponto de chegada, que é tam- pulsos. É nesta posição estática de movimento relativo que,
bém o ponto de referência, sem o qual nenhum movimento po- sem a desintegração atômica, a matéria parece eternamente es-
de ser apreciado. Então a própria ideia de verdade relativa e tável, conforme se julgou no passado. Isto, porém, não impede
progressiva nos leva necessariamente à ideia, oposta e com- que ela esteja pronta a se transformar em energia, quando são
plementar, de verdade absoluta e imutável. O movimento exige rompidos os seus equilíbrios atômicos internos.
uma meta, um ponto situado fora dele, em função do qual se O vir-a-ser da existência não se detém jamais. Porém so-
realize. Transformismo e relatividade progressiva, não se man- mente é possível um transformismo como um meio para alcan-
tém por si sós, mas necessitam de um ponto absoluto que, çar um fim, e não como um processo sem solução, que se mo-
cumprindo a função oposta, sirva de suporte. A isso leva o vimenta eternamente numa determinada direção. Não pode ha-
próprio princípio do dualismo universal, pelo qual cada posi- ver um transformismo que não seja compensado por um mo-
ção existe em função do seu oposto, somente sendo possível vimento contrário e complementar, em função de um ponto de
reconstruir a unidade através da reunião das duas metades di- partida e de chegada, dentro dos limites de um dado percurso
vididas. É como o reencontro do positivo e do negativo e vice- ou processo transformístico. Se queremos nos aprofundar, para
versa, para formar um mesmo e único circuito. compreender a natureza deste movimento, temos de chegar aos
A contínua e fugidia mobilidade se apoia na solidez do conceitos de involução e evolução, entendendo-os como os
imóvel, do qual necessita, para que não se perca tudo num futu- dois períodos opostos e complementares do mesmo ciclo. So-
ro imenso, sem equilíbrio, orientação e significado. Esta fluidez mente assim tal movimento não se anula no vazio, mas com-
deve ser um movimento na ordem, pois, de outra forma, leva- plementa-se com a sua fase contrária, em função do seu ponto
ria, ou até mesmo já teria levado há muito tempo, tudo a nau- de referência fixo, de partida e de chegada, que lhe imprime
fragar no caos. A instabilidade não é admissível senão em fun- uma direção, sem a qual ele não pode existir. Com isso, a sim-
ção de uma estabilidade, assim como a relatividade não se sus- ples ideia do movimento de vir-a-ser aperfeiçoa-se, transfor-
tém senão em relação a um absoluto. Na lógica da estrutura e mando-se numa concepção mais exata, dada por um transfor-
do funcionamento do universo há necessidade de um ponto que mismo na direção involutiva ou evolutiva. Este é então o duplo
seja não somente o termo final da evolução – como um seu movimento no qual consiste o vir-a-ser e a existência. Isto sig-
marco cósmico, último produto do processo ascensional – mas nifica que, em nosso universo, não se pode existir senão mo-
também o seu ponto inicial, constituindo a partida e a chegada, vendo-se na direção involutiva ou na direção evolutiva, pro-
o Alfa e o Ômega, de todo o transformismo dado pela existên- gredindo ou retrocedendo, afastando-se ou avizinhando-se de
cia; um ponto que abrace, dirija, resuma e justifique todo este Deus, que é o princípio e o fim, pois tudo existe em função de
imenso fenômeno, como seu centro; um ponto no qual se inicie Dele. A estase, neste processo de ida e volta, não pode ser
e se resolva a instabilidade do vir-a-ser, a corrida do movimen- constituída senão por períodos transitórios, que cedo ou tarde
to, a relatividade deste transformístico modo de existir em for- são retomados no movimento da existência.
mas e dimensões sempre mutáveis; um ponto enfim no qual tu- O transformismo não é, pois, uma mutação desordenada
do deve finalmente deter-se, após ter alcançado a sua plenitude qualquer, ao acaso, mas sim um movimento bem regulado, fe-
no aperfeiçoamento total do imperfeito, completando o incom- chado dentro de normas, constituindo um processo fenomênico
pleto, com a superação final de todas as dimensões. bem definido e disciplinado. Sem um tal princípio de ordem
É a própria ideia do relativo no qual vivemos que nos leva, que o dirija, é difícil imaginar como ele possa se realizar. Ora,
por reflexo, à ideia do absoluto, mesmo que não nos seja dado tudo isto implica a existência de um esquema diretivo, confor-
conhecê-lo diretamente. Se o nosso relativismo nos nega a con- me um plano pré-estabelecido, que determina o caminho e, ao
cepção do absoluto e o nosso antropomorfismo não pode alcan- longo dele, as fases de descida e de ascensão. Deve haver, en-
çá-lo, nem por isso ele deixa de existir. Pelo contrário, é justa- tão, vários níveis de evolução, correspondendo a diversas altu-
mente a nossa posição unilateral e, por isso mesmo, incompleta ras ou graus progressivos no modo de existir e, portanto, a dife-
que, exigindo ser completada, nos indica a posição oposta, uni- rentes posições biológicas, mais ou menos avançadas, conforme
camente na qual isto pode realizar-se. É precisamente o fato de o caminho executado pelo ser em relação ao ponto final de todo
estarmos colocados apenas num lado do ser que nos faz sentir a o processo, na direção do qual tudo converge. Eis como pôde
necessidade da presença do seu outro lado, somente em função nascer e o que significa a ideia de progresso. Eis como ocorre o
do qual se pode completar o nosso tipo de existência. fenômeno do gradual desenvolvimento do ser por evolução.
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 9
Vimos estes conceitos se desenvolverem, ligados uns aos outros que se poderia chamar visão microscópica, feita para ver de
num progressivo concatenamento lógico. perto. De fato, trata-se de uma inteligência pequena, limitada ao
Chegando a este ponto, podemos explicar melhor o signifi- contingente, descentrada na multiplicidade do particular, deso-
cado do conceito de verdades relativas e progressivas, do qual rientada e dispersa em mil fatos pequenos, dos quais lhe escapa
falamos anteriormente. O grau do nosso conhecimento é estabe- o significado do plano diretor. No entanto, evoluindo, ela am-
lecido conforme o nível de evolução alcançado pelo instrumento plia sua capacidade de ver tais princípios, dilatando sempre
que possuímos para este fim, ou seja, a nossa mente. Portanto o mais os horizontes que pode perceber.
conhecimento existe em função da evolução e progride com o Os dois tipos de inteligência não se compreendem. O primi-
aperfeiçoamento deste instrumento, na proporção dada pelo seu tivo, justamente por ser ignorante, acredita que possui toda a
desenvolvimento. Na natureza, tudo já está compreendido e re- verdade, completa e definitiva. O evoluído, pelo fato de saber,
solvido, o que se comprova pelo fato de já encontrarmos tudo no chega a compreender quão mais amplo é o conhecimento, além
estado de funcionamento. Somos nós, portanto, que ainda deve- das limitadas possibilidades humanas e o quanto, portanto, ele
remos compreender e resolver tudo. No indivíduo mais evoluí- ainda desconhece. O primitivo liquida rapidamente todos os
do, a dificuldade não reside tanto em compreender, mas sim em maiores problemas do conhecimento, suprimindo-os e limitan-
se fazer compreender pelos menos evoluídos do que ele, poden- do-se aos da vida animal. Somente estes são importantes para
do, às vezes, levar até mesmo séculos para eles poderem enten- ele, que vê o pensador como um inepto para a vida, perdido en-
dê-lo. Esta é a história dos gênios incompreendidos. tre nuvens, fora da realidade, considerando-o uma coisa inútil,
O que impede o conhecimento são os próprios limites do cuja eliminação é necessária. Assim, a forma mental, os desejos,
instrumento mental que o indivíduo tem de utilizar para alcan- as emoções e as dores de cada um são completamente diferentes.
çá-lo. A superação destes limites representa um esforço que o Os problemas que o primitivo se coloca e tem de resolver
ser não deseja realizar, sendo tanto menor sua agilidade para são mais simples dos que os do evoluído, porém, assim como
executar tal trabalho, quanto mais involuído for o ser. Quanto acontece com este, são sempre proporcionais à respectiva inte-
mais atrasado é o indivíduo, tanto mais ele se aproxima da ligência. Quem se encontra ainda envolvido nas necessidades
inércia da pedra, aproximando-se evolutivamente dela. O ser materiais deve, para sobreviver, ocupar-se delas. O interesse
involuído tem horror às mudanças e opõe resistência a toda re- por outros problemas, mais adiantados, pode surgir somente
novação de ideias, apresentando uma vontade antiesforço que quando os primeiros já tenham sido resolvidos, atingindo-se
busca paralisar qualquer ascensão, para ele muito incômoda. uma fase de civilização mais elevada, na qual a vida seja menos
Esta tendência à estagnação chama-se misoneísmo e é devida à violenta e feroz, os direitos e deveres estejam estabelecidos e a
tendência do subconsciente ficar agarrado ao conteúdo arma- satisfação das necessidades materiais para o indivíduo seja ga-
zenado no passado, onde se encontra a linha de conduta mais rantida, a fim de que ele, não mais sendo atacado e distraído
segura, pois já foi comprovada pela existência, constituindo por elas, possa dedicar-se a outros trabalhos, construindo uma
um patrimônio seu, que muito esforço lhe custou para conquis- forma mental adequada para realizá-los.
tar. Prefere assim, por preguiça, não construir outro patrimô- Continuemos seguindo o fio de nossa lógica, para ver até
nio, quando para viver basta o que já possui. onde ele nos leva. Vimos haver no universo uma previsão e co-
Os vários graus de conhecimento que a evolução nos ofere- ordenação de trabalho que implica a presença de um pensamen-
ce são alcançados com diferentes tipos de inteligência, propor- to diretor. Este planejamento, segundo o qual se move o pro-
cionais ao nível biológico conquistado pelo indivíduo. Para as cesso involutivo-evolutivo, não pode ser outra coisa, neste caso,
formas superiores de conhecimento, os primitivos estão com- senão o produto de uma inteligência suprema, a qual pode estar
pletamente imaturos. Podem recebê-lo, aprendê-lo, repeti-lo e somente em Deus, pois tudo isso não pode derivar e depender
possuí-lo em aparência, mas uma coisa é a erudição, outra é senão de uma inteligência que esteja situada sobre toda a cria-
saber pensar. É necessário compreender qual é o tipo de inteli- ção e que, para poder discipliná-la, tenha condição de compre-
gência do involuído, que não é um estúpido. Trata-se de uma endê-la com a sua mente e envolvê-la com a sua potência, o que
inteligência sempre correspondente ao seu nível evolutivo só Deus pode fazer. Eis, então, que aquele plano não é outra
animal-humano, possuindo assim a respectiva sabedoria, que é coisa senão a lei de Deus, imposta como regra da existência e
direcionada e utilizada para a defesa da vida, sendo resultado constituindo a base da ordem do universo.
do caminho percorrido no passado. Ela limita-se, portanto, a Esta lei não é letra morta, escrita em palavra, mas, pelo con-
fins imediatos, sendo adequada para resolver os problema prá- trário, está viva e em ação, porque é pensamento e vontade, é
ticos e próximos, em vez de teóricos e longínquos. A tal bióti- ideia e realização. Quando a criatura se desvia, afastando-se da
po, basta-lhe a sagacidade comum, a habilidade do engano e a Lei, esta o chama de volta para o caminho reto, impelindo-o a
arte de tirar proveito de tudo. Com isto ele se crê inteligente, e retornar a ela, não só para o bem dele mesmo, mas também por-
esta é de fato a sua inteligência. que não é tolerável infringir a Lei, pois isto representa um aten-
Mas o tipo de inteligência se transforma com a evolução, tado à integridade do plano de Deus, constituindo uma tentativa
elevando-se para enfrentar e resolver outros problemas, bem di- de destruí-lo, para à vontade suprema substituir a vontade da
ferentes, que, para o tipo precedente, ficam fora do concebível. criatura rebelde. Então a reação da Lei tem a sua função, que é
Assim, entre evoluído e involuído, poderá se encontrar o mes- defender este plano, o qual deve permanecer absolutamente ín-
mo desnível de compreensão que existe entre um homem e um tegro, para ser realizado, pois a salvação do universo está nele,
animal. Com a evolução, a inteligência coloca problemas sem- que determina o caminho de regresso de tudo a Deus, enquanto
pre mais vastos e gerais, mais próximos dos princípios direto- o ser, tentando impor o seu desvio, procura sair da órbita traçada
res, no centro do conhecimento. É em direção a este centro que pela Lei. Esta saída do plano estabelecido para tentar uma órbita
avança o ser, afastando-se da periferia ou superfície, onde fun- diversa, anti-Lei, deve ser liquidada. Este é o princípio funda-
ciona a realidade prática exterior. Temos, assim, outro tipo de mental, e cada lei o repete na Terra, reagindo com a prisão ou
inteligência, feita para outros trabalhos e dirigida para outros com o inferno, porque a reação punitiva é a única coisa capaz de
fins. Ela abraça horizontes e concentra visões de imensas am- fazer o involuído compreender e induzi-lo a obedecer. Se não
plitudes, reunindo em si, numa síntese, espaços conceptuais estivesse em questão o seu próprio dano, o transgressor não se
vastíssimos, libertando-se por abstração da infinita multiplici- preocuparia em nada com as leis, que permaneceriam uma afir-
dade do particular. Poder-se-ia chamar a isto de visão telescó- mação teórica, sem nenhum resultado prático. Assim a reação da
pica, feita para enxergar longe, em comparação com a outra, Lei assume a forma de dor para o violador, o que se justifica
10 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
como legítima defesa por parte da Lei, pois ela representa o pla- Assim, o tipo de vida que nos espera no futuro está eviden-
no de Deus, anteposto à salvação do ser. Portanto, em última temente traçado, e não pode ser outro. Este é o passo que a Lei
análise, a dor é santa e sábia, pois constitui uma medida provi- quer dar no momento atual de nosso desenvolvimento evoluti-
dencial de proteção para, assim, obrigar a criatura a tomar o ca- vo. Estas são hoje, para nós, as diretivas do plano de Deus. Este
minho da sua salvação, que consiste no regresso a Deus. é o comando ao qual Ele exige que se obedeça. Caso o homem
O plano da Lei guia o caminho da evolução e determina não siga esta linha de conduta, acabará se colocando numa po-
que ele deve avançar em direção a Deus, seu ponto final. Evo- sição anti-Lei, tendo de suportar as correspondentes conse-
luir significa progredir num processo de divinização, o que quências dolorosas que vimos. Assim, se o homem se aprovei-
implica adquirir as qualidades mais altas do ser, situadas no tar do progresso alcançado e das descobertas realizadas, que o
cimo da escadaria da subida, dadas por potência de pensamen- libertam do trabalho físico e de tantas duras necessidades mate-
to, inteligência, sabedoria, bondade e espiritualidade, todas riais, para utilizar tudo isto somente com a finalidade de se di-
elas qualidades de Deus. Se esse caminho avança nesta dire- vertir, dirigindo sua inteligência para o mal, e não para o bem,
ção, ele tem de consistir num desenvolvimento mental e espiri- no sentido destrutivo ao invés do criador, então a Lei certamen-
tual. E este é de fato o caminho que verificamos ter sido per- te reagirá, enchendo o mundo de dor, porque, como vimos, ca-
corrido pela evolução até hoje, subindo desde a matéria, atra- da violação leva ao correspondente pagamento doloroso. Nes-
vés da vida vegetal e animal, até ao homem, que se distingue sas condições, a humanidade ficará fora da Lei, abandonada a si
justamente pelo seu desenvolvimento cerebral. Por este trecho, mesma para destruir-se com suas próprias mãos.
a história de nossa evolução passada nos mostra que esta foi a A conclusão por nós atingida hoje, até aqui, é que a huma-
direção do caminho imprimida pelo plano diretor, fato pelo nidade se encontra em uma encruzilhada: ou ela segue a linha
qual somos levados a crer que, sendo esta a lei seguida pelo da evolução, segundo o plano de Deus, que é no sentido da es-
fenômeno, ela tem de continuar a se desenvolver no mesmo piritualização, avançando em direção ao Sistema, para adquirir
sentido, segundo o mesmo princípio. as suas qualidades, ou, pelo contrário, continuando a seguir a
A consequência desta lógica é que a humanidade – não por psicologia do passado, feita de egoísmo e agressividade destru-
comando de castas religiosas ou de teorias filosófico-morais, tivos, acabará por fazer um louco uso dos novos e potentíssi-
mas sim por lei positiva de evolução, segundo os princípios de mos meios dos quais dispõe. No primeiro caso, ela poderá al-
uma biologia mais ampla, abrangendo passado, presente e futu- cançar uma verdadeira civilização. No segundo, ela se autodes-
ro – tem de continuar a seguir o seu caminho já traçado, que truirá, e a supremacia da vida sobre o planeta passará para ou-
consiste em se divinizar cada vez mais, ou seja, avançar em di- tras raças animais, inferiores, que substituirão a humana. Espiri-
reção à espiritualidade. Então, se esta é a vontade da Lei, cada tualização significa consciência, sentido de responsabilidade e
desobediência leva fatalmente, como já vimos, a uma reação senso de justiça no uso dos novos poderes; significa assumir in-
correspondente, resultando numa sanção contra quem tenta teligentemente, sobre a Terra, as diretrizes da vida do homem e
desviar-se para fora da linha traçada. É, portanto, no sentido da dos seus coinquilinos, não mais com a forma mental tradicional
espiritualização que deve realizar-se o crescimento evolutivo. A do involuído, mas sim com a do evoluído. Insistir na psicologia
história do passado nos mostra qual deve ser o nosso futuro. Se, do passado agora pode significar a morte!
no trecho percorrido até agora, o crescimento evolutivo foi di- Impulsionar a humanidade em direção à sua inteligente es-
rigido neste sentido, é evidente que esta é justamente a qualida- piritualização pode significar salvá-la da destruição. Daí se
de que terá de se acentuar cada vez mais no trecho a percorrer conclui quão grande é a importância do trabalho realizado por
no futuro, pois a evolução é um processo único e estamos reali- todos que, na Terra, trabalham para a descida dos ideais, por-
zando agora apenas uma continuação dele. quanto nestes princípios estão contidos o programa do futuro
Esta é uma descoberta importante, pois nos mostra qual de- desenvolvimento da humanidade, indicando-nos de que modo
ve ser a direção a seguir agora em nosso caminho evolutivo, deve, agora, continuar na Terra a atuação do plano de Deus, pa-
sendo este o sentido no qual a Lei quer que nos movamos, sob ra realizar esta nova fase do processo evolutivo. Muitas vezes,
pena de sofrermos suas reações dolorosas em caso de desobedi- no entanto, o mundo considera estes indivíduos como iludidos,
ência. O passo atual é perigoso, pois a maturidade mental al- fora da realidade, e os condena, chamando-os de sonhadores ca-
cançada pelo homem o coloca perante o dever de tomar sobre si rentes de sentido prático, enquanto eles, neste momento, repre-
as responsabilidades que tal madureza acarreta. O homem, nes- sentam a única possibilidade de salvação para a humanidade na
te momento, chegou a um desenvolvimento mental e de consci- sua atual fase de transição evolutiva.
ência que o capacita a assumir a direção do processo evolutivo
no seu planeta, passando a funcionar não mais guiado pelo ins- III. O CRÍTICO MOMENTO HISTÓRICO ATUAL.
tinto, como um animal, mas sim pelo conhecimento, consciente O INÍCIO DE UMA NOVA ERA.
do plano diretivo da vida, fazendo-se operário inteligente de
Deus e colaborador na execução da Sua lei. O homem, agora, Tratemos de compreender em profundidade o significado do
não pode mais aceitar cegamente, só por fé, os ideais descidos momento histórico atual. Salta-nos primeiramente à vista o seu
do Alto, concedidos por revelação, mas deve inteligentemente aspecto negativo, que é o mais próximo e já se encontra em
compreender o significado e a função deles, para obrar ativa- ação. Trata-se de um processo de destruição dos valores do pas-
mente no sentido de traduzi-los em realidade na Terra. sado, conquistados com muito esforço nos últimos milênios.
Os fatos confirmam estas afirmações. Hoje, a humanidade se Assistimos à dispersão dos mais preciosos tesouros da espiritu-
encontra realmente numa curva ou virada biológica, atravessando alidade, que são premissa indispensável para uma sábia direção
uma fase de transição evolutiva. Ela está passando de um tipo de da conduta humana. Paralelamente, nada vemos ser reconstruí-
trabalho inferior, que lhe é imposto pela necessidade da luta pela do no lugar daquilo que está sendo destruído espiritualmente.
sobrevivência física num ambiente hostil, para um tipo de traba- Não surgem nem se afirmam novos valores deste tipo em subs-
lho superior, dirigido ao desenvolvimento da mente e do espírito, tituição aos antigos, de maneira que se fica num vazio. A espiri-
em ambiente civilizado. A ferocidade e a força bruta, agora, ser- tualidade está em liquidação, pois suas velhas formas, cada vez
vem cada vez menos para os fins da vida, cujo interesse é sempre menos adaptadas à mente moderna, não convencem mais, não
maior na cultura, no pensamento e na inteligência, porque eles se sabendo ainda substituí-las por outras novas, racionais e ci-
lhe são mais úteis. E a vida, sem hesitar, escolhe sempre o que é entíficas. Para suprir a falta de provas, as religiões apresentam
mais útil para a sua afirmação e para a sua continuação. suas verdades de um modo fideístico, com base em mistérios,
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 11
numa forma absolutista e autoritária, afastando o homem de ho- conhecida no passado. Se o salto falha, não se sabe como nem
je, que vai assim em busca de outras verdades, mais positivas, onde se irá cair. E é perigoso uma tentativa às cegas. Seria ne-
de natureza científica, demonstradas e utilizáveis na prática. cessário nos movermos orientados no seio do organismo feno-
Hoje se pretende colocar o problema da vida de uma forma di- mênico universal, dentro do qual existimos e de cujas reações
ferente do passado, sobre bases claras e concretas, e não sobre não podemos prescindir, para, através do conhecimento das con-
abstrações teóricas, colocadas fora da realidade da vida. No en- sequências do que fazemos, sabermos o que deve ser feito. É
tanto sucede que, entre o velho que não serve mais e o novo imprescindível sermos sábios e previdentes. Mas só poderemos
que ainda deve ser construído, a conduta humana fica desorien- sê-lo com conhecimento e consciência. Tentando realizar em
tada, faltando-lhe diretivas superiores, razão pela qual ela segue nossos volumes uma síntese universal, tratamos de dar uma con-
à deriva, retrocedendo involutivamente em direção à animali- tribuição neste sentido. Tudo isto é urgente, porque o fenômeno
dade. Assim os progressos da técnica são usados ao contrário, evolutivo, uma vez que exerce pressão para se realizar, corre em
fazendo-se deles um meio não para alcançar fins superiores, direção à conclusão do atual período – que é o início de um ou-
mas sim para engordar no bem-estar ou para aniquilar a todos tro – para se resolver, seja qual for a nossa escolha, ou a favor da
com uma guerra atômica. Então, no meio de tanto progresso, o humanidade, com o seu progresso, ou contra ela, para seu dano e
mundo fica à mercê dos impulsos elementares, que se prestam retrocesso. O deslocamento em direção a novos equilíbrios já es-
muito mais a fazê-lo perder-se do que a salvar-se. tá iniciado. Enquanto a vida avança, o homem, sem compreen-
Procuremos compreender o que está acontecendo. Quando der o que está sucedendo, resiste com a sua velha forma mental,
um fenômeno chega à sua maturação, ele tende irresistivelmen- amarrado ao seu passado. Diante dele há uma estrada cheia de
te a se precipitar na conclusão e, tal como um parto, deve ne- luz, ao longo da qual a vida o impulsiona. Mas ele continua
cessariamente realizar-se. Neste sentido, a vida oferece os mei- olhando para trás, na direção de um mundo cheio de trevas. Este
os e estimula os impulsos necessários, preparando tudo para é o tempestuoso contraste entre os impulsos opostos do momen-
que ele se cumpra com facilidade. No entanto, se o ser, em vez to atual. Contudo ninguém pode mudar a fundamental razão do
de seguir a Lei até ao fundo, negar-se a isto, todo o processo, ser, que é evoluir, nem pode paralisar o irrefreável anseio de
no qual ele se encontra envolvido, desmorona sobre ele mesmo. progresso, do qual é constituída a vida. Quem tem inteligência,
Assim, tudo que estava preparado para um avanço em direção consciência e meios deveria ajudar no sentido de fazer avançar o
ao melhor transforma-se num retrocesso em direção ao pior. mais rapidamente possível neste caminho, através do qual, por
Este é o tremendo perigo que pesa sobre a humanidade de hoje, meio da superação, alcança-se a salvação.
ou seja, que ela se arruíne por não querer fazer bom uso dos A humanidade deve escolher entre as duas direções a tomar.
novos poderes conquistados. Tais meios, para não se tornarem O caminho estabelecido é apenas um, mas pode-se percorrê-lo
mortíferos nas mãos de um inconsciente, teriam a necessidade para frente, evoluindo, ou para trás, involuindo. Adiante encon-
de serem dirigidos por uma nova sabedoria, ainda mais consci- tram-se os mais requintados valores de ordem psíquica e espiri-
ente e efetiva do que a dos séculos passados. No entanto, suce- tual. Hoje, o homem tem nas mãos poderes jamais possuídos.
de que, justamente neste momento, não temos nada além dos Mas que uso fará deles? Irá empregá-los para se tornar sempre
rudimentos do antigo conhecimento, nem sabemos como subs- mais rico, egoísta e corrompido, regredindo ao plano animal,
tituí-lo. O perigo é grave, porquanto, absorvida nos detalhes e ou, pelo contrário, irá utilizá-los para ascender a um plano mais
sem se dar conta do que acontece nas linhas gerais, a humani- alto, transformando-se cada vez mais num ser de pensamento e
dade está jogando e arriscando o seu futuro destino. Neste pon- consciência? Estes poderes podem ser utilizados nestas duas di-
to do caminho da evolução, ela se encontra numa bifurcação. reções. Eles permitem um salto de grandes proporções para
Se responder ao apelo ascensional da vida, ela subirá a um pla- frente, porém, se forem mal usados, podem levar a um grande
no biológico ou nível evolutivo mais avançado, alcançando um retrocesso involutivo. Ou se constrói um novo edifício, ou se
estado de maior civilização, com menos luta, dificuldade e dor. fica a descoberto entre as ruínas do velho. Este é um desses
Se não responder ao chamado, ela retrocederá a um plano bio- momentos da evolução nos quais o ideal e sua realização assu-
lógico ou nível evolutivo mais atrasado, voltando ao estado sel- mem um valor especial, diferente do costumeiro. Isto significa
vagem do primitivo e à correspondente dura forma de existên- que o ideal não é mais, como se julga normalmente, algo de
cia. O momento é crítico, porque está em jogo uma salvação utópico, não positivo, estranho à realidade prática, mas, pelo
imediata, positiva e controlável neste mundo, aquela que todos contrário, ele se introduz nesta realidade como uma necessidade
compreendem e tomam a sério, porque não é uma fé discutível, vital, trazendo um programa a ser realizado com urgência. Tra-
mas sim uma realidade biológica. Se a humanidade não aceitar ta-se de um plano necessário para a salvação do mundo, a fim
a tarefa, recusando-se a atender ao convite, ela poderá amanhã de evitar que este se perca no retrocesso e de, principalmente,
chorar sobre as suas ruínas, porque, em vez de dar um passo fazê-lo avançar ao longo do caminho da evolução.
adiante, para evoluir em direção ao melhor, terá retrocedido um O que está em jogo é imenso. Existe a perspectiva de uma
passo, involuindo em direção ao pior. Quem conhece a estrutu- era de bem-estar, com um novo tipo de civilização, que, liber-
ra das leis da vida sabe que tudo isto pode suceder. tando o homem da escravidão do trabalho, poderá com isto ofe-
O tema da descida dos ideais interessa neste momento, so- recer-lhe novas atividades, muito mais elevadas, inteligentemen-
bretudo porque ele nos expõe o programa a ser realizado, além te orientadas e realizadas por um biótipo humano mais evoluído,
de representar, evolutivamente, uma antecipação de estados com outra forma mental. Isto é o que está amadurecendo na pro-
mais avançados, que esperam ser realizados por nós no futuro. fundidade do fenômeno da evolução. É verdade que a vida não
Chegou a hora da escolha, o momento da curva decisiva, para apresenta ao ser tais problemas, nem solicita semelhantes desen-
dar o salto numa direção ou em outra. Procuramos aqui compre- volvimentos, quando ainda não chegou a hora. Antes de chegar
ender o que está acontecendo, orientados pelo tratado já desen- o devido momento, a vida prepara longamente o fenômeno, for-
volvido nos precedentes volumes da nossa Obra, porque, sem a necendo-lhe as condições adequadas, protegendo-o e ajudando-o
premissa de um sistema filosófico-científico completo, não é depois, para que ele possa realizar-se. Mas, quando tudo está
possível se chegar a conclusões positivas. As espetaculares rea- pronto e o momento da sua realização amadureceu, a vida exige
lizações da ciência nos mostram que algo de excepcional se está do ser um esforço proporcional às suas capacidades, responsabi-
preparando na história da humanidade. Alguma coisa está se lizando-o caso falte da parte dele a resposta adequada, condição
movendo nas vísceras do fenômeno evolutivo. Por isso, incons- na qual ela deixa recair sobre ele as consequências. Então a lei
cientemente, o mundo se encontra numa ansiosa agitação, des- de Deus se apropria do fenômeno, e o ser, não tendo poder para
12 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
torcê-la, pode somente torcer a si mesmo, alterando sua própria Superado o trabalho material, o novo labor deveria ser de
posição em relação a ela. Verifica-se, assim, o chamado fenô- tipo intelectual, cultural, espiritual. Após se haver libertado da
meno do retrocesso involutivo. A Lei castiga automaticamente antiga forma de esforço penoso, que o embrutecia, atando-o à
aqueles que, ao chegar o momento no qual tudo amadureceu e necessidade de satisfazer as suas necessidades mais elementa-
está pronto para avançar, não aceitam a oferta e, buscando fazer res, seria indispensável que o homem, para não retroceder,
mau uso dela, seguem o impulso evolutivo no sentido inverso, continuasse ainda a sua atividade, mas dirigindo-a no sentido
no qual os novos meios, em vez de serem utilizados para subir de conquistas mais altas. No entanto, ele é o mesmo de antes,
em direção ao S, são aproveitados para descer em direção ao conservando a mesma forma mental. Permanece para ele, por-
AS. Querendo com isso repetir o motivo da primeira revolta, é tanto, o perigo de continuar a se comportar como no passado e,
inevitável que as consequências sejam as mesmas. Assim o ser assim, em vez de se encaminhar em direção a mais altas con-
se precipita de cabeça no abismo, tendo de ficar ali sepultado, quistas, começar a se exceder nas satisfações de tipo inferior,
emborcado, como sucedeu a primeira vez, enquanto não realizar seguindo os seus impulsos de involuído, entregando-se ao abu-
o trabalho de regresso ascensional. so e excedendo-se na satisfação dos instintos mais atrasados,
Não há dúvida que, hoje em dia, a técnica científica e a or- em vez de se dedicar à conquista de um progresso ulterior. É
ganização industrial permitem cada vez com menor trabalho possível, então, vir-se a despertar e fortalecer a besta, em vez
alcançar uma maior produção, isto é, com menor esforço um de se construir o anjo ou o super-homem.
maior bem-estar. Já se fala de dar, além do sábado, também a O bem-estar, assim, posto nas mãos de um determinado tipo
sexta-feira e de reduzir as horas de trabalho dos outros quatro biológico, ainda não bastante consciente para saber fazer bom
dias. Ora, o perigo reside no fato de que tal abundância de uso dele, poderá produzir mais mal do que bem. Esta condição,
tempo e enriquecimento de meios não sejam usados em sentido portanto, constituirá um dano para tal indivíduo, e não uma
evolutivo, como um capital para realizar um trabalho mais ele- vantagem, porque a sua atividade, encaminhando-se em direção
vado, mas sim em sentido involutivo, como um capital a ser extrovertida em vez de introvertida, irá dirigir-se não ao desen-
dissipado em satisfações de tipo inferior, abandonando-se na volvimento da parte espiritual, mas apenas à multiplicação de
descida e embrutecendo-se na materialidade, ao invés de facili- comodidades do corpo, como fim em si mesmo, fator evoluti-
tar um impulso mental e espiritual. Saberá o homem fazer bom vamente de escassa importância. Tomar o bem-estar material
uso do aumento de poder que ele hoje tem nas mãos? Depois não como meio de progresso, mas como principal objetivo da
de longos milênios de estagnação, durante os quais a humani- vida, é prostituição do espírito, emborcamento de posições,
dade jazia em posição estática, julgadas definitivas, chegou o continuação do caminho em descida em vez de em ascensão.
momento no qual tudo tende a se dinamizar e se pôr em mo- Assim, ao ideal se substituirá o utilitarismo; à fé criadora, o
vimento, seguindo um princípio oposto, para se deslocar e al- céptico cinismo; à fraternidade, o egoísmo; ao progresso, a es-
cançar novas posições. Mas o caminho está traçado pela Lei e, tagnação. O perigo está em que o bem-estar termine transfor-
como já deixamos entrever, não pode ser percorrido a não ser mando-se em retrocesso, num requinte e potencialização de
ao longo do percurso involutivo-evolutivo. Ou se avança em animalidade. Tanto progresso será inútil, se a humanidade qui-
direção ao S, ou se retrocede em direção ao AS. O perigo resi- ser entregar-se ao ideal de viver somente para gozar a vida, de-
de no fato de que, em vez de seguir no sentido de melhorar, di- tendo-se numa exteriorização como fim em si mesma, em vez
rigindo-se em direção ao S, este movimento se realize no sen- de fazer do progresso um meio para alcançar uma interiorização
tido de piorar, deslocando-se para o AS. No 1o caso caminha- que utilize os valores materiais para desenvolver os espirituais.
se para a salvação; no 2 o caso, para a perdição. Se o momento é perigoso, ele é, no entanto, também maravi-
O fato não é novo na história e, se bem que em proporções lhoso, porque oferece possibilidades desconhecidas noutros
menores, já ocorreu. Poderia suceder com toda a humanidade o tempos. O que impele a vida sempre para diante é um irrefreável
mesmo fato ocorrido no passado com as classes sociais que anseio em direção à felicidade. É o S que sempre chama e atrai
chegaram à fase de aristocracia, em que, assegurada a vitória, de longe. Não se pode encontrar a felicidade, senão evoluindo
fica estabilizada a posição privilegiada na riqueza e no ócio. em direção ao S. O erro consiste em buscá-la de modo inverso,
Então, ao atingir tal ponto de sua ascensão, aquelas classes soci- involuindo em direção ao AS. Ao se caminhar para trás, a fim de
ais, em vez de continuarem o esforço evolutivo, deixaram-se se satisfazer com o pior em vez de com o melhor, acaba-se por
descansar, gozando o fruto do trabalho de conquista anterior. encontrar, ao invés de alegria, dor. Ora, necessita-se de muito
Sucedeu então que, cessando o esforço e o exercício, elas perde- mais sabedoria para dirigir um automóvel ou um avião, a fim de
ram a capacidade e com isto o poder. Assim, iniciou-se a cor- não matar ninguém, do que uma simples carroça! Eis o que se
rupção, o enfraquecimento e a descida destas castas, dando lugar pode conseguir com tais meios! Existirá hoje, porém, tal sabedo-
a outras classes sociais, que sobem do fundo, onde se sofre e se ria, ou teremos de conquistá-la duramente, errando e pagando?
luta, mas se aprende e se avança. Esta é a história da ascensão, Temos, com a libertação do trabalho material, a possibilidade de
florescimento e queda das civilizações. Antigamente, este fenô- dispor de muito tempo, mas que uso saberemos fazer de seme-
meno abarcava somente um limitado grupo humano, ficando pa- lhantes vantagens? É rara a presente oportunidade, e cumpre-nos
ra algum outro a possibilidade de substituí-lo, tão logo aquele aproveitar as circunstâncias atuais, pois não será fácil que ve-
decaísse. No caso atual, porém, o fenômeno se estenderia a toda nham a se repetir. O homem se encontra perante perspectivas
a humanidade, uma vez que, brevemente, com a técnica e o tra- ilimitadas, não só com liberdade e poder, mas também respon-
balho, ela acabará por se encontrar nas condições de abundância sabilidade, desconhecidos nos séculos passados, tendo-se lança-
na qual se encontrava o império romano em seu apogeu ou a do velozmente em direção a radicais mudanças de vida, com
aristocracia francesa antes da revolução. O perigo está em que imensa possibilidade de novas realizações, que implicam em
agora, se toda a humanidade chegar a elevar o seu nível econô- proporcionais consequências de alegria ou dor. Damo-nos conta,
mico, se difundam nela as perigosas características dos ricos, an- porventura, de que desastre representaria para a humanidade ela
teriormente limitadas a uma só classe social, as que corrompem não saber fazer bom uso de tais possibilidades, usando-as, pelo
e destroem, por inconsciência dilapidadora, no ócio e bem-estar contrário, no sentido de degradação? Que imensa dor, pois,
gratuito. Isto é o que poderá suceder para a humanidade se ela constituiria cair e ter de ficar embaixo! Que tremendo trabalho
não souber transformar a abundância, fruto dos seus novos po- seria necessário para voltar a subir, a fim de reconquistar a posi-
deres produtivos, num instrumento para um renovado esforço a ção atual! Nada disto é fantasia, pois tudo está estabelecido pe-
fim de continuar avançando, em vez de preguiça e gozo. las leis que regulam a técnica da evolução.
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 13
Nunca se deve deter o esforço para evoluir. A supressão objetivo, realizando o salto para frente. Chegou, portanto, o
das dificuldades a superar e do esforço necessário para vencer momento de usarmos nossas forças. Chegando a este ponto da
e fazer avançar a vida, acaba por corrompê-la e corroê-la. Es- evolução, existe a possibilidade de superar o fosso. Mas deve-
tabelecida a satisfação de todas as necessidades e desejos, res- mos saber superá-lo. Tais condições de favorecimento nos co-
tam o vazio, a inaptidão e a decadência, por falta desse dina- locam na posição de responsáveis. A vida sabe que, se dese-
mismo vital no qual se apoia a técnica construtiva das qualida- jarmos, podemos vencer as dificuldades. Devemos, portanto,
des. Quem renuncia à sua contínua autoconstrução se destrói. saber vencê-las. E, se não o quisermos, a culpa será nossa, as-
Pode-se controlar, tanto na vida individual como na história, sim como todas as consequências.
quais resultados produz o fácil bem-estar. Tal posição de fa- Tudo está pronto. Falta somente a nossa boa vontade, a
vor, a qual, no passado, liquidava apenas uma classe social, nossa adesão e decisão. Se a conquista e o resultado serão nos-
hoje pode estender-se a toda a humanidade, o que significará a sos, é justo então que o esforço também seja nosso. Quando
sua destruição em massa. A salvação está em continuar o tra- tudo está pronto e as condições favoráveis existem para asse-
balho com atividades mais elevadas, de caráter intelectual e gurar o êxito, ajudando no esforço, é culpável negar-se a reali-
espiritual, utilizando a libertação das necessidades materiais zá-lo. Esta é a hora. Amanhã, tais condições poderão não mais
para levar a vida a um plano mais alto. Saberá o homem fazê- ser encontradas, e não restaria senão o prejuízo, com o qual se
lo, ou preferirá corromper-se na inércia, recusando-se a acele- paga o erro. A Lei fez a sua parte para preparar a realização do
rar o passo em direção a mais elevados níveis biológicos? Nes- fenômeno, e agora ele está maduro. O resto compete ao ho-
te sentido, a prosperidade pode constituir um perigo, um ali- mem, que, com o seu esforço, deve realizá-lo.
mento agradável, mas venenoso. Saber ser rico é muito mais Eis aí a gravidade do momento histórico, na posição em que
difícil e arriscado do que ser pobre. Seria uma coisa nova na a humanidade se encontra ao longo do caminho de sua evolu-
história ver uma sociedade rica que não se arruíne. ção. O que está em jogo é a sua felicidade futura, que pode, pe-
Cada conquista perde valor, se não serve para avançar. O lo contrário, tornar-se a sua infelicidade. Se o homem não sou-
caminho da subida está feito para ser percorrido. A lei é progre- ber decidir-se a subir mais um degrau, então cairá. A Lei quer a
dir. A evolução é uma pista onde não é possível se deitar para ascensão, e o delito de lesa-evolução paga-se em forma de dor,
dormir. A vida reside no movimento. Se ela para, chega a morte. tanto maior quanto mais baixo se cai. Então, dada a estrutura da
Todo o universo é movimento e apoia-se no movimento. Hoje, o Lei, não resta senão pagar duramente. Podia-se haver subido, e
homem possui os meios para realizar um grande progresso. Se se desceu; podia-se haver melhorado, e se piorou. Uma alegria
isto não suceder, a responsabilidade será sua, assim como as superior estava à mão, e não resta outra coisa senão a tristeza
consequências. Que o momento esteja maduro para transforma- do paraíso perdido. Lamentavelmente, parece que tal sistema de
ções profundas é mostrado pelo estado de agitação em que a agir está mesmo nos hábitos humanos. Mas isto é lógico para
humanidade se encontra. Sente-se, difundida, uma insatisfação quem compreendeu que o nosso mundo é o resultado de uma
em relação ao passado e uma preocupação em renovar-se a todo queda do S no AS. O grave perigo atual é que o homem queira
custo. Todos os valores tradicionais estão submetidos a revisão. repetir outra vez este motivo, fazendo prevalecer o impulso do
Mesmo que não se saiba qual deva ser o novo, o velho está em emborcamento em direção ao AS, e assim, pela oportunidade
liquidação. Faz-se o vazio pela indiscriminada avidez de encher de evolução perdida, precipitar-se na involução.
a vida com novos modos de pensar e agir. Estamos ainda na fase Não se sabe quando ou se a experiência poderá ser repetida,
da tentativa, em que as novas formas nas quais se quer modelar nem quantos milênios de esforço serão necessários para prepa-
a nossa existência ainda não apareceram, caminhando-se às ce- rar novamente as atuais condições, adequadas para se verificar
gas à procura de alguma coisa completamente diferente, à qual, o fenômeno. O inconsciente coletivo sente confusamente a gra-
apesar de não sabermos o que é, somos levados por um vago vidade da hora. Há no ar uma inquietude indefinida, como de
instinto. A ânsia de renovação é indubitável, apesar de não se quem se sente preso nas formas do passado e trata de libertar-
saber onde ela irá desembocar. Por esta estrada se deverá chegar se. Tal como no ensaio de um voo que se tenta com asas ainda
a um novo tipo de vida, no qual os fermentos agora em ebulição, não formadas ou inexperientes, sente-se um nervosismo incom-
tendo-se desenvolvido, estarão afirmados e fixados. Nota-se em preendido no seu verdadeiro significado, como um vago pres-
tudo isto a agitação febril do momento crítico, o esforço da con- sentimento apocalíptico. Estes sintomas são interpretados como
quista, a incerteza perante o desconhecido. Isto acontece em to- patológicos, e procura-se acalmá-los, atordoando-se em distra-
dos os campos, em cada manifestação do pensamento e das ati- ções, para fugir à compreensão, ao esforço e ao peso da respon-
vidades humanas. Desde as descobertas científicas até às ideo- sabilidade. Busca-se então satisfazer o impulso vital não subin-
logias políticas, da técnica à moral, das religiões à arte, está do, mas andando para baixo, fugindo aos deveres e à introspec-
amadurecendo todo um novo modo de ver as coisas e de conce- ção que no-los indica, procurando eximir-se com as tradicionais
ber a vida. Tudo isto se manifesta ainda na forma de uma inde- escapatórias e acomodações, resvalando-se pelo caminho fácil
finível ansiedade nos espíritos, assaltando o homem como uma da descida. A humanidade se encontra perante uma bifurcação
febre em que ferve a ânsia da hora crítica, na qual ele deve de- da evolução, sem ter plena consciência da gravidade do mo-
cidir se avança ou retrocede. A evolução faz pressão de dentro, mento, no qual se impõe uma escolha que terá depois imensas
numa obsessão que explode do inconsciente, instando o homem consequências, seja no sentido da salvação ou seja no sentido
a avançar com avidez e ir em frente confusamente. Trata-se da da perdição. E, uma vez enveredando-se por um destes dois
ânsia da expectativa de chegar ao novo estado, que, apesar de caminhos, será difícil retroceder e mudar de estrada.
tudo já estar pronto, ainda não pode realizar-se, porque, para Eis o significado do atual momento histórico. Esta é a hora da
seu aparecimento, necessita ser fecundado pela adesão do ho- maior conquista da humanidade, mas também da sua maior bata-
mem, através de seu indispensável esforço. Está em jogo todo o lha; a hora das maiores possibilidades, mas também dos maiores
passado, que trouxe a vida até aqui e está agora fazendo pressão riscos e perigos. Estão se deslocando as posições das bases de
para ela poder ascender ainda mais. nossa vida. Desmoronam-se as muralhas levantadas pelo passa-
Este esforço deve ser nosso e livremente desejado. A Lei do, dentro das quais não há mais espaço para o nosso pensamen-
guia o fenômeno, prepara tudo e, no momento decisivo, dá-nos to, que tem de se expandir a outros maiores. Construtores de nos-
um impulso para frente. Mas nós devemos assumir o esforço so eterno destino, aprontamo-nos para subir outro degrau ao lon-
da subida, decidindo-nos a isto espontaneamente. A vida sabe go da escada da evolução, em direção a um mais alto plano bio-
que agora, se quisermos, existem as condições para alcançar o lógico. A revolução já está em ação. Uma revolução verdadeira,
14 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
que é feita pela vida, acima de todas as outras feitas pelo homem fica que será outro o ponto de referência segundo o qual se ori-
por interesses ou por política,. De dentro, grita a voz de Deus: entará o nosso modo de pensar e agir, o que permitirá a cons-
“Avante, Avante!”. A Sua mão está estendida para ajudar a hu- trução e o funcionamento da nova forma mental humana. Livre
manidade a realizar o grande salto da transição evolutiva; ajudá- do assalto das necessidades materiais, o homem deverá então
la a vencer as forças do mal, que lutam para sufocar este desen- encontrar um outro tipo de trabalho, dirigido à produção de ou-
volvimento e transformar a subida em descida; ajudá-la a vencer tro tipo de bens, úteis à vida de outro modo, agora que ela virá
as forças do egoísmo, do cálculo e da negação, cuja vontade se- a se encontrar em outra posição ao longo do caminho da evo-
ria, uma vez mais, que o AS prevalecesse sobre o S. lução. Estes bens são os valores de um mais avançado nível bi-
O presente volume, assim como os restantes conclusivos da ológico, até então incompreendidos pelos involuídos, mas cuja
Obra, é, nesta hora decisiva, um sério apelo a quem tenha ouvi- importância então será entendida. Eles são os valores espiritu-
dos para ouvir, para que seja realizado o esforço da superação ais, fundamentais no novo plano de vida, como fundamentais
e, assim, escolhido o caminho da salvação, em vez da perdição. eram os econômicos no precedente. Verdade, moral, escala de
◘◘◘ valores, tudo é relativo ao grau de evolução alcançado.
Compreendido o significado do atual momento histórico, Antigamente, a luta pela vida material era demasiado dura
vejamos como prever o que de fato poderá suceder. para que ela não dominasse todas as atividades humanas, tanto
Segundo a configuração celeste, tal como ela se apresenta no físicas como mentais. Ainda agora, as religiões continuam pre-
final de 1964, enquanto escrevo estas páginas, os astrólogos ob- gando a renúncia aos bens terrenos, mas elas mesmas, em pri-
servam que a conjugação entre Urano e Plutão tem uma influên- meiro lugar, baseiam-se sobre estes bens, em desacordo com o
cia de tipo revolucionário, no sentido de destruir as velhas for- que elas pregam e condenam. Em pleno acordo, crentes e ateus
mas. Isto é útil como uma forma de limpar o terreno para novas lutam pelos mesmos fins concretos, com os mesmos métodos,
construções, preparando o advento da nova era. Plutão representa pois todos sabem que desinteressar-se dos bens próprios, para
a influência no sentido de demolir as estruturas materiais e men- sonhar com ideais, pode significar a morte. Assim, as próprias
tais do passado. Urano representa a influência impulsiva, o dina- religiões são as primeiras a se constituírem em organizações
mismo criador do novo. Isto indica um contraste entre o despertar terrenas que possuem e administram os seus interesses como
espiritual, que quer realizar-se, e a resistência das forças negati- todos, mesmo no caso de ordens religiosas baseadas no voto de
vas, que procuram impedi-lo. O momento atual seria, portanto, pobreza. A fase economista está ainda em pleno vigor, e a no-
uma fase de laboriosa preparação de novos estados futuros. va face culturalista, cuja tendência é, pelo contrário, o enrique-
Com influência menor, Saturno indica, pela sua posição, a cimento no espírito, é algo que ainda está para chegar. Hoje, o
passagem entre duas eras, transição que exerce a função de en- problema fundamental do homem não está nos bens espiritu-
cerramento das contas, com que se resolve o carma, através da ais, mas sim nos bens materiais. São estes que dominam tudo,
liquidação do balanço passado e a preparação do futuro. Tudo, pois, sem eles, pouco se pode realizar na Terra. Assim o mun-
portanto, estaria movendo-se em direção a uma nova era. Ao do está cheio de igrejas frequentadas por gente que, com os fa-
trabalho de tal íntima elaboração deve-se aquela agitação febril tos, demonstra crer em algo bem diferente.
de que falávamos anteriormente, própria do momento crítico, O problema humano mais vivo está no “meu” e no “teu”.
manifestada através de distúrbios neuropsíquicos. A luta mundial entre o imperialismo comunista e o imperia-
Há, portanto, três elementos em jogo: 1) Uma parte negati- lismo capitalista é a luta entre o “meu” e o “teu”. O comunis-
va, de resistência, devida a influencia do AS; 2) Uma parte po- mo é uma ideologia de assalto ao sistema do “meu”, constitu-
sitiva, expressa por um dinamismo psíquico-espiritual, devida à ído pela propriedade e pelo capital. No entanto, com tal ideal,
atração por parte do S; 3) Uma parte representada pelo esforço ele tomou posse do que pertence aos outros, tirando-o também
que o homem tem de fazer para realizar o salto à frente. Estes do próprio povo, para concentrar tudo nas mãos da classe di-
são os impulsos que constituem o fenômeno. Isto pode levar a rigente. É sempre o mesmo jogo, no qual o mais forte tira dos
desmoronamentos, revoluções, deslocamentos e reconstruções, outros para si próprio. Assim é a natureza humana, e não é
mas o caminho da evolução caminha em direção ao alto. uma ideologia que pode transformá-la. Os fenômenos políti-
Observemos agora, por via da lógica, como tudo isto poderá cos e sociais não são senão um momento do fenômeno bioló-
realizar-se. O fato positivo e decisivo para estas profundas gico, cuja expressão é uma consequência do grau de evolução
transformações, que já está atuando e atuará sempre mais no alcançado. É por isso que o culto da posse hoje é universal,
ambiente e tipo de vida humana, é o moderno tecnicismo. A mesmo dentro dos ideais políticos e religiosos, que se procla-
mais fácil e abundante produção de bens deverá nos levar da fa- mam isentos dele. Não há nada que lhe escape. Diz-se: minha
se evolutiva de tipo econômico à de tipo intelectual-cultural- mulher, meu marido, meus filhos, meus parentes, meus de-
espiritual, que representa um nível biológico mais avançado. A pendentes, meus clientes, minha cidade, minha pátria, meu
evolução da vida se encontraria, assim, num momento decisivo partido, minha religião e até meu Deus. Tudo é meu, em fun-
de seu transformismo, aquele que, segundo a terminologia de ção de mim que sou o dono. O homem vale não pelo que é,
Teilhard de Chardin, leva à passagem da biosfera à noosfera. mas pelo que possui. Esta é a estrutura da nossa forma mental,
Vejamos as causas pelas quais o fenômeno amadurece. Até a base de nossa verdadeira moral.
hoje, as bases da vida da humanidade foram de caráter econô- É isto que, através de uma superabundante produção de
mico. O possuir, sendo a coisa mais necessária para viver, foi bens, o novo tecnicismo nos permitirá superar, conseguindo as-
sempre o ponto fundamental de referência, em função do qual sim deslocar o valor do eu daquilo que ele possui àquilo que ele
se orientou o modo de pensar e de atuar. Foi assim que se de- é. Mas, para passar da tradicional valorização exterior à interi-
senvolveu uma forma mental humana que, em contradição com or, será necessário aproveitar as novas condições de vida, a fim
todos os ideais pregados, venera de fato, como supremo e divi- de deslocar a atividade do trabalho de tipo econômico-
no valor, o possuir. Sem recursos materiais, não se pode fazer produtivo para o de tipo intelectual-cultural-espiritual, dirigido
nada de exterior, que é o meio entendido pela maioria, razão não ao bem-estar material, que estará assegurado, mas à forma-
pela qual também os ideais e as religiões permanecem no mun- ção da mais evoluída personalidade do super-homem conscien-
do ainda sujeitos ao domínio destes meios, não sendo possível te. Trata-se de uma mutação evolutiva, aquela pela qual, segun-
se realizarem senão em posição subordinada a eles. O tecnicis- do Teilhard de Chardin, o ser deixa a biosfera e desemboca na
mo, com a abundância da produção, tende hoje a levar a huma- noosfera, entrando assim, segundo A Grande Síntese , na 3 a fa-
nidade para a libertação de tal escravidão econômica. Isto signi- se do fisio–dínamo–psiquismo. Quando o homem tiver supera-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 15
do e organizado em definitivo o dinamismo, dirigindo-o à pro- to de querer se precipitar num retrocesso involutivo, abusando
dução econômica de bens, ele haverá fixado então, através do para o mal, na direção do AS, daquelas condições favoráveis
tecnicismo, este funcionamento em forma automática, de ma- que o impulsionam para o bem, em direção ao S, e dilapidando
neira que essa produção continuará a se fazer por si mesma. assim o fruto da laboriosa maturação dos milênios passados.
Assim o homem, uma vez realizada esta obra, que já agora é ◘◘◘
sua, poderá dedicar-se à construção de si mesmo num plano su- Ainda com relação a este fenômeno que a evolução está
perior do edifício biológico e, através de outro tipo de dina- amadurecendo agora, observemos os seus elementos, a sua téc-
mismo, dirigir-se à produção de outros bens, de caráter espiri- nica e a lógica que a vida usa para desenvolvê-los. Falamos an-
tual. Tudo isto é lógico, porque faz parte do plano geral do de- teriormente do culto da posse e da sua correlativa forma mental.
senvolvimento da evolução, que vai do AS ao S, isto é, da ma- É precisamente neste aspecto que a nova forma mental trans-
téria ao espírito. Tudo isto aparece mais evidente no período formará o homem do futuro. É natural que ele, passando a uma
atual, porque nos encontramos no momento da passagem de fase mais avançada de evolução, mude também o seu modo de
uma era para outra, em que há mudança de posições e na qual, conceber a vida, segundo o seu modo de viver e funcionar.
devido ao impulso para frente, o transformismo se faz mais rá- Observemos como o homem está se preparando para entrar
pido, intenso e, portanto, mais visível. nesta sua mais avançada fase de evolução e a que novo modo
Trata-se de uma transição biológica. Haverá a transforma- de existência está se encaminhando. A transformação evolutiva
ção do tipo de vida da humanidade nas suas várias manifesta- que está amadurecendo na estrutura da massa humana, em
ções, como economia, política, literatura, arte, filosofia, ética, grande parte ainda amorfa, consiste em levá-la cada vez mais
religiões, direito etc., porque mudarão a forma mental, o tipo de para o estado orgânico. Mais exatamente, esta transformação
trabalho e as condições do ambiente. Assim as verdades consi- consiste em se passar do atual e ainda vigente estado ou modo
deradas absolutas, mas que o são somente em relação aos sécu- de existir, de tipo individualista-separatista, a um outro, contrá-
los passados, transformar-se-ão em outras verdades, que tam- rio, de tipo orgânico-colaboracionista.
bém serão julgadas absolutas, mas que serão relativas em rela- Independentemente do comunismo e fora da sua zona de in-
ção aos séculos futuros, tudo mudando sempre em relação ao fluência no mundo, hoje se afirma cada vez mais uma tendência
grau de evolução alcançado. geral à socialização. O comunismo nada mais é do que apenas
A nova grande ocupação do homem não será conquistar pa- um aspecto da expressão mais ousada, ativa e evidente deste
ra possuir, luta que já não terá razão de existir, quando for su- fenômeno que assalta toda a humanidade: o socialismo. Trata-
perado o estado de necessidade, mas será, pelo contrário, um se de um fato que se encontra por toda a parte, mesmo em ter-
trabalho dirigido à conquista de conhecimento e à formação da reno politicamente oposto, envolvendo profundas mudanças no
consciência. Tudo isto será aceito pela vida, porque, ao mesmo modo de conceber e colocar os problemas, de agir, de regular as
tempo em que representa um valor biológico, constitui também relações entre os vários elementos da coletividade, enquadran-
um modo mais seguro e completo de defesa, garantindo melhor do-os numa nova ordem. Pode-se, portanto, verdadeiramente
a sobrevivência. Estaremos, então, diante de um tipo de luta falar de transformação evolutiva e de fenômeno biológico. As-
praticada com meios mais inteligentes e, portanto, mais eficien- sim o comunismo, mais do que um consciente iniciador, seria
tes. De fato, não teremos mais o indivíduo em completa igno- só um instintivo seguidor, obediente realizador das leis da vida,
rância, manobrado só pelos instintos e arrastado por eles como as únicas que sabem onde a humanidade deve chegar e que,
um cego ao longo do caminho da evolução, mas sim um ser portanto, verdadeiramente dirigem a história. Trata-se de passar
iluminado pelo conhecimento, que assume as diretivas da sua de fato a uma nova forma de vida, coletiva e inteligentemente
vida e do fenômeno evolutivo no seu planeta. A luta pela as- organizada, isto é, a um modo de viver mais completo, comple-
censão continuará, mas, dado o progresso realizado, será sem- xo e perfeito, como é o estado orgânico. Quem entende o signi-
pre mais de tipo S e sempre menos de tipo AS. E sabemos bem ficado da atual tendência da humanidade à coletivização, com-
o significado de um tipo e de outro. preende tratar-se de uma transformação profunda, que, trans-
De tudo isto pode-se compreender que, desta vez, não se cendendo o problema político e ideológico, assume a importân-
trata de uma das habituais revoluções, escalonadas em série ao cia de conquista de uma nova posição biológica, situada numa
longo do caminho da história, para realizar pequenas e graduais mais avançada fase de evolução.
transformações, mas sim da conclusão desta série, para iniciar É natural que tal transformação, atuando em profundidade,
uma nova, de outro tipo. Em resumo, trata-se de um salto de seja também psicológica e se estenda a vários setores da ativi-
uma era para outra, de um processo de transformação que tende dade e da natureza humana. Também é natural que o instituto
à criação de um biótipo mais evoluído. Hoje, estamos quase no da propriedade, baseado ainda sobre o velho modelo social
fim de uma fase de amadurecimento, através do qual o fenôme- individualista-separatista, ressinta-se deste novo modo de
no se precipita na fase seguinte. Estamos na hora do parto. O conceber a vida coletiva. Como reação ao antigo sistema, em
feto está pronto. Teremos um recém-nascido: o novo homem, razão da nova maturação evolutiva, explica-se a universal
ainda menino, que os futuros milênios levarão à maturidade. tendência, mesmo nos países capitalistas, a limitar cada vez
Processo lento e longo, mas inexoravelmente construído pelo mais o conceito individualista-separatista de propriedade ab-
tempo, que marca o ritmo do transformismo sem nunca se de- soluta, através de uma progressiva restrição dos seus abusos,
ter. Então, não mais dominará o involuído de hoje, mas sim o permitidos pelo princípio atávico de poder ilimitado do dono.
evoluído de amanhã, que, como maioria, imporá as suas leis, No caso extremo do comunismo, o ataque é frontal, visando
bastante diferentes. Em relação a este último, já explicamos su- destruir definitivamente o próprio instituto da propriedade.
ficientemente, em nossos livros, quão diferentes são a sua for- Nos países capitalistas, ela é atacada em forma mais modera-
ma mental, a sua ética, a sua religião, o seu tipo de trabalho e o da, por sucessivas aproximações, não para destruí-la, mas para
seu objetivo buscado. Ele hoje é exceção e, perante a atual rea- discipliná-la. Acontece, então, que a antiga forma absoluta,
lidade biológica, constitui uma utopia. Amanhã, ele será esta submetida a este processo de cerceamento, limitação e condi-
realidade. Hoje é uma antecipação isolada, um mártir pisoteado cionamento, vai sendo lentamente corroída. A propriedade da
para abrir caminho aos piores. Amanhã estará no vértice, como fase individualista-separatista não pode sobreviver nesta nova
mente diretora da evolução biológica do planeta. fase de evolução, a não ser transformando-se num tipo de
Este é o esplêndido desenvolvimento que nos espera, pro- propriedade orgânico-colaboracionista, porque toda a socie-
gramado pela leis da evolução, se o homem não for louco a pon- dade humana está se transformando neste sentido e todas as
16 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
suas manifestações devem seguir o ritmo da evolução, que tu- ajuda necessária para sobreviver, como justa recompensa do
do arrasta consigo. Assim, vai desaparecendo o conceito de trabalho realizado para vantagem dela. Surge assim, favoreci-
propriedade exclusivista-absolutista, que se atualiza paralela- do pelo tecnicismo, um conceito novo: a valorização do traba-
mente com tudo o mais, tornando-se assim cada vez menos lho, que se substitui ao valor da propriedade. A produtividade
abuso de egoísmos e sempre mais função social. toma o lugar e assume a função que a posse realizava anteri-
Se bem que em diferentes graus, este fenômeno universal de ormente. Tudo isto sacode a vida humana da sua posição estáti-
assalto destrutivo ou de limitação da propriedade tem um signi- ca e a dinamiza, exaltando a função criadora em vez da conser-
ficado próprio. Ele nasceu e justifica-se como reação aos abu- vadora. Tudo isto significa um método diverso de enfrentar e
sos que se fizeram dela no passado. A humanidade, havendo resolver o problema da existência, de procurar os meios de sub-
amadurecido por evolução, agora consegue vê-los e não está sistência, de conduzir a luta pela vida. Esta transformação fixa
mais disposta a suportá-los. É necessário compreender que a na raça dois importantes conceitos: a necessidade de trabalho
evolução, avançando em direção a um estado mais perfeito que para todos e, em paralelo, a necessidade da previdência social.
o anterior, tem a função de polir o passado. Assim, para tornar Veremos, também, que a transformação se torna cada vez
possível a ascensão, é necessário a propriedade se tornar livre mais vasta, invadindo outros aspectos da vida. Valorização do
de todas as superestruturas que a desviaram de sua finalidade e trabalho significa valorização do homem, agora dinamizado e,
das incrustações parasitárias que se ergueram por sobre as suas com isto, elevado a uma nova potência e mais alta dignidade.
culpas e defeitos, condição esta verificada numa intensidade Criando com a sua atividade e inteligência, ele passa agora da
proporcional ao abuso que degenerou a instituição. Então com- sua precedente posição de servo das coisas possuídas, máximo
bate-se uma instituição que, por ter sido corrompida, acabou valor do passado, ao qual ele tinha que se subordinar, para do-
tornando-se prejudicial, o que significa procurar matar o enfer- minador delas, reduzidas nas suas mãos a um instrumento cria-
mo, para libertar-se da doença. Sucedeu o mesmo com o assalto dor. Tudo isso significa que esses meios, que chamamos pro-
violento do ateísmo contra as religiões. A culpa está no abuso priedade e riqueza, deverão ser, para o homem futuro, de tipo
cometido por elas em nome de Deus. No caso do comunismo, o diferente, porque o valor não será medido pelas posses, mas
ataque contra a propriedade e, portanto, contra quem detém a sim pelas qualidades pessoais e pela capacidade de produção,
posse, é violento em razão da total resistência da parte oposta. baseando-se não na obtenção de bens através do trabalho dos
É isto o que obriga a evolução, cuja ação ninguém consegue de- outros, mas sim no rendimento da própria habilidade e ativida-
ter, a usar a força para progredir, quando esta se torna necessá- de. Então o indivíduo não valerá por ser proprietário de terras e
ria para avançar. Neste caso, o motivo da violência está na re- capitais, mas sim porque possui um cérebro, um conhecimento,
sistência do passado, que não quer renovar-se, razão pela qual, uma consciência e uma grande vontade de trabalhar. Eis o con-
para dar o salto à frente, a história deve periodicamente recorrer ceito novo que leva o elemento humano ao primeiro plano.
às revoluções. Se elas acontecem, é porque são úteis à vida, que De tudo isto se vê quão profunda, importante e plena de
de outra maneira não as produziria. E pode-se ver como elas consequências é a atual transformação evolutiva. Muda com-
são úteis ao progresso, ainda que isso se verifique muito tempo pletamente a unidade de medida e o ponto de referência em
depois. Ninguém admite hoje que seria um bem regressar ao função dos quais se julga o indivíduo e se estabelece o seu va-
regime anterior à revolução francesa ou ao poder temporal dos lor. Ele não vale por aquilo que possui, mas pelo que sabe fa-
papas. Mas quem podia condenar naqueles tempos tais regi- zer; não vale pela sua riqueza, mas pelas suas qualidades; não
mes? Por isso o ocidente capitalista vai acompanhando, se bem vale em relação à propriedade, mas em relação ao seu trabalho
que lentamente e de longe, o extremismo reformador do comu- e à sua produção. É natural que cada transformação evolutiva,
nismo. Pode-se entender também o fenômeno num sentido deslocando a posição do ser para um outro nível ao longo da
completamente diferente do político, vendo-o como um instru- escala da evolução, traga consigo também uma deslocação na
mento nas mãos de Deus (traduzindo para o cético: meio com o posição dos termos da escala de valores. Trata-se de um verda-
qual se realiza o pensamento e a vontade da evolução), utiliza- deiro avanço biológico, porquanto nasce um valor novo: o ho-
do para realizar os supremos fins da vida, quando não existe mem, anteriormente em estado de germe. Tal valor substitui
outro meio a não ser a destruição. Só por ignorância pode-se aquele tradicional, constituído pelos bens possuídos. Assim, o
chegar a crer que aos interesses egoístas de um grupo ou classe homem consegue libertar-se da escravidão das coisas, das quais
social seja permitido, num universo em que tudo está regulado, dependia como de um valor máximo, para transformar-se ele
deter o movimento ascensional da humanidade. E hoje isto se mesmo neste valor. Como se vê, a revolução é profunda, por-
tem verificado com particular intensidade. que chega às raízes da personalidade humana, mudando a sua
As transformações citadas acima não podem ser considera- forma mental, ao mesmo tempo em que desloca as bases eco-
das como um fenômeno isolado, pois arrastam consigo, envol- nômicas sobre as quais se apoia a estrutura da sociedade e a
vido na mesma corrente, tudo o que, encontrando-se próximo, atual técnica da luta pela vida.
seja paralelo, afim ou influenciável de qualquer modo. Tudo Esta transformação traz consigo outras consequências. O ins-
está conexo e repercute, comunicando-se pelas vias físicas, di- tituto da propriedade, historicamente, representa uma posterior
nâmicas e espirituais do universo. Eis então que o vigente mé- legalização, para estabelecer juridicamente a favor do proprietá-
todo de luta pela sobrevivência se ressente destas deslocações. rio um aleatório estado de fato ou de posse, formado no início,
Até agora, ele se baseava sobre a posse dos bens, ligando-se à fora de qualquer lei, por um livre ato de apropriação. É natural,
conquista, defesa e conservação deles. Tudo isto, com a evolu- portanto, que quantos tenham ficado excluídos de tal conquista,
ção do conceito de propriedade, acaba por se transformar. É não compartilhando de suas vantagens, venham a repetir o
certo que permanece a fundamental necessidade de se procurar mesmo ato, com o mesmo método, em prejuízo de quem o reali-
os meios de subsistência. Mas, agora, tal problema deve ser re- zou primeiramente. Eis como surgem os ladrões e a necessidade
solvido por outras vias. Se, no passado, as bases da vida se de uma propriedade armada em contínua defesa contra eles. Eis
apoiavam na propriedade, o que implicava numa perpétua luta que furto e propriedade são duas forças opostas que se equili-
contra os excluídos, ávidos de apossar-se, porque ser dono sig- bram no seio do mesmo fenômeno. Uma implica na outra e a le-
nificava tudo, numa nova fase elas se apoiarão sobre a capaci- va consigo, fazendo, assim que surge, nascer a oposta, porque
dade e o dever do indivíduo de produzir para a coletividade e ambas fazem parte do mesmo regime e se apoiam sobre a mes-
no seu correspondente direito, implícito na fase orgânico- ma forma mental da avidez egoísta, seguindo sempre insepará-
colaboracionista, de receber daquela sociedade a defesa e a veis. Proprietário e ladrão, no fundo, são como dois cães à volta
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 17
do mesmo osso. O primeiro luta para continuar sendo dono. Esta condenação, coloca-o em luta com todos. A causa primária es-
é a substância das defesas jurídicas. E o segundo luta para se tá nesta forma mental atrasada da natureza humana; está no
tornar dono. Esta é a substância dos assaltos, manifestando-se fato de não ter o homem ainda sabido evoluir até ao ponto de
em pequena escala, com o furto, e em grande, com as revolu- formar uma consciência coletiva, que o leve a disciplinar-se
ções. Eis que, para transformar este segundo termo num outro, numa ordem na qual todos possam espontaneamente colaborar
eliminando-o nesta sua forma, é necessário transformar também em paz, para o proveito comum.
o primeiro termo, porque, enquanto este continuar sendo o que é Mas por que o involuído é egoísta e possui semelhante forma
hoje, ele não poderá separar-se de seu fiel companheiro. mental, causa de tantos dos seus males? A razão para isto tem
Ora, sucede que a atual transformação evolutiva procura jus- uma raiz mais profunda. O ser, devido à sua revolta, é um decaí-
tamente transformar aquele regime num outro, de tipo diferente, do, mergulhado na cisão. Do originário estado orgânico unitário,
o que leva implicitamente à eliminação de todas as consequên- ele, no início dos tempos, emborcou-se e fragmentou-se no sepa-
cias do primeiro. Esta dissertação não teria sentido, se existisse ratismo, condição na qual permanecerá, enquanto não conseguir,
uma propriedade verdadeiramente justa, exclusivamente fruto de evoluindo, reconstruir-se naquele estado de origem. A vida,
trabalho e economia. Tal tipo também pode existir, mas em pe- chegando com a humanidade ao mais alto nível evolutivo do
quena escala, pois não é certamente com este método que se fa- planeta, está agora tentando os seus primeiros passos para se re-
zem as riquezas. Eis que, para os males atuais, não existe outro aproximar da reconstrução daquele estado originário. Eis o mais
remédio senão uma mudança de método, e isto é o que se está remoto e profundo significado do coletivismo hoje na moda, vis-
preparando hoje. É certo que, caso se queira obter paz, libertan- to em função das grandes transformações desejadas pela evolu-
do-se do furto e das revoluções, será necessário chegar a um ção. Por isso a hora presente toma esta direção no desenvolvi-
acordo entre quem tem e quem não tem. Enquanto não for as- mento da história, e por isso também este é o trabalho que agora
sim, o que não tem andará a caça do que tem, e este, por sua vez, cabe ao homem realizar, para passar a um grau de civilização
deverá viver armado em seu castelo. Esta é a luta entre comu- mais avançada. Eis, assim, não somente as razões da condena-
nismo e capitalismo. Não estamos aqui tomando partido por ne- ção à luta pela vida e às guerras entre os povos, mas também o
nhum programa político. Isto é só uma constatação imparcial do seu remédio. Só a evolução pode nos libertar dos trabalhos for-
funcionamento das leis da vida e das inevitáveis consequências çados de tal tipo de existência, inerente aos involuídos. A vida
do tipo de forma mental que dirige o atual animal humano. Dia terrestre já conhece este tipo de vida organizada, porque realizou
virá em que o conteúdo do “meu” será diferente, quando ele já os seus primeiros esboços nas colônias de insetos (abelhas, for-
não será o que possuo como tesouro acumulado, mas sim o que migas) e, num grau bem mais elevado, nas colônias de células
sei fazer, o que possuo como proprietário da minha própria ca- (organismo humano). Nelas, nenhum elemento se levanta contra
pacidade de produzir. Neste dia cairão automaticamente as ame- o outro, estando todos espontaneamente ligados por um egoísmo
aças que hoje pesam sobre a propriedade. Este novo tipo de pro- coletivo unitário, e não individual separatista.
priedade será, assim, inerente à pessoa, e ninguém poderá roubá- Hoje, assistimos ao início de um processo unificador da
la, nem por furto nem por revolução. Os ladrões jamais poderão humanidade, o qual implica na formação de um biótipo funci-
levar as nossas qualidades pessoais. onando com outra forma mental, que leva a atuar e a viver de
Esta transformação pode levar a consequências ainda mais modo diferente. Tal unificação, portanto, é o resultado de uma
vastas. Superada a fase do regime separatista do “meu” e do coletivização decorrente da convicção do ser, no sentido de
“teu”, acaba por cessar o estado de guerra que dela deriva. Tal formar parte de um novo sistema, o que implica naturalmente
estado, tanto para os indivíduos como para as nações, é a ine- a abolição das revoluções e das guerras. Novo biótipo, nova
vitável consequência de uma propriedade nascida da posse e forma mental, nova concepção da vida e nova maneira de se
utilizada com fins exclusivistas, gerando assim a classe dos comportar, estas são as sucessivas mudanças, ligadas em ca-
esfomeados, prontos ao assalto. Todos os momentos de cada deia, que poderão levar a uma nova civilização, feita para
fenômeno estão conexos, um contido em germe no outro, com perdurar, fixando-se na raça humana. A evolução, no passado,
todas as suas consequências. Com os referidos problemas está deu prova de saber realizar transformações bem mais profun-
conexo também a questão da multiplicação não controlada, das. Com ela, tudo pode gradualmente mudar. O homem se
sobre a qual voltaremos mais adiante. Até hoje, a vida foi in- civiliza, tornando-se mais inteligente e menos feroz. A ativi-
duzida à conquista com o método da multiplicação das massas dade humana, de tipo cada vez mais pacífico e menos guerrei-
humanas, lançando-as ao assalto dos povos mais ricos. É as- ro, torna-se mais produtiva, de modo que os novos cérebros
sim que propriedade e reprodução são fenômenos interdepen- conseguirão compreender quão prejudicial é para todos o mé-
dentes, porque a segunda leva à necessidade de conquista de todo da agressividade. De resto, está na lógica de todo o pro-
um espaço vital à custa da primeira, enquanto esta, represen- cesso evolutivo que se deva realizar um passo mais em frente,
tando os meios para a existência, estabelece os limites da se- na obra de reordenação que vai do AS ao S.
gunda. Numa sociedade civil e organizada, estes fenômenos A vida segue vias utilitárias, e o ser aceita o que lhe traz van-
deveriam ser inteligentemente regulados, e não deixados ao tagem. Na prática, não há quem deixe de ver a conveniência
arbítrio dos inconscientes. As guerras, com as destruições e concreta de dirigir as próprias energias no sentido da produção
dores que custam, não poderão ser eliminadas, enquanto a de bens, em vez do tormentoso esforço destrutivo das guerras.
causa primária não for eliminada. Vivemos num mundo de Com o novo método, a vida se torna muito mais rica, além de fi-
leis, constituído por uma engrenagem de causas e efeitos, de car mais bem defendida, e isto com muito menor desperdício de
onde não se pode sair. Cada tentativa neste sentido é um erro energias do que com o velho método ainda vigente. Não se po-
pelo qual se paga. A liberdade que conduz para fora da ordem, derá fugir à compreensão da facilidade que é resolver o tremen-
violando os equilíbrios da vida em prejuízo dos outros, não do problema da sobrevivência através do desenvolvimento da
pode levar a uma conquista, mas somente à reação do ofendi- inteligência, aplicada como meio pacífico de produção, e não
do, trazendo não a vitória, mas sim a guerra. como instrumento de furto e agressão. É precisamente por estas
Por que isto? Parece um destino maléfico, que persegue o vias que a evolução tende a levar o ser em direção a contínuos
homem desde que ele apareceu sobre a Terra. É a sua posição melhoramentos, reabsorvendo a dor e criando a felicidade.
ainda de involuído, devido ao seu baixo grau de evolução, que Observemos agora um outro aspecto desta tendência à uni-
o prende dentro da prisão do seu estreito egoísmo, ligando-o ficação do fenômeno evolutivo. É incontestável, hoje, que o
assim a uma forma mental que, perseguindo-o como uma aprofundamento do conhecimento leva à especialização. E po-
18 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
de parecer que tal método conduz à separação, e não à unifica- realizando o seu pensamento no plano concreto. Disto nasce, en-
ção. Ele se fraciona, porque permite a cada um se aperfeiçoar tão, uma transformação do ambiente, que passa a oferecer con-
no próprio ramo, oferecendo assim a possibilidade de realizar dições de vida diferentes, as quais permitem por sua vez uma
um trabalho melhor dentro da própria capacidade e função. No evolução mais avançada. Assim nasceu a ciência e, como con-
entanto a especialização oferece o perigo de um afastamento e, sequência desta, a técnica, que facilita a produção de bens e en-
portanto, de isolamento de cada cérebro especializado. Então, riquece o homem, libertando-o das duras necessidades materiais
para não se acabar no caos de uma Torre de Babel, surge uma e do estado de luta feroz para sobreviver. A técnica produziu os
necessidade paralela de coordená-los, a fim de se poder atingir utilíssimos meios de comunicação, para aproximar os elementos
o estado de colaboracionismo que a vida aspira, próprio da fa- distantes e mantê-los em contato, sem o que não é possível che-
se orgânica. Se a vida não corrigisse, com um equivalente im- gar à compreensão recíproca, à colaboração e, por fim, ao estado
pulso unificador, o impulso divisionista da especialização, o orgânico unitário. Quantos gênios, no passado, realizaram esfor-
resultado não seria construtivo, mas sim desagregante, e a evo- ços desesperados nesta direção evolucionista, mas não tiveram
lução, ao invés de avançar para a unificação, retrocederia para sucesso, porque lhes faltavam os numerosos meios que a técnica
o separatismo. Mas a tendência unificadora é mais forte do que oferece! Só hoje se começa a compreender a possibilidade de
o impulso separatista e, por isso, está destinada a vencer. Nós a uma civilização mundial única, porque foram abertas todas as
vemos manifestar-se na formação das grandes unidades políti- estradas do mundo, o que significa circulação e comunicação
cas no mundo, agora já reduzidas apenas a duas principais, que não só de mercadorias e pessoas, mas também de pensamento.
um dia deverão acabar por formar uma só. É assim que, junto Hoje busca-se concretizar os ideais de unificação, com a fusão
com a compensadora tendência à unificação, sente-se hoje a econômica de vários Estados, coisa anteriormente inconcebível.
necessidade de uma síntese universal orientadora. Até as reli- É a evolução que exerce pressão para romper as portas do sepa-
giões procuram aproximar-se através do diálogo, para chegar a ratismo. E, da mesma forma que escancarou as portas e derru-
uma compreensão unificadora. bou os muros que fechavam as cidades medievais, ela hoje des-
Devido à evolução, nada pode deixar de se dirigir à unifi- trói alfândegas, limites, nacionalismos e racismos separatistas,
cação. Isto se deve, conforme já explicamos em outro lugar 1, para se aproximar cada vez mais da fusão num só organismo.
ao princípio das unidades coletivas, pelo qual os elementos, Vemos, então, que também o progresso da mecânica pode ser
em vez de se separarem com a especialização das suas funções, útil ao desenvolvimento do pensamento.
são retomados no círculo de organizações cada vez mais vas- Então as coisas mais díspares, aparentemente distantes,
tas, que incluem as unidades componentes menores, escalona- acabam por convergir e cooperar para o mesmo fim. O pro-
das por grandeza e complexidade ao longo do caminho da evo- gresso da medicina e o conhecimento das leis da vida poderão
lução. Eis que a crescente diversidade à qual o aperfeiçoamen- permitir ao homem tomar a direção do fenômeno da evolução
to conduz acaba por se tornar um elemento não de cisão, mas biológica do planeta, o que é indispensável numa humanidade
sim de unificação, porque demanda uma contínua integração, que atingiu o estado orgânico. Em tal regime de ordem, não se-
que funde todos e cada um dos elementos componentes. Ve- rá admissível uma multiplicação descontrolada, que desconsi-
mos que a vida utiliza este método de aproximação colabora- dere as imensas consequências demográficas, econômicas e
cionista, tendendo ao que se poderia chamar de simbiose uni- sociais. Uma sociedade orgânica será, em cada um dos seus
versal. Os elementos constitutivos do átomo se fundem dentro elementos, responsável pelas consequências de cada ato, e na-
dele num sistema; a seguir, os átomos se juntam em outros sis- da será abandonado à liberdade dos inconscientes. Então serão
temas mais complexos, formando as combinações químicas isolados, como elementos de desordem, todos que, dando nas-
dos corpos; as moléculas, por sua vez, coordenam-se no siste- cimento desordenado a novos seres, atentam contra a ordem
ma celular, enquanto as células se unem umas às outras, para, coletiva; serão considerados como uma fonte de perigo social
funcionando em conjunto, formarem órgãos e organismos. Es- todos que procurem lançar no seio da coletividade – a qual terá
tas já tão complexas unidades coletivas são os primeiros ele- depois de suportar o seu peso, arrastando-os – loucos, doentes,
mentos constitutivos de unidades ainda mais vastas. Assim, no incapazes, esfaimados, desviados ou criminosos, estes últimos
homem, a união de indivíduos faz a família, depois o grupo prontos a conquistar a vida para si, assaltando o próximo. Uma
familiar, a cidade, o partido, a nação, a raça e, por fim, a hu- vida melhor não poderá ser alcançada senão numa posição de
manidade. É lógico pensar que o processo unificador não pode ordem, de previdência e de disciplina.
deter-se neste ponto, devendo continuar com uma união de to- Nestas novas condições de vida, muitos conceitos muda-
das as humanidades, até chegar a um estado orgânico unifica- rão. Assim como o conceito de propriedade passará cada vez
dor de todas as formas de existência do universo. mais do sentido de exploração egoísta ao de função mais no
Temos observado por quantos caminhos a evolução humana interesse coletivo do que individual, também o conceito de
está hoje amadurecendo. Cada desenvolvimento está conectado autoridade passará cada vez mais do sentido de posição de
com outro, provocando-o ou sendo por ele condicionado. O fe- domínio, sempre em vantagem de quem a detém, ao de função
nômeno básico é uma transformação do biótipo humano, o qual social, como serviço a favor da coletividade. Trata-se de alte-
agora evolui no tocante às qualidades cerebrais, significando isto rações interiores profundas, de convicções e forma mental,
a transformação da sua forma mental, ou seja, do seu modo de com importantes consequências no funcionamento da organi-
conceber a vida, de resolver os problemas e, em consequência, zação social. Dessa forma, o princípio de autoridade, nascida
de orientar sua ação, que será mais inteligente, pacífica e efici- como opressão escravagista, transforma-se em benéfica po-
ente. Agora, a evolução não é mais orgânica, concernente ape- tência diretora e protetora da vida.
nas às formas, pois atingiu com o homem o seu mais alto nível, A relação de tais transformações poderia continuar com as
começando a se tornar de tipo espiritual. O amadurecimento se diversas alterações delas decorrentes. É toda uma frente de
faz cada vez mais profundo; penetra no interior, em direção à amadurecimento que avança, cuja base está na maturação evo-
substância do existir; atua internamente, nas raízes do ser; assal- lutiva do biótipo humano, da sua mente e da sua capacidade de
ta os órgãos diretivos; tudo isto para que, depois, o próprio ho- compreender, que dirige a sua atividade criadora e representa o
mem venha a projetar os resultados no exterior, com a sua ação, centro genético das suas obras. É esta maturação, associada à
ciência dela derivada, que levará ao completo domínio das for-
1
V. A Nova Civilização do Terceiro Milênio – Cap. V. “As Grandes ças da natureza. Isto significa não só potencialização e valori-
Unidades Coletivas”. (N. da E.) zação do trabalho que o homem realiza, mas também um avan-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 19
ço em direção a um tipo de trabalho de técnica especializada, Cada século deve criar algo próprio, segundo suas mais di-
que exige uma cultura prévia e, portanto, implica um processo versas capacidades e de acordo com as possibilidades do mo-
de intelectualização, porquanto a atividade se transfere do plano mento histórico. Mesmo nos períodos de decadência, a vida
do esforço físico do servo ao plano da função mental do diri- consegue criar algo, ainda que seja um fruto corrompido por
gente. Mas este novo tipo de vida não será possível senão no demasiada maturação. Hoje estamos em decadência, mas apenas
seio de uma nova civilização, que possa, através da sua organi- como imprescindível função de eliminação do passado. Sob este
zação, deixar o indivíduo livre do assalto das necessidades ma- terreno coberto de despojos, ferve e está despontando um mundo
teriais, às quais hoje tudo se encontra subordinado, permitindo- novo. Compete a nós fazê-lo nascer. Somos nós, seres viventes,
lhe dedicar-se a coisas mais elevadas do que a procura pelo di- que incorporamos as forças da vida em ação. Nós, humanos,
nheiro, cuja obtenção se impõe atualmente como finalidade somos os construtores de nosso destino. A vida é uma inteligên-
principal de toda a sua atividade. Isto será facilitado pelo fato cia que pensa e dirige, e não apenas uma abstração fora da reali-
de, no estado orgânico, estar implícita a existência de uma nova dade. Mas ela também é vontade de realização, cuja concretiza-
função social, através da qual a coletividade se converte em ção se realiza através do homem, que se torna o seu braço exe-
protetora do indivíduo, até agora abandonado às suas próprias cutor. Em épocas mais avançadas, um homem mais evoluído
forças e em luta contra os seus semelhantes. Esta função de compreenderá e realizará esta íntima colaboração entre a grande
proteção, até hoje, coube somente ao grupo e dirigiu-se apenas inteligência que dirige o funcionamento do universo e a sua pe-
em favor dos próprios componentes, enquanto cada grupo luta quena inteligência, que serve de operário inteligente.
contra os demais. Deste sistema medieval, primitivo e separa- O atual esforço criador para gerar a nova civilização cabe a
tista, de castelos armados sempre em guerra entre si, sejam par- nós, e dele devemos ser instrumentos heroicos, numa nova épo-
tidos políticos, religiões, coligações de interesses, nações etc., ca de conquistas sobre-humanas. Neste momento, como em to-
passar-se-á ao já mencionado princípio das unidades coletivas, das as horas apocalípticas, as grandes diretivas estão nas mãos
através de sucessivos reagrupamentos cada vez maiores, até ao de Deus, enquanto o trabalho pequeno da execução está nas
máximo, que os abraçará a todos, fundidos dentro da mesma mãos do homem. A ele caberá o esforço, a luta e o perigo, para
unidade: a humanidade. Então, ao invés de luta entre indivíduos que seja merecido e lhe pertença o resultado.
que se conhecem somente em termos de rivalidade, cada qual ◘◘◘
indiferente aos problemas dos outros, chegar-se-á, pelo contrá- Agora que falamos da expectativa de tão esplêndido desen-
rio, à colaboração entre todos, para que sejam resolvidas as volvimento, mudemos em relação a ele o ponto de vista, para
questões. O progressivo aumento das previdências sociais em olhar não o futuro do mundo, mas sim o presente. Damo-nos
todos os países do mundo e em todos os setores da vida humana por ventura conta do atual tipo biológico e de quais as condi-
expressa o desenvolvimento deste fenômeno. ções de ambiente a que tudo isto deve ser aplicado? Certamen-
Tudo isto manifesta a fase de superação em que o mundo te, o involuído atual, dada a sua natureza, não está, de modo al-
se encontra hoje, através da qual ele é levado em direção a um gum, pronto a dar de imediato tão grande salto para frente. Sem
desenvolvimento mental capaz de conduzi-lo à espiritualização dúvida, o tecnicismo transformará o ambiente terrestre e as
no mais vasto sentido, porquanto qualquer capacidade de cará- condições de vida do homem, produzindo depois profundas al-
ter mental representa sempre um valor superior à de tipo físico, terações também em sua natureza. Mas quanto tempo será ne-
guerreiro e material, ultrapassando aquele velho estilo ainda cessário para que tudo isto possa tornar-se realidade? Falar hoje
tão apreciado em nosso mundo. Também a ciência é conheci- em abundância de meios e de um tipo de trabalho intelectual
mento e, por isso, não pode deixar de conduzir à consciência e superior em países subdesenvolvidos, onde se morre de fome e
ao progresso em direção ao espírito. É para este tipo de pro- reina o analfabetismo, pode parecer uma trágica mentira e um
gresso que se move a evolução. Tudo que é atividade de inte- insulto à miséria. No entanto o progresso, com o ritmo alcança-
lecto é vida no seu mais alto grau de desenvolvimento. O fato do hoje, deverá chegar até lá, levando o mundo todo a este ní-
de máquinas substituírem o trabalho muscular, levando assim a vel. Tendo em vista este fato, agora que observamos o fenôme-
passar da atividade física às funções nervosas e cerebrais, re- no com uma ampla perspectiva futura, em relação aos seus de-
presenta, pelas suas consequências, uma transformação de al- senvolvimentos longínquos, procuremos então compreendê-lo
cance biológico. Agora, o maior problema da vida, que é asse- também segundo uma perspectiva mais específica, em relação
gurar a sua continuação, será resolvido com base somente na aos seus desenvolvimentos mais próximos, num futuro mais
inteligência, e não na violência. A consequência será a forma- imediato, tendo em conta, sobretudo, o homem atual e a imensa
ção de um novo biótipo, espiritualizado no mais vasto sentido, distância que o separa de tais conquistas.
fruto destas novas condições de existência. É assim que do in- Que valor têm na Terra as coisas superiores do espírito? Em
voluído poderá nascer o evoluído, do animal humano do pas- nosso mundo, o ideal pode existir somente enquanto pode ser
sado poderá nascer o verdadeiro homem. explorado. Mas isto, neste nível, é justo, porque, antes de pen-
Não é possível aqui passar em revista todos os momentos sar em evoluir, é necessário assegurar a continuação da vida. Só
desta complexa maturação. Podemos apenas concluir que este quando estiver garantido o necessário para resolver este pro-
quadro confirma a existência de uma curva no caminho da evo- blema, será possível enfrentar outros, mais altos. Quem é assal-
lução, na qual se dá a passagem de uma era para outra, através tado pela fome não pode ocupar-se de cultura e espiritualidade.
de um processo de maturação, cujo momento crítico chegou. De fato, debaixo de toda e qualquer pregação de ideal, a reali-
Ele tende à formação de um tipo humano mais evoluído, que dade que existe é a feroz luta pela vida, que, em nosso nível,
será o elemento constituinte de uma nova civilização, baseada representa a mais profunda verdade. Tributa-se grande admira-
sobre outros princípios, alcançados com uma outra forma men- ção e veneração pelos valores espirituais, mas apenas em teoria,
tal. Quem tem olhos para ver e cérebro para pensar compreende pois, na prática, apreciam-se e buscam-se de fato os valores
que estamos num momento crucial e decisivo, de tremendo es- materiais. Utilizam-se os ideais então para outros fins, como,
forço, grave perigo e excepcional potência criadora. A nossa por exemplo, constituir um rebanho bom e manso, sujeito, as-
época parece de destruição, mas representa o trabalho necessá- sim, à obediência, para ser ordenhado, como é função dos pas-
rio de limpeza do terreno, sem o que não se pode reconstruir. tores fazer. Este é o ambiente no qual o involuído se encontra à
Para a vida poder desenvolver-se em novas formas, mais avan- vontade, pois é proporcional aos seus instintos e necessidades.
çadas, é necessário ela se libertar das coisas velhas, que ocu- Quando o involuído tropeça com os ideais, que, pregados aos
pam o espaço disponível e a impedem. quatro ventos, não lhe servem para nada em sua vida terrena,
20 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
qual opção pode tomar, senão tratar de utilizá-los como instru- incapazes de saber se dirigir pela própria disciplina interior. O
mentos para sobreviver na luta pela existência? Um selvagem regime a que estavam habituados no passado era trabalho for-
que encontrasse um aparelho de televisão não saberia utilizá-lo çado e miséria, de maneira que o seu mais alto ideal consistia
senão como uma caixa comum, para colocar dentro o que lhe na supressão destes dois males, para compensá-los em sentido
pudesse servir, porque mais não compreenderia. oposto, com ócio, licenciosidade e abundância, buscando em
Assim a exploração dos ideais por parte do involuído não é demasia tudo quanto lhes faltava anteriormente. Antes de che-
mentira, porque ele não pode compreender-lhes o significado. gar à mudança, o primitivo se encontra adaptado às suas duras
Ele não tem margem para coisas que não lhe servem para viver condições de vida, tendo formado para si, com o tempo, uma
na Terra, seu problema premente de cada minuto. Exigir que, natureza adequada a elas. Forma-se então, entre indivíduo e
em tais condições, ele se ponha a evoluir, lutando pelos ideais, ambiente, uma determinada regra de convivência. Ora, quando
enquanto tem de lutar por coisas bem mais urgentes, representa o valor de um dos dois termos se desloca, nasce um desequilí-
um atentado à sua vida, sendo natural então que ele se defenda brio entre eles, surgindo a necessidade de adaptação para se
como pode. Tudo o que lhe vem à mão ele deve utilizar para harmonizarem em novos equilíbrios. Quando o indivíduo vive
sobreviver num mundo hostil, que não admite sonhos. O evolu- debaixo de uma determinada pressão, é natural que, se esta for
ído se rebela contra o que julga prostituição, mas, por olhar pa- suprimida, salte a mola da reação. Isto é inevitável, e é o que
ra o céu, é considerado um tonto pelo involuído, pois arruína-se sucede nas revoluções. Para evitar tal consequência, seria ne-
na terra. O antecipador do futuro, por mais nobre que seja sua cessário manter a pressão ou, melhor ainda, não dar lugar a tal
ação, é julgado um inepto por quem busca primeiro resolver o estado de pressão. Uma repentina alteração das condições de
problema de viver no presente. Quem, para sobreviver, necessi- vida de indivíduos despreparados para saber utilizá-las bem,
ta primeiramente das coisas concretas que servem ao corpo, não não pode deixar de provocar instintivas reações de abuso, ten-
sabe o que fazer dos maiores valores do espírito. Nas duras dentes a compensar em primeiro lugar as dolorosas carências
condições de luta do ambiente terrestre, quem esquece este fato precedentes com a imediata realização desse ideal de gozo, por
e, em vez de cuidar dos reais problemas da vida prática, perde- tanto tempo comprimido no subconsciente. Sucede, no entanto,
se, indo atrás do espírito, é um louco que procura a morte. É as- que tais reações, dirigindo-se além de toda e qualquer medida,
sim que, na Terra, reino dos involuídos, está tacitamente con- em sentido não evolutivo, devem ser depois corrigidas, para
vencionado que o ideal deve ser explorado para fins materiais, serem levadas de volta à ordem, com uma reação proporcional
porque para outra coisa ele não pode servir. ao erro, em termos de sofrimento.
Depois de haver projetado neste quadro as condições espiri- O primeiro uso que o involuído poderá fazer do novo bem-
tuais de nosso mundo e ter visto como ele está ainda submerso estar será o abuso. Terminada a compressão forçada da priva-
no seu baixo nível evolutivo, não estando preparado para um ção, o impulso instintivo saltará para o abuso, indo no sentido
salto de improviso à frente, perguntamo-nos se agora, que a oposto, para super saciar-se de tudo aquilo cuja falta antes se
técnica poderá permitir uma abundância de bens, menor traba- sentia, porque era essa a forma de felicidade concebida na con-
lho e mais tempo livre, bastará isto para tornar possível o invo- dição anterior. Assim o primeiro movimento de um involuído é
luído compreender o valor dos ideais? Será tal condição sufici- a procura de uma super-satisfação dos instintos primitivos: gu-
ente para que ele sinta o gosto das coisas superiores do espírito la, orgulho, ócio, sexo etc. É natural que o animal, uma vez li-
e mude a sua forma mental, assumindo uma nova, que o induza vre da pressão que o disciplinava, restitua um impulso no senti-
a praticar um tipo de esforço totalmente diferente, dirigido a do oposto ao que ele estava submetido.
conquistas que até agora tão pouco interessam? O profundo ins- O momento seguinte representa a escola que ensina a as-
tinto do atual subconsciente humano se formou como conse- similar os frutos da experiência. Tem-se de suportar os prejuí-
quência das ferozes condições do ambiente em que o homem zos que se seguem ao abuso, até se aprender a eliminá-lo. As-
teve de viver no passado, sendo produto delas. Se tais condi- sim o indivíduo aprende a se autodiciplinar, fazendo sábio uso
ções mudam, certamente aquele subconsciente vai-se adaptando das coisas. Pouco a pouco, com a regular satisfação, forma-se
a elas, experimentando e aprendendo. Mas, para se adaptar à o hábito, condição que acalma a ansiedade e leva à saciedade.
nova situação, assimilar a mudança e se transformar definiti- Uma vez atingido este ponto, o impulso inferior em direção ao
vamente, até fazer de tudo isto qualidades e instinto próprios, é excesso pode ser eliminado, porque se formam novos equilí-
necessário muito tempo. Deve-se formar uma nova simbiose brios. As novas posições se normalizam e a saciedade se torna
com o ambiente, um novo tipo de convivência mútua. constante, exigindo sempre menos abuso, o qual vai assim,
Se tomarmos um tosco aldeão e o colocarmos num trono, automaticamente, diminuindo até desaparecer. Então foi
poderá ele tornar-se um senhor requintado? E quanto tempo será aprendida a nova lição, e o indivíduo, superada a oscilação
necessário para que isso possa acontecer? Não basta enriquecer entre carência e excesso, pode deixar de lado o problema, já
um primitivo para que ele possa de repente transformar-se num resolvido, das necessidades materiais e cuidar, através de ou-
ser civilizado. O primeiro uso que ele vai fazer da riqueza será tras experiências, da solução de problemas mais complexos e
desperdiçá-la em disparates. Antes que possa aprender a atuar de da conquista de valores mais altos.
maneira diferente, ele deverá atravessar e assimilar novas expe- Assim a transformação biológica do involuído em evoluído
riências, entregando-se a abusos e pagando as suas consequên- é alcançada gradualmente, através destas oscilações e adapta-
cias, até aprender, à sua custa, a saber fazer sábio uso dos novos ções sucessivas. Somente quando o indivíduo tiver superado o
meios. Como pode conhecer os perigos da riqueza e abundância passado, eliminando suas carências e saciando os seus velhos
quem não provou senão as duras consequências da miséria? É desejos com uma regular satisfação, poderá nele surgir outro ti-
justamente a experiência que nos permite reconhecer o erro, tão po de desejos e a necessidade de satisfazê-los. É assim que,
logo incidamos nele. Mas como se pode, na primeira vez, reco- pouco a pouco, emergem primeiramente as aristocracias e, de-
nhecê-lo e nele não cair, quando ainda não foram provadas as pois, as seguem, subindo de baixo, outras classes sociais, se-
suas tristes consequências, sobretudo por ele se apresentar como guindo todos o mesmo caminho ascensional, no qual atraves-
salutar correção do erro oposto, cujos duros efeitos já se conhe- sam o mesmo processo de transformação. Em princípio, a alte-
cem? Como fazer compreender a quem suporta as dores da fome ração das condições de vida levará, como primeiro efeito, ao
a necessidade de evitar as dores que uma indigestão provoca? desencadeamento dos velhos impulsos até então comprimidos.
Vejamos o que sucede, quando se oferece abundância de Uma vez que se lhes ofereceu a possibilidade de se desafoga-
tempo disponível e de bem-estar a indivíduos não preparados, rem livremente, o primeiro resultado não poderá ser outro se-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 21
não uma satisfação excessiva. Portanto, num primeiro momen- IV. ENCONTRO COM TEILHARD DE CHARDIN
to, ao invés da passagem para uma vida superior, teremos, pelo
contrário, um reforço da vida inferior. Isto automaticamente le- I – Os Pontos Básicos
va a outro resultado, que é, primeiramente, ter de suportar as
dolorosas consequências do abuso, para depois, através destes Quando, na vida, encontramos um indivíduo que tem as
sofrimentos, ter de aprender uma autodisciplina e construir uma nossas mesmas ideias e sentimentos e vemos que passou pelas
consciência, elementos básicos para a conquista dos valores es- mesmas vicissitudes que passamos, sentimo-nos irresistivel-
pirituais. Estas são as fases do fenômeno. mente atraídos para ele, movidos pelo sentimento de simpatia
Num primeiro momento, portanto, o processo não resulta fraterna. Por este motivo, falo de Teilhard de Chardin.
em evolução, mas sim num reforço do precedente estado de Os pontos de contato são três: 1) As teorias defendidas; 2)
involução, que não pode ser superado, enquanto o esforço Os sofrimentos morais causados pela dolorosa posição de in-
necessário para se libertar dele não for cumprido. Tal esfo r- compreensão e condenação por parte das autoridades religiosas;
ço é induzido pela dor decorrente do abuso, a qual faz desa- 3) A paixão pelo Cristo, concebido racionalmente como ponto
parecer toda a satisfação. No previdente jogo de forças que de convergência da evolução da vida. Observemos os três pon-
determina o fenômeno, esta satisfação é, automaticamente, tos, para compreender o pensamento e a nobre figura moral
levada ao excesso, para que a dor a transforme em insatisfa- deste cientista, filósofo e crente, assim como o significado da
ção e, assim, o indivíduo, recebendo um contragolpe, seja sua obra perante a renovação atual do mundo. Este exame po-
levado por ela à superação. Eis que, na economia da evolu- derá nos levar mais além do caso particular, para observações
ção, o nascimento espontâneo do abuso tem uma função de- de caráter e interesse geral.
finida, porquanto conduz a uma inversão de valores, elimi-
nando os velhos e estabelecendo os novos. Sabemos que o 1) As teorias defendidas por Teilhard de Chardin e pelo autor.
sofrimento representa o agente corretivo do erro, tendo a
função de endireitar as posições. Somente assim o homem Em Teilhard encontramos os seguintes conceitos: transfor-
poderá aprender a viver num plano mais elevado. Somente mismo, evolucionismo, estrutura orgânica do universo e tendên-
depois de tal série de experiências, a técnica moderna poderá cia do ser a alcançar um estado cada vez mais orgânico, de uni-
dar fruto em sentido evolutivo. Esta análise nos mostra que, ficação. O homem é um elemento consciente, que, existindo em
muito provavelmente, o primeiro resultado imediato será um função de um todo organizado, é destinado a se tornar sempre
retrocesso involutivo, pois, em princípio, a tendência será mais consciente desse todo e dessa organicidade. A evolução é
usar os novos meios com a velha forma mental, o que levará orientada por um íntimo impulso telefinalístico, em direção a
a uma retomada dos defeitos do passado, potencializada pe- um ponto conclusivo: Deus. O fim supremo da existência é a
los novos poderes. Por exemplo, o primeiro uso que se faz convergência das diversas consciências individuais na consciên-
das invenções modernas é com a finalidade de guerra. Quan- cia única e total do centro Ômega, último momento e fim da
tos estragos serão necessários ainda, até que o homem evolução: Deus. Teilhard nada mais acrescenta. Mas tudo isto
aprenda a usar tudo isso de um modo melhor? Depois, como implica e deixa entrever a possibilidade lógica de que este ponto
acontece com todos os erros, este também será corrigido pe- possa ser também o Alfa de todo o processo, que, para ser com-
la dor, da qual se compreende assim a função e a necessida- pleto, deve conter ainda a sua contrapartida involutiva preceden-
de. Reabsorvido o erro, o mal ficará neutralizado e o fenô- te, como demonstramos claramente no volume O Sistema .
meno se concluirá num progresso evolutivo. Continuemos, escutando o que nos diz Teilhard. O universo
Não esperemos, portanto, que o progresso técnico trans- está completamente impregnado de pensamento, que se torna
forme o homem imediatamente e seja, por si só, suficiente pa- cada vez mais evidente com a evolução da vida, através da
ra determinar nele o avanço mental, cultural e espiritual de crescente complexidade estrutural alcançada desse modo pela
que falamos. O novo bem-estar poderá ser utilizado neste sen- matéria. Eis um panpsiquismo que é um pan-espiritualismo e
tido pelos indivíduos maduros, encaminhados já há tempo. Pa- um monismo, mas que, apesar de poder parecê-lo, não é mate-
ra muitos, porém, ainda involuídos, tal elevação de nível de rialista, pois, aqui, o materialismo é impulsionado até se tornar
vida poderá levar primeiramente ao ócio, aos gozos de tipo in- espiritualismo. O condenadíssimo evolucionismo darwiniano
ferior e aos vícios, desencadeando de novo os desejos inferio- não é expulso, mas sim adotado, resultando implícito e logi-
res, como um requinte no mal. Quando o centro espiritual de camente enquadrado neste muito mais vasto evolucionismo,
um indivíduo está embaixo, neste nível ficam também as sua que compreende também o espírito. A função da vida consiste
manifestações. Não se pode pretender que um primitivo saiba em fazer surgir este espírito, avançando em direção a ele atra-
responder diversamente daquilo que ele é, assim como não se vés de um transformismo biológico (o darwiniano), cuja fun-
fazê-lo utilizar os seus meios com um cérebro diferente da- ção não é senão servir de veste exterior, como um instrumento
quele que possui. Cada ser, quando se encontra em condições de expressão, experimentação e laboração de um outro trans-
favoráveis ao seu desenvolvimento, somente poderá desen- formismo mais substancial, de tipo psíquico, escondido na pro-
volver seu próprio tipo, que depois, então, ele adapta às novas fundidade, que anima a forma.
condições de vida. Mas, no princípio, ele só poderá crescer e Teilhard intuiu nódoas de consciência incipiente mesmo nos
se fortalecer segundo aquilo que já é. Se damos a uma planta mais ínfimos graus da existência, no plano físico do universo.
venenosa meios para prosperar, isto irá levá-la a se tornar Para ele, a matéria inorgânica é, antes, uma matéria pré-vivente
mais potente no seu veneno. Assim, um escorpião, uma ser- e, num sentido lato, pré-consciente. A evolução levou esta
pente ou um macaco, se forem ajudados, irão se tornar cada consciência a se revelar imensamente mais avançada e potente
vez mais escorpião, mais serpente e mais macaco. A constru- no homem. Ora, dado que a organicidade do todo implica uma
ção espiritual, para elevar-se a um mais alto plano de existên- lógica, seria absurdo que a evolução se detivesse neste ponto do
cia, é fenômeno lento e complexo, constituindo uma matura- caminho, sem continuá-lo. Teríamos um processo partido ao
ção em profundidade. Para alcançá-la, é necessário lutar, so- meio, que de repente para, sem completar toda a sua trajetória,
frer e vencer. Não basta, para construir o homem, a gratuita deixando de alcançar a necessária conclusão, ambas implícitas
ampliação das mais favoráveis condições de vida exterior. A na lógica do desenvolvimento do próprio fenômeno. E que
evolução é uma laboriosa conquista, levando em direção à fe- imensos horizontes nos abre para o futuro o conceito – impres-
licidade, que deve ser ganha, para ser merecida. cindível – de um prolongamento do processo evolutivo!
22 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
Hoje, portanto, um cientista nos confirma que a matéria está no homem, que não só exprime uma fase do fenômeno, mas é
cheia de vida e a vida cheia de inteligência. Nós acrescentamos, também arrastado pelo movimento de todo o processo em dire-
então, que Cristo pode ser proposto à ciência positiva como su- ção a planos de existência cada vez mais altos. O progresso so-
perbiótipo do futuro, supremo modelo que a raça humana pode- cial revela então a sua mais profunda natureza, que se constitui
rá atingir com a evolução, e o Evangelho, como a lei social da num processo biológico cuja direção, sobretudo agora, o ho-
unidade coletiva representada pela super-humanidade do futuro. mem deve assumir, guiando com sua inteligência a evolução.
Não obstante as tentativas humanas de conciliação, o Evan- Até hoje, ela se realizou apenas mediante um jogo de determi-
gelho nos apresenta Cristo e o mundo como dois inimigos in- nismos, estabelecidos e impostos pelas leis da natureza. Trata-
conciliáveis, que, no entanto, devem coexistir na Terra. Mas é se, agora, não mais de aceitar passivamente a evolução, mas
necessário compreender o que Cristo entendia por mundo. Isto sim de conduzi-la, tornando-nos conscientes dos seus fins, co-
não quer dizer que Ele seja contrário à vida. Ele se referia a um mo operários de Deus, para colaborarmos na obra de constru-
estado de fato, dado pelo que o mundo – imerso ainda num es- ção do nosso setor de existência. Então o homem não viverá
tado primitivo animal, pleno de egoísmos e lutas ferozes – era e mais à mercê das leis da natureza, mas sim consciente e respon-
ainda é. Cristo condenava somente esta forma de vida inferior. sável, dirigindo o seu próprio destino.
A inconciliabilidade não se refere a um mundo de evoluídos e Teilhard trata assim de chegar a uma “Nova Teologia”, em
civilizados, porquanto Ele quer transformar a forma de vida da que tudo se santifica por meio da universal presença do pensa-
humanidade atual justamente num tipo mais avançado, que o mento de Deus imanente. Chega-se a uma “Santa Evolução”,
Evangelho chama de Reino dos Céus. Com um mundo assim que corrige o velho criacionismo pueril antropomórfico, não
evoluído, Cristo está plenamente de acordo, o que se confirma mais adaptado à mente moderna. É um novo evolucionismo,
justamente pelo fato de, nesta condição, a lei do Evangelho se consagrado no altar de Deus. O mundo se move, e mesmo aque-
realizar plenamente. Ele veio para nos ensinar qual é este novo les que não queiram isso têm, forçosamente, de mover-se. O
modo de viver, dando-nos as normas para isso no Evangelho. transformismo substitui a velha imobilidade. Podemos ver assim
Voltando a Teilhard, vemos que ele, orientando-se assim, o que há de verdade no panteísmo evolucionista, tão indiscrimi-
resolve o dualismo espírito-matéria, segundo o qual a obra de nadamente condenado. Pode haver algo mais vital do que ver
Deus parece encontrar-se dividida num antagonismo entre bem Deus por toda a parte e, através de uma visão evolucionista do
e mal, Deus e Satanás, cisão na qual o cristianismo se debateu universo, não poder concluir senão com a sua espiritualização?
durante milênios. Teilhard resolve o conflito em favor do espí- Não poderá tudo isto nos conduzir a um cristianismo racional-
rito, ao qual ele chega através do materialismo científico, le- mente mais aceitável para quem pense, com base num Evange-
vando-o até às suas mais audazes consequências. Assim, par- lho mais demonstrado e convincente, levando-nos ao mesmo
tindo da teoria da evolução, ele a desenvolve até levá-la aos tempo a uma ciência espiritualizada, mais nobre e santa?
seus mais elevados resultados. Ele não nega a matéria como a Eis a vida levada à sua verdadeira essência. A substância
ciência a vê, mas acrescenta-lhe o que a ciência ainda não viu: a da existência, dada pela estrutura mais íntima do ser, é de na-
alma, mostrando o sopro espiritual que explica as suas funções tureza psíquica. A vida é pensamento coberto de morfismo. A
e que, mostrando-nos as suas razões, justifica a sua existência. espiritualidade, base das religiões, é colocada no ápice da
Assim, a matéria se torna transparente e luminosa de conceito, evolução. Cristo, então, é um superego que, hoje, é transcen-
sendo que, ao invés de significar a negação, é elevada a expres- dente, mas que, amanhã, será para a raça humana o ponto de
são do pensamento de Deus. Tudo é e continua sendo feito por chegada, no qual o egoísmo separatista, vigente na luta pela
este pensamento. Isto representa a afirmação racional e a des- sobrevivência, será substituído pela solidariedade coletiva
coberta científica da sua presença em tudo o que existe, de- unitária do amor evangélico universal. Assim, Teilhard nos
monstrando a imanência de Deus. apresenta uma maravilhosa espiritualização do universo, ele-
Fica assim esclarecido o sentido de todo o processo da evo- vada sobre bases científicas. O Evangelho representa uma
lução, numa síntese lógica e harmônica, na qual as verdades transformação das leis biológicas, na qual se dá uma imensa
provadas pela ciência concordam com os princípios finalísticos revolução, representada pela passagem da vida de um nível de
da concepção religiosa. Chega-se a uma conciliação dos extre- evolução a outro superior.
mos opostos, a uma fusão orgânica, a uma unificação. Tudo isto Quisemos reproduzir em traços genéricos o pensamento
pode parecer um materialismo místico, mas também pode cons- fundamental de Teilhard, com a alegria de ver que ele corres-
tituir as bases científicas do cristianismo, o qual se aproveitaria ponde plenamente ao pensamento exposto em nossa Obra, que
delas, pois atualmente não as possui, fato que o mantém fora do atinge agora o seu 21o volume, em mais de 8000 páginas. Uma
terreno positivo da ciência. É assim que Teilhard foi julgado tal concordância de conceitos com as ideias de um cientista de
por alguns um novo São Tomás, como cristianizador não mais tão grande valor, na pessoa de um cristão honesto e convicto,
de Aristóteles, e sim de Marx e de Darwin. Poderia deste modo cheio de bondade e cultura, significa que as ideias sustentadas
ser sanada a cisão entre ciência e fé, para elas passarem da ini- por nós não podem estar cientificamente erradas e muito menos
mizade à colaboração. Muito teriam elas para dizer uma à outra. podem, ainda, ser moral e teologicamente condenáveis, como já
Então a fé teria finalmente bases positivas e a ciência poderia se pretendeu. Os escritos das duas partes são contemporâneos
ser iluminada e vivificada pelo espírito. (Teilhard 1881–1955)2, período no qual ambos apareceram em
O evolucionismo darwiniano permaneceria, mas apenas ex- ambientes e países completamente diferentes, sem que tivesse
teriormente, limitado à forma. Intimamente, ele seria constituí- havido conhecimento recíproco. O mundo começa a compreen-
do pela evolução de um pensamento nele imanente, estando as- dê-los somente agora, e isto parece nos mostrar que, na primei-
sim impregnado e orientado para um correspondente e exato te- ra metade de nosso século, o pensamento humano quis, através
lefinalismo. Naquele evolucionismo, até agora entendido mate- destes dois caminhos, exprimir os mesmos conceitos em forma
rialmente, há lugar de sobra e inclusive existe a necessidade da diversa, porque a humanidade está chegando a uma nova matu-
presença de um centro de pensamento continuamente criador, ração e tem necessidade deles. Tanto é assim que, devido a Tei-
ou seja, de Deus. Assim, a matéria, de inimiga inerte do espíri- lhard, a religião mais conservadora se prepara para examiná-
to, vincula-se, logo nos primeiros graus, ao processo universal los, pois tem necessidade de se atualizar. Por isso o caso deste
da revelação do espírito, verdadeira e fundamental realidade do cientista é importante e desperta interesse, uma vez que pode
universo. O homem, no seu nível, faz parte deste processo.
2
Num plano de existência muito mais alto, a evolução se realiza Pietro Ubaldi (1886-1972) – (N. da E.)
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 23
ser útil para as religiões alcançarem o nível das últimas desco- espirituais, mas também a intuir religiosamente sobre proble-
bertas científicas, perante as quais elas ficaram atrasadas. mas científicos. Pode-se chegar ao ponto de admitir que o pro-
Se é certo que as conclusões coincidem no conjunto, há, no duto da revelação contida no cristianismo poderia ser tomado
entanto, uma diferença entre os dois casos, pelo fato de se de- seriamente em consideração pela ciência, como hipótese de tra-
senvolverem em posições e com métodos diversos. Como reli- balho, para explicar a parte que os fatos demonstraram corres-
gioso, Teilhard estava, desde o início, preso às afirmações cate- ponder à realidade. Assim uma revelação positivamente contro-
góricas da sua fé, em favor das quais, pelo fato de não poder lada poderia ser aceita pela ciência. A última confirmação de
afastar-se delas, tinha de concluir a todo o custo, sem possibili- qualquer verdade somente pode ser confiada a uma verificação
dade de escolha. Isto podia pesar sobre a interpretação dos fatos, capaz de demonstrar que os fatos realmente funcionam como
levando-o a torcê-la num determinado sentido, em prejuízo da essa verdade afirma. Este é o único modo através do qual as in-
verdade objetiva. Ora, a investigação do cientista deve ser livre. tuições ou revelações podem dar garantias de segurança.
A este trabalho não se pode antepor ou impor premissas axiomá- Apesar de tudo, o mundo caminha, e ninguém tem o poder
ticas, pois assim, mais do que à descoberta, tende-se à concilia- de pará-lo. Até há poucos anos, a teoria da evolução foi com-
ção, ficando a objetividade comprometida pelo preconceito, o batida nos ambientes religiosos. Hoje, porém, para a quase to-
que leva a realidade a ser vista através de uma particular forma talidade dos biólogos, a evolução é um fato estabelecido, uni-
mental, já pré-estabelecida. O recinto dentro do qual o pensa- versalmente aceito, e não mais uma hipótese. A maior parte
mento é permitido mover-se, para investigar e concluir, fica li- dos cientistas já não põe em dúvida que, biologicamente, o
mitado por barreiras. Tudo isto paralisa a investigação e não é homem provém do mundo animal superior. Mas a evolução
científico. Em nosso caso, pelo contrário, desde que os fatos nos não é fenômeno que possa ser limitado à vida, porque, numa
indicassem e exigissem de uma forma positiva, tínhamos a li- visão universal, tudo – portanto todas as formas de existência –
berdade de chegar a qualquer conclusão. A nossa finalidade era deve estar incluído nela, se não quisermos ficar fechados so-
apenas descobrir a verdade, e não concordar com uma religião. mente num setor do fenômeno da evolução, limitados a apenas
Foi possível, assim, chegar a conclusões mais vastas, aceitáveis um trecho do seu desenvolvimento.
mesmo fora das religiões, inclusive pelo materialismo ateu, ape- Teilhard nos apresenta uma evolução universal, dividida
sar de serem elas de natureza ideal e espiritual. em três grandes etapas: matéria, vida e espírito. No mesmo
Nos dois casos, não só as condições de trabalho mas também sentido, o Prof. Marco Todeschini (Bérgamo-Itália) também
os métodos foram diferentes. Normalmente parte-se da constata- nos falou de psicobiofísica. O universo astronômico nos ofe-
ção positiva dos fatos, alcançada com a observação e a experi- rece, com a matéria dos planetas, a base física, que constitui a
ência, para poder depois, construindo e verificando as hipóteses geoesfera. Esta, por sua vez, é coberta de revestimento viven-
com as quais tratamos de explicá-los, obter e fixar então uma te- te, que representa a bioesfera, cuja função consiste em reve-
oria provada por eles como verdadeira, ou seja, os princípios ge- lar, através da vida, a consciência. Surge assim o elemento
rais segundo os quais os fenômenos observados funcionam. O que constitui a nooesfera, formando um novo revestimento,
pensador vai, assim, sempre subindo do particular ao universal, feito de pensamento e consciência. Trata-se, portanto, de três
tratando de se elevar para conseguir a visão de conjunto mais fases sucessivas, sendo que cada uma, depois de alcançada e
vasta possível e, portanto, mais apta para orientação. vivida, eleva-se sobre as precedentes.
Em nosso caso, o método seguido, pelo menos no princípio, Este conceito de um crescente psiquismo e cerebralização
foi o oposto. Aplicou-se o processo dedutivo, e não indutivo. do ser reproduz em palavras científicas o conceito da progres-
Procedeu-se do universal para o particular, em vez do particular siva espiritualização cristã, dado pela ascese da alma em dire-
para o universal, partindo-se do princípio diretivo, e não bus- ção a Deus. Neste caminho que conduz ao espírito, encontra-
cando orientação. Os mesmos fatos, no entanto, que constituem mos o fio condutor de toda a evolução. A cosmogênese inicia o
para a ciência um ponto de partida, são também examinados processo. Este continua e se prolonga na biogênese, que de-
por nós num segundo momento, com o mesmo método científi- semboca por sua vez na noogênese. Pode-se assim, finalmente,
co da experiência e observação, mas somente com a finalidade compreender o significado do processo evolutivo, observando-
de verificar se eles confirmam a correspondência da visão geral o alinhado ao longo do seu eixo principal, que nos mostra o
com a realidade. Portanto ela está primeiramente orientada da início, o desenvolvimento e a meta, desde o princípio até ao
teoria em direção aos fatos e, posteriormente, dos fatos em di- fim. O Ômega, ponto de chegada, está hoje presente entre nós
reção à teoria. Assim eles são utilizados para o controle da teo- em forma de ideal, que está esperando a nossa evolução, para
ria, de modo que esta, em vez de permanecer visão destituída se realizar no futuro, apresentando no seu resultado a compen-
de provas racionais, demonstra, através dos fatos, ser verdadei- sação de tantas das nossas fadigas, dores e perigos. A escalada
ra e corresponder à realidade. evolutiva, descoberta e provada pela ciência, vai em direção a
Somente com este segundo método, que chamamos intuiti- Deus, tal como as religiões já ensinaram com outras palavras.
vo, pode-se chegar a uma visão universal do todo, penetrando Agora, não mais vivemos nem ascendemos como cegos. Por
com mentalidade positiva um terreno no qual a ciência, com o tudo isto e pelo fato de ter a ciência conseguido conhecer o
seu método, não pode chegar. Este é o modo pelo qual se pode caminho que o homem percorreu para chegar até aqui, pode-
chegar ao terreno das maiores visões teológicas, que apenas mos deduzir qual será este caminho amanhã e até onde ele nos
são obtidas com o único método possível: a intuição. É certo levará. No terreno das nossas conquistas espirituais, a fé das
que se trata de um voo. Mas, sem alçar voo, não se pode alcan- religiões é substituída agora pela certeza científica.
çar os princípios universais da existência. Trata-se de um voo Voltando à comparação com a nossa obra e suas concepções,
longo, após o qual se desce à Terra, trazendo a fotografia da constatamos que a cosmo-bio-noogênese de Teilhard correspon-
visão obtida, para colocá-la em contato com os fatos e, assim, de ao físio-dínamo-psiquismo de A Grande Síntese. Ele também
verificar se ela é verdadeira. Havendo procedido dessa manei- tentou uma síntese da fenomenologia universal até ao campo fi-
ra, temos verificado que os fatos confirmam a visão, razão pela losófico e teológico, ou pelo menos transparece dos seus escritos
qual podemos dizer que ela corresponde à realidade. Não havia uma tentativa de orientação universal neste sentido. No entanto
outra maneira para obter a síntese universal, algo de que a ci- ele concebeu os três momentos ao longo dos quais se desenvolve
ência ainda está muito longe. o eixo central da evolução como sendo: matéria, vida e espírito, e
Teilhard deu a orientação, de modo que já é possível come- não como matéria, energia e espírito. Isto se explica pelo fato de
çar não somente a raciocinar cientificamente sobre problemas que ele, sendo sobretudo geólogo e paleontólogo, não valorizou
24 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
adequadamente, na economia do universo, a importância da físi- O significado e importância do pensamento de Teilhard es-
ca nuclear e do fenômeno da desintegração atômica, coisas que tá, sobretudo, nesta tentativa do cristianismo de se aproximar
então acabavam de aparecer. Passando diretamente da matéria à da ciência e assimilar suas conclusões, até ontem condenadís-
vida, Teilhard não viu seu termo intermediário, a energia, sem a simas. As religiões representam uma enorme massa, cuja mai-
qual não se explica a origem da vida por evolução. Ele não expli- oria possui uma forma mental elementar, lentíssima para com-
ca a passagem da química inorgânica à química orgânica, que re- preender e evoluir. Assim cada alteração de pensamento deve
presentam apenas formas exteriores, e não a substância do fenô- ser feita com extrema prudência, para não se perder o equilí-
meno. Escapou-lhe a continuidade do processo evolutivo, que, brio, ultrapassando os limites da compreensão. Mas a evolução
através da desintegração atômica (base da gênese dinâmica), vai está hoje apressando o passo. E temos aqui um sacerdote acu-
da matéria à eletricidade (a forma de energia mais evoluída) e, a sado de panteísmo, monismo, materialismo, evolucionismo,
partir desta, passa então à substância da vida, constituída não pela darwinismo, marxismo e até comunismo, sendo em muitos as-
forma orgânica, mas sim pelo psiquismo que a constrói e a dirige, pectos comparável a Rosmini, razão pela qual ouvimos falar e
cuja origem é elétrica, como fica demonstrado pela natureza ner- escutamos com interesse.
vosa e cerebral de sua base de apoio. Eis assim, em ambiente eclesiástico, uma tentativa seme-
Quando se escreveu A Grande Síntese, por volta de 1933, lhante à nossa, de realizar uma síntese na qual se unem, como
com uma física nuclear ainda no início, tais afirmações podiam elementos complementares, os dois termos até agora em antíte-
parecer fantasia. Mas hoje procura-se provar experimentalmen- se, ciência e fé, matéria e espírito. A nossa tentativa, no entan-
te a verdade da teoria das origens elétricas da vida. Em 1952, o to, foi mais livre como pesquisa da verdade, porque, como já
químico americano S. L. Miller, pensando que a vida pudesse assinalamos, não estávamos obrigados a concluir conforme
estar relacionada com a descarga elétrica do raio, tratou de re- premissas preestabelecidas. Todavia não se pode deixar de re-
produzir em laboratório as condições em que a Terra deveria conhecer em Teilhard o grande mérito de haver tratado de santi-
encontrar-se antes do aparecimento da vida. Infelizmente, ele ficar o pecado de ser evolucionista (de que tantas vezes foi acu-
não pôde adiantar suficientemente as suas experiências. Ora, o sado), agora transformado em santa evolução. Estranho modo
bioquímico inglês Cyril Pannamperuma, através das suas expe- de avançar das religiões, apesar de afirmarem que permanecem
riências, concluiu que a matéria inorgânica, sob a ação das des- imóveis! Mas ao divino impulso da evolução não há conserva-
cargas e raios cósmicos, pode transformar-se em matéria orgâ- dorismo que possa resistir.
nica, sendo a energia necessária para isso dada pelo raio. Agora, já não se pode dizer que Darwin esteja errado, por-
Existem, portanto, algumas diferenças com Teilhard. Mas o quanto a evolução se tornou um fato inegável. Suas ideias se
ponto novo e central, dado pela afirmação de que a vida serve tornam aceitáveis neste momento, não só porque a substância
para desenvolver e revelar o espírito, foi captado também por da evolução pode ser considerada como um desenvolvimento
ele e admitido plenamente, o que, dentro do cristianismo, signi- de consciência, constituindo-se num fato interior, mas também
fica uma revolução bem longe de ser pequena. Acrescente-se porque a sua mutação morfológica é dada pela transformação
ainda o fato de podermos, com a nossa teoria, explicar também de uma veste exterior, que acompanha uma evolução mais pro-
a tremenda lei da luta pela vida, que leva os seres a se devora- funda, na qual se encontra a sua verdadeira substância, consti-
rem reciprocamente. Esta luta, se bem que feroz, justifica-se tuída pela ascensão espiritual em direção a um estado de per-
como meio para o desenvolvimento da inteligência, processo feitíssima consciência, cujo destino é se juntar a Deus. Dina-
que, obrigando ao esforço para a defesa, inicia-se desde os pri- mizada assim, a vida se move, transformando-se num caminho
meiros planos da existência e vai-se revelando, de forma cada em direção a uma meta estabelecida, visão segundo a qual po-
vez mais evidente, como um processo de espiritualização, demos enxergar um imenso destino, que corresponde ao ho-
quanto mais o ser avança no caminho da evolução. mem realizar no futuro.
Há ainda uma outra diferença com Teilhard. Mesmo falando A evolução se santifica, porque agora, além da sua face
de “nova teologia”, ele não atinge as primeiras origens do uni- natural, vê-se dela também uma outra: a divina. Então, aceita-
verso, referentes à criação e suas consequências, nem o resulta- se o natural como elemento que conduz ao divino, enquanto o
do final desta imensa obra. Fica, então, sem explicação como divino é aceito como levedura imanente e razão final do natu-
tenha sido possível, das mãos de um Deus sapiente, bom e per- ral. A evolução é assim entendida em sentido lato, como um
feito sair o mal, a dor e a morte, não se explicando também co- processo que faz avançar a matéria, transubstanciando-a espi-
mo a Sua unidade possa ter sido (por Ele ou por outros) despe- ritualmente, santificando-a e, assim, conquistando cada vez
daçada no dualismo em que existimos. Teilhard, no seu volume mais consciência no homem e acima dele, até que o Alfa se
L’activation de l’ernegie, chega a definir o mal como um efeito reúna ao Ômega, com o retorno da criação ao criador. Desta
secundário, subproduto inevitável do caminho do universo em maneira, o crescimento geológico e biológico desemboca na
evolução. O problema do mal, diz ele, já não se configura, por- noogênese, terminando com a vitória final do espírito (puro–
que é estatisticamente impossível que, numa multidão de fenô- pensamento), já expresso por Carrel, quando ele falou da
menos, em vias de acomodação, procedendo por tentativas, “emersão do espírito da matéria”.
como se desenvolve a evolução, não se verifiquem os casos in- Consola-nos, porém, o fato de ver como o catolicismo, que
completos, mal terminados, discordantes da ordem geral. Res- colocou no “Index” meus escritos, onde tais ideias foram
pondemos, no entanto, que o mal, a dor e a morte não são inci- apresentadas, prepara-se hoje, se bem que por outras vias, pa-
dentes menores da evolução, aos quais não se dá importância, ra aceitá-las. Ele é constrangido pela lógica persuasiva dessas
pelo contrário encontram-se tão profundamente radicados no ideias e pela difusão delas nos ambientes culturais, para se
fenômeno da existência, tentando comprometê-la a cada passo, salvar da expansão do ateísmo, porque hoje se pensa mais e
que, para salvá-la desta ameaça, é necessária a presença contí- quem pensa exige ser convencido para aceitar a verdade, pois
nua e a atividade saneadora da potência criadora de Deus. a forma como esta é apresentada atualmente não satisfaz mais
Portanto Teilhard, como sistema filosófico e teológico, esta necessidade da mente moderna. No entanto, atualmente,
deveria ser pelo menos completado, para esgotar o assunto. parte do “rebanho” é constituída por ignorantes e supersticio-
Mas ele era sobretudo cientista e, além disso, neste outro ter- sos, sendo a outra parte composta por ateus, que são exterior-
reno, devido à sua posição eclesiástica, estava ligado a uma mente ótimos praticantes. É necessário o catolicismo se tornar
ordem estabelecida, da qual lhe era proibido sair, tornando-se mais convincente, para resolver o problema da sobrevivência
difícil libertar-se dela. de uma fé que ameaça ser superada.
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 25
2) Os sofrimentos morais devido à dolorosa posição de incom- de serem as últimas a chegar, arrastadas, contra sua vontade,
preensão e condenação. pelo progresso do pensamento laico. Estando em contato com
Deus, fonte de sua inspiração, as religiões deveriam ser as pri-
Teilhard foi mandado para Nova York, para lá morrer em meiras a compreender a verdade, e não as últimas. E quem sen-
condições de verdadeiro exílio, depois de uma vida cheia de te, como Teilhard, tais exigências sente também o dever de fa-
amargura, devido à dificuldade cada vez maior de tornar conhe- lar, oferecendo a sua contribuição. Mas, se as religiões não en-
cidos os seus escritos. O seu problema era de consciência, di- tendem e resistem, ele a oferece à humanidade, que tem hoje
zendo respeito a um cientista que, havendo descoberto a verda- necessidade desta ideia para poder progredir, não obstante as
de, trata de levá-las para o terreno religioso, a fim de iluminar religiões negarem qualquer interesse por tais problemas.
os crentes que, honestamente, desejam conhecer mais além da Teilhard costumava dizer: “se eu não escrevesse, sei que
fé, para ficarem convencidos. atraiçoaria”. Procuremos explicar o caso com uma imagem. Ofe-
Sem dúvida, vivemos num momento evolutivo de transição, receram a um homem uma semente preciosa, para que ele a plan-
no qual a ciência avança vertiginosamente no conhecimento, tasse no seu vaso, mas aquela semente não combinava com aque-
transpondo as portas do mistério. Com isto, a velha forma men- le vaso, porque era diferente das outras contidas ali, deste modo
tal se transforma em uma nova, na qual o modo tradicional de ele a lançou num campo. No vaso, aquela semente, mesmo es-
apresentar as verdades de fé torna difícil aceitá-las. Em Teilhard, tando defendida, poderia apenas crescer em terreno limitado, o
o drama é duplo, pois ele não somente tem de admitir conscien- que a teria impedido de se desenvolver. Caso continuasse lá, ela
temente as novas verdades que lhe apareceram, das quais, ainda teria permanecido fechada num ambiente restrito, sem poder ex-
que não ortodoxas, estava convencido, mas também deve torná- pandir-se. No campo, pelo contrário, a semente pôde desenvol-
las conhecidas de todos os que tinham necessidades delas para ver-se livremente, até se tornar uma grande árvore, o que não po-
sair da dúvida, da falta de fé e da insatisfação em que se encon- dia acontecer dentro do vaso. Foi, portanto, um bem para a se-
tra a mente moderna, perante problemas postos de lado ou não mente ter sido lançada para fora. Assim uma ideia, representada
resolvidos com clareza convincente. O drama foi devido à sufo- por aquela semente, pode tornar-se e de fato se tornou universal.
cação destes dois santos impulsos, sofrido em nome do bem, Eis o que acontece quando um grupo humano de ideias restritas
pois que, segundo a lei de Deus, o bem é progresso. rejeita uma ideia fecunda, capaz de novos desenvolvimentos.
Muitos não querem fazer o esforço de pensar e se arriscar Há outra imagem ainda. Dois galos, fechados numa gaiola,
com o novo, preferindo permanecer seguros nas concepções estavam bicando-se, tentando destruir um ao outro, cada um
tradicionais. Na comodidade da própria preguiça, considera-se pensando em vencer, para ser o dono da capoeira. Eles, porém,
então como elemento perturbador quem, por ter sede de luz, pa- não percebiam que estavam sendo levados ao mercado e que,
rece rebelde à velha ordem e quer conhecer e fazer conhecer, pouco depois, acabariam os dois na panela. Assim também se
subir e fazer subir, pois arde numa contínua tensão espiritual, comportam as religiões rivais, enquanto se avizinha o cilindro
com a qual perturba os que dormem quietos numa aquiescência compressor do comunismo ateu, que se prepara para nivelá-las
passiva, chamada por eles de fé e ortodoxia. A muitos não inte- todas na mesma liquidação.
ressa um maior conhecimento nem a conquista da verdade, mas Que fazer então? Este é o grau de evolução da humanidade
sim o grupo humano do qual cada um faz parte, o seu poder ter- atual, e explicar não serve para nada. O nível de unificação ho-
reno e o seu engrandecimento pela conquista de prosélitos. Não je alcançado não vai além da família e dos grupos particulares,
há nada na vida que não se baseie na luta, razão pela qual todo sejam religiosos, econômicos ou políticos, todos sempre limi-
grupo humano é levado a tomar uma posição de defesa, encas- tados em função de determinados interesses comuns. Grupos
telando-se no sectarismo, na intransigência e no dogmatismo, mais vastos, nacionais ou raciais, estão apenas em formação.
qualidades necessárias para poder resistir e sobreviver. O pro- Cada unificação na Terra não chega a alcançar senão o grau de
blema não é de religiões mas sim de tipo biológico, porque esta partido ou castelo fechado, armado e em luta contra os vizi-
é a lei da vida no seu atual grau de evolução. nhos, que também estão em estado de guerra, para não serem
Além e acima do universo físico, Teilhard viu, movido mais destruídos, sendo a destruição do outro justamente o objetivo
pela razão do que pela fé, o universo psíquico, percebendo uma de todos eles, a fim de garantir para si próprio o triunfo. En-
nova dimensão, dada pelo espírito, que é o terreno supersensí- quanto a humanidade não superar esta fase de sua evolução,
vel das religiões. O cosmo, para ele, é um organismo em funci- deverá ficar submetida às leis deste plano biológico inferior. O
onamento e em evolução, orientado no sentido de fazer surgir e evoluído que trate de elevá-la a um nível superior, para funci-
desenvolver a inteligência. Com isto, Teilhard realiza uma espi- onar com outras leis e segundo uma outra compreensão da vi-
ritualização da matéria e da ciência, estendendo assim o terreno da. Em tal mundo, ele será sempre um intruso, um solitário,
das religiões ao infinito e fazendo delas um problema de inte- um condenado, como foi Teilhard de Chardin.
resse universal. Eis então que estas, neste caso, ao invés de fe- Este biótipo, justamente devido à sua posição avançada, en-
charem as portas, como se estivessem perante um inimigo, de- contra-se fora dos grupos, porque o seu fim não é a defesa de
veriam abri-las, para conseguirem assim uma imensa expansão. nenhum deles, onde se encontraria encerrado, mas sim o pro-
O problema para o cientista crente não é tanto compreender tu- gresso da humanidade. Perante o grupo, tal indivíduo pode es-
do isto, para ele evidente, mas sim fazer os outros compreende- colher entre dois caminhos, segundo a sua própria natureza: a
rem, assim como para o evoluído o problema maior foi e será liberdade ou a obediência. No primeiro caso, ele pode, segundo
sempre fazer os involuídos avançarem. a sua consciência, alcançar o seu ideal, entregar-se à busca da
Assim como Santo Agostinho resumiu Platão e São Tomás verdade, pensar e falar livremente, cumprir a sua missão, no en-
resumiu Aristóteles, cada um deles formulando o cristianismo tanto permanece isolado. Não tendo declarado sua adesão e
segundo a linguagem do seu tempo, é de se esperar também que obediência a nenhum grupo, ele não depende de ninguém, mas
as religiões admitam igualmente, em seu favor, a formulação também não recebe a defesa de que necessita para viver traba-
realizada por Teilhard destas mesmas verdades, segundo a lin- lhando pelo seu ideal. Se ele não se une aos fins de algum gru-
guagem racional-científica de nosso tempo. Ele sentia a neces- po, ninguém está disposto a fazer-lhe gratuitamente o trabalho
sidade de realizar um exame crítico do pensamento teológico, de protegê-lo. São estas as leis da vida no plano humano, e é
para se atualizar perante as conquistas da ciência, que o deixa- necessário ter a honestidade de reconhecê-las e declará-las tal
vam ficar para trás, enquanto as religiões, encaminhando-se pa- como são. Se esse indivíduo não pagar com sua submissão o
ra Deus, deviam, como seria lógico, estar na vanguarda, em vez seu pão, qualquer atividade intelectual lhe será impedida pela
26 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
necessidade de ter, ele próprio, de lutar pela existência. No se- imediatos do grupo, aqueles que os componentes veem e sentem
gundo caso, não haverá esta necessidade e ele gozará da vanta- melhor, ele procura os interesses superiores e longínquos, que
gem de uma proteção que garante sua vida, dando-lhe tranqui- aqueles não veem e, por isso, não entendem. Para poder traba-
lidade para trabalhar. Mas o pensamento e o trabalho ficarão lhar em paz, ele deveria concordar com o grupo. Mas, assim, te-
submetidos àqueles do grupo ao qual ele pertence. Deverá, por ria de renunciar à sua iniciativa, à sua independência espiritual e,
isso, pensar e trabalhar no interesse do grupo, que, por fornecer portanto, ao seu ideal. O drama existe, porquanto o mundo não
o pão, tem o direito de exigir dele obediência espiritual e física. quer ser incomodado e, assim, afasta os indivíduos que tratam
Quem dá e protege o faz para si próprio e, portanto, tende a es- de fazê-lo progredir. Este é o drama de Teilhard de Chardin.
cravizar. Quem recebe deve dar em troca obediência. Isto por- Historicamente, é fácil constatar que a humanidade, antes de
que ao trabalho espiritual é dado valor nulo no mercado das santificar, dá-se o gosto de sacrificar, trabalho nada espiritual da
coisas humanas, de modo que a liberdade de pensamento e a parte de quem o executa, mas que faz indubitavelmente parte da
atividade correspondente é coisa permitida apenas para quem técnica da santificação. Isto nos é demonstrado em nosso tempo
possui independência econômica. pelo caso do Padre Pio de Pietralcina (Itália).
Observando, porém, as coisas pelo lado oposto, vemos que O que deve fazer então o indivíduo? Como se deverá resol-
o grupo não é culpado de tudo, porquanto está, por sua vez, ver o caso e como o resolveu Teilhard? Se o mundo não quer
empenhado na luta pela sua existência, devendo, por isso, fazer ser salvo, o indivíduo, no entanto, deverá salvar-se a si mesmo.
dos seus membros os seus soldados, para manter a sua unidade, Para compreendermos, devemos nos referir à moral positiva
defendendo-a dos assaltos externos. Ao grupo não interessa a contida nas leis da vida. Antes de tudo, por que razão a autori-
evolução, mas apenas a sua sobrevivência, que é a coisa mais dade possui o direito de condenar? Tê-lo-ia, se isto correspon-
urgente. A isto ele é constrangido pelas condições da vida ter- desse a um critério da justiça. Mas não corresponde, visto que a
restre. O evoluído, pelo contrário, antecipa a evolução e, em condenação do que se considera hoje prejudicial fica contradi-
vez de conservar e consolidar as posições, tende a fazê-las tada pela aprovação de amanhã, quando o mesmo fato acaba
avançar. Em razão desta oposição de intenções, tal biótipo é sendo considerado vantajoso. Este dizer e desdizer, à mercê das
temido e combatido como um perigo. Ele não representa a con- circunstâncias e das mudanças de opinião dos indivíduos que
servação, mas sim a arriscada aventura do progresso, que é pre- julgam, tem muito de provisório, incoerente e irresponsável,
cisamente aquilo que os imaturos, acomodados na sua preguiça, não estando de acordo com um tribunal de justiça. Será honesto
não querem. O reformador, desejando implantar uma nova or- aprovar uma ideia nova somente depois que todos a aceitaram,
dem, sacode as bases do castelo no qual o grupo se aninha, le- quando defendê-la não representa mais nenhum risco ideológi-
vando desordem às sua filas, condição da qual os inimigos es- co? Assim consegue-se avançar sem perigo algum de enganar-
tão prontos para se aproveitar. É necessário compreender que a se, mas é deprimente ser o último a chegar, arrastado pelos ou-
vida é um estado de guerra pela sobrevivência. Urge, portanto, tros, a quem se deixa a responsabilidade das novas afirmações,
como primeira coisa, a defesa e só depois, como luxo de ricos, a fadiga da pesquisa e a incerteza da tentativa, mas sem se abrir
é admitida a evolução. Tais tentativas de avançar são desloca- mão da apropriação dos resultados, quando tudo leva ao êxito.
mentos perigosos, dissipação de forças em tentativas que debili- Quem é imparcial, porém, justifica tudo isto. A vida se ba-
tam o grupo, sendo, assim, consideradas saltos na escuridão. seia na luta, e o grupo tem necessidade de defesa para sobrevi-
Quem os provoca deve, portanto, ser eliminado. ver. É pela sua própria conservação que o grupo luta contra as
Perante o idealista, atraído pelo céu, está a dura realidade coisas novas, nas quais ele vê uma tentativa de destruição do
da vida, e não é lícito a ninguém esquecer, nem por um minu- passado, sobre o qual se baseia a sua existência. Trata-se, por-
to, que se trata de uma luta desesperada. Para quem é especia- tanto, de um caso de legítima defesa contra um perigo, uma
lizado nessa luta e não sabe fazer outra coisa, tudo isto pode ameaça de morte. O direito de julgar e condenar baseia-se nos
parecer um engano. Mas, para o idealista, dotado de outras seguintes fatos: 1) A posição de mais forte que o grupo tem pe-
qualidades e dedicado a outros trabalhos, o problema é bem rante o indivíduo, bastando isto, na Terra, para conferir o direi-
diverso. Ele desejaria desesperadamente gritar que, na Terra, to de estabelecer qual é a lei e, portanto, de julgar. O grupo é
não há lugar para o ideal. A humanidade deveria ajudar estes mais forte porque constitui maioria perante o indivíduo, que,
indivíduos, que trabalham pelo seu progresso. Mas o que, de estando isolado ou em minoria, é mais débil e, por isso, não tem
fato, importa para a humanidade? Ela tem outras coisas para direitos. 2) A necessidade imperiosa do grupo se defender, para
fazer, como pensar em matar e destruir tudo com as guerras, sua conservação, exercendo o sagrado direito de todos à vida.
buscando enriquecer e gozar a vida. E quanto ao indivíduo? Será que para ele, pelo fato de estar
O problema que o caso de Teilhard nos fez recordar é sobre- só e ser minoria, sem dispor do poder proveniente do número,
tudo de biologia e interessa à humanidade, porque constitui o não haverá justiça, ficando-lhe negada a possibilidade de traba-
problema de evolução da vida. O ideal, antecipação da evolu- lhar para realizar o ideal e, assim, de fazer progredir a vida? O
ção, realiza-se na Terra através de diversos tipos de instrumen- drama consiste no conflito entre os dois termos. De um lado, tal
tos. Não interessa condenar a ninguém, mas sim conhecer a indivíduo, por intuição e raciocínio, compreende a importância
técnica desta realização. Temos, portanto, de um lado os márti- e a verdade das suas novas afirmações e, sendo honesto, sente
res do ideal, e de outro os administradores e usufrutuários do que deve comunicá-las aos seus próprios semelhantes, para o
ideal. Os primeiros, pouquíssimos, trabalham pela conquista de futuro progresso deles, pois, pelo fato de tê-la visto, não pode
posições mais avançadas. Os segundos, a maioria, ocupam-se fazer outra coisa senão enunciar a nova verdade. Do lado opos-
em conservá-las, utilizando-as para si. Durante este processo, to, encarregada da defesa dos interesses do grupo, a autoridade,
que vai desde o sacrifício do mártir à mecânica burocrática e ao mais preocupada com sua própria conservação e a conservação
parasitismo, o impulso do iniciador se desfaz, cansa-se, esgota- do grupo do que pela pesquisa da verdade, quer permanecer fiel
se, afundando-se no lodo humano, túmulo do ideal. às velhas coisas, nas quais baseia a sua posição, rejeitando e
A massa, que forma o corpo da humanidade, é constituída condenando por isso qualquer novidade.
por homens do segundo tipo, e eles lutam contra os do primeiro, As finalidades são opostas. O reformador busca o progres-
tentando reduzi-los ao seu nível. O inovador, por sua própria na- so, o grupo e a autoridade que o dirige querem continuar a vi-
tureza e pela posição na qual esta o coloca, já fixou o seu destino ver com a menor fadiga e riscos possíveis. Em virtude disto, é
de incompreensão, isolamento e perseguição. Terá de trabalhar lógico que a autoridade imponha silêncio ao inovador. Assim o
em condições difíceis, porque, em vez de seguir os interesses proíbem de falar e publicar, impedindo-o de pensar, compre-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 27
ender e defender a verdade da qual está convencido. Então as cio‟ de Teilhard de Chardin. Dos dois interlocutores, um está
duas partes em conflito se transformam em dois inimigos em sempre ausente e, mesmo quando se faz presente, castiga, mas
luta, cada um com boas razões para agir à sua maneira. O ino- não entra no diálogo; a mão, a cada vez que castiga, esconde-se
vador atenta contra a tranquilidade e a segurança do grupo, o (...), drama sumamente cruel, que durou mais de quarenta anos,
qual então se defende. A autoridade atenta contra a liberdade mais ardente porque ficou coberto pelas cinzas”.
do espírito, querendo manter o pensamento dentro do grupo, O seu confrade Padre Pierre Leroy, no seu livro Pierre Tei-
para detê-lo ou torcê-lo, paralisando as mais nobres funções do lhard de Chardin tel que je l’ai connu, testemunha: “Incompre-
ser. Isto não é senão um aspecto da luta entre o evoluído, que endido e condenado ao silêncio, sofre de angústias, que algu-
quer fazer progredir o mundo, e o involuído, que não se quer mas vezes o aniquilam (...), com paciência suportava uma prova
deixar redimir com este progresso. que esmagaria os corações mais fortes. Quantas vezes, na inti-
Isto é contra Deus, mas pode ser feito em nome de Deus. midade dos nossos encontros, o havíamos visto abatido (...).
Trata-se de sufocação espiritual, negação de ascensão, mas a Sofria de crises de angústia, que mais tarde deveriam tornar-se
autoridade pode fazê-lo porque, sendo mais forte, tem razão mais agudas (...). Tinha crises de choro que o destroçavam.”
contra o indivíduo, que, isolado, é mais débil. Por isso ele deve E Vigorelli continua: “(...) além do silencio, foi-lhe imposto
submeter-se, apesar de lutar por um fim muito mais alto do que o exílio (...) morria de dor por aquele exílio prolongado. Supli-
aquele pelo qual luta a autoridade. Todavia trata-se de duas cou muitas vezes aos superiores um regresso, ainda que breve,
funções, ambas necessárias: uma perante os homens, por neces- à Europa, à França (...), as perseguições não cessavam (...). Não
sidade terrena, outra perante Deus, por necessidade do ideal. lhe era proibida qualquer tomada de posição teológica e filosó-
Disto se deduz que, se, de um lado, a autoridade, segundo seu fica, mas se chegou, depois do seu último afastamento de Paris,
ponto de vista, tem o direito de condenar, de outro lado, o con- a negar-lhe também o livre exercício da sua atividade científica
denado, segundo seu ponto de vista, tem o dever moral, perante (...). Objetavam-lhe: „Porque levantas todos estes problemas,
Deus e a sua consciência, de não renegar o seu pensamento e em vez de se contentar a ensinar o catecismo?‟ (...). Mas quem
continuar a sua obra. Foi exatamente assim que agiu Teilhard. levantava aqueles problemas não era Teilhard, mas sim os seus
Mais acima, quisemos justamente encontrar e expor as razões contemporâneos, e ele não podia iludi-los”.
que justificam a sua conduta, para nos convencermos de que se “Morreu em 1955, em Nova York, seu último exílio depois
trata de um bom exemplo. Baseamo-nos na observação das leis de outros longuíssimos (...). O seu enterro não foi acompanha-
biológicas do grupo, que são verdadeiras para qualquer grupo e, do por mais de dez pessoas (...), ali ficou, uma vez mais no
portanto, também para o religioso. exílio, e não foi ainda permitido trazer para sua pátria os seus
Teilhard obedeceu à autoridade, sofrendo em silêncio, mas despojos mortais (...)”.
sem nunca renunciar às suas ideias. Às almas simples do povo “Teilhard obedeceu e não se revoltou nunca, mas jamais re-
ele não ofereceu o escândalo da desobediência, exemplo que nunciou à sua verdade, negando-se a considerá-la uma heresia,
todos estão mais dispostos a imitar e que oferece para muitos a porque a ciência a legitimava e demonstrava (...), obedecia,
oportunidade de se sentirem autorizados a seguir o caminho do baixava a cabeça (...), mas não aceitou, mesmo no menor deta-
mal. Para o homem do ideal, lançado em direção ao futuro, isto lhe, renegar as suas ideias ou sequer suavizá-las. A solução que
é martírio, mas a ignorância humana assim o exige. Ele o sabe e Teilhard deu à crise foi caracterizada por total ausência de rup-
aceita. A posteridade depois julgará com outros critérios, sendo tura, intolerância, desobediência ou quaisquer velhos recursos e
que a autoridade tem tempo para entender e inverter o seu juí- táticas lesivas (...), o importante era permanecer fiel às suas
zo. É assim que, hoje, tudo quanto pode ser útil vai sendo reabi- próprias ideias (...). As ideias devem esperar o seu momento
litado, passando-se a aceitar também o que já não se pode dei- apropriado. A paciência, se é secundada pela intrepidez, pode
xar de admitir. Vai-se então desenterrando o que foi condenado valer mais que a revolta. Teilhard não se revoltou, mas nunca se
ao silêncio, com cautelosas sondagens da opinião pública, para deteve. Não abdicou. Rejeitou qualquer compromisso (...). Tei-
ver até onde é possível se atualizar sem correr perigo. lhard nunca foi contra a Igreja; quem sabe se neste momento é
Aqui estamos só como observadores imparciais do fenô- a Igreja que não pode mais ir contra ele (...). „Não posso mu-
meno, para explicar o seu funcionamento. Havia também um dar‟, dizia, e não mudou nunca; a esperança nunca o abando-
outro lado de Teilhard. Ele comia o pão da ordem religiosa de nou, nem a certeza que um dia os seus adversários mudariam; e
que fazia parte, à qual estava moralmente comprometido a um pouco de tudo isto já está acontecendo”.
permanecer fiel. Sendo honesto, sentia o dever de não se rebe- Vimos assim, com respeito a Teilhard, a sua vida de conde-
lar contra a família à qual passara a pertencer, que o havia cri- nado, a sua atitude perante a autoridade. Penetremos agora no
ado e agora o protegia em seu seio. Obrigações práticas entre seu espírito, para compreender “os segredos mais profundos
dar e haver, pequena contabilidade terrena, mas que os hones- que se debatiam somente na sua própria consciência, num diá-
tos têm em conta, porque receber sem dar em troca é explorar. logo direto com Deus”. Em Teilhard existe uma “exaltação re-
Mas nem todos têm um sentido tão perfeito de honestidade. Há ligiosa, até mesmo mística, que chega à exuberância, investe e
os que, feridos no orgulho, revoltam-se abertamente, para sa- transcende a sua obra, à qual ele permaneceu ligado a vida toda
tisfazer a própria reação pessoal. Passam então para outro gru- e que, apesar de não lhe ter servido de salvo conduto para a
po, no qual, conservando o mesmo espírito sectário, continuam Igreja, seguramente o serviria perante Deus”.
lutando contra o grupo que primeiramente os hospedara, de- Que nos ensinam estes fatos relatados aqui? Perante o mun-
monstrando com isso tratar-se de um homem de partido, que, do, incompreensão, condenação e martírio. Perante as próprias
esteja de um lado ou do outro, permanece sempre o mesmo, ideias, das quais em consciência se está convencido, fidelidade
sem sair da sua velha forma mental. absoluta. Obediência, submissão e humildade, tudo aquilo que
Que aconteceu então com o espírito do inovador honesto, de exterior e formal o mundo exige, mas inviolável liberdade
que não obstante respeita a autoridade? Quais são os seus direi- do espírito, tudo o que de interior e substancial o mundo não
tos e as suas compensações? Para ele existe o caminho da paci- vê. Perante Deus, comunhão, exaltação e segurança. Qual é,
ência, do trabalho e do martírio, que é também o da sua santifi- portanto, o balanço de quem se encontra como Teilhard? No
cação. Observemo-lo, pois ele pode servir de exemplo e guia a passivo, está o ataque do mundo (o silêncio imposto e o exílio),
quem se encontre em semelhantes situações. suportado com paciência, mas tornando-se um meio de santifi-
Lemos no volume O Jesuíta Proibido, de G. Vigorelli: cação. Não existe nada tão grande como a inocência persegui-
“Não está ainda escrita a história secreta da „redução ao silên- da, que sofre para respeitar um ideal de ordem e disciplina. Este
28 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
sofrimento tem valor e dá o seu fruto. Logicamente, tudo aquilo põem os homens contra quem tem a seu favor as leis da vida e a
que é culpa e dano segundo o mundo transforma-se em virtude ajuda de Deus? Quem alcançou o plano do espírito vive acima
e recompensa perante Deus. Mas também existe o ativo, dado do mundo. Nesta condição, nenhuma pressão ou submissão po-
pela própria santificação, pela afirmação da inviolabilidade da de mais alterar tal estado de fato. Quem viveu tais experiências
liberdade do espírito e, sobretudo, pelo fato de sentir-se puro pode compreender o que estes conceitos significam.
frente a Deus, gozando a satisfação de, no íntimo da própria Mas, observando as coisas de outro ponto de vista, poderí-
consciência, contar com o Seu consentimento, vizinhança e amos perguntar se os tribunais humanos têm o direito de infligir
ajuda. É segundo a sua natureza, a qual se revela assim, que o dores a um inocente? Mesmo segundo as leis do mundo, não
indivíduo escolhe colocar-se do lado do mundo ou do lado de seria isto um abuso de autoridade? Mas tal reação se justifica
Deus. Estes problemas não interessam à maioria, que não está pelo fato de cumprir a função de defender o grupo, sendo que,
nestas condições, mas são graves e vivíssimos para o homem na desesperada luta pela vida, não há lugar para a debilidade. O
espiritual, que se encontra nelas. grupo reclama o seu direito à legítima defesa de sua existência,
O que desejamos conhecer bem é como tal indivíduo conse- sendo justo, portanto, que esmague qualquer um que atente
gue viver, qual o seu ativo e com quais forças ele pode susten- contra ele. As forças em defesa do inovador condenado não de-
tar-se, para resistir àquela sufocação de alma. Se o dever da vem vir da Terra. Esta representa a parte inferior da existência,
obediência procura matá-lo nas suas mais altas inspirações, de- a parte negativa, adequada à resistência. Aquele indivíduo per-
verá ele aceitar a sua morte espiritual, o que equivale a consen- tence, pelo contrário, ao Céu, que representa a parte superior,
tir no seu próprio suicídio? Não! Apesar da renúncia espiritual mais vizinha de Deus, a parte positiva e dinamizadora. Neste
e da obediência que lhe é imposta, ele possui para si dois imen- caso se verifica o mesmo antagonismo que se estabeleceu ime-
sos recursos para sobreviver: a inviolabilidade do espírito, no diatamente entre Cristo, o maior dos inovadores em favor da
qual nenhuma autoridade humana pode penetrar, e a tranquili- evolução humana, e o mundo, que se dispôs a ser seu inimigo,
dade da sua consciência perante Deus, convencido da sua pró- respondendo à redenção com a crucificação.
pria retidão e inocência. Deste modo, ele traz consigo a sensa- Portanto, para quem compreendeu a estrutura do fenômeno,
ção da presença de Deus e a segurança do seu consentimento e tudo está no seu lugar. Cada um age como é, revelando com is-
ajuda. Ele sabe que existe um outro tribunal, superior a todos os to a sua natureza. Dado o estado involuído da humanidade, não
do mundo, com uma justiça que não erra. Nesta confia e a ela é possível obter nada melhor do que isto. Certamente amanhã,
se entrega. Vê-se possuindo uma riqueza de potência, de segu- graças ao trabalho de mártires inovadores, o mundo será dife-
rança e de paz que ninguém lhe pode tirar. Refugia-se em Deus, rente. Mas cabe a eles o trabalho de transformar a humanidade
e nenhum tribunal humano poderá alcançá-lo. Esta é a força do com o seu próprio sacrifício. O caso de Cristo nos mostra que,
mártir: a derrota terrena, que diante de Deus é triunfo. também com Ele, em idênticas condições, verificou-se o mes-
Porém há mais ainda. As leis da vida garantem o triunfo fi- mo fenômeno, em relação ao comportamento da classe sacerdo-
nal do ideal, pelo qual o homem espiritual se sacrifica. Diz o ci- tal diante da proposta de inovações. O que mais, no entanto,
tado volume: “Depois de cinquenta anos de proibições e de pode pedir o condenado, senão estar do lado de Cristo, ser tra-
admoestações, as ideias revolucionárias de Teilhard abrem ca- tado como Ele foi tratado, sofrer pelo progresso, que é a reden-
minho. O Concílio Ecumênico, atualmente em curso, está na ção, como Ele sofreu, permanecendo junto a Ele, irmanado na
verdade entrando justamente no sulco salutar daquelas ideias, mesma dor e pela mesma causa? Que honra, que alegria e que
sendo que a Igreja terá tudo a ganhar e nada a perder, se decidir amor maiores podem existir? Que se pode pedir mais?
absolver Teilhard, depois de tê-lo ignorado, contrariado, con- Cada um reage segundo a sua natureza, revelando-a desse
denado (...). Está em execução a liquidação da era constantinia- modo. Agindo prontamente segundo a lei da luta, que é a lei do
na e do espírito sectário da Contra-Reforma (...). É um progra- seu plano, o primitivo se rebela contra a autoridade, manifes-
ma indubitavelmente teilhardiano”. tando com isso a sua involução. O evoluído, pelo contrário, tem
Por conhecer as leis da vida, o indivíduo sabe que o fenô- em mente o “perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” e
meno deve realizar-se deste modo, já que esta é a linha natural obedece. Mas ele pode refugiar-se no céu, onde é impossível a
de seu desenvolvimento. Então ele se submete a estas leis e es- autoridade alcançá-lo, pois, no tribunal de Deus, os homens não
pontaneamente aceita tudo isto por convicção. A evolução deve são admitidos a julgar.
ser o resultado de um esforço, de modo que a sua realização se- Uma humanidade mais inteligente e civilizada saberá um
ja o prêmio de uma fadiga. Este galardão pertence, por direito, dia evitar tais conflitos dolorosos de consciência, saberá defen-
ao mais evoluído, que avança à frente dos outros, os quais, por der a fé mais por convicção do que por obrigação, saberá abrir
sua vez, representam a resistência a vencer, o obstáculo a supe- os braços para compreender os novos problemas e as necessi-
rar, as trevas a iluminar. Embaixo, na retaguarda da evolução, dades de quem, buscando honestamente, tem sede de verdade,
está o mundo. Na direção do alto se lança o evoluído, seguindo em vez de afastar a quem pede mais luz. Tais casos, como o de
em frente, avançando em direção a Deus, distanciando-se do Teilhard, não poderiam acontecer mais. Se eles se verificam,
mundo. Ele não está do lado do mundo, mas sim do lado de obrigando o investigador honesto a se refugiar em Deus, ape-
Deus, que o espera, o convida e o impulsiona para diante, lando para Ele, é porque há alguma coisa que não funciona no
atraindo-o e ajudando-o. A enorme força e a grande compensa- sistema atual. Por que sepultar no silêncio, oprimindo as cons-
ção do condenado, mesmo que a condenação tenha sido feita ciências, certos problemas novos, que o mundo tem necessida-
em nome de Deus, é estar ao lado da verdade e da justiça de de de resolver, para poder continuar a crer como deseja, mas
Deus, é encontrar-se ao lado de Sua lei, que estabelece no fim a não pode porque não chega a ver claro, como hoje a mente mais
vitória do bem sobre o mal, o domínio da afirmação sobre a ne- madura o exige? Não se pode impedir de pensar a quem tem
gação. A força de quem sofre lutando pela verdade está no fato cabeça, nem se pode cortá-la somente porque, para quem não a
de que, assim, ele trabalha para avançar na direção determinada tem, não lhe apetece pensar. E, quando pensar se torna uma
pela evolução, sendo, portanto, arrastado em cheio por sua cor- coisa proibida, pensa-se então por conta própria, fora das reli-
renteza. O idealista, hoje condenado, sabe que o futuro lhe per- giões, que são assim colocadas de lado, como coisa inútil. Para
tence. Ele leva consigo o impulso irresistível da divina vontade elas, isto significa falência e morte. O investigador honesto, por
da evolução, que exige a ascese. É precisamente através deste sua vez, está obrigado, por uma questão de consciência, a re-
biótipo que se realiza tal impulso, cuja inabalável vontade é solver os problemas que mais o preocupam, discordando de
conduzir tudo e todos em direção a Deus. E de que poder dis- quem entende a fé como inércia espiritual e construindo uma
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 29
por sua conta. Apesar de condenado devido à reação dessa inér- velhas, que, não servindo mais, são colocadas no museu. As-
cia, ele representa, no entanto, a levedura do espírito, sendo sim nasceu a indiferença, o materialismo, o ateísmo e outros
mais crente e religioso do que os próprios ortodoxos. O resulta- males semelhantes. Os micróbios patogênicos estão por toda a
do de tudo isto é um rebanho de adormecidos, agradáveis por- parte, mas o seu ataque vitorioso depende da nossa predisposi-
que obedientes, mas passivos e inúteis perante Deus. ção e debilidade orgânica. Ninguém pode fugir às leis da vida,
Um espírito antievolucionista pode representar as forças ne- que está sempre pronta a liquidar tudo quanto não sirva mais
gativas, cuja função é deter a ascensão em direção a Deus. Que- para cumprir a devida função.
rer ficar parado, abaixando todos ao nível dos mais inertes, po-
de constituir um delito contra a evolução espiritual, que devia 3) A paixão por Cristo, racionalmente concebido como ponto
ser a maior finalidade das religiões. É certo que se deve contro- de convergência da evolução da vida.
lar e disciplinar, para não gerar anarquia, mas paralisar, mesmo
que isso seja feito em nome de Deus, é contra o próprio Deus. Também em Teilhard encontramos uma concepção mais
As religiões perdem sua função e atraiçoam o seu fim, quando ampla de Cristo. Aparece-nos assim a visão de um Cristo uni-
o indivíduo, para encontrar luz e compreensão, deve dirigir-se a versal, quase super-religioso, num sentido que está acima do
outro lugar. A autoridade fica espiritualmente derrotada, quan- sectarismo separatista no qual as religiões tendem a se dividir,
do surge um conflito entre ela e a consciência, mas o indivíduo de um Cristo que, em vez de se isolar numa delas em oposição
honesto tem convicção do seu dever de obedecer a Deus em vez às demais, tende a uni-las todas, sendo concebido com a forma
de obedecer à autoridade humana. Não é lícito violar o sagrado mental da imparcialidade científica, em termos vastíssimos, li-
direito de pensar e de procurar a verdade. Pode até mesmo gado às leis biológicas e situado no ponto de convergência para
acontecer que um indivíduo, formalmente fora de uma religião, a última meta divina da evolução da vida.
seja mais religioso e esteja mais próximo de Deus do que um Trata-se de um Cristo muito maior, eixo espiritual do mun-
seu adepto, em plena ortodoxia. do, alcançável tanto pelas vias do misticismo como pelas vias
As reabilitações póstumas não podem sanear a condenação. da ciência, ponto Ômega tanto desta como da fé, significado e
Como são tardias, elas servem somente para as finalidades dos conclusão da história, princípio, guia e cume da evolução, só
outros, e não para a obra do missionário. Este, para se manter concebível desta maneira hoje devido à atual maturação do
na sua função produtiva, tem necessidade do consenso de seus pensamento humano. Um Cristo total, não só religioso e fecha-
contemporâneos, da ajuda em vida, da compreensão imediata do no passado, mas também progressista, atual e social. Um
do seu próprio tempo. Acercar-se do próximo com compreen- Cristo que aceita a luz advinda do pensamento científico e re-
são pode ser uma forma de caridade cristã e de amor evangéli- conhece o caráter sagrado da investigação, nobilitando-a e san-
co, enquanto é anticristã a atitude contrária. tificando-a, porque é santo todo o conhecimento, como função
Nas religiões deveria existir uma seção de livres investiga- e produto do espírito; um Cristo que, ao invés de contra, está
dores, uma espécie de laboratório para as experiências do espí- com a ciência, com a ânsia de saber, com o espírito da indaga-
rito, um instituto de investigação religiosa. Diz Teilhard: “Es- ção, com a paixão de evoluir; um Cristo que se desenvolve ago-
tou preocupado com o fato de faltar à Igreja um órgão de inves- ra em dimensões vastíssimas, dentro da mente humana, a qual
tigação (diferente de tudo o que existe e se desenvolve à sua está hoje apta a concebê-Lo com outras medidas; um Cristo
volta) (...). Esta investigação é uma questão de vida ou de morte que, sendo mais racional, presente, dinâmico, universal, unitá-
(...) Fato que pode surpreender os teólogos na sua vida tranquila rio, é síntese suprema de fé, de pensamento e de vida.
(...). Há, hoje, problemas que queimam, os quais ninguém colo- É necessário, portanto, refazer o nosso conceito do Cristo,
ca claramente nem defronta, senão em alguma conversa reser- que permaneceu entre nós como imagem feita de matéria, cru-
vada. Existem ideias, ainda em bruto e parcialmente equivoca- cificado e morto, com a finalidade de nos recordar, para ver-
das, mas libertadoras, que germinam e morrem no espírito de gonha nossa, daquilo que fizemos a Ele. Dos esconderijos on-
indivíduos isolados. Necessitaria, penso, de um órgão para re- de Ele, jazendo coberto de pó atrás dos utensílios de culto, pa-
colher, centralizar e purificar tudo isto, diria quase um „labora- rece ter-se refugiado para escapar do mundo, é preciso fazê-Lo
tório‟ dedicado a estas experiências (...). Isto para prevenir um sair, para que ressuscite vivo entre nós. Temos necessidade de
cisma entre a vida humana natural e a Igreja”. um Cristo que esteja junto a nós em todas as horas, convivendo
De fato o cisma atual é o mais perigoso, porque não se apre- conosco dia e noite, assistindo a todos os nossos pensamentos
senta na forma já conhecida, como se dava no passado, com o e obras, tomando parte em nossas alegrias e dores, e não um
surgimento de uma nova religião inimiga, a qual se podia com- Cristo com o qual só nos encontramos em horas fixas ou quan-
bater, mas aparece como morte do espírito e do sistema de to- do decidimos penetrar no recinto dos templos, onde O isola-
das as religiões, com a sua extinção no materialismo e na ciên- mos fora de nosso mundo. Um Cristo imanente, próximo, que
cia, que simplesmente não as tomam mais em consideração. enfrenta conosco os nossos problemas e nos ajuda a resolvê-
Assim, no meio da indiferença geral, o pensamento dirigente los, em vez de desaparecer transcendente nos céus, inalcançá-
não se interessa mais e as abandona. vel na sua glória; um Cristo que orienta a dinâmica da vida,
O objetivo da intuição anteriormente mencionada deveria operando junto de nós, no imenso esforço criador da era mo-
ser o reconhecimento da necessidade não só de conservar, mas derna, potencializando-o com os seus imensos valores espiritu-
também de progredir. Como na ciência, também nas religiões, ais. Um Cristo não mais monopolizado nas mãos dos seus mi-
a investigação deveria ser livre, e não fechada e condenada. As nistros e fechado no âmbito de uma só religião; um Cristo que
várias doutrinas deveriam ter, como tudo o que existe, também se possa venerar, sem ter que litigar com as outras religiões, e
uma porta aberta para o caminho da evolução. Seria necessário amar em outras formas, ainda que não ortodoxas; um Cristo
superar aquela psicologia morta, pela qual comodamente se que se avizinha dos espíritos com amor, e não apenas para jul-
afirma que todos os casos possíveis já foram vividos e que, por gar e punir, afastando-os com os raios da vingança; um Cristo
experiência dos séculos, já foi dada resposta a todas objeções, feito de concórdia para fundir, e não de rivalidade para dividir,
estando tudo já previsto e resolvido. O fato é que, enquanto as sendo seguido porque convence e convencendo porque fala
religiões procuram detê-lo, o pensamento humano caminha e, com compreensão à inteligência, em vez de apenas condenar
justamente por elas quererem detê-lo, ele se pôs a caminhar como um perseguidor de heréticos; um Cristo que é refúgio da
por sua conta, fora das religiões, que são deixadas para trás pureza, fora de toda a sujidade humana, inclusive daquela es-
e esquecidas, com todo o devido respeito, no meio das coisas condida sob as aparências de religião.
30 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
Eis algumas palavras de Teilhard de Chardin na sua Messe grupo e escola se tornam propriedade sua e, portanto, são reser-
sur le Monde: “Já que, Senhor, aqui nas estepes da Ásia, eu não vadas e intocáveis. No entanto isto é justo, afinal elas foram
tenho nem pão, nem vinho, nem altar, me elevarei por sobre os construídas por eles, que têm assim o direito de possuí-las com
símbolos, até à pura Majestade do Real, e vos oferecerei, eu, exclusividade e de defendê-las como coisa própria. O erro está
vosso sacerdote, em cima do altar da terra inteira, o trabalho e a em querer dar à posse da verdade um sentido diverso e maior
dor do mundo (...). O meu cálice e a minha patena são a pro- do que o de legítima propriedade, reservada para uso e vanta-
fundidade de uma alma amplamente aberta a todos os esforços gem de quem a possua. O erro está no fato de grupos e escolas
que se estão elevando de todos os pontos do globo a fim de pretenderem dar um valor universal, eterno e absoluto às suas
convergirem no espírito (...). A oferta que Vós, Senhor, verda- verdades particulares, que, como tudo na Terra, não podem ser
deiramente esperais, não é outra senão o engrandecimento do senão relativas e progressivas no tempo.
mundo agitado pelo transformismo universal”. O que aconteceu então a Teilhard? Aconteceu como acon-
Cristo pertence a toda a humanidade, e nenhuma religião tece a todos inovadores, quando eles, vendo mais longe do
pode possuí-Lo com exclusividade. Não se pode isolá-lo num que os outros, quiseram fazê-los ver mais longe também, para
templo particular ou num grupo humano, porque Ele está no além dos limites das verdades já vistas e codificadas por eles.
centro da biologia universal do espírito. Este Cristo, de dimen- É neste ponto que aparecem as condenações. Os precursores,
sões cósmicas, superior a todas as formas e dimensões huma- desde Cristo a Galileu etc., são condenados como heréticos.
nas, situado no centro de uma super-religião de substância, no Estamos observando imparcialmente o mesmo fenômeno, que
vértice da evolução da vida no planeta, nos antípodas da nossa se apresenta em todos os tempos e lugares, religiões e parti-
baixa existência terrena, sempre presente para curar com o Seu dos, porquanto constitui um fenômeno biológico, o qual se ve-
divino esplendor a nossa cegueira e sanar com a Sua potência e rifica segundo uma lei da vida, toda vez que um indivíduo
bondade as misérias de nosso pobre mundo, é o Cristo que, jun- mais progressista queira arrastar os mais atrasados para frente
to a Teilhard, eu venero e amo. no caminho da evolução.
Eis o que aguardava Teilhard quando, ao ser iluminado pela
II – Ciência e Religião visão de uma verdade muito mais vasta e convincente, sentiu-se
impulsionado a gritá-la ao mundo. Foram novos conceitos, ex-
Voltamos a falar, para compreendê-lo melhor, do pensa- pressos com uma nova linguagem, que, soando dissonantes
mento de Teilhard de Chardin. Observando os fenômenos, so- àqueles ouvidos, habituados à velha terminologia tradicional, fo-
bretudo no seu íntimo significado, ele chegou a uma visão do ram julgados estranhos e inaceitáveis para aquela forma mental,
plano geral da existência, no qual domina o princípio da evolu- acostumada aos destilados processos lógicos da filosofia e teo-
ção, que faz do ser um transformismo em marcha. O conheci- logia, parecendo um terremoto numa cidade adormecida, uma
mento do passado hominal fez Teilhard entrever as perspectivas tempestade de absurdos sobre um lago tranquilo ou sobre um
em direção às quais se encaminha aquela marcha e, portanto, jardim bem tratado. Então os conservadores se precipitaram em
aquilo que o homem poderá no futuro realizar na Terra. Então levantar barreiras de defesa, para calar aquele escandaloso “eu-
Teilhard se sentiu iluminado por uma súbita luz orientadora. Se reca”, que pretendia resolver tudo, fazendo abandonar a velha
tudo caminha, é porque tudo se dirige a uma meta que, com es- estrada sobre a qual caminhava tão bem a sua antiga sapiência.
te movimento, deverá ser alcançada. Tudo tende a completar-se Este foi o martírio de Teilhard, assim como o de todos os
e aperfeiçoar-se, porque sobe de encontro a um centro, em dire- inovadores: tropeçar nestes obstáculos, colocados no meio do
ção ao qual tudo quanto existe se eleva, à medida que vai evo- caminho, para tentar deter a evolução. Tropeçar, cair e lacerar a
luindo. Não se trata de um centro físico do universo, mas de um carne, pois quem é velho teve tempo de se tornar poderoso na
centro-síntese, no qual a pulverização fenomênica se coordena Terra, mantendo bem agarrado nas mãos o fruto do trabalho
e se organiza, chegando assim, da dispersão periférica, a um es- executado no passado, com a propriedade adquirida de concei-
tado unitário, orientado em direção àquele centro. A evolução tos, doutrinas, organizações, instituições, leis, autoridades etc.,
revela-se-nos como um fenômeno de síntese múltiplo, que rea- estando, por lei biológica, sempre pronto a usar estas suas for-
liza muitas coisas, levando à ascese, ao aperfeiçoamento e ao ças como arma para defender a sua sobrevivência.
melhoramento, mas também alcançando a complexidade, a or- Mas a visão de Teilhard é esplêndida. Ele a vê e fica fasci-
ganicidade e a unificação. O ponto de chegada é o Todo-Uno. nado por ela. Os outros não a veem e a negam. Mas por que as
Quando a consciência de uma verdade tão vasta e poderosa autoridades condenam com tanta pressa? Talvez porque tenham
lampejou no seu espírito, Teilhard não pôde deixar de gritar: Eu- medo do novo. Certamente que, dada a estrutura das leis da vi-
reca! Ele tinha sido conduzido até ali pela ciência, que, apoiada da, o novo deve representar para o velho uma ameaça contínua,
nos fatos, caminhava com o seu passo seguro. Não podia, por- porque tende a superá-lo e substituí-lo. É a vida que avança.
tanto, duvidar. Tudo isto lhe diziam os fatos com mil vozes con- Assim se explica esta reação. Mas Teilhard viu e não pôde ca-
cordantes e convergentes. Então ele, tendo-se dado conta que es- lar. Discute-se nos ambientes tradicionais se ele podia ou queria
te era o significado da existência, não pôde deixar de ver as con- fazer teologia ou filosofia. Ora, se é justo que a solução de de-
sequências desta sua descoberta. Eis como ele acabou por se de- terminados problemas constitua uma propriedade reservada, por
dicar, além da ciência, à filosofia, à metafísica e à teologia. ser o produto de certos ambientes particulares, nem por isso se
Ora, todo grupo humano, de qualquer espécie, seja escola fi- pode declarar que tudo seja reservado como propriedade, com o
losófica, religiosa, teológica etc., tem o seu patrimônio de idei- propósito de excluir os outros de um dado terreno fenomênico,
as e terminologia própria, a sua forma mental e linguagem par- de um determinado tipo de investigações e conclusões, de um
ticular, que enquadram o pensamento, cristalizando-o, e é den- setor do conhecimento. Como é possível pôr limites ao pensa-
tro destes padrões que o grupo pretende encerrar e limitar tam- mento humano? Com que direito se pode proibir ao cientista de
bém o pensamento de quem enfrenta os problemas por eles tra- ultrapassar os resultados imediatos? Como impedir que ele olhe
tados. Mais tarde, quando aquele pensamento chega a uma fase mais longe do que outros e, assim, saia do terreno da ciência,
avançada de velhice e de consequente cristalização, fixando-se para expandir-se na filosofia, metafísica e teologia? É impossí-
numa codificação de normas mecânicas para uso de uma de- vel seccionar o conhecimento em compartimentos estanques,
terminada organização humana, tudo se estanca e, naquele isolar um problema dos outros ou deter-se no exame de um fe-
campo, a evolução para. Então o novo é simplesmente julgado nômeno e de uma lei, sem ver em cada campo todas as conse-
errado e, portanto, condenado. As verdades tratadas por aquele quências. Isso é impossível num universo unitário, que, mesmo
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 31
com tudo se subdividindo depois em infinitas ramificações, é nele a razão da sua existência, a continuação do seu caminho e
regido por um princípio central único. a coroação da sua obra evolutiva.
Como pretender que alguém, ao ver o novo, não seja imedi- Trata-se de uma concepção nova, muito mais vasta e dinâ-
atamente levado a colocá-lo na vida, no lugar do velho? Impe- mica, que nos abre a mente para horizontes imensos. Ora, con-
di-lo é atentar contra o progresso, é delito de lesa-evolução. forme já nos foi demonstrado pela ciência, sabemos que existe
Quem viu é levado a se transformar em reformador, para fazer um caminho evolutivo. Se pensarmos, então, até aonde este ca-
o mundo progredir. Eis uma razão a mais para reforçar a con- minho poderá nos levar, quão grandiosa visão se abre diante de
denação por parte dos poderes constituídos. nós! Religião, ética, espiritualidade, ideais, tudo adquire um sig-
O problema é que se trata de indivíduos mais evoluídos. Por nificado positivo, uma possibilidade de atuação concreta. Estas
isso mesmo é difícil que possam ser subitamente compreendi- abstrações se tornam vivas e atuantes em nossa existência, não
dos e aceitos. Eles, pelo fato de serem mais avançados, veem só como aspirações, mas para se realizarem em função do gran-
que muitas posições estão ultrapassadas e necessitam ser reno- de fenômeno da evolução. Só assim poderemos retirar as velhas
vadas. Os outros, menos evoluídos, não se dão conta de nada. concepções filosóficas e teológicas das estantes empoeiradas,
Para estes, o mundo se encontra bem e deve permanecer como onde têm sido respeitosamente conservadas, e trazê-las para jun-
está. Ressurge sempre o princípio biológico da luta. Os jovens to de nós, a fim de que se transmudem em formas de vida. Deve-
rebentos devem abrir caminho à força entre as ruínas das velhas ríamos compreender que o novo não surge para matar o velho,
árvores decadentes, que não cedem o posto à nova vida, en- do qual a vida fatalmente escapará, mas somente para substituí-
quanto têm forças para resistir. lo, processo esse cuja finalidade é permitir a continuação da vida
Como pode um cientista que viu, não fazer da sua ciência em novas formas, que não excluem as do passado, mas somente
também uma filosofia e teologia, invadindo, mesmo que não o as completam e as fazem avançar. Não há doutrina religiosa ca-
queira, estes terrenos reservados? Ele sente que sua filosofia e paz de deter estas leis, que são as leis da vida. Eis o que querem
teologia são as do futuro, aquelas que o mundo procura, porque os inovadores, e eis o que irresistivelmente, através deles e utili-
quer viver e resolver cada vez melhor os seus problemas. Per- zando-os como seus instrumentos, impõe a evolução.
cebe instintivamente que, se renunciasse a ocupar-se deles, Do evolucionismo nasce, no lugar da velha moral estática,
adormecendo sem lutar para avançar, ficaria abandonado à uma moral dinâmica. A nova ciência nos diz que a vida evolui
margem do caminho da vida. em direção à espiritualização, sendo este, portanto, o nosso
Quando, num terreno, encontramos escrito: “Propriedade re- porvir. O passado nos mostra qual deverá ser o futuro, porque
servada. Proibido o ingresso a estranhos”, seguimos para outro este não pode ser senão o prolongamento daquele, como sua
lado, e a bela propriedade fica intacta e deserta. Mas ela se torna continuação lógica. A nossa vida adquire assim um significado
vazia e morta, porque não é habitável uma casa que foi reduzida profundo, porque ela existe na direção de uma meta que pode-
a um museu de antiguidades, e a vida, que ninguém pode deter, mos racionalmente prever qual seja. Caminha-se e sabe-se para
vai então desenvolver-se em outro lugar. Foi para evitar tudo is- onde se vai. Daquilo que nos mostra a nossa história geológica
to, apesar de, por obediência, ser-lhe proibido, que Teilhard quis e paleontológica, podemos positivamente deduzir qual será o
entrar nos terrenos reservados à filosofia e à teologia e entrar ne- nosso futuro. Caminhamos em direção a novas grandes afirma-
les como cientista, com conceitos novos e vivificantes. ções no campo intelectual e espiritual, com infinitas conse-
A teoria evolucionista nos dá um conceito novo do univer- quências de todo o gênero. Tudo assume um valor construtivo.
so e da existência. O todo não foi feito por Deus de uma só O processo evolutivo tem as suas leis, mas o trabalho de reali-
vez, para sempre, de improviso, num dado momento. Pelo zá-lo está em nossas mãos. Somos nós que temos de executá-
contrário, ele está continuamente se formando. O todo é resul- lo. Nós somos os construtores de nós mesmos, cooperando
tado de uma criação contínua, obra de um Deus sempre ativo com a contínua obra criadora de Deus. Nunca estamos sozi-
e presente, e não de um Deus que, uma vez tendo realizado nhos. Todas as outras formas de existência estão junto de nós e
sua criação, afastou-se dela, para ficar inerte, contemplando-a vão avançando conosco, no mesmo caminho. A ciência já co-
do alto de Sua glória, separado do fruto de Sua obra, que con- meça dirigir-se para uma síntese, cerzindo os retalhos da espe-
tinua a existir estaticamente, por si mesma, agora independen- cialização em que ela se ramifica e se subdivide. Ligando os
te da ação do Seu criador. Para imaginar a atividade de Deus, vários momentos do conhecimento, ela se orienta em direção à
o homem não tinha em sua mente outro modelo, senão aquele unificação de todos os fenômenos num princípio central. Fatos
acessível a ele na Terra, quando se constrói qualquer coisa. isolados, dos quais primeiramente não se conhecia o nexo re-
Assim, inconscientemente, aplicou a Deus esta sua concepção cíproco, integram-se numa complexidade orgânica e funcional,
antropomórfica, da qual não podia sair, porque não lhe era até formarem uma imensa sinfonia, na qual se sente encontrar
possível superar os limites em que o seu concebível estava a suprema visão do universo.
encerrado, fixados pela sua experiência. Será irreligioso tudo isto? Mas esta é precisamente a mais
Hoje, tende-se a substituir a concepção antropomórfica e es- elevada religião do futuro, a do homem inteligente e consciente,
tática da Bíblia por uma outra, dinâmica, mais verossímil, que que substituirá o homem ignorante e instintivo de hoje. E, para-
melhor convence a mente moderna, mais madura. Certamente, lelamente, a ética também se transformará. A esta religião maior
a superação dos velhos conceitos tradicionais é laboriosa, mas é possível que as atuais resistam. Hoje, porém, vivemos no mo-
fatalmente ocorrerá. O homem já não é mais considerado se- mento crítico da virada. Atingimos o ponto em que o homem,
gundo uma concepção egocêntrica, que o torna único objetivo por haver avançado ao longo da evolução, vê-se obrigado a in-
da criação, situado num planeta que é o centro do universo. O verter a sua posição, pois não gravita mais em direção ao polo
orgulho pode ser considerado culpa, quando há um rival que negativo do ser, representado pelo fundo da involução, que
por ele se sente lesado e, por isso, o condena. Mas, quando é de chamamos de Anti-Sistema (AS), mas sim em direção ao polo
todos, o orgulho se torna uma autoexaltação coletiva e, na falta positivo, representado pelo vértice da evolução, seu ponto de
de uma reação contrária, é aceito por consenso universal, de chegada, que chamamos Sistema (S). Assim, à força de subir,
modo que, sendo vantagem para todos, torna-se verdade. Hoje, evoluindo do Anti-Sistema para o Sistema, o homem acabou por
vemos o homem como elemento de uma imensa unidade orgâ- entrar no campo gravitacional prevalentemente positivo, saindo
nica. Ele não nasceu de uma vez, feito num só momento, mas é e afastando-se cada vez mais daquele prevalentemente negativo.
antes o resultado de um longo caminho percorrido, de formas Esta é a mais profunda revolução da vida, pois agora o seu
biológicas inferiores superadas, que o precederam e encontram centro de atração muda, de modo que o sinal do seu campo de
32 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
ação se inverte de negativo para positivo. De hoje em diante mistério e a respectiva fé pelo conhecimento, para mudar a posi-
tenderá a prevalecer o positivo sobre o negativo. Positivo e ne- ção do homem, afastando-o cada vez mais das trevas da igno-
gativo significam dois tipos de existência opostos, sendo o se- rância (AS) e levando-o em direção à luz do conhecimento (S).
gundo vivido nos planos inferiores, e o primeiro, nos planos Crer, então, segundo as religiões, mas conhecer cada vez mais
superiores, mais evoluídos. segundo a ciência; crer cada vez menos com os olhos fechados,
Certamente trata-se de conceitos novos, os quais nós, junto como ignorantes, e cada vez mais com os olhos abertos, como
com Teilhard, também sustentamos, diferindo apenas nos deta- conhecedores; empurrar sempre o mistério para mais longe de
lhes, não sendo surpresa eles desconcertarem as velhas formas nós, iluminando a estrada com a nossa inteligência. Fazer isto
mentais, que não estão habituadas a estas ideias. É natural, en- significa trazer Deus cada vez um pouco mais para a Terra, ao
tão, que conceitos e terminologia sejam diferentes. No entanto, invés de ficarmos passivos na expectativa. Devemos nos tornar
apesar de cada um vê-lo de modo diferente, o pensamento fun- ativos, manifestando a nossa vontade no esforço de conquistar.
damental que rege o universo é uno e não pode deixar de ser No entanto vemos que se procurou fazer do mistério um cômodo
percebido, desde que o indivíduo tenha os olhos adaptados e refúgio, para nele se aninharem os preguiçosos, inimigos de toda
saiba abri-los para ver. Desaparece, assim, a oposição entre es- a febre de pesquisa e de toda a novidade que perturbe o seu so-
pírito e matéria, que são apenas pontos diferentes de um mesmo no. Mas Deus quer que realizemos o nosso progresso; quer que
transformismo fenomênico. Física e moral baseiam-se num seu pensamento e sua vontade se manifestem cada vez mais em
princípio comum. Ciência e espírito, conhecimento e moral, nossa vida; quer que O compreendamos e com ele colaboremos
têm as mesmas raízes. E Teilhard não podia deixar, ele tam- como seus operários, para subirmos. Porém Deus não desce à
bém, de ver a unidade fundamental de todas as coisas. Quem Terra gratuitamente. O homem deve realizar o esforço de se ele-
viu compreende e ama a Teilhard, porque ele também viu. var em direção a Ele, para Dele extrair aquilo que pode sentir e
Quem não viu não compreende e o condena, pois, usando a sua compreender. Cabe-nos subir a montanha da evolução com nos-
pequena e velha medida, feita para medir limitados conceitos sas pernas. Devemos carregar a cruz da redenção em nossos
antropomórficos da Terra, não pode compreender as ilimitadas ombros, porque é absurdo nos servirmos dos ombros de Cristo,
concepções astronômicas do homem do futuro. para que seja ele o crucificado em vez de nós.
É natural, partindo de gigantescas premissas, que já não seja A ciência é um esforço da inteligência para subir a Deus,
possível concluir unicamente em favor de um grupo particular mesmo quando O nega, pois, nesse momento, ela representa a
humano. Superada a forma mental egocêntrica, que criou para si tarefa de resolver os problemas e descobrir a verdade com seu
um universo antropomórfico, já não é possível fazer dos princí- próprio trabalho, por si mesma, em vez de aceitar tudo pela fé,
pios ideais um meio para sustentar interesses humanos. Deverá gratuitamente, já resolvido, sem labor, abandonando-se passi-
assim, automaticamente, desaparecer o sectarismo partidário e o vamente nas mãos de um Deus que invocamos para nos socor-
separatismo religioso. Estas são as fases primitivas do pensa- rer. A época da concepção estática do universo e da vida, que
mento religioso, que, para descer à Terra, foi obrigado a sub- encorajava a nossa inércia mental, qualificando-a como virtude,
mergir na sua lei, que é a luta de todos contra todos pela sobre- está superada. Hoje, abre-se o caminho para a concepção dinâ-
vivência. A religiosidade do futuro transcende a Terra, o nosso mica, pela qual percebemos que o paraíso não se conquista so-
mundo e as sua organizações, não podendo encerrar-se nas fór- mente com a negação da vida terrena e com a renúncia, mas so-
mulas de nenhuma religião particular, todas isoladas entre si, bretudo pela afirmação de um modo positivo, trabalhando e
num clima de divisionismo e de disputa pela sua própria inter- conquistando no terreno do pensamento e do espírito. Então, se
pretação da mesma verdade, rivais e dispostas a se combaterem a ciência foi, em princípio, considerada inimiga das religiões,
umas às outras. A cosmogênese não pode culminar e se exaurir porque perturbava o sono de quem, tendo-se acomodado dentro
num só profeta. Trata-se de uma religiosidade tão vasta, que po- delas, via nas descobertas uma ameaça (pois destruíam o misté-
de abarcar todas as formas de vida, incluindo não só aquela en- rio, seu elemento de domínio), hoje ela representa o caminho
contrada na matéria, mas também a dos outros seres que vivem para chegar à religião do futuro, que, tal como a ciência, será
nos planetas das mais longínquas galáxias. Os conceitos tradici- universal, sem possibilidade de escapatórias, verdadeira para
onais não servem mais. Isto, porém, não significa destruição, e todos, convincente porque demonstrada pela lógica e pelos fa-
sim ampliação. Está para surgir um novo testamento de todas as tos. Uma religião que, por ser mais inteligente e consciente, re-
religiões, que irá inicialmente fundi-las ou, pelo menos, aproxi- presentará uma posição espiritual mais avançada, com um mai-
má-las uma das outras, irmanando-as, como se constituíssem as- or grau de compreensão do pensamento de Deus.
pectos diversos e complementares da mesma verdade. Sem des- ◘◘◘
truir nada, este novo testamento não só continuará o velho, res- Assim como Teilhard de Chardin não pôde deixar de gritar
peitando-o, mas também o ampliará, completando-o. Ele será “Eureca”, quando teve a visão da unidade orgânica do universo,
oferecido pela ciência a uma humanidade que sentirá a necessi- também não pode deixar de gritar “Eureca” quem, tendo obtido
dade e terá a capacidade de compreender. Esta nova humanidade por sua conta a mesma visão, percebeu que já não se encontra
sucederá à do passado, que, sem tal necessidade e capacidade, mais só, pois viu que outro também a obteve, encontrando nele,
não sabia fazer outra coisa, limitando-se a crer. no percurso da mesma estrada, um companheiro e um amigo. De
O que pode impressionar o homem é a angustiosa sensação resto, é natural que sejam vários a ver a mesma coisa. A verdade
de sentir-se um átomo perdido na imensidão do universo. No em si é uma só. A nova realidade pré-existe à nossa descoberta.
passado foi o medo das feras, do inimigo e dos elementos de- Esta não cria nada, apenas revela o que já está resolvido pela na-
sencadeados. Hoje, a ciência nos fez ver um infinito cheio de tureza e em funcionamento, sem que disso tenhamos consciência.
novos mistérios e de vazios, descobrindo a possibilidade de Eis que começa a se delinear a nova religião científica, raci-
perigos ainda maiores. E ela quer chegar até à Lua, para saber onal, comprovada, convincente, aquela que as religiões deverão
o que existe lá. Daquele medo nasceram as religiões, para nos ter como referência e alcançar, se quiserem sobreviver na mente
dar uma proteção, tornando útil a divindade. Foi delas que moderna. Já não mais apenas revelação e tradição, mas também
nasceu a fé, para nos consolar e, com isso, suprir tudo que ciência, uma ciência que se prolonga na religião, elevando-se e
ainda não se sabe. Mistérios, religiões e fé estão de fato uni- continuando no plano do espírito, para se completar com crité-
dos por estreito parentesco. rios positivos no terreno ético e social. Esta é a tendência atual
Ora, a tarefa da evolução humana é justamente aquela que a do desenvolvimento da ciência, no sentindo de se dilatar cada
ciência está realizando hoje, ou seja, substituir cada vez mais o vez mais, invadindo todos os campos do pensamento e da ação.
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 33
Não se trata apenas de transformar as religiões, para que sejam Houve uma época em que a evolução aparecia como uma
concebidas diversamente, mas também de transformar a ciência ameaça às verdades religiosas e, por isso, era condenadíssima.
atual, para que dela se adquira um novo conceito. Então o mate- Atualmente, ela pode ser entendida como uma sua confirma-
rialismo, o agnosticismo, o cepticismo, o ateísmo, tornam-se ção. O conhecimento do passado animal do homem nos leva a
coisas superadas. A mente humana, pelo menos nas suas gran- vê-lo ao longo de um caminho de contínuas superações, o que
des linhas e orientação geral, avança em direção à solução do significa observá-lo em função do seu futuro super-humano,
problema do conhecimento, o que implica também a resolução no qual aquilo que se deve realizar é a espiritualidade intuída
de muitos outros problemas menores. É inegável que as barrei- pelas religiões, é o ideal por elas sustentado, é o reino dos céus
ras do mistério, anteriormente imóveis, estão retrocedendo. Is- proclamado por Cristo. Eis então que, em pleno acordo tanto
to, porém, é fruto de um trabalho que se realiza fora das religi- com as religiões e a moral por elas pregada como com o evo-
ões e sem a sua participação, porque a maior preocupação delas lucionismo científico, pode-se implantar uma antropologia va-
não é a pesquisa de mais vastas e profundas verdades, mas sim ticinante, que estuda a antropogênese, para levá-la adiante e
a conservação dos velhos dogmas, sobre os quais se baseiam as orientá-la em direção ao futuro, transformando-se num guia
suas posições terrenas. Sendo assim, o progresso do pensamen- iluminado da evolução do homem. Realizações até hoje impos-
to, dado que não pode ser parado, continua a avançar por sua síveis para as religiões, que têm estado fechadas numa ordem
conta, deixando para trás as religiões. de conceitos totalmente diversa.
O próprio Teilhard afirma a possibilidade de um novo mé- Como sustentamos no volume Princípios de uma Nova Éti-
todo de pesquisa, por nós já sustentado e praticado, que é a su- ca, trata-se de chegar a uma moral positiva, científica, racio-
peração do racional por meio da intuição. O problema do co- nal, demonstrada, para substituir a atual, que é empírica, pro-
nhecimento não se esgota mais no estudo dos aspectos positivos duto instintivo do subconsciente. Isto não significa que esta
e científicos da natureza, mas exige que a investigação seja le- não tenha o seu significado e valor, pois tudo quanto é produto
vada até ao prolongamento espiritual e místico daqueles aspec- da vida, que sempre sabe o que faz, tem sempre o seu valor.
tos. Quando se chegou a compreender que matéria e espírito, Porém, neste caso, perante produtos mais evoluídos, controla-
hoje concebidos como dois termos antagônicos inconciliáveis, dos pela razão, a moral vigente constitui um produto mais
são redutíveis à mesma substância fundamental, os atritos entre elementar e involuído, como são os provindos do subconscien-
a forma mental da ciência e das religiões podem desaparecer, te, depósito das experiências inferiores do passado. Repete-se
sendo possível fundir, numa só, as duas concepções do ser. Elas sempre o motivo do velho e do novo testamento. E isto tam-
assim, em vez de se excluírem, integram-se, tornando-se indis- bém prova a evolução. O velho permanece, porém é arrastado
pensáveis uma à outra, como duas partes da mesma unidade. mais adiante. Não se trata de destruição, mas sim de superação
Hoje, estes dois aspectos parciais e complementares da mesma por amadurecimento. A vida nunca destrói em sentido absolu-
verdade estão se combatendo, cada um pretendendo constituir o to, somente transforma, e é neste sentido de ressurreição que
todo, e não uma parte. Ambos negam um ao outro, quando são elimina o velho. Este íntimo trabalho da existência nunca se
apenas duas afirmações incompletas, que se procuram uma à detém, e ninguém poderá detê-lo jamais.
outra, para se completarem, como duas perspectivas da mesma Continuando a ler Teilhard, notamos que ele soube ver e
realidade, observada sob dois pontos de vista diversos e em sustentar uma outra grande verdade, a qual nos leva a conceber
função de pontos de referência diferentes. a vida de outro modo. Para compreender o homem, é necessário
Hoje, o conhecimento está entrando em uma nova dimensão vê-lo como ele realmente é, em função das leis biológicas que
da cosmogênese. A mente humana é levada pela evolução a regem o plano de evolução no qual ele se encontra situado, e
amadurecer até chegar à compreensão de novas concepções. não abstratamente, separado desta realidade em nome de prin-
Daí nasce uma forma mental nova, da qual deriva uma trans- cípios a ela estranhos. Tudo que diz respeito ao homem, cada
formação da vida do homem em todos os campos. Até um pas- produto da sua atividade – ética, economia, política, religião
sado recente, o homem se julgava nascido rei do mundo, a obra etc. – é entendido em função das leis da vida, dentro das quais
prima de Deus, num universo feito para ele. Hoje, o nosso pla- ele se move e às quais, sem saber, obedece. Todo fenômeno
neta tornou-se um grão invisível num universo que milhares de que se refere ao homem é, portanto, uma função biológica –
anos-luz não bastam para atravessar, onde a nossa humanidade, única forma de se poder compreendê-lo – e está, como fenôme-
perante a vida universal espalhada nas galáxias, pode reduzir-se no antes de tudo biológico, inteligentemente dirigido aos fins
a uma microscópica cultura de bacilos. O homem está superan- da evolução. Também tudo isso nós sustentamos e explicamos.
do a forma mental pueril, segundo a qual fazia a sua interpreta- Até hoje o homem foi, por instinto, inconscientemente guia-
ção antropomórfica do universo. Começa-se a pensar tudo outra do por estas leis. Trata-se agora de conhecê-las, para saber aon-
vez, em termos de uma nova cosmogênese, com dimensões de elas nos dirigem, a fim de, tanto quanto possível, segui-las
imensamente mais amplas. Somente no começo, tudo isto podia com conhecimento e consciência, intervindo ativamente em co-
levar ao ateísmo os iniciadores da ciência, demasiadamente laboração com elas, para acentuar sua ação com a adesão de
apressados em concluir. Hoje, tudo isto leva a Deus, mas atra- nossa vontade, o que nos permitirá alcançar melhor o fim su-
vés de um modo mais elevado e completo de concebê-Lo. A premo em direção ao qual tudo está evoluindo, que constitui a
tendência mais adiantada não é a destruição da ideia de Deus, nossa verdadeira vantagem. A biologia se tornará assim uma ci-
mas apenas a superação daquela ideia particularmente humana ência universal tão vasta, que abarcará também uma biologia do
que o homem, até agora, produziu com a sua cabeça, limitando- espírito, uma biologia do ideal, uma biologia das religiões, da
se a projetar-se a si próprio. A luta é apenas contra o antropo- teologia, da ética, da economia, da política, porque tudo aquilo
morfismo, mas as religiões a entenderam como se fosse contra que o homem faz é uma expressão das leis da vida e em função
elas, porque se identificavam com este antropomorfismo. Com- delas é realizado. A questão é conhecê-las. A observação dos fa-
batê-lo era interpretado como combater essas religiões, quando tos as revela, e podemos lê-las escritas na realidade, onde as en-
o que se combatia era o modo de conceber Deus, ilógico e ina- contramos em pleno funcionamento. Então aparecem os víncu-
ceitável, que levava ao ateísmo. E, combatendo o antropomor- los que ligam e levam à unidade as várias formas de pensamento
fismo, lutava-se contra aquele ateísmo, em favor das religiões, e de atividade humana. Todas elas nada mais são do que a mani-
que ele ameaçava. O que leva ao ateísmo não é a ciência, mas o festação de um contínuo trabalho de amadurecimento evolutivo,
antropomorfismo religioso. Somente deste há necessidade de de uma íntima elaboração da vida para subir, sendo apenas mo-
nos libertarmos, e jamais da ideia de Deus. mentos diversos, no espaço e no tempo, de um mesmo cresci-
34 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
mento orgânico e universal: a evolução, que, em seu irrefreável Mas é verdade também que seria um erro crer na possibili-
impulso, arrasta a vida e, portanto, tudo que existe. dade de se chegar a esta biologia do espírito apenas por abstra-
Eis a grande concepção teilhardiana: a cosmogênese em ções metafísicas, sem ligação com a biologia do animal, pois é
contínua ascensão e a constatação de que o homem, agora tor- desta que aquela superestrutura deriva, é sobre esta que ela se
nado adulto, está maduro para tomar a direção da evolução da baseia e se eleva e é nesta que ela tem as suas raízes e prece-
vida no seu planeta e, por isso, deve assumir conscientemente dentes, que a explicam e justificam. De um polo a outro, há di-
essa tarefa, tornando-se responsável por ela. Nessa imensa tare- versos níveis evolutivos, tratando-se do mesmo fenômeno em
fa não falta trabalho para as religiões, que deveriam inteligen- continuação de desenvolvimento. Somente assim, havendo
temente cooperar na realização das leis da evolução e do seu compreendido o passado, poderemos não apenas compreender a
imenso programa de ascensão, que representa o conteúdo fun- existência de uma biologia do espírito, mas também prever ra-
damental daquelas religiões. Não se trata da morte das religi- cionalmente seu futuro desenvolvimento e o conteúdo dos esta-
ões! Trata-se da morte da sua forma atual atrasada, para ressur- dos superiores aos quais a evolução, elevando-se logicamente
girem numa outra mais avançada e potente. Como sempre, sobre aquele passado, poderá nos levar.
também neste caso, que não pode constituir exceção, a vida Não se pode esquecer qual a estrutura da matéria prima bio-
destrói só para reconstruir mais acima. Seria absurdo o contrá- lógica a ser elaborada, que, constituindo as bases da nova criação
rio, dado que a tendência suprema da vida é subir. As religiões evolutiva, deve ser levada adiante pelo progresso. Mesmo nas
deveriam compreender a grande vantagem que representa para supremas criações espirituais, é necessário sempre ter em conta a
elas transferirem-se para tais dimensões superiores, nas quais, realidade biológica e jamais se separar dela, para não naufragar,
queiram elas ou não, a vida hoje exige que se situe quem quiser isolando-se em sonhos fora da vida. Esta é a verdadeira posição
sobreviver. É inútil resistir às suas leis, e quem o fizer será eli- equilibrada, ou seja, aceitar como ponto de partida a natureza
minado, sendo deixado para trás no caminho da evolução. animal do homem – mesmo sendo ele destinado a alcançar os
Eis as palavras de Teilhard 3: “Até agora, a antropologia mais altos planos espirituais – e deste ponto de partida subir de-
havia sido considerada, de uma maneira geral, como uma pura pois até aonde, ao longo do processo evolutivo, o amadurecimen-
descrição do homem do passado e do presente, individual e to permitir. Não nos iludamos, então, com voos de fantasia, pen-
socialmente. De agora em diante, o seu princípio central de sando que isto seja fácil, como sucede com muitos que preten-
interesse deveria consistir em guiar, promover e operar a evo- dem refazer o mundo. A velha natureza humana de base é muito
lução do homem. Os não biólogos esquecem muitas vezes resistente e não pode ser transformada num só dia. Até Cristo te-
que, sob as variadas regras da ética, da economia e da política, ve de levar em conta as leis biológicas do planeta, limitando-se a
encontram-se inscritas na estrutura de nosso universo certas trazer apenas leves retoques e melhoramentos àquele fundo ani-
condições gerais e imprescritíveis de crescimento orgânico. malesco que constituí a base da natureza humana.
Determinar, no caso do homem, estas condições básicas do Compreendido tudo isto, ou seja, que não podemos entender
progresso biológico, deveria ser o campo específico à nova a conduta humana de outro modo a não ser reportando-nos à sua
antropologia: a ciência da antropogênese, a ciência do desen- substância biológica, em função das leis de nosso plano evoluti-
volvimento ulterior do homem”. vo, poderemos perguntar-nos então qual o significado daquelas
Conceitos novos e vitais de Teilhard, que sustentávamos construções metafísicas de que falávamos agora, não no caso
antes de conhecê-lo4. Não podemos verdadeiramente compre- excepcional dos raros pioneiros da evolução, mas sim no caso
ender o homem, colocando-o dentro de uma biologia que, evo- comum de tantos grupos humanos de massa, incluindo os religi-
lutivamente, ele ainda não alcançou e cujas leis, portanto, não osos, que sobre aquelas construções baseiam a própria organiza-
são as suas. Isto serve para educá-lo, mas não para compreen- ção e existência. Para quem está habituado ao controle positivo
der as razões da sua conduta. O homem deve ser visto em fun- das teorias, levando-as ao contato com os fatos, as diversas con-
ção da biologia do animal, porque esta é a biologia do seu pas- cepções filosóficas e teológicas podem parecer o resultado da
sado, através da qual o próprio homem se construiu como ele é imaginação, com afirmações situadas fora da realidade, que elas
hoje, porque este é o caminho percorrido por ele para chegar ignoram. Não obstante, biologicamente, pode-se justificar tudo
até aqui, com a sua história escrita no seu subconsciente, que isto como um instintivo produto do inconsciente, sabiamente de-
constitui a forma mental que o dirige. Certamente, dizer ao sejado pelas leis da vida, com uma finalidade precisa, que é al-
homem que Deus o criou à sua imagem e semelhança pode ser cançar a sobrevivência através da luta. Tratar-se-ia então de um
útil para efeitos educativos, enquanto o investe de uma digni- produto do subconsciente, com o fim de assegurar tal sobrevi-
dade que ele, através da sua conduta, sente-se compelido a res- vência, entrincheirando-se por detrás de uma ideologia, para uti-
peitar. Se quisermos, porém, compreender o homem nos seus lizá-la como um meio de sugestionar os crentes e, dessa forma,
impulsos, instintos e ações, devemos vê-lo em função das for- obter o respeito, o que constituiria uma arma psicológica para
mas de vida já vividas por ele, na sua posição no topo da esca- substituir a força, visando paralisar a agressividade dos outros
la zoológica, da qual ele emerge, mas faz parte, ou seja, obser- na luta e, assim, garantir a segurança própria. Desta maneira,
vá-lo em relação à sua posição biológica, e não metafísica, pode-se biologicamente justificar a posição do grupo. As cons-
pois, ainda que esta represente o futuro a ser vivido, o homem truções metafísicas seriam então um produto instintivo, nascido
ainda conserva em si os traços mais profundos daquela outra, da vida para sua defesa própria, e, mesmo se tratando da emana-
já vivida, bem diferente do tipo metafísico. ção de planos evolutivos superiores, cujas construções descem
Todavia é necessário também admitir que apenas a biologia ao nosso mundo para civilizá-lo, constituiriam, no entanto, um
do animal não basta para compreender o homem inteiramente, material ideal super-humano que é adaptado ao ambiente terres-
porque ele não é feito somente de recordações do passado, mas tre, para ser assim utilizado com objetivos totalmente diversos,
também de pressentimentos do futuro, ainda que sejam vagos. transformado em meio de luta pela vida. Eis como pode ser en-
Aquela biologia se completa, portanto, com a biologia do espí- tendida e aplicada a biologia do espírito, quando ela é usada pe-
rito e do ideal, que existe na crista da onda da evolução, onde los imaturos, ainda situados no nível da biologia do animal.
vivem isolados alguns precursores do futuro. Com tal concepção biológica, podemos explicar-nos fatos
cuja razão, de outro modo, não chegaríamos a compreender. As
3
GUENOT – Conferência do padre Teilhard ao “Viking Fund” (N. do A.) ideologias, seja qual for o seu tipo, constituem o castelo dentro
4
Problemas do Futuro – Cap. III: “Experiências em Biologia Trans- do qual, quando não se pode usar a força, o grupo se entrinchei-
cendental” (N. da E.) ra e se defende. É por isso que as ideologias, sejam elas religio-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 35
sas ou políticas, exigem fé, o que significa consentimento, ade- cialmente apresentada, com a qual, às vezes, procura-se escon-
são e, por fim, obediência, que é o ponto fundamental no qual der a verdadeira. É natural, de resto, que, movendo-se tudo
cada grupo insiste, porque constitui a base do seu poder. Os num ambiente de luta, apoiado em posições de combate, a ver-
elementos do fenômeno são sempre os mesmos: proselitismo dadeira razão de tantos expedientes seja escondida, camuflada
para estender o domínio e autoridade para mantê-lo. No plano sob outras razões aparentes, para não revelar ao inimigo a pró-
biológico do ideal, tais coisas são contraproducentes, antivitais, pria estratégia. Mas somente chegaremos a compreender tudo
absurdas, mas, no plano biológico animal do homem, são ques- isto e, assim, a verdadeira razão destas posições, que parecem
tão de vida ou de morte. Neste nível, o ser tem de resolver a culpáveis e contraditórias, se enfrentarmos o problema tocando
qualquer custo o problema tremendo da sobrevivência, onde na sua substância, que é de natureza biológica.
não há margem para sonhos e o ideal é loucura que mata. Eis Chegando a este ponto, perguntamo-nos se as construções
porque, à volta do castelo em que se refugia o ideal, é necessá- ideais seriam realmente, debaixo das aparências, apenas uma
rio construir muros de defesa contra a instintiva agressividade ficção com o objetivo de exploração prática, para mascarar os
destruidora do homem involuído, devendo o grupo constituir no próprios movimentos frente ao inimigo? Será possível que tais
centro uma autoridade que comande os seus súditos, mesmo construções existem apenas para esconder uma tão baixa finali-
que seja só pela fé, e sujeitá-los à obediência. É uma posição de dade, sem nenhum significado melhor? Não! A sua existência
guerra. Parece uma contradição, porque inverte os princípios do também representa de fato um pressentimento do futuro, uma
ideal. Mas esta forma invertida é a única que pode ser assumida antecipação tendente a realizá-lo na forma oferecida pelo ideal.
por algo que pertence a um plano biológico superior, quando Tais construções podem, assim, ter ainda outro significado, re-
desce a um inferior. E esta é de fato a forma na qual constata- presentando uma posição e função diversas no plano da biolo-
mos a existência dos ideais na Terra. gia do espírito, não mais de guerra. Então a luta dos grupos ba-
Condenar não resolve. É necessário antes de tudo compre- seados num ideal, para a sua defesa e sobrevivência, pode exis-
ender e explicar. Os fatos nos mostram que até mesmo Deus, tir também para realizar uma outra função, que é a luta pela de-
quando se manifesta na Terra, não viola suas leis, mas antes as fesa e sobrevivência do ideal na Terra, de modo que aqui ele
respeita. A verdadeira revolução, a grande transformação, só possa cumprir a sua missão evolutiva.
pode realizar-se passando a um plano de vida superior. Mas, Podemos compreender como tudo isto sucede, recordando
enquanto não se consiga, por evolução, sair de um determina- que estas duas biologias, com as suas respectivas leis, represen-
do nível biológico a que se pertence, fica-se encerrado dentro tam a vida em dois níveis seus, dois graus de evolução, e que
das suas leis, às quais se deve obedecer. A reação que dá razão esta vai do Anti-Sistema (AS) ao Sistema (S). Ora, é lógico que
ao ideal verifica-se somente no momento em que o indivíduo, seja prevalentemente do tipo AS o que é inferior, e o que é evo-
por ter progredido bastante, está maduro para se evadir do seu lutivamente superior seja do tipo S, tipos dos quais conhecemos
plano biológico inferior e entrar no superior. Assim sucedeu as qualidades que os caracterizam. É lógico também que a vida,
também com Cristo, em quem, enquanto ele esteve vivo na estando não só na Terra mas em toda a parte, possa conter, mis-
Terra, o ideal foi crucificado. Ele somente pôde triunfar como turados, indivíduos mais atrasados, do tipo AS, e outros mais
vencedor quando, estando morto, encontrou-se fora do plano avançados, do tipo S. Então cada um deles, segundo a sua natu-
biológico humano, e não antes. reza e respectiva forma mental, verá tudo de acordo com ela e
Pudemos assim explicar a contradição existente no fato de tenderá a reduzir tudo dentro dos limites da sua capacidade
que o ideal, se quiser resistir e sobreviver na Terra, deve então conceptual e do seu plano de evolução. Eis então que, de acor-
aceitar aquilo que ele mesmo condena, submetendo-se à neces- do com o diferente tipo biológico, a compreensão e a realização
sidade de defender os valores espirituais com os métodos do do mesmo princípio também será diferente. Assim o ideal, na
mundo, empregando até mesmo a força, ainda que isso esteja Terra, poderá ser compreendido e realizado diversamente, con-
em evidente contradição com o Evangelho. Não é essa a histó- forme se trate de um involuído, tipo AS, funcionando no âmbi-
ria do cristianismo, que impulsionou inquisições e guerras san- to da biologia do animal, ou de um evoluído, tipo S, funcionan-
tas, mas é teoricamente baseado no princípio do amor e da não do no âmbito da biologia do espírito.
resistência? Só assim, enfrentando biologicamente tais pro- Sucede então que, enquanto o evoluído é um instrumento de
blemas, pode-se compreender o significado do que vemos descida do ideal à Terra para o progresso da humanidade, o in-
acontecer no mundo. Se as coisas funcionam de tal modo, en- voluído é naturalmente levado a ver este ideal sob seu ponto de
tão devem ter as suas razões. Observando o fenômeno do pon- vista inferior, situado no plano da biologia do animal. Por isso o
to de vista biológico, colocamo-nos não diante do homem, pa- involuído tende a abaixar e reduzir o ideal ao seu nível, para fa-
ra que ele explique e justifique o seu procedimento, mas sim zer dele o uso que acabamos de ver, utilizando-os não em fun-
perante a inteligência da vida, pois ela sabe bem o que faz e é a ção de princípios superiores, mas sim para desfrutar de tudo em
única capaz de nos dar uma resposta exaustiva. Para compre- sua vantagem na luta pela própria sobrevivência. É natural que o
ender, é necessário sair da forma mental corrente, situada no involuído tenda a arrastar tudo para o seu plano de evolução e,
terreno dominado pelas leis do plano biológico animal-humano portanto, não saiba fazer outro uso do ideal, a não ser procurar
vigentes na Terra, e observar as coisas, antes, em função de extrair dele uma vantagem material. Enquanto o evoluído tende
planos biológicos diferentes, superiores, abraçando uma visão a levantar tudo em direção ao S, a tendência do involuído é
mais vasta ao longo do caminho da evolução. Se observarmos afundar tudo em direção ao AS. O primeiro purificará tudo que
o fenômeno não com referência a um só tipo social, econômi- tocar, o segundo contaminará tudo, destruindo os valores espiri-
co, político ou religioso etc., mas sim com critério biológico, tuais que o primeiro constrói. Enquanto a tendência constante de
podemos, elevando-nos sobre o particular, alcançar o univer- um é endireitar o AS no S, a do outro é de emborcar o S no AS.
sal. Encontramo-nos, assim, diante de princípios que funcio- Dessa forma, podemos explicar o que sucede no mundo.
nam da mesma forma nos campos mais diversos, como sucede É assim que os ideais, observados do ponto de vista do in-
com o princípio já observado da autoridade e da obediência, voluído, podem parecer loucura antivital, perigo de morte, por-
presente tanto nas ordens religiosas como nos ambientes mili- que estão contra o seu mundo e pretendem desviá-lo para outras
tares, tanto no catolicismo como no comunismo. Descobrimos finalidades, que não são as do seu plano biológico, o qual re-
então que, todas as vezes que se estabelece uma estrutura hie- presenta todo o seu reino. Os ideais são, portanto, negados e re-
rárquica, típica das organizações humanas, cada coisa tem a pelidos, ou então bastante torcidos, para se adaptarem à Terra.
sua razão de ser, mesmo que ela seja bem diversa daquela ofi- Mas vemos também que, na sua luta para vencer em seu nível,
36 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
toda a sabedoria do mundo, quando observada do lado oposto, porque não podemos e não queremos mais viver nas trevas da
sob o ponto de vista do evoluído, pode parecer igualmente lou- ignorância. O mundo tem necessidade de uma visão orientadora
cura antivital, porque seguir quimeras, com resultados transitó- global, que satisfaça sua sede de conhecimento e a sua necessi-
rios e fictícios, não conduz à ascese, que é o objetivo da vida, dade de sábias diretivas, inspirando-lhe confiança. Se religião e
nem à afirmação no plano espiritual, que é o mais importante. ciência não se aliarem para alcançar tal visão, tudo se afundará
Então, para seguir em direção ao alto, ele despreza e repele a em nós, porque, com uma ansiedade de adultos, mais exigentes
sabedoria do mundo, que somente é reconhecida de acordo com no conhecimento do que as crianças, as trevas, para nós, são
o ponto de referência escolhido para o seu julgamento. É fato muito mais insuportáveis do que foram nos séculos passados,
concreto que cada um quer e deve, antes de tudo, realizar-se no quando a falta de maturidade tornava possível vivermos num
seu plano de evolução, conforme a sua própria natureza. estado de ignorância, inconscientemente tranquilos.
Queremos aqui provar positivamente, e não só pela via da Os conceitos expostos acima nos permitem trazer o ideal e a
fé, que seguir o ideal não é aquela estupidez que o mundo crê e espiritualidade ao seio da ciência e de seus critérios positivos,
sustêm nos seus juízos. Por isso enfrentamos o problema dessa pois dão um significado biológico a estes valores superiores,
forma. Com algumas afirmações avançadas, escandalizamos pertencentes a um plano de existência mais avançado, que o ser
possivelmente os espíritos sensatos, mas, se realmente quiser- terá de alcançar por lei de evolução, concepção cientificamente
mos compreender a realidade, é necessário ter coragem de en- lógica e aceitável. Assim se explica racionalmente a função bio-
cará-la de frente, em todos os seus aspectos, mostrando inclusi- lógica das religiões, da ética, do direito e das diversas institui-
ve aqueles sobre os quais se costuma calar e deles dizendo o ções sociais, mostrando-se o porquê de tudo existir em relação
porquê. Quisemos permanecer positivos, porque só assim se aos fins que a evolução da vida quer atingir com tais meios. Tu-
podia dar ao ideal e à biologia do espírito as bases sólidas que a do, portanto, é biologia, sendo que cada manifestação da vida
ciência requer, capazes resistir à crítica dos inimigos deles. individual e social representa uma posição ao longo do caminho
É natural que o ideal, ao descer no ambiente terrestre, base- do progresso evolutivo. Então, enquadrado assim em função das
ado na luta, seja entendido e utilizado em proveito do involuí- leis da vida, tudo é entendido e, portanto, resolvido com critérios
do que nele vive, ficando assim reduzido a uma mentira. Outra antes de tudo biológicos. Esta realista concepção biológica nos
coisa não se lhe pode pedir. Como se pode pretender que um explica a conduta humana em muitos de seus aspectos, além das
tipo biológico AS se torne de repente um tipo S? Como é pos- preconcebidas abstrações filosóficas e teológicas.
sível que um tipo AS, que foi construído com a evolução ter- Este conceito constituirá uma psicanálise da humanidade,
restre e que ainda está situado ao nível da biologia animal, po- para eliminar seus complexos atávicos, como o instinto bélico,
nha-se a viver o Evangelho, se, por atávica experiência, pro- a ganância, o espírito de domínio, a estupidez do orgulho, a in-
fundamente impressa no seu ser, ele sabe que, desarmando-se saciabilidade do gozo etc., os quais, tendo sido assimilados no
como o Evangelho quer, fica vencido na luta e, por isso, deve duro passado, constituem, de agora em diante, defeitos antivi-
morrer? Como se pode pretender que a vida aceite num nível tais. Compreender finalmente, sem hipocrisias e ilusões, como
biológico inferior aquilo que, pelo fato de pertencer um nível a vida verdadeiramente funciona, significa não somente tentar
biológico superior, resulta antivital em um nível inferior, no inteligentemente não incorrer mais, por inconsciência, em mui-
qual o Evangelho, como todo ideal superior, lei do futuro, re- tos erros loucos, que depois é necessário pagar duramente, mas
dunda em um absurdo biológico? Se a maioria costuma somen- também realizar ao mesmo tempo uma purificação dos pecados
te pregar o Evangelho, como não se limitar apenas a seguir a herdados do passado e uma retificação psicológica, para não
corrente que o uso impõe? E isso sem jamais admitir que o cometê-los mais no futuro. Para isto, por exemplo, concorrerão,
Evangelho possa ser tomado a sério e que exista para ser vivi- sem estarem mais separados como inimigos, o confessor de um
do. O involuído, ao contrário, com plena convicção, pensa em lado e o psicanalista do outro, mas um confessor perito inclusi-
evadir-se dele honrosamente e, assim, fabrica para si mesmo ve em psicanálise, que possua uma consciência ética da espiri-
um manto de hipocrisia. O homem são e normal sabe muito tualidade, da filosofia e das religiões, a fim de ser, além de mé-
bem que o Evangelho, integralmente aplicado, representa um dico da psique, também dirigente de consciências. Quando ti-
perigo de vida para ele, que tem, portanto, direito à legítima vermos sinceramente analisado e compreendido tudo que nas
defesa. Sendo assim, se a revolta declarada é condenada, se- religiões se tornou emborcamento do ideal a serviço da anima-
gundo a moral biológica do seu plano, não há razão para que lidade, muito mal poderá ser superado e eliminado.
ele não deva recorrer ao engano. Eis como o Evangelho, na Quando se compreender o significado do método da fé,
Terra, pode transformar-se numa escola de hipocrisia. usado pelas religiões, os racionalistas da ciência não poderão
A verdadeira conclusão é que, se queremos evoluir, deve- mais condená-lo. A fé tem potência criadora. Portanto tudo
mos passar das zonas que gravitam em direção ao AS para as aquilo em que acreditamos existe no mundo espiritual. A fé
que gravitam em direção ao S, superando a biologia do animal, abre as portas da alma em direção a mundos superiores e tem,
para nos tornamos cidadãos da biologia do espírito. Trata-se de assim, o poder de nos fazer sentir aquilo que, de outro modo,
começar a viver em função de outras finalidades. Hoje vive-se ficaria escondido no ultrassensível. Quando o homem, para
mais ou menos animalescamente. É necessário transformar a evoluir, deve resolver o problema de conquistar um futuro que,
tremenda vontade de viver que existe em todos nós numa von- por ser supernormal, é desconhecido para ele e, sendo-lhe
tade de evoluir, porque evoluir é o que dá significado e valor à apresentado apenas no estado nebuloso de ideal, ainda necessi-
vida. O supremo imperativo ético é convergir todos os esforços ta concretizar-se em formas que o fixem à vida humana na Ter-
para evoluir em direção ao ponto Ômega, dado pelo S, o que ra, não há outro sistema, caso se queira avançar, senão anteci-
dá, também cientificamente, um significado profundo e um va- par a realização da existência daquele ideal, fazendo-o apare-
lor superior à vida. É contraproducente, na economia do indiví- cer na mente do indivíduo, através de imagens que o represen-
duo, viver só em função de limitadas realizações terrenas, imer- tem e o fixem com sua repetição, conduzindo-o paralelamente
so na biologia animal, na estupidez de uma luta de todos contra a manifestações exteriores que o expressem. Ora, este é o mé-
todos, para matar e ser morto. A ciência deve entrar na vida pa- todo praticado pelas religiões para a descida do ideal na Terra,
ra dirigi-la com inteligência. Em nossos pensamentos e ações, através de lenta assimilação consuetudinária, por via interior e
devemos nos mover orientados pelo conhecimento. Religião e exterior, mental e material. Obtém-se assim uma convergência
ciência devem cooperar para atingir, por caminhos diferentes, entre a fé e a prática, com ambas alimentando-se reciproca-
este conhecimento, de maneira a iluminar a nossa existência, mente, de maneira a levar o indivíduo a realizar o ideal em si
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 37
mesmo, como qualidade própria, construindo assim a sua indi- religiões, mas também o ponto de convergência da evolução de
vidualidade sempre mais completa e perfeita. todas as formas da existência, mesmo aquelas para nós inima-
Podemos descobrir nas religiões uma sapiente técnica cons- gináveis, não redutíveis aos limites das nossas concepções ter-
trutiva de formas mentais superiores, que acabam por se fixar restres e muito menos às de uma religião particular. Nisto Tei-
definitivamente na vida, levando-a um passo adiante no cami- lhard deve ter obedecido à necessidade que lhe foi imposta pela
nho da evolução, que de agora em diante, como já vimos, cons- sua posição social, de não se afastar de certas conclusões pré-
titui um processo de espiritualização. Por longa experiência, as fabricadas nas suas investigações filosóficas. Trata-se de um
religiões tentaram aperfeiçoar esta sua técnica, de modo que es- antropomorfismo de tipo bíblico, ao qual não se pode reduzir a
ta pudesse continuar a funcionar mesmo quando os instrumen- vastidão das concepções cósmicas hoje atingidas. Tal posição,
tos humanos dos quais ela dispõe para a administração do culto então, não é científica. Não se pode limitar Deus e monopolizá-
fossem imaturos, incapazes de compreender qualquer ideal. Isto Lo em exclusividade, fechando-O dentro de uma religião parti-
prova que, na prática, mesmo o ideal, se quiser descer à Terra, cular. Era possível chegar a tal redução com o Deus antropo-
deve ter em conta a realidade biológica, considerando o materi- mórfico do passado, mas já não o é mais hoje, com o Deus de
al humano no estágio em que se encontra. dimensões cósmicas que a ciência nos faz entrever.
Voltemos com um exemplo ao tema da fé e à sua potência No entanto é possível explicar biologicamente a razão deste
criadora. Quando acreditamos firmemente que as palavras do caso, referindo-se ao conceito já afirmado acima, segundo o
sacerdote, ao consagrar a hóstia, fazem o espírito de Cristo des- qual podemos entender a conduta humana, reportando-nos às
cer nela, transformando assim a sua substância, então, mesmo leis biológicas que dirigem o homem, mesmo sem o seu conhe-
provando-se quimicamente não ter havido nenhuma transubs- cimento. Ele as obedece porque elas formam a sua natureza, de-
tanciação, vemos que a nossa fé criou um fato positivo, com finem o seu biótipo e constituem as leis do seu plano de vida. E,
existência verdadeira, fazendo a nossa representação mental do como já nos referimos, o homem não pode fugir a elas, senão
Cristo estar bem localizada naquela hóstia, como uma presença evoluindo para um nível evolutivo superior. Ora, a lei do nível
real Dele. Ora, no plano mental, para quem acredita, basta isto humano atual é o egocentrismo, e o homem deste tipo concebe
para existir de fato o Cristo naquele lugar. É uma existência a existência em forma egocêntrica, vendo-a em função do pró-
subjetiva, mas quando ela é multiplicada por um grande núme- prio eu ou do grupo do qual ele faz parte. Sendo assim, ele ten-
ro de pessoas, torna-se uma existência objetiva, baseada sobre de a reduzir tudo a si próprio, concebendo tudo antropomorfi-
um íntimo testemunho coletivo. Assim, avizinhamo-nos deste camente, em função de si mesmo e do seu grupo. É assim que
problema com a psicologia positiva da ciência. A presença ob- podemos explicar como uma religião tende a reduzir e fechar
jetiva de Cristo, espacialmente localizado num suporte material, nos seus limites o ponto Ômega, para aprisioná-lo no seu pró-
é outra questão, e aqui não entramos nela. Mas é certo que a re- prio egocentrismo, fazendo-se centro do universo. Consideran-
alidade objetiva absoluta não existe nem mesmo para a ciência, do esta forma mental, podemos entender como esta necessidade
porquanto a presença do observador interfere na observação. foi imposta a Teilhard pelo grupo, sob pena de ser expulso dele.
Quisemos assim observar os métodos das religiões. Eles A este fato se deveu a necessidade de lhe terem sido impostas
procuram ser até hoje um meio de educação, um instrumento de semelhantes premissas às suas investigações filosóficas.
evolução. Amanhã, se elas souberem atualizar-se com o pro- E Teilhard foi obediente. Quem sabe mais é também mais
gresso do pensamento humano, expresso pelo avanço da ciência razoável, encontrando-se acima do mundo e dos seus juízos.
inclusive no terreno delas, poderão constituir, no seio da pró- Ele chamava ao seu caso de “o cisma entre a metade do mundo
pria ciência, um elemento indispensável da biologia do espírito. que se move e a outra metade que não quer avançar”. Teilhard
◘◘◘ era uma antecipação do futuro e queria andar para frente. O
Encontramos em Teilhard um outro conceito importante. Ele grupo é feito para permanecer na Terra, nas posições conquis-
sustenta a existência de um ponto Ômega, em direção ao qual tadas, gozando dos seus frutos, sem trabalho e sem perigos, e,
todo o universo tende a evoluir. Mas este conceito, como Tei- mesmo quando maneja o ideal, o faz sobretudo em função da
lhard não poderia deixar de entrever, implica também em outro, Terra, que é o seu mundo. Sucede que muitos foram condena-
segundo o qual este ponto Ômega é também o ponto Alfa, signi- dos nas mesmas condições de Teilhard, mas cada um, segundo
ficando isto que o ponto de chegada do transformismo deve sua conduta, revelou a sua natureza. O involuído, que vive no
coincidir com o seu ponto de partida. Teilhard não focou a sua nível do egocentrismo, revolta-se e separa-se do grupo, para
intuição sobre este conceito, mas certamente o viu, ainda que de declarar-lhe guerra, instalado no seio de um grupo inimigo. O
longe. Uma vez descoberto pela ciência o fenômeno da evolu- evoluído, que vive no nível espiritual, obedece e permanece no
ção, ela não pode deixar de ter de admitir também o fenômeno seu posto de dever, fiel aos seus próprios compromissos, mas
oposto, isto é, a involução. O processo não pode ser apenas uni- não abandona a sua ideia, pelo contrário, continua a vivê-la
lateral, somente evolutivo, sem conter também, para ser comple- mais intensamente, uma vez que não se pode coagir o espírito,
to e equilibrado, a sua parte inversa e complementar, compondo- e a esconde dentro de si, compensando-se assim de não poder
se assim, em correspondência ao período evolutivo, também do comunicá-la aos outros, que não compreendem. Quando é ne-
respectivo período involutivo. Eis-nos aqui perante a teoria da cessário, deve-se respeitar a vontade do próximo de permane-
queda, que voltamos a encontrar nas religiões e nas suas revela- cer na ignorância. Quem tem uma vida interior sabe viver, ain-
ções. Esta é a teoria do S e AS, por nós sustentada e detalhada- da que seja apenas interiormente (e que vida!), mesmo quando
mente explicada, que forma o esqueleto do processo transfor- lhe seja negado manifestar-se exteriormente. Quando não é
místico do universo. Teilhard não chegou a declarar explicita- possível realizar o trabalho de fazer evoluir os outros, realiza-
mente que esta é a linha máxima do transformismo do ser, mas se o trabalho de evoluir a si próprio. Dizia Teilhard numa carta
cada palavra sua concorda com esta concepção. É em direção a ao Geral dos Jesuítas: “Não posso renunciar a mim mesmo.
ela que, como guiado por um pressentimento, ele se orienta e a Mas já não me ocupo de propagar as minhas ideias, senão de
presume, mesmo sem expressá-la. Ele não podia deixar de pres- aprofundá-las pessoalmente”.
sentir esta verdade, porque ela está escrita na lógica dos fatos, Deste modo, permanecem intactas nele a sua concepção e
para que seja vista por quem saiba ler no seu íntimo significado. convicção. De semelhantes visões profundamente sentidas, fru-
Há, porém, o fato de que, segundo Teilhard, o ponto Ôme- to de raciocínio e intuição, nasce uma segurança que ninguém
ga somente seria alcançável através do catolicismo. No en- pode perturbar. Além disso, a compreensão no silêncio aumenta
tanto este não é apenas o ponto para o qual convergem todas as a convicção, porque o silêncio nos induz a expandir-nos em
38 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
profundidade em vez de em superfície, de modo que a visão se não pode deixar de segui-lo. Os mais atrasados buscam rique-
torna mais clara e se potencializa. Também aqui funcionam as zas, honras e poderes, enquanto os mais evoluídos se lançam a
leis, que, embora situadas no campo psicológico e espiritual, conquistas de outro tipo. O cientista estuda a natureza, para
são sempre leis biológicas, das quais não se pode prescindir compreender os seus segredos. Os grandes navegantes desco-
nestes casos. Mas quem atua segundo os sistemas humanos briram novos continentes. Agora pretende-se alcançar o mundo
comuns, não pensa em tais leis, deixando de levar em conta as planetário. De mil maneiras e situados em diversas alturas, to-
reações derivadas delas. A compressão aumenta a reação, e dos, intimamente, querem subir, de modo que a vontade de vi-
quando esta não pode desabafar-se para o exterior, porque lhe ver é, na realidade, vontade de evoluir. Elevar-se é a razão e o
está impedido o caminho ou porque o indivíduo, por ser evoluí- verdadeiro conteúdo da vida. É para isso que existimos.
do, recusa as revoltas terrenas, então a reação se desabafa em A nossa humanidade está entrando agora na fase psíquica.
direção ao interior, exaltando o tom da vida espiritual, potencia- Antigamente, os pouquíssimos que pensavam dirigiam os po-
lizando-a a tal ponto, que, por si só, constituirá toda a vida do vos como se estes fossem rebanhos de ovelhas. Hoje, todos
indivíduo. Aproveita-se então a derrota exterior, terrena, para começam a pensar um pouco. Descobrem-se valores e dimen-
realizar por si mesmo um progresso interior profundo e viver a sões novas, pensando-se de uma maneira diferente daquela dos
sua própria existência num plano evolutivo mais elevado, subs- nossos antepassados. Mesmo sendo egoístas e inimigos, ainda
tituindo a compressão material e a derrota terrena por uma ex- assim nos vemos obrigados a viver e pensar cada vez mais cole-
pansão espiritual e uma vitória sobre o mundo. Isto é o que sig- tivamente, organicamente unidos. Forma-se então uma enorme
nifica a obediência de Teilhard de Chardin. massa de vida e pensamento, que envolve e domina todo o pla-
A vida é evolução, e evolução é conquista, implicando, co- neta. O homem se apropriará dos segredos e das forças da natu-
mo tal, luta e esforço contínuo. Onde o homem de tipo corrente reza. É em direção a uma imensa vitória da potência do pensa-
se compraz em desperdiçar as suas energias em atritos recípro- mento que se quer orientar o caminho da vida. A maior desco-
cos, até chegar às destruições bélicas entre os povos, o homem berta do século é haver entendido o imenso trabalho de desco-
evoluído transporta este espírito de luta e esforço conquistador brimento que é necessário fazer ainda.
a um terreno biologicamente mais avançado e mais intensamen- No princípio, tudo isto não foi mais que um confuso conjun-
te criador. Ele é o maior guerreiro, mas como evoluído, em to de obscuros mas trágicos esforços realizados pela vida, para
forma pacífica. É o maior revolucionário, mas revolucionário subir, e pelo pensamento, para reencontrar-se e manifestar-se
do pensamento. A evolução deverá levar à paz mundial, ponto cada vez mais conscientemente. Tudo feito às cegas, sem se sa-
que se encontra no caminho da ascensão do homem, pois favo- ber porque e para onde, movido por um irresistível instinto, co-
rece sua própria conservação e sobrevivência, objetivo da sua mo o de um cego que, mesmo não vendo, sente que a luz existe
vida. Semelhante paz, no entanto, não será inércia, com a sus- e a procura. Quem deu à vida este anseio de progresso, esta ân-
pensão da luta e do esforço, mas sim a sua continuação em di- sia de evoluir, de expandir-se, de firmar-se contra tudo e contra
reção a objetivos superiores, a fim de que a vida, seguindo sua todos os elementos desencadeados, de enfrentar os animais fero-
lei, não se detenha nunca no seu trabalho de conquista e ascen- zes, o terror do mistério e as trevas da ignorância? No entanto,
são. A isto nos querem levar as leis da vida. E foi neste sentido, apesar de tantas dificuldades, esse impulso soube conduzir a vi-
o qual revelou a sua natureza, que Teilhard trabalhou para a sua da até aqui, formando o homem, no qual começa a brilhar a luz
elevação, assim como para a elevação do mundo. do pensamento. Como podia, por evolução, este “mais” surgir
Esta ideia, dada pelo conceito de evolução, foi combatida a do “menos” que o precede, se este “menos” não houvesse conti-
princípio pelo próprio cristianismo. No entanto ela nos deveria do alguma vez este “mais”? Seria como se, escondida em uma
encher de esperança e entusiasmo, porque contém a promessa de semente, não estivesse contida a planta a ser restituída à luz. Eis
um grande futuro. Só ela já bastaria para nos dar a coragem de aí a maravilha. A evolução, pelo aperfeiçoamento das formas fí-
enfrentar a vida com todas as suas lutas, perigos e dores, porque sicas, faz emergir uma qualidade nova do ser, entrando numa
tudo isso leva a uma superação que, pelo seu valor e posição, sua fase superior, dada pelo pensamento. É neste sentido que ela
representa uma melhoria grandemente recompensadora. No seu está dirigida e é para lá que nos levará. Assim como os primei-
progresso, parece que a vida vai tateando no escuro. Ela tenta, ros selvagens do planeta não podiam imaginar a que ponto che-
falha muitas vezes e tenta novamente, mas, no fim, a vitória é garia o homem com a evolução até hoje, também não podemos
sua. Provam-no as posições superiores que conseguiu conquis- imaginar, hoje, até onde nos levará um dia a evolução. Perante
tar. Mas seriam estas tentativas verdadeiramente cegas ou, pelo tais perspectivas, vale verdadeiramente a pena viver.
contrário, estariam intimamente iluminadas por uma luz que as O estudo do homem pré-histórico ensinou muito a Teilhard,
dirige? Esta luz não aparece, porque está escondida, sepultada e ele nos conta a visão que o impressionou. A partir daí, encon-
nas profundidades do inconsciente, que parece treva, mas que, tramos os principais pontos de contato entre a Obra e o pensa-
apesar de envolvido na obscuridade, é luz, e luz que luta para se mento de Teilhard de Chardin.
libertar desta obscuridade, para se tornar novamente resplande- A crise do mundo moderno é, no fundo, uma crise de pen-
cente em sua pureza, para se redimir do seu culpável desmoro- samento, devida à sensação do vazio resultante da derrocada
namento nas trevas da ignorância. Não é este o grande drama do das velhas metafísicas, operada pela ciência. Antigamente, dada
ser? As religiões captaram este ponto central, e ninguém é mais a formas mental do seu tempo, elas bastavam para dar uma res-
evolucionista do que elas, mesmo quando negam a evolução. posta às grandes incógnitas, permitindo deduzir uma ética sufi-
Nada pode cancelar esta lei de ascensão, porque ela se encontra ciente para dirigir a vida. Essas construções, ainda que não es-
inscrita na vida e funciona sem que ninguém possa detê-la, in- tivessem comprovadas cientificamente e não correspondessem
dependente de tudo e acima de qualquer juízo humano. à realidade, chegando até mesmo a deixar o mistério em pé,
Não há forma de existência que não esteja enquadrada ao confortavam e civilizavam, induzindo ao bem, prometendo aos
longo do caminho desta grande marcha evolutiva do universo. bons o apoio de Deus. Com a perspectiva de um prêmio ou de
O homem chegou finalmente ao ponto de se dar conta deste fe- uma pena, apoiando-se no instinto utilitário da vida, elas edu-
nômeno, perguntando-se aonde levará amanhã este imenso mo- cavam segundo um princípio de justiça, impondo, segundo ele,
vimento. Geologia e Paleontologia mostram-nos o caminho determinadas normas de conduta, ao mesmo tempo em que sa-
percorrido, que é fatalmente continuado a cada minuto que pas- tisfaziam as necessidades psicológicas das massas, tirando-lhes
sa. Não existe ser algum que não faça parte deste caminho. To- o medo do desconhecido, do fim da existência no nada, assegu-
dos vivemos canalizados dentro dele, e cada um, a seu modo, rando a tão desejada continuação da vida e dando a ela uma me-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 39
ta. As religiões cumpriam assim uma função de proteção e de e fixar-se na mente, nos costumes e nas instituições humanas,
progresso, biologicamente suficiente para justificar a sua pre- começando por uma aspiração, por uma necessidade indefini-
sença em nosso plano evolutivo. da, e terminando por codificá-la, para continuar em seguida
Hoje, a ciência destruiu estas velhas construções metafísicas com o mesmo processo, avançando cada vez mais. Assim a
e, sem saber substituí-las por outras que possam desempenhar a humanidade acaba sendo moldada pelo ideal, seguindo e rea-
mesma função, deixou deste modo o mundo com muitos pro- lizando visões cada vez mais elevadas.
blemas sem solução. Teilhard quis satisfazer esta necessidade Este instinto, imposto pelas leis da vida para evoluir, exis-
humana de ter uma resposta a essas interrogações, procurando tiu sempre, mas é natural que, com o progresso, exija uma sa-
dar uma satisfação às próprias exigências psicológicas, de não tisfação cada vez mais aperfeiçoada. Em suas fases primitivas,
mais se basear em sistemas, conceitos e terminologias tradicio- o homem não podia adorar senão um Deus feito à sua imagem
nais, e sim na ciência. Fez então o que os homens de ciência e semelhança, porque não sabia conceber algo melhor. Atual-
não ousam, ou seja, levou-a até às suas consequências metafísi- mente, o Deus cósmico, que a ciência nos deixa entrever, já
cas e espirituais, entrando no campo das religiões e conseguin- não cabe dentro das velhas concepções religiosas. As nossas
do assim satisfazer essas necessidades psicológicas, mas com a ideias evoluem intimamente relacionadas ao progresso da
vantagem de oferecer uma resposta menos empírica e mais po- nossa capacidade de concepção. A religião de amanhã se unirá
sitiva, produto da lógica e dos fatos e, portanto, mais aceitável à ciência e deverá se basear em postulados racionalmente de-
ao mundo moderno, porque mais convincente. Este é, no pre- monstrados, se quiser ser aceita.
sente estado de desenvolvimento do pensamento humano, o Antigamente, essa necessidade não existia, porque não
único trabalho que se podia fazer atualmente e que temos para- existia a ciência nem a respectiva forma mental moderna. Bas-
lelamente tratado de fazer. Hoje, a obra de Teilhard nos confor- tava a tradição, com um vasto acordo de aceitação sobre de-
ta, mostrando-nos a necessidade de se chegar a uma ciência terminadas soluções, para que o instinto religioso ficasse satis-
mais completa e a uma religião mais demonstrada. feito. A crença se baseava na confiança. Era suficiente que al-
Assim a ciência se torna metafísica e a metafísica se torna gum filósofo ou teólogo dissesse algo, para que isto fosse acei-
científica. As conexões entre os elementos do plano físico en- to como verdade. A humanidade ainda infantil contentava-se
contram correspondência com aquelas que existem entre os com verdades já feitas, confeccionadas já prontas para uso, e
elementos do plano espiritual. Entre os diferentes níveis de não podia analisá-las, pois não sabia nem queria pensar, prefe-
existência há uma ressonância dos mesmos princípios. Damo- rindo delegar as faculdades do pensamento aos dirigentes. A
nos conta de que nos encontramos num universo no qual os fe- vida funcionava então fora das dimensões do pensamento, que
nômenos estão orientados em direção a um fim, fundidos num representava a barreira ante a qual se detinha a maioria. Gozar,
funcionamento orgânico unitário, iluminados por um pensa- roubar e matarem-se uns aos outros, eram as ocupações prefe-
mento interior, que nos mostra seu significado e sua razão de ridas, para as quais o homem se sentia mais bem equipado. A
ser. Teilhard intuiu, como nós, a presença de diferentes planos forma mental era simples, e as necessidades psicológicas, limi-
biológicos, com suas próprias leis, que são relativas a cada um tadas. Para iluminar o mundo, eram suficientes as intuições de
deles e que dirigem neles o funcionamento do ser. Nos diferen- poucos homens geniais. O rebanho, só para não ter de pensar
tes níveis, estas leis correspondem umas às outras e são encon- muito, seguia satisfeito, porque as religiões também lhe ofere-
tradas harmonicamente coordenadas, conectadas analogicamen- ciam concepções antropomórficas fáceis de entender, que cor-
te, revelando-se afinal fundidas no seio de uma lei universal respondiam aos seus gostos. As massas e os dirigentes, como
única, que representa o pensamento de Deus. A visão é unitária, eram do mesmo nível evolutivo, estavam de acordo, e este
orientando e compreendendo tudo dentro de si. consentimento, universal porque era produto do mesmo bióti-
Abarcando tudo, esta visão nos conduz do caminho diver- po, era suficiente para fazer a verdade. Em relação ao desen-
gente do fracionamento na análise a um caminho convergente volvimento da vida naquele momento, tudo ia bem. Mas, uma
em direção à síntese. É assim que nos foi possível, como o foi vez que ela avançou, aqueles problemas e necessidades avan-
também para Teilhard, sair do isolamento da especialização çaram também, exigindo soluções e satisfações que o passado
num só problema, para enfrentar a questão em seu conjunto – já não sabia mais dar. Uma vez suprimido o consenso coletivo,
social, religioso, econômico, psicológico, científico etc. – por- base do valor da tradição, caiu também aquela base sobre a
que, a partir da orientação nas linhas gerais, éramos guiados na qual se apoiavam as religiões. Deste modo, elas correm o risco
descida em cada campo, o que não seria possível, se não se ob- de permanecer na Terra só para uso dos primitivos ainda so-
tivesse primeiro uma visão global do todo. Isto nos permitiu es- breviventes, sem seguidores cultos e convictos, e ficar assim
tudar o homem na sua realidade integral, formada pelo conjunto fora da vida, como ruínas mortas do passado.
do seu ser físico-psíquico, vendo-o como ele verdadeiramente Eis o valor das metafísicas de tipo científico que Teilhard
é, e não fracionado e abstratamente dividido em compartimen- e a nossa Obra anunciam e preparam. Sobre elas terão de se
tos isolados, abstração esta que pode ser útil para se efetuar es- basear as religiões, porque, hoje, somente tais metafísicas
tudos, mas que não corresponde à realidade. Assim ciência e podem satisfazer as novas necessidades psicológicas da hu-
moral, integrando-se alternadamente, protegem-se e comple- manidade. O instrumento religioso permanece, mas agora,
tam-se nos aspectos fisiológicos, religiosos, econômicos, soci- tendo-se aperfeiçoado, já não pode aceitar as verdades empí-
ais, metafísicos etc., terminando por se unirem num funciona- ricas que antes o saciavam. Para os novos estômagos, é ne-
mento coletivo único, fundamentalmente unitário, como tam- cessário alimento diferente. O instinto religioso é um impulso
bém unitária é a visão a que se chega do homem integral, visto em direção ao alto, tendendo para o S (ponto Ômega), subsis-
na sua totalidade e concebido como uma síntese. tindo por isso em todos os planos de evolução, ainda que de
Uma ciência que se faz metafísica e uma metafísica que se acordo com a forma, as exigências e a perfeição de cada um
faz ciência, podem satisfazer de um modo mais completo o deles. E tal instinto subsistirá até que se sacie completamen-
instinto religioso do homem. Este instinto tem a sua função te, alcançando a meta do caminho evolutivo, que é Deus. O
biológica, porque representa um impulso para o supernormal instinto religioso responde a um princípio biológico e existe
que nos espera no futuro e, enquanto expressa uma tendência em função da evolução. Assim se explica Teilhard no mo-
a realizá-lo, constitui uma antecipação de um estado que a mento atual, permitindo-nos compreender a importância bio-
evolução ainda não realizou, mas que já existe na sua fase lógica que, devido à sua função evolutiva no seio das leis da
preparatória de aspiração e de ideal, em vias de concretizar-se vida, têm a sua obra e outras do seu tipo.
40 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
Os seguros e tranquilos repetidores das coisas velhas, se V. A EVOLUÇÃO DAS RELIGIÕES
bem que mais perfeitos na técnica e exatos na forma, não co-
nhecem o trabalho dos criadores do novo, ignorando a difi- Antigamente, as diretivas da vida humana apoiavam-se so-
culdade que significa expressá-lo com propriedade nos velhos bre verdades absolutas, que não podiam ser modificadas. Isto
termos, feitos para outros conceitos, e se fazer entender por correspondia à concepção estática que se fazia do mundo na-
quem, sustentando que tudo foi já pensado, dito e resolvido, quele tempo, considerando-se a Terra como o centro imóvel do
acredita que nada se pode acrescentar. Entre o velho e o novo universo. Hoje a humanidade, atingindo uma forma mental di-
é sempre difícil o entendimento. Trata-se de duas funções ne- nâmica, que corresponde à concepção de uma Terra movendo-
cessárias, mas situadas em posições contrárias. Fidelidade à se dentro do movimento do universo, foi levada à ideia de uma
verdade é o termo que muitos usam para denominar a incapa- verdade progressiva e relativa, em constante evolução. Tudo
cidade do velho de sair do tipo de estrutura segundo a qual foi então é concebido como um vir-a-ser. Até mesmo a existência é
construída a sua forma mental na juventude. O seu medo de se percebida como um transformismo que, assim como ela, não
mover e de se aventurar no abismo do mistério, querendo as- pode ser detido. É verdade que esta existência se realiza e se
sim deter o tempo e a evolução, é chamado de fé. Mas, junto a manifesta através de uma forma que a define e a fixa. Mas tam-
este tipo, existem também os dinâmicos, ardentes, conquista- bém é verdade que esta forma vai sempre mudando e, por isso,
dores de novos conhecimentos, ansiosos sempre de saber, permanece apenas por um período determinado, ficando limita-
descobrir e progredir. Trata-se de dois modos diferentes de da no espaço de um dado segmento ao longo da trajetória do
conceber, que, colocados perante o problema do conhecimen- tempo, esgotado o qual ela desaparece, para, depois de ter se
to, comportam-se de forma oposta. Assim, quanto mais igno- desfeito, aparecer sob outra forma. Trata-se, portanto, apenas de
rante é o indivíduo, mais crê saber tudo e possuir toda a ver- uma forma temporária, continuamente sujeita a desaparecer pa-
dade e tanto menos tem curiosidade por conhecer mais do que ra reconstruir-se. Eis que a existência de todas as coisas em
sabe. Perante o conhecimento, ele fecha as portas, como con- nosso universo está encerrada dentro da lei do tempo, que ja-
tra um inimigo. Pelo contrário, quanto mais sabe um indiví- mais deixa de marcar o ritmo do seu fatal transformismo, im-
duo, mais tem consciência de saber pouco e não possuir toda a pondo uma contínua renovação, indispensável para que se pos-
verdade, e mais curiosidade sente por conhecer mais do que sa realizar a evolução. Portanto, apesar de permanecermos agar-
sabe. Deste modo, o primeiro, porque gravita em direção ao rados às formas, tendo a ilusão de ser possível detê-las e, assim,
AS, resiste ao impulso da evolução para o S, enquanto o se- fazê-las permanecer como elas são, a experiência nos ensina
gundo, porque gravita em direção ao S, acompanha este im- que, na realidade, as coisas não são como as vemos manifesta-
pulso e, assim, sobe em direção à luz. Colocá-los em contato rem-se, pois o que delas existe de fato é apenas a sua duração, a
significa opor o positivo ao negativo, colocar frente a frente sua trajetória no tempo, cujo ritmo, como um relógio, marca o
dois pensamentos opostos. Cada um deles não pode fazer ou- passo do seu incessante transformismo.
tra coisa, senão continuar sendo aquilo que é, repetindo o que, A mente humana abandonou hoje a ideia do absoluto imó-
dado o seu modo de conceber as coisas, para ele é a verdade. vel para colocar-se no relativo em movimento, porque se deu
Um a entende como um grande impulso para frente, enquanto conta, por amadurecimento evolutivo, que esta é a realidade da
o outro a julga como uma zelosa conservação do passado. As- vida. Este fato deslocou as velhas bases das religiões, fundadas
sim como a forma dinâmica desejaria anular a estática, a for- em outros conceitos. Entretanto elas se mantêm com a velha
ma estática desejaria anular a dinâmica. forma mental, resistindo assim às novas tendências. Nasce daí
É necessário admitir que existem cérebros diferentes, que um contraste entre as duas concepções e exigências opostas,
pensam de maneira diferente, cada um podendo funcionar so- que são dificilmente conciliáveis, pelo menos enquanto a evo-
mente no âmbito da sua forma mental e sendo incapaz de en- lução não tiver terminado de atravessar a presente fase de tran-
tender a linguagem de outras psicologias, que se movem em sição. As massas foram educadas segundo a primeira forma
função de outros pontos de referência. Pode suceder então que mental, tendo registrado e assimilado este modo de conceber, e
se algo, para um, significa uma grande verdade, para outro isto não é fácil de mudar rapidamente, pois as ideias têm uma
constitui palavreado sem sentido. Destes dois raciocínios dife- vontade própria, que, uma vez lançada numa direção determi-
rentes, cada um aprendeu, possui e, por isso, gosta de repetir o nada, tende a continuar nela por inércia. As mentes, para terem
seu, com ele medindo e julgando tudo. Quando dois interlocu- uma sensação de segurança e não se equivocarem na formação
tores discutem, é porque falam duas linguagens diferentes e, da própria conduta, têm necessidade de crer que alcançaram a
por isso, não se compreendem. Isto é o que sucede entre ciên- última verdade, absoluta e imóvel, pois somente uma tal verda-
cia e fé. Cada uma delas fala a sua língua, que o outro lado de parece capaz de garantir uma segurança na qual se confie to-
não compreende porque fala uma diferente, pensando com ou- talmente. De outro modo, seria como querer basear a ética ape-
tra forma mental. Para entender as duas, seria necessário co- nas em princípios relativos, flutuantes e, portanto, discutíveis.
nhecer as duas línguas e possuir as duas estruturas psicológi- Para merecer a obediência destas mentes, necessita-se de uma
cas, condição na qual se compreende então que os dois pen- verdade imóvel, dogmaticamente fixada, absolutamente segura
samentos não são inimigos, mas sim complementares. Porém e definitiva nas suas afirmações. Uma verdade que mudasse e
eles permanecem inimigos, porque cada um conhece só o seu se contradissesse não seria mais verdade. Ela deve, como é
idioma, e não o do outro. Teilhard conhecia os dois e tratou de apropriado à psicologia humana, ser sempre verdadeira, e não
fazer das duas verdades uma única. Mas os seus leitores e juí- hoje sim e amanhã não. Então, para estas mentes, a verdade de-
zes continuaram entendendo apenas uma delas e, portanto, ve ser infalível comando de Deus, que já sabe tudo, e não uma
condenando-o ou exaltando-o segundo o que, de acordo com progressiva aproximação humana daquela verdade.
seu próprio idioma, podiam dele assimilar. Assim cada juiz, No entanto a mente, evoluindo, começou a perceber que as
segundo as suas categorias mentais e os seus quadros psicoló- coisas estão situadas diversamente. Ela compreendeu então que
gicos, escandalizou-se ou entusiasmou-se conforme as verda- o ser humano não possui absolutos e que ele, de fato, não sabe
des que formavam o seu próprio patrimônio mental. Podemos, senão atingir progressivamente uma sucessão de valores relati-
deste modo, explicar a adversidade dos juízos com respeito a vos, os quais, através da evolução, aproximam-no cada vez
Teilhard e a demasiada demora, não obstante a grande impor- mais do absoluto. Este, no entanto, é somente o ponto final desta
tância da sua Obra e a das outras do seu tipo, para o seu reco- ascese, encontrando-se hoje muito longe de ser alcançado. E
nhecimento e aceitação pelo mundo. ainda bem longe dele estão também as religiões, que, no entanto,
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 41
por representarem um pensamento sobre-humano, deveriam sa- se de leis biológicas que funcionam para todos os seres situados
ber tudo. Elas estão ainda cheias de mistérios e de pontos inde- no nível evolutivo em que se encontra a raça humana na sua
finidos a serem esclarecidos e definidos. Estão repletas de pro- média. Um exemplo disso está no fato de que a base mais forte
blemas não resolvidos, que precisam ser resolvidos e que vão de uma amizade é a presença de um inimigo comum. A fraterni-
sendo resolvidos pela intervenção de mentes laicas e pelo ama- dade entre os seguidores de um grupo nasce e se reforça, quando
durecimento do pensamento humano, conforme o princípio se condenam os de outro grupo. Estas são as leis biológicas que
acima mencionado das verdades relativas e progressivas, atra- vemos aplicadas por toda parte. Passar de uma religião para ou-
vés de sucessivas aproximações de um absoluto ainda longín- tra não suprime o espírito sectário, que é qualidade humana.
quo para o concebível humano. ◘◘◘
Por isso nos encontramos diante do contraste entre duas Mas há ainda uma outra razão pela qual as religiões tendem
exigências opostas, que se tenta em vão conciliar. Eis a razão a ficar paradas nas suas posições do passado. Não é só a pre-
pela qual as religiões não possuem de fato o conhecimento ab- guiça de pensar ou o medo de que, tocando o velho edifício dos
soluto e total, capaz de oferecer uma solução definitiva. Se elas princípios sobre os quais se baseiam suas posições materiais,
o possuíssem, não haveria mais mistérios ou pontos discutíveis, este venha a desmoronar. A função das religiões não é somente
nem interpretações diversas da verdade, com perspectivas par- teórica, para afirmar princípios, mas também prática, para diri-
ticulares ou visões antagônicas, condenando-se uma às outras, e gir as consciências e educar as massas. Estas têm as suas exi-
o pensamento religioso estaria à frente, em vez de, como fre- gências psicológicas e, como são lentas para compreender e se
quentemente acontece, ter de ser arrastado pelo processo laico mover, conservam tenazmente as posições estabelecidas. É ao
da ciência. As religiões esperam e aceitam grande parte da ver- nível destas massas, adaptando-se às suas necessidades, que as
dade, proveniente da evolução da mente humana, que vai pro- religiões, se quiserem funcionar, devem descer, porque aquele é
gressivamente, por sua conta, conquistando e oferecendo expli- o material que elas têm de elaborar.
cações cada vez mais completas. Isto é comprovado pelo fato Ora, fazer descer àquele nível novidades repentinas, pre-
de que, hoje, as religiões não estão à testa do progresso do pen- tendendo deslocar subitamente os lentos movimentos consue-
samento humano, tendo a ciência acabado por seguir adiante tudinários, sobre os quais se baseia a técnica da assimilação
sozinha, deixando-as de lado, prescindindo delas como se não dos princípios destinados a fabricar o homem que vai substitu-
existissem. Isto é uma simples constatação do fato. ir o animal, pode ocasionar, em vez de progresso, anarquia e
Ora, o fato de não possuir o conhecimento não elimina, para desordem. Em vez de fazer progredir, uma inovação pode es-
as religiões, a necessidade de afirmar que o possuem. Elas de- candalizar. Pensa-se que Deus nunca deve mudar de critério.
vem sustentar que atingiram a verdade, enquanto apenas seguem Na realidade, porém, uma verdade, para ser aceita na Terra,
o caminho geral de alcançá-la através de progressivas aproxima- deve esperar que os cérebros amadureçam e, assim, tornem-se
ções, que aparecem pelo amadurecimento evolutivo das facul- capazes de compreendê-la. O fato de, a princípio, não ser ad-
dades mentais humanas. Apesar de tudo, as religiões também se mitida, prova que a verdade é relativa e não pode existir senão
encontram submetidas à condição de terem de caminhar, porque em função dos cérebros nos quais tem de penetrar. A base
não se pode existir senão caminhando, no entanto, ao mesmo concreta sobre a qual as religiões – apesar de possuírem ver-
tempo, creem e fazem crer que estão imóveis. De um lado, elas dades mais avançadas, recebidas por obra de videntes superio-
não podem mostrar que se transformaram, para não cair em con- res – apoiam na Terra suas verdades religiosas é o consenti-
tradição com os seus princípios absolutos e eternos. Mas, por mento coletivo, que, em vez de ser apenas uma afirmação teó-
outro lado, não podem deter o fluir do tempo, pelo qual elas, as- rica, tem uma existência real nas mentes e é aceito por parte
sim como tudo mais, são arrastadas e transformadas, não lhes das massas, formando uma corrente psicológica de fé capaz de
sendo possível escapar às leis da existência. É assim que, se não introduzir aqueles conceitos na vida. Estes, portanto, são ver-
quiserem ficar para trás em posições atrasadas, mesmo se decla- dadeiros enquanto gozarem de tal consentimento, sendo acei-
rando absolutas e imóveis, elas têm de se transformar, como to- tos pela corrente de pensamento. O paganismo, com seus deu-
das as outras manifestações da vida, seguindo a grande marcha ses e templos existiu como verdade, enquanto houve quem
da evolução, à qual nenhum ser pode subtrair-se. acreditou nele, porém, tão logo a humanidade deixou de crer
De tal contraste entre inovadores e conservadores resulta o nele, parou de existir e não foi mais verdade.
fato de que as religiões, ao invés de favorecer o progresso do Por isso, quando a crítica busca destruir a fé na qual as re-
pensamento, tendem, pelo contrário, a travar o seu desenvol- ligiões se baseiam, estas se rebelam, pois sabem que a destrui-
vimento. Assim o pensamento tem de avançar por si mesmo, ção desta base psicológica, onde elas estão apoiadas, irá matá-
com o seu próprio esforço, arrastando consigo o peso morto las e, assim, matará também a casta de ministros que as repre-
de quem, para não se mover e impedir os outros de avançar, sentam. Se cai a forma mental, cai também a religião que sobre
resiste, mas está pronto, quando lhe é conveniente, a aceitar as ela se baseia. O suporte é psicológico. Os princípios existem
novas verdades. Na Terra, as velhas verdades são defendidas na mente de quem crê, mas isto porque e somente enquanto
porque os princípios servem de base para manter posições que eles acreditam. Criar uma corrente psicológica diversa, signifi-
ninguém está disposto a abandonar. A resistência é devida a ca na prática destruir tudo. Compreende-se, assim, porque o
razões práticas. Foi sobretudo por esta razão que o Sinédrio se maior trabalho de todas as religiões consiste em lutar para
opôs a Cristo. Sustenta-se uma verdade quando ela é útil à vi- manter de pé a forma mental coletiva que as sustém. Por isso
da, que, na sua economia, assim exige. Mas a procura de novo elas procuram basear-se no absoluto, no imutável, no eterno,
conhecimento para aprofundar a verdade interessa somente a sendo levadas também ao dogmatismo, com afirmações que
pouquíssimos antecipadores da evolução, tomados por uma concluem em inviolabilidade e indestrutibilidade, para resistir
ardente curiosidade de saber, ultrapassando as massas, que na luta contra todos os assaltos. Trata-se de um problema de
permanecem alheias a tudo isto. sobrevivência. Foi com tais meios que, para seu poderio, o
Falamos em termos gerais, com base em conceitos biológi- cristianismo lutou contra o Império na Idade Média.
cos, expondo as leis da vida, que são as mesmas para todos. Ne- A substância biológica sobre a qual se erguem as verd a-
las estão incluídas todas as manifestações humanas e, portanto, des religiosas é justamente este consentimento coletivo, p a-
também as religiões. É inútil, então, distinguir entre uma e outra. trimônio humano que custou esforços de milênios para poder
O homem é o mesmo e faz as mesmas coisas em todas as religi- ser assimilado e fixado na raça. Isto, portanto, representa um
ões. O que muda é somente a forma, as palavras, o estilo. Trata- precioso valor biológico, o qual é necessário conservar, mas
42 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
não para ficar estagnado aí dentro, e sim para ser utilizado de bom e utilizável possa existir no passado. É justo, por lei da
como base de novos desenvolvimentos. Assim como o juda- vida, que os jovens substituam os velhos, mas não é necessário
ísmo foi precioso para o cristianismo, este será precioso para que os jovens os matem por este motivo. Basta esperar que os
se alcançar elevações ainda maiores. velhos morram. Assim, quando uma religião, por falta de matu-
Tais transformações evolutivas sobrevêm, como em todos os ridade coletiva, não está em condições de aceitar novas verda-
amadurecimentos humanos, através de lentas incubações e ter- des, a única solução é esperar. Mais tarde, ela irá procurá-las,
minam por repentinos saltos para diante, que se chamam revolu- porque se terá apercebido de que foi superada por elas. Então,
ções. Elas também existem nas religiões, porque esta é a forma com medo de não chegar a tempo, a religião correrá para incor-
do progresso evolutivo em todos os campos humanos. Quando porar as novas verdades, que ela mesma condenou inicialmente.
chega a hora do salto, a revolução se concentra em torno de um E, de fato, é isto que costuma acontecer.
chefe. Então há luta. Perante o mundo, ele não aparece como um Esta é a técnica da evolução das religiões. Eis a mecânica
condutor de verdades superiores, o que interessa a bem poucos, do contínuo e fatal movimento para fazer avançar quem diz e
mas sim como um agitador das posições adquiridas, que na Ter- crê permanecer imóvel. Conforme nos mostra o exemplo de
ra são fundamentais. Nele se vê sobretudo um novo pastor, que Cristo e de muitos de seus seguidores menores, isto é o que
quer expulsar os velhos, para substituí-los na direção e posse do aconteceu, acontece e poderá acontecer em todas as religiões.
rebanho. Isto é o que de Cristo compreendeu o hebraísmo. Para
as velhas religiões, o novo que surge é sempre um herege, de- VI. SINAIS DOS TEMPOS - JEAN PAUL SARTRE
vendo, por isso, ser destruído em nome de Deus.
Esta é a razão pela qual as religiões temem qualquer um que Trata-se de um caso pequeno, porém adequado a nos revelar
desperte as consciências, porquanto é mais cômodo que estas as condições espirituais de nosso mundo atual. E isto é o que
permaneçam no sono. Afinal, verdades novas e conceitos mais mais interessa observar. O Prêmio Nobel da Literatura de 1964
avançados não servem para as massas, que se adaptam antes à foi outorgado a Jean-Paul Sartre. Quem era Sartre?
lenta repetição mecânica secular, feita sem pensar, para se ori- Em primeiro lugar, é absurdo negar a existência de Deus,
entarem em direção ao alto, mas cansando-se o menos possível. como o faz Sartre. De uma coisa que verdadeiramente não exis-
E as religiões devem servir às massas, feitas de almas primiti- te não se possui sequer a ideia, e quando se nega sua existência,
vas, cuja exigência é que lhes seja servido um alimento a elas é porque essa coisa é conhecida, o que significa que existe. E
proporcionado. E servi-lo é justamente a função dos adminis- quanto mais se nega sua existência, tanto mais o próprio fato de
tradores do ideal. Ambas partes acabam por caminhar em acor- negá-la prova que ela existe. Mas, então, o que se quer negar
do, porque, no fundo, pastor e rebanho desejam a mesma coisa. quando se nega a Deus? Com a própria negação, pretende-se
O primeiro quer estabilidade, para não perder sua posição ter- destruir não a existência de Deus, o que é impossível, porque
rena, enquanto o segundo quer reduzir ao mínimo o esforço de ela não depende das nossas opiniões, mas somente a afirmação
evoluir. É assim que, quando aparece um ser como Cristo, aca- e a ideia alheia de que Deus existe. Isto não passa de uma guer-
bam por crucificá-lo. E quem quer segui-Lo encontra-se perante ra entre pensamentos humanos opostos, fato com o qual a exis-
a muralha da incompreensão humana, cuja resistência lhe im- tência objetiva de Deus nada tem a ver. Assim ele continua
põe um lastro imenso a arrastar para frente. existindo independentemente das afirmações ou negações hu-
Este é o jogo que acontece em nosso mundo, no atual nível manas, que não vão além de quem as expressa e, obviamente,
evolutivo. Existem, como dizíamos há pouco, verdades religio- nenhum poder tem sobre a existência de Deus.
sas que constituem um patrimônio precioso. Este foi longamen- Não tendo bases objetivas, a negação de Sartre não é o re-
te elaborado e acumulado com esforço, por obra milenária de sultado positivo de observações baseadas em fatos e deduções
sugestão educadora, fixada na psique das massas, que represen- racionais deles extraídas. A sua negação é simplesmente um es-
ta hoje uma corrente de pensamento coletivo imponente. Tudo tado psicológico seu, como reação aos duros sofrimentos que
isto merece respeito, sendo um capital biológico que deve ser encontrou na vida. Arrastado pela Segunda Guerra Mundial,
defendido. Mas também existe o progresso, que leva à conquis- com sua terra invadida, oprimido e isolado, forçado ao silêncio,
ta de ideias novas, e estas têm de ser fixadas na psique das mas- a uma vida subterrânea, num ambiente inimigo, prisioneiro
sas. Mesmo quando a ciência, avançando, descobre que as ve- num campo alemão de concentração, cavou dentro de si, no seu
lhas verdades estavam equivocadas, não se pode destruí-las de eu, e extraiu essa filosofia desesperada que se chama existenci-
repente, porque elas devem e têm de cumprir a sua função bio- alismo. Os seus romances apresentam uma série de crises emo-
lógica no nível e no momento em que nasceram e existem. So- cionais, tristemente vividas por pessoas atormentadas. A sua
mente destruir o velho nada deixa em seu lugar, e no vazio não mais importante obra filosófica é um tratado com cerca de 700
se pode viver. É necessário, então, não destruir de repente todas páginas, intitulado L’être et le Néant5.
as coisas velhas, mas sim transformá-las pouco a pouco em no- “Diz-me como reages e direi quem és”. Golpes na vida há
vas, de maneira que possam ser substituídas sem deixar vazios, para todos. Diante deles, cada indivíduo reage de forma distinta
nos quais não se saberia mais como dirigir-se. Assim, vemos e, com isso, revela a sua verdadeira natureza. Não sendo positi-
que, mesmo deixando de pé a ilusão de se possuir verdades ab- va a sua filosofia, a única coisa que Sartre pode nos oferecer é
solutas, exigida pelo mundo, vive-se na realidade em função de nos mostrar seu tipo de reação. Ao expressá-la, atribui a causa a
verdades relativas e progressivas, como afirmamos. Deus, ao absoluto, à filosofia, ao mundo, mas, na realidade, ex-
Deste modo, ainda que sustentando verdades absolutas, po- pressou apenas a sua reação pessoal, não fazendo mais do que
de-se obedecer à exigência de um movimento contínuo em di- se revelar a si mesmo, elevando a sistema filosófico, como
reção ao absoluto, por aproximações sucessivas. Evidentemen- premissa axiomática e indiscutível de cada afirmação sua, a sua
te, o instinto humano de subir leva ao desejo de uma rápida sa- forma mental, o seu temperamento, o seu tipo de personalidade
tisfação, antecipando assim a chegada do ponto final da evolu- e, portanto, seu modo de reagir. Pode-se afirmar isto porque,
ção, que é o absoluto, dando-o como alcançado. Mas este pon- em iguais condições de opressão e de dor, outros indivíduos, de
to, de fato, está longe. Então é mais verdadeiro e mais condi- diferente estrutura mental e moral, reagiram de um modo to-
zente com a realidade permanecer positivo, reconhecendo que talmente diverso e, fazendo aflorar elementos opostos aos ne-
estamos longe daquele ponto, mas que nos avizinhamos dele a gativos, responderam não com uma reação egocêntrica contra
cada dia, evoluindo. Portanto é imprescindível renovar-se, mas
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procurando destruir o menos possível, para deixar de pé o que O Ser e o Nada
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 43
Deus, mas sim com a afirmação de Sua ordem vitoriosa sobre o reção do cérebro, que o move, também a conservação dos bens
mal, reencontrando nessa ordem, em defesa da própria vida, o materiais depende da existência das diretivas espirituais. Hoje,
manancial da própria potência espiritual. neste mundo, devido à potência dos meios destrutivos, é neces-
Então, a filosofia de Sartre não é uma filosofia de potência, sário redobrado juízo para não acabarmos nos matando a todos,
apoiada em bases positivas, mas sim de fraqueza, porque se impulsionados por desapiedados egoísmos. Vai-se perdendo a
apoia sobre bases negativas, tal como o egocentrismo do indi- cabeça ao eliminar esses freios espirituais, feitos de ordem e
víduo que se auto eleva, pretendendo substituir-se a Deus; não é justiça, que são os mais aptos para nos salvar.
uma filosofia de esperança e salvação, mas de desespero e per- É alarmante que o mundo tenha respondido à tendência des-
dição; não é a filosofia de quem vence, mas de quem fica derro- trucionista de Sartre sem reagir ou se rebelar, mas sim seguin-
tado na luta pela sobrevivência. A própria vida, medindo tal fi- do-o. Isto é grave, porque prova também que o mal não é a ex-
losofia negativa com o seu metro biológico positivo, condena-a ceção de um caso individual, mas sim um fato coletivo, dado
perante o supremo fim da sobrevivência, como sendo uma coisa por uma corrente psicológica, expressa com a filosofia da mo-
gasta, decadente, antivital. Nietzsche, outro negador de Deus, da, que se chama existencialismo. Se não se trata de um caso
teve pelo menos, se bem que emborcada, uma fé involuída, mas isolado e isolável, se o mundo aceita Sartre, se este é o tipo de
poderosa e vital, acreditando num super-homem bestial, arre- pensamento que a Europa, à frente, como representante do pon-
medo de herói satânico, que tem a força de se erguer num desa- to mentalmente mais avançado – o cérebro do mundo – lança
fio diante de Deus, possuindo a coragem de conduzir, sozinho como modelo de vida, então devemos crer que tudo está se des-
contra todos, uma luta sobre-humana para se manter e vencer fazendo, porque o cérebro está gasto e segue à deriva, sem dire-
em posição de anti-Deus, como dominador do caos. tivas. Estamos, pois, em fase de involução ao invés de evolu-
Em Sartre não há sequer esta força positiva que, apesar de ção; caminha-se para trás, e não para diante. Quem conhece as
involuída e horrorosa, ainda assim constitui uma tentativa de leis da vida sabe que terrível coisa significa, em termos de em-
potência e grandeza. Em Sartre, a vida retrocedeu um passo a brutecimento e dor, um retrocesso involutivo. Quando a cabeça
mais em direção à anulação. Ele expressa e personifica o pro- se põe a olhar para trás, todo o corpo a segue e se põe a cami-
cesso humano, hoje em andamento, de destruição dos mais al- nhar na mesma direção. Se não há reação ao mal, este entra e
tos valores morais, que são a única perspectiva de um futuro vence, destruindo o organismo. Quando, na alta cultura, encon-
melhor, a esperança na qual a vida se aferra, a antecipação do tra ressonância o que é corrosivo e destrutivo, então é a própria
ideal ao longo do caminho da evolução para dar a força de che- vida que está ameaçada nas suas primeiras origens espirituais.
gar até lá. Em vez de avançar para ascender e viver sempre Isto não é questão de fé ou de opinião. Falamos em termos de
mais, Sartre nos canta a marcha fúnebre da vida. Em lugar de uma biologia positiva do espírito, que, para quem a conhece, é
despertar o espírito com altos conceitos vivificantes, a mente se cientificamente controlável. Quando vemos que os bons exem-
esvazia no nada, a alma se apaga sem esperança, tudo se afunda plos passam despercebidos, sem despertar eco algum nos espíri-
na negação. Sartre se enxerta na anulação espiritual e moral dos tos, quando vemos que os maus exemplos são espontaneamente
tempos modernos, que ele simboliza e reflete, descendo ainda seguidos, despertando ecos, interessando à crítica e encontran-
mais do que Nietzsche. A pintura, a escultura, a música – nas do seguidores, então devemos concluir que se deu a precipita-
suas loucas expressões, negadoras de qualquer princípio de ção pelo caminho da negação e o pior está por acontecer, por-
harmonia ou beleza e feitas de deformações involuídas que se que se vai em direção ao vazio e ao nada, onde a vida se apaga.
querem fazer passar por profundos conceitos – assim como ou- O fato de, neste ano de 1964, ter sido conferido a Sartre o
tras formas da arte e do pensamento, encontram-se hoje em fase Prêmio Nobel de Literatura, que representa o pensamento ofici-
de destrucionismo. Vivemos na época das demolições. al, julgado o melhor produzido em nosso tempo, confirma as
É verdade que a velha casa está podre e está sendo destruí- precedentes afirmações, havendo motivo, então, para se crer
da. Mas a vida ao negativo é morte. Em nossos dias há que se que foi conferido em sentido oposto ao desejado pelo próprio
contrapor à negação uma paralela afirmação, que permita à vida Alfred Nobel, fundador do prêmio. Pode-se assim compreender
ressuscitar em outra forma. De momento não se veem sinais de o erro e o perigo que este estímulo representa. Não se trata ape-
reconstrução de uma nova casa, que, no entanto, é necessária nas de ter tirado uma ajuda para os construtores, mas de ter aju-
para se poder viver em qualquer lugar. Sartre é simplesmente dado aos destruidores, acelerando a velocidade na descida. Não
um destruidor que tende ao vazio, através da anulação das idei- se pode deixar de ver em tudo isto uma vingança histórica, lan-
as fundamentais, fruto do trabalho milenar que conduziu à con- çada em direção destrutiva, que se inicia no campo espiritual e
quista dos mais altos valores da humanidade, os quais são, pe- que, no terreno material, está sendo preparada com a contínua e
rante a evolução, inclusive biológica, de primeira necessidade. sempre mais difundida construção de bombas atômicas. Assim,
Os homens práticos, de ação, poderão zombar destas afirma- o destrucionismo no campo espiritual chegará até às últimas
ções, para eles teóricas e fora da realidade da vida. Mas não sa- consequências no campo material. Vivemos num universo em
bem que a demolição espiritual implica, como consequência, na que tudo está ligado e repercute de um polo ao outro, de modo
demolição material – a qual representa a última fase do mesmo que nenhum movimento pode isolar-se das suas repercussões.
processo de destrucionismo – fazendo-se, nesta forma concreta, Falamos de vingança histórica. Não é possível que a ameaça
compreensível a todos, quando já é demasiado tarde para deter de um cataclismo possa ser justificada como resultado somente
o movimento. Mesmo que o mundo não compreenda isso, a da inabilidade ou inexperiência de quem o provoca. Mesmo que
destruição dos valores espirituais, que constituem o mais preci- na superfície seja ao contrário, o que rege na profundidade da vi-
oso tesouro para o homem atual, leva à destruição dos materi- da é um princípio de justiça, pelo qual o que nos acontece, em
ais, dano provocado por ele próprio com a inconsciência de bem ou em mal, é merecido. Assim, quando durante séculos
uma criança que, brincando com um revólver carregado, poderá acumularam-se erros e culpas, continuando-se a cometê-los hoje,
matar-se a qualquer momento. Para melhor satisfazer a voraci- com acréscimo de potência e requinte; quando o pensamento fi-
dade do estômago, é mais prático e de tangível utilidade imedi- losófico, em lugar de dirigir, é um cancro que corrói e a ciência,
ata eliminar o esforço de fazer o trabalho de alimentar o cére- o mais alto produto da inteligência, prepara a destruição da hu-
bro. Assim se goza e se engorda. Possuirá, porventura, o estô- manidade, perguntamo-nos, então, se não será merecido e fatal o
mago a sabedoria e a consciência para dirigir os movimentos do destino que cada um terá de cumprir? Há quem creia que basta
corpo? Aonde irá ele terminar, se for abandonado a si próprio? negar uma coisa para que ela deixe de existir, que seja suficiente
Assim como a defesa e a sobrevivência do corpo depende da di- ignorar as leis da vida para que elas deixem de funcionar!
44 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
Já falamos de uma grande alma, Teilhard de Chardin, que gueira pode nos fazer crer que sabemos vencer. Mas, quando,
trabalhou no sentido construtivo, oposto a Sartre, para trazer um pela nossa astúcia, imaginarmos ter enganado a Deus, então tu-
ideal à Terra, e não para destruir os vestígios de outros; para nos do cairá em cima de nós. Destruamos os alicerces da casa da
fazer avançar, e não para nos fazer retroceder evolutivamente. vida, suprimindo os superiores valores do espírito, e encontra-
Como cientista, ele procurou nos trazer Cristo pelas vias positi- remos o nosso fim. Tanta fome de liberdade, mas é somente
vas da observação e da lógica. Mesmo assim, foi condenado pe- fome de animalidade, impulso em direção negativa, para retro-
la sua Igreja ao silêncio e a morrer tristemente no exílio. Eis o ceder e ficar embaixo, eximindo-se da fatigante disciplina da
tratamento que em nosso mundo obtêm os construtores. No en- evolução. Retroceder significa voltar aos níveis evolutivos mais
tanto eles são indispensáveis à vida, para compensar o trabalho baixos, onde a vida é mais dura, significa involuir até ao estado
dos destruidores, que tendem a deixá-la abandonada no vazio. feroz da besta. Quem sabe se não é este o futuro para o qual a
Junto aos cemitérios cheios de túmulos, é necessária uma contí- humanidade está se preparando?
nua produção de recém-nascidos. Somente vive-se enquanto se O momento é tremendo. Os velhos valores esgotam a sua
caminha. Livremo-nos de parar ou retroceder. A Igreja se alia tarefa e só funcionam com esforço. Não se vê surgirem novos.
com os distribuidores do Prêmio Nobel e realiza o mesmo mo- Que diretivas daremos ao caminho da vida? Como já vimos,
vimento, seguindo o mesmo caminho, que vai no sentido oposto abusou-se tanto dos velhos ideais, que hoje, na sua forma atu-
e conduz ao mesmo resultado. Tudo caminha na direção negati- al, eles já não servem, embora contenham pontos a serem re-
va, tanto no caso de Sartre como no de Teilhard de Chardin, novados. Mas, para renová-los, é necessário substituí-los por
uma vez que, por um lado, estimula-se o mal e, por outro, obsta- melhores, e não por piores. Para retroceder, basta não se mo-
culiza-se o bem. O ponto de chegada é o mesmo. Impulsiona-se ver. Se não avançarmos em direção aos valores superiores,
o avanço dos destruidores e paralisa-se a obra dos construtores. continuando o caminho neste sentido, retrocederemos até ao
Colabora-se em plena concórdia. A conclusão não pode ser ou- nível animal. Em certo momento, oferecem-nos um existencia-
tra senão aquela que explicamos. Quando se trata de uma vin- lismo ateu e pessimista como sistema filosófico levado a con-
gança histórica, portanto de um destino merecido, este se torna clusões éticas, com pretensões de moralista! Deseja-se encher
fatal. Quando se optou pela corrida em descida e já não é possí- o vazio com o vazio. Oferece-se como diretiva uma ausência
vel deter-se, então, para que a Lei se cumpra, ficamos cegos, não de diretivas, ou pior ainda, uma diretiva em descida, que acele-
sendo mais capazes de ver o perigo nem a própria salvação. E ra a destruição. Esta é a vitalidade do câncer. Até mesmo este é
talvez o drama do atual momento histórico consista justamente movido por um impulso de multiplicação vital, mas no sentido
nesta cegueira, necessária para que se faça justiça. da autoanulação. Temos, portanto, uma filosofia emborcada,
Sim! Neguemos os valores superiores! Emborquemos as dirigida no sentido de destruir a vida, porque nega o espírito,
partes. Ao invés de colocar o estômago a serviço do cérebro, que é vida, e de nos fazer retroceder para mais longe de sua
coloquemos o cérebro a serviço do estômago. Abandonemos o meta, Deus, ponto para o qual caminha a evolução. Num mo-
leme da vida, deixando-a ir à deriva, sem diretivas, em vez de mento crítico, é necessário um impulso para diante, no entanto
guiá-la com sabedoria, mantendo-a ao longo do caminho da é dado um impulso para trás, com a oferta de um banquete de
evolução, que conduz à salvação. Onde pode ir bater um auto- pseudovalores e de negatividade destruidora!
móvel numa corrida, quando o motorista está enlouquecido? Em Sartre, não encontramos uma revalorização de valores,
Esqueçamo-nos da fundamental função biológica de orientação mas uma sua desvalorização. A destruição, quando se torna ne-
que os ideais cumprem para nos levar em direção ao melhor. cessária, somente é admissível como condição e primeiro mo-
Assim seremos presos no vórtice medonho dos retrocessos in- mento de uma paralela construção. Aqui falta o segundo termo,
volutivos, que se fecham em espirais cada vez mais estreitas, que justifica o primeiro. Isto é nihilismo, desagregação do exis-
até chegar ao fim, com a destruição da raça humana, caso esta tir, triunfo do não-ser. É necessário, pelo contrário, saber recons-
se demonstre inepta para a vida. A vida já destruiu outros tipos truir e ter a força de subir, se não quisermos deter a nossa evolu-
biológicos que se colocaram nessas condições e, portanto, está ção, na qual está a salvação. É certo que estamos carregados
pronta a fazê-lo também com o homem. Sabemos que este é o com todos os erros do passado, mas vivemos para não os come-
seu sistema. Tornemo-nos loucos então. Mas a vida não brinca! ter mais. Podemos estar cheios de imperfeições, mas vivemos
Há dois milênios que o cristianismo luta para civilizar o para nos aperfeiçoarmos. O mundo está repleto de falsos cultos e
homem, realizando um trabalho paralelo ao das religiões irmãs de ideais prostituídos ao interesse, mas vivemos para nos purifi-
nos outros continentes. Agora desencadeia-se de novo a besta, car e nos aproximarmos sempre mais de Deus. Sobretudo no
que já não possui somente dentes caninos e garras, flechas e es- momento atual, temos necessidade de uma filosofia sã, vivifica-
padas, mas também bombas atômicas! Premiai os destruidores! dora, saneadora, cheia de valores vitais. Contudo nos é ofereci-
Que o mundo os proclame e os siga! Sufocai os construtores, da, ao invés disso, uma filosofia cheia de ansiedade e de deses-
fazendo-os morrer sepultados no silêncio! Ciência, filosofia e pero, que não resolve problema algum. A negação mata, não sa-
religião, todos parecem ignorar as leis que regem estes erros. neia. Uma filosofia feita de pessimismo não pode cumprir fun-
Admita-se ou ignore-se Deus, estas leis funcionam, sendo feitas ções vitais e curativas. A angústia só abate. Nada se pode cons-
de forças invencíveis, cuja atuação se dá segundo princípios truir sobre um estado de espírito apreensivo. Poderíamos ver
que nenhuma negação pode anular. Constituindo alimento vital, neste fato a verdadeira face do mundo, que nos aparece assim
estas forças exaltam a quem trabalha segundo a sua ordem, mas com uma expressão de angústia. Mas esta é a tristeza de quem
se negam e esmagam a quem tenta rebelar-se, indo contra a sua perdeu o caminho da evolução e, com isso, a esperança da sal-
corrente. Negai, negai! Mas negareis antes de tudo a vós pró- vação, encontrando-se perdido e sozinho no deserto. Correspon-
prios. Destruí e sereis destruídos. O que lançais para fora de vós deria à tarefa do pensador, que representa a intelectualidade di-
cairá sobre vós. Este é o produto que advirá de vossa atual se- rigente, o dever de orientar o caminhante desviado. Mas, ao con-
meadura e que pesa sobre o mundo. Daquilo que foi feito nin- trário, ele faz sua esta angústia, deixando-se arrastar por ela e
guém pode escapar às consequências, pois elas são merecidas. apresentando-a como sistema filosófico. Mas quem assume a
De nada serve negar. Os erros se pagam da mesma forma. Age- função diretiva de médico, tem o dever de curar, tratar e dar sa-
se, no entanto, como se as opiniões humanas tivessem o poder úde ao doente. Se, pelo contrário, adoece junto com este, então
de alterar a estrutura da existência e as leis que dirigem o seu usa o mesmo leito, preparando-se ele também para morrer. Um
funcionamento. Sim, proclamemo-nos livres! Experimentemos médico assim, mais doente do que o próprio doente, não serve
violar as leis da vida e logo veremos o que sucede. A nossa ce- para este, eliminando assim qualquer possibilidade de salvação.
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 45
Assim caminha o mundo de hoje, indiferente ao seu eterno contra quem ele se revolta, em vez de lançá-la sobre si próprio.
destino, sem entender o profundo significado da existência e a Esta é de fato a mentalidade do biótipo do AS, que, na dor, pro-
sua suprema finalidade. É absurdo dizer: “(...) à existência fe- cura a fuga, negando, e não a salvação, afirmando.
bril é impossível que se chame destino (...)”, quando isso signi- Segundo a tese existencialista, o universo seria um absur-
fica, para quem queira, a ascensão ao céu, a conquista de uma do, nada teria sentido e a liberdade humana, surgida por acaso,
existência superior. Quem segue a filosofia da anulação é natu- num mundo incoerente, seria inútil para qualquer finalidade de
ral que se encontre isolado, aniquilado, perdido no vazio, opri- bem. Pessimismo cheio de horror e náusea, em completa opo-
mido pela angústia, na qual a vida chora o seu fracasso. A ne- sição à concepção cristã. Seguindo esta, colocamo-nos em uma
gação entristece porque a vida é feita para afirmar. Este é o so- posição completamente oposta àquela, procurando cheios de
frimento dos que, repelindo a supervida do espírito, condenam- esperança os valores positivos e construtivos, com uma forma
se à morte. Esta é a sorte das almas vazias, dissecadas, conge- mental do tipo S. Se estamos embaixo, na desordem e na dor, é
ladas, amantes da negação. porque somos ainda atrasados. Mas o caminho da evolução es-
A vida que se faz poderosa no espírito nada teme, pois, na tá aberto diante de nós, para que o percorramos e, assim, pos-
morte, está cheia de alegria da ressurreição e, na dor, está rica samos nos redimir, emergindo sobre o estado atual. O homem
de esperança, não conhecendo a angústia do vazio, porque é tem nas mãos os meios para se avizinhar sempre mais da feli-
ativa em cada instante, no trabalho da própria superação e na cidade, e isto é possível, basta que ele saiba merecê-la, mo-
conquista por meio da evolução. Tal vida, iluminada pelo co- vendo-se com inteligência e consciência, segundo a lei de
nhecimento e potencializada por recursos interiores, é dinâmica Deus, no seio da qual ele vive. A vida, compreendida e vivida
e criadora em cada momento, tornando-se jubilosa por suas rea- a sério, é uma imensa obra de construção.
lizações, que a levam cada dia mais alto. Mas o existencialismo se explica. Sartre, por si só, não po-
Em Sartre, negando-se Deus, em meio à dor fica só a angús- deria fazer nada. Em seu sistema tomou corpo e encontrou a
tia. É o pranto da alma arrancada da primeira fonte de sua vida, sua expressão uma corrente já formada no subconsciente cole-
sem meta e sem esperança de salvação. Em Teilhard de Char- tivo, dada por um estado de ânimo de desespero, devido às duas
din, junto a Deus, em meio à dor permanece a consciência de guerras ferozes e inúteis, destruidoras de toda fé e ideal. Por is-
uma supervida, ressurgindo-se do sofrimento na alegria. É o re- so o destrucionismo existencialista, havendo encontrado o ter-
gozijo da alma que se une cada vez mais à sua fonte de vida. reno adequado, teve seguidores e sucesso. Quem está cansado e
Quando a selva arde, é natural que o pássaro, por ter com a sua doente de desilusões, prefere abandonar-se no caminho fácil da
evolução desenvolvido suas asas, possa voar para longe, sal- descida, ao invés de se esforçar pelo caminho árduo da subida.
vando-se, no entanto ninguém pode evitar que o verme morra As massas comodistas procuram fugir ao trabalho sério e cons-
queimado, porque este, sendo mais atrasado, ainda não chegou trutivo, que exige pensamento, esforço e sentido de responsabi-
a construir tais meios. As leis da vida continuam funcionando lidade. Estimulam-nas, pelo contrário, o atalho, a evasão e a
mesmo para quem as ignora ou as nega. inércia do pessimismo. Mas, assim, não se resolvem os proble-
Fixemos claramente a nossa posição perante Sartre e o exis- mas, pagando-se então as consequências.
tencialismo. Não estamos do lado negativo dos destruidores dos Tudo isto é prova de debilidade e decadência. Não se res-
valores espirituais, mas do lado positivo e afirmativo dos cons- pondeu com a sã reação de um organismo forte, que tem vonta-
trutores. A nossa filosofia, por ser feita de esperança e de cora- de de superar os obstáculos, para sobreviver ao ataque do mal,
gem, está no polo oposto à filosofia de Sartre, que é feita de pes- mas sim com a reação oblíqua e patológica de um organismo
simismo e de desespero. Para nós, o ideal não é ilusão e traição, doente, impotente para vencer a doença. Isto se torna mais gra-
mas representa um valor biológico positivo, como antecipação da ve ainda por estar afetado o cérebro da humanidade, represen-
evolução. Para nós, a afirmação da existência de Deus não é o tado pela elite intelectual da civilização europeia. Trata-se de
produto de uma fé, mas sim uma certeza, derivada da constatação uma psicose que corrompe o centro diretivo, justamente o ór-
da presença de uma suprema inteligência anteposta ao funciona- gão que deveria assumir a tarefa de orientação espiritual do
mento orgânico do universo. Dizemos, com Sartre, que o homem mundo. Se o cérebro está doente, que sucederá com todo o resto
é um desgraçado, mas acrescentamos que ele pode e deve superar do corpo? Se a mente, que deveria estar à frente do caminho da
a sua desgraça. Constatamos as dores do mundo, mas nem por is- evolução, executando o trabalho de antecipar e avançar, está
to nos deixamos vencer, abandonando-nos na inércia, pois com- corroída e se desfazendo, fazendo o dirigente do veículo perder-
preendemos a função criadora da dor e, pelo contrário, impomo- se e sair da estrada, então o desastre é inevitável. Devemos aqui
nos o esforço de superá-la, realização que depende de nós e é explicar como tudo isto pode acontecer.
possível, porque assim querem as leis da vida, estando escrito É o pensamento que se encontra nas raízes da vida. O
que isto se deverá cumprir no futuro, por evolução. Trata-se de desmoronamento espiritual precede o desmoronamento mate-
conceitos que, em outros lugares, amplamente ilustramos e de- rial e lhe anuncia o começo. O triunfo de Sartre, junto com
monstramos. A nossa atitude é ativa, de quem caminha em dire- outros detalhes, pode ser um sintoma premonitório de que es-
ção à vida, e não passiva, de quem se deixa ir para a morte. tá amadurecendo o fenômeno da liquidação da civilização eu-
São simples os raciocínios do existencialismo na sua liqui- ropeia. Não vemos os filósofos e pensadores no terreno da
dação sumária de Deus. Os ateus dizem: “Deus criou as criatu- ação e da realização. No entanto são eles os primeiros moto-
ras para fazê-las sofrer; como o mal em Deus é um absurdo, res das revoluções e revoltas das épocas seguintes. Karl Marx
Deus não existe”. Este discurso significa: “O que verdadeira- antecipou os levantamentos políticos do Século XX nas salas
mente importa sou eu. Eu sou o centro, e tudo deve existir em de leitura do British Museum. As inflamadas polêmicas de
função de mim. Tudo quando está contra mim deve ser elimi- Sören Krierkegaard assentaram as bases sobre as quais Sartre
nado. Deus me faz sofrer, havendo-me dado essa triste vida. construiu o existencialismo.
Então, eu O rejeito. Portanto Ele não existe”. Quem raciocina Assim, por obra de um só pensador, a semente é lançada. Se
assim não compreende que Deus não faz as criaturas sofrerem, ela encontra o terreno adequado, então se desenvolve rapida-
mas são elas que sofrem como consequência dos seus próprios mente, afirmando-se segundo a sua natureza. Assim sucedeu
erros, para aprenderem a não errar mais. O indivíduo que pensa com o comunismo e com o existencialismo. Formam-se corren-
desse modo demonstra, com isso, encontrar-se ainda evoluti- tes de pensamento coletivas e vão-se amadurecendo os fenô-
vamente atrasado, na direção do AS. Isto é provado pela sua menos sociais nos quais aquelas tomam corpo, até alcançarem a
psicologia de rebelde, que o induz a lançar a culpa sobre Deus, sua realização como fato histórico.
46 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
Num ritmo de sucessão de fases, os fenômenos seguem a defesa contra os ataques e os venenos psíquicos do ambiente.
trajetória do seu desenvolvimento e, uma vez iniciada esta, são Se a vida se corrói no seu polo espírito, acabará por se corroer
levados pela sua lei a percorrê-la até ao fim. É difícil detê-los, também no seu polo matéria. Se destruímos a saúde do órgão
porque, até atingirem seu esgotamento, as forças que os puse- de orientação diretiva, destruiremos forçosamente a do orga-
ram em movimento continuam atuando, e só um equivalente nismo físico, que depende dele.
impulso em sentido contrário pode neutralizá-las. Assim, desde O espírito se encontra mais avançado no caminho da evolu-
o começo, o observador atento pode ver qual será o futuro de- ção. Está à frente do comboio, sendo o iniciador da marcha. O
senvolvimento do fenômeno, porque, uma vez lançado, ele se resto o segue. Se suprimimos o ideal, obstruímos a via de nosso
mantém inexoravelmente fechado dentro das normas da lei re- desenvolvimento e recaímos na baixeza animalesca de nosso
guladora do seu transformismo. Sabe-se, então, a direção e as passado biológico. Desta forma, acabamos por matar a nós
soluções finais às quais, fatalmente, conduzirá a história. Esta mesmos, porque atraiçoamos a evolução, o fim maior da vida,
avança por fases sucessivas, sendo que cada uma, pelo fato de que, emborcada, é morte. Então a existência perde todo o senti-
estar implícita na fase precedente, encontra-se ligada à outra do e valor, ficando reduzida a um charco inútil, sem meta e sem
numa sequência inevitável. Quando a história se canaliza por futuro, quando, na verdade, constitui um precioso meio que
um determinado tipo de fenômeno, deve seguir os períodos do possuímos para alcançar os mais altos destinos.
seu desenvolvimento, conectados logicamente e condicionados Parar no meio da universal marcha evolutiva significa ficar
uns aos outros, como os anéis de uma mesma cadeia. Vários atrasado e ser superado. Se nos retiramos do nível biológico
elementos, cada um tendo e cumprindo a sua própria função, mais avançado, o espiritual, o centro da vida retrocede, para se
escalonam-se sucessivamente no tempo: o pensador, o revolu- reconstituir num plano inferior, mais involuído, ao nível animal.
cionário, o guerreiro, o líder, o estadista, o político e as massas Tendo-lhe sido fechado o caminho da evolução, a vida se retrai,
que os seguem. Cada um, a seu tempo, é atraído, envolvido e contraindo-se em inferiores dimensões biológicas. Então a civi-
colocado em movimento, sendo todos postos a trabalhar, ven- lização se desmorona na barbárie, a ordem no caos, o bem estar
cedores e vencidos; hoje lançados para posições superiores, na miséria e no sofrimento. O castigo mais grave com que a lei
quando a sua colaboração é útil e se adaptam ao seu mandato, da própria vida golpeia a recusa à ascensão é a contração das
cumprindo a sua função histórica; amanhã, porém, abandona- dimensões biológicas, é a redução do espaço e da expansão vi-
dos e liquidados, quando já não servem mais. Cada um crê ser tal, é a mutilação e o sufocamento da existência. O maior perigo
uma força autônoma, trabalhando para si mesmo, mas não é se- que ameaça a humanidade, nesta excepcional hora histórica, em
não um instrumento, um momento de um processo histórico, que ela se encontra numa curva do seu caminho evolutivo, é um
um elemento que vale só em função do trabalho a cumprir, em retrocesso involutivo. Agora que os tempos estão maduros para
relação ao qual o indivíduo ocupa a posição que o valoriza. Re- se avançar, ao contrário retrocede-se. A filosofia da negação le-
gidas pelo princípio das unidades coletivas, vemos as unidades va à involução. O destrucionismo tende ao retrocesso.
menores se unirem organicamente para formar uma unidade Nós estamos do lado da vida e da sua evolução. Sustenta-
maior. Assim, no desenvolvimento destes fenômenos, obser- mos os seus direitos e o dever de fazê-los valer. Ao lado do
vamos os movimentos dos elementos menores coordenarem-se cristianismo, sustentamos os mais altos valores da civilização,
instintivamente para determinar os movimentos maiores. Se- os do espírito. Deixamos às clínicas psiquiátricas as filosofias
mente e terreno, impulsos e ambiente, chefes iniciadores e mas- suicidas, doentes, cheias de negação e desespero. Na luta, de-
sas, espírito revolucionário e resistências, ações e reações, im- vemos arder de fé. A dor deve nos reforçar e ser vencida pelas
pulso inovador e consentimento dos seguidores, todos acabam potências do espírito. Queremos uma virilidade que, superando
por colaborar num único concerto, que a história desenvolve aquela primitiva e agressiva de nosso mundo, possa vencer em
logicamente, arrastando todos no seu progresso. planos mais elevados. A nossa obra é uma reação a essa des-
É com esta consideração que devemos enfrentar o fenômeno truição espiritual, que, neste período de decadência do mundo,
do existencialismo. Sua importância não está no fato de ser uma tende a se fazer universal, abrangendo pintura, escultura, músi-
teoria, que, como fato individual, não conduz a nenhuma con- ca, literatura, moral e filosofia. O valor está em resistir a essa
sequência, mas sim no consenso geral a seu respeito, na sua destruição, lançando-se a construir, a fim de se preparar para
aceitação como um fenômeno coletivo, o que lhe confere vo- preencher o vazio que será deixado. Por isso não oferecemos
lume, extensão e significado. Então a teoria filosófica se enxer- uma filosofia de palavras, sutil, de requintado bizantinismo, vã
ta na vida e torna-se realidade histórica, porque, transformando- e decadente, como a que está hoje em moda. Oferecemos uma
se em forma mental coletiva, entra no terreno das realizações. espiritualidade forte, positiva e criadora, de superação evolutiva
Quando a filosofia que, por ter alcançado tão vastas ressonân- e de construção biológica, uma espiritualidade que não se apoia
cias, passa a imperar é uma filosofia corroída, então ela se torna apenas sobre bases fideísticas religiosas convencionais, mas
um perigo social através do grupo que, tomando-a como ban- sobre bases controláveis, científicas e racionais.
deira e fazendo-se expoente dela, vem a incorporá-la e expres- Parece, no entanto, que a humanidade está mais apta a res-
sá-la. O fato de ter a doença um caráter social faz pensar num ponder aos apelos do mal do que aos do bem, preferindo aderir a
estado de decadência da sociedade. Uma doença que fica limi- quem lhe convida a seguir o cômodo, mas perigoso, caminho da
tada a um só indivíduo ou a poucos não tem importância, mas descida, do que a quem lhe propõe o fadigoso, mas saudável, es-
torna-se grave quando assume proporções epidêmicas. forço da subida. Este é o drama humano que o triunfo do exis-
Matar o ideal é perigoso, pois ele cumpre uma função bio- tencialismo nos revela, no qual os construtores permanecem in-
lógica necessária, de orientação da vida, projetando-a em dire- compreendidos e isolados, enquanto os destruidores, que impul-
ção ao futuro. Se envenenarmos a vida no seu nível mais alto, sionam para o pior, são compreendidos e seguidos. Isto significa
o espiritual, acabaremos por envenená-la totalmente, portanto que a tendência da humanidade, ao invés de seguir na direção do
também no plano material. A medicina psicossomática reco- S, é gravitar para o AS, num retrocesso a estados mais involuí-
nhece que a origem de algumas doenças orgânicas deve ser dos, a níveis de vida inferiores, cheios de trevas e de dores.
procurada no terreno psíquico. Em tal caso, as etapas sucessi- Esta desordem central que está no espírito, de consequência
vas da ação da psique sobre o corpo são: distúrbio psicológico, em consequência, pode se concretizar nos fatos e nos levar a
anomalia funcional, alteração celular e lesão anatômica. Existe uma guerra atômica. A opinião pública se preocupa com o atu-
assim uma psicogênese das doenças físicas. Perante a higiene al aumento vertiginoso da população, problema do qual já tra-
psíquica, a humanidade encontra-se na fase pré-infecciosa, in- tamos. Como um pressentimento, pode surgir a dúvida de que
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 47
este aumento seja um sinal de uma providência que a sabedoria gridade da vida, pelo menos do modo como ela é entendida e
da vida toma para assegurar a sua sobrevivência, como um sin- quer se realizar neste plano biológico. Como se conduz ela, en-
toma revelador da aproximação de uma paralela e correlativa tão, em sua própria defesa, para permanecer no seu nível? A
destruição demográfica. Explicar-se-ia então este aumento, de- princípio resiste, reage à mudança e rebela-se, mas depois aca-
terminado pela necessidade de nos encontrarmos prontos para ba por se adaptar, para finalmente transformar-se, assimilando
enfrentar o novo assalto à vida, compensando as grandes perdas o novo. Termina então a função do ideal naquele determinado
de uma guerra atômica, para vencê-lo. Na sua imensa experiên- nível evolutivo, de modo que outro ideal mais avançado pode
cia, a vida sabe muitas coisas, como prova o fato de que soube descer, para retomar, com o mesmo método, o mesmo trabalho,
chegar até aqui, superando muitos outros cataclismos. Nos seus mas em um nível um pouco mais alto.
equilíbrios, a vida, através do aumento da população, resolveria Enfrentam-se assim, em nosso mundo, o ideal e a realidade
o problema da sua defesa e, com a destruição, corrigiria o ex- biológico, numa posição de luta, cada um para dirigir a vida à
cesso da superpopulação. Isto não surpreende a quem conhece sua maneira e impor-se como regra absoluta. Cada um dos dois
os métodos da natureza. Por outro lado, eles são impostos tam- possui a sua moral, que ele coloca como lei de vida e sobre a
bém porque é necessário respeitar a liberdade humana, para qual o seu próprio plano baseia a sua existência. Não é fácil,
que, errando, o homem seja obrigado a se corrigir. Se ele está portanto, sair disto. A moral do ideal está na superação da rea-
louco, que pode fazer a vida a não ser correr atrás dele para re- lidade biológica do tipo de vida vigente do animal humano, im-
mediar as suas loucuras? Se lhe tivesse sido possível, o homem pondo com este fim o esforço para realizar a ascensão evoluti-
já teria destruído o planeta há muito tempo. va, renegando o mundo. A moral do plano terrestre é, pelo con-
Só assim tudo se salva. Da liberdade de chegar a uma su- trário, a sobrevivência a qualquer custo, lutando somente por is-
perprodução demográfica decorre a necessidade de equilibrá-la to e evitando desperdiçar energias na busca de aventuras evolu-
com uma compensadora superdestruição demográfica, objeti- cionistas e duvidosas superações, preferindo ficar no nível atual
vando a sobrevivência da raça humana e a necessidade de fazer e conservar as velhas posições, confirmando e assegurando uma
esta nova grande experiência, a fim de acabar definitivamente vida melhor aqui mesmo, no mundo.
com as guerras, fazendo o homem pagar seu erro com a própria Estes princípios opostos não aparecem na Terra somente
dor, para que ele aprenda a não repeti-lo. Se, para ensiná-lo, como teorias abstratas, mas também concretizados na pessoa de
não há outro argumento a não ser a sua dor, vale a pena, pelas dois tipos biológicos opostos: o evoluído, que representa e vive
vantagens que daí derivam, deixá-lo enfrentar semelhante expe- o ideal, e o involuído, que representa e vive a realidade biológi-
riência, mesmo que ele tenha de pagar bem caro. ca do ambiente terreno. O primeiro é uma antecipação do futu-
Assim como para a medicina psicossomática – conforme ro. O segundo é um resíduo do passado, e eles se chocam no
dissemos acima – também é lei, por princípio de solidária cor- presente, que é um período de transição do segundo para o pri-
respondência entre os fenômenos, que à desordem espiritual meiro. O evoluído, porque é mais avançado, cumpre, no equilí-
deva fatalmente seguir a desordem material. Se hoje constata- brio biológico, a função de guia e de exemplo, constituindo o
mos a presença da primeira, devemos logicamente esperar o impulso dinamizador, para estimular a subir. O involuído, por
surgimento da segunda. Esta destruição, no plano físico, seria, ser atrasado, representa a resistência, o obstáculo ao progresso,
na lógica sucessiva dos momentos do fenômeno, o ponto final a revolta, o impulso oposto, ou seja, a negação.
do seu desenvolvimento, implícito na sua fase inicial de prepa- A luta se dá entre dois biótipos, que personificam os dois
ração, dada pela atual desorientação espiritual, da qual o exis- princípios opostos. Na Terra, que não é o seu ambiente, o evo-
tencialismo faz parte e é uma expressão. luído se encontra deslocado, mas cumpre ali a sua grande fun-
ção evolutiva. O involuído encontra-se à vontade na Terra, no
VII. OS IDEAIS E A REALIDADE DA VIDA seu ambiente, adequado a ele, por este motivo sente-se incomo-
dado pelo ideal, cuja intenção é deslocar as bases da sua vida, e
I – A Técnica das revoluções no processo evolutivo. então se defende deste, armando-se bem para resistir. Por ser
maioria no momento atual, ele tem a razão na Terra. Mas a hu-
Quando os ideais descem à Terra, eles são transplantados manidade já entrou numa fase de transição evolutiva, de modo
para um plano biológico mais baixo. Observemos então as re- que, através de uma gradual adaptação ao novo, a sua resistên-
ações que eles têm de suportar, as transformações e adapta- cia começa a ceder, iniciando-se assim a assimilação e a trans-
ções a que devem ser submetidos, para poder sobreviver no formação. Só depois de compreendermos isto, podemos enten-
nível evolutivo inferior do mundo, e o uso que faz deles a vida der o porquê da contradição entre bem e mal, entre verdade e
em tais condições, a fim de poder utilizá-los para os seus fins. mentira, de que está impregnada a vida do homem atual. Nele
Certamente é inevitável que o ideal, pelo fato de representar coexistem luz e trevas, pois a tentativa da primeira realização
um modelo de vida mais avançado, deva suportar um retro- do ideal surge num mundo saturado de animalidade, que é te-
cesso, a fim de poder subsistir naquele nível inferior no qual nazmente radicada no passado, revoltada e resistente.
desce, condição necessária para que ele possa avançar. Se é É assim que o ideal, quando chega à Terra, para se realizar,
verdade que o impulso do progresso em direção ao alto procu- encontra-se, apesar de descer do Alto, subordinado às leis do
ra impor a ascensão, isto não significa que a realidade bioló- mundo, estando ligado aos acontecimentos do desenvolvimento
gica (a vida como ela é de fato na Terra) esteja pronta para se histórico e ficando submetido à incerteza da tentativa, que impe-
transformar. Tal realidade tem as suas leis férreas, verdadeiras ra nas coisas humanas. Porém, não obstante esta condição, ele
neste plano, onde dirigem a vida, não estando de modo algum cumpre a sua função, fixando no fundo do fenômeno o superior
dispostas a se deixar destronar. impulso do ideal, com a sua potente e decisiva vontade de reali-
Por um lado, o ideal impõe justiça, honestidade, sincerida- zar-se. Assistimos então a um choque entre elementos opostos:
de, altruísmo, bondade etc. Por outro lado, a vida se baseia so- de um lado o humano e, de outro, o divino, sendo que o segundo
bre um princípio bem diverso, baseado na luta pelo triunfo do poderá ser atrasado pelo primeiro, ficando momentaneamente
mais forte, onde vale aquele que vence por qualquer meio, paralisado, mas nunca poderá ser detido. A força do ideal é inte-
mesmo contradizendo totalmente o ideal e ainda que seja injus- rior, provindo de dentro, porque vem de Deus. A luta é realizada
to, desonesto, falso, egoísta, malvado etc. Se esta é a lei do por esta força interior, cuja vontade é alcançar o seu floresci-
animal humano, que predomina na Terra, então a descida do mento exterior, que é a sua manifestação na forma. O fato, po-
ideal, quando é vista de baixo, pode parecer um assalto à inte- rém, de serem estas resistências do mais baixo toleradas pelo Al-
48 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
to não significa que o ideal seja o mais débil e que ele, no fim, em vez de se unirem, de modo que a fraternização se transforma
não seja vitorioso sobre tudo mais. Se estas resistências subsis- em sectarismo e antagonismo religioso. Aqui vemos dois impul-
tem, é porque fazem parte da estrutura do processo evolutivo, sos opostos em luta: o do evoluído, querendo levar à unificação
que tem a sua razão para ser desta forma, e não de outra. na ordem (Sistema), e o do involuído, tendendo ao separatismo,
A descida do ideal é uma dádiva do Alto, constituindo uma que culmina no caos (Anti-Sistema). Conforme dissemos, o ide-
irradiação provinda de Deus, que se faz assim imanente mesmo al é neste caso utilizado como uma coberta de aparência formo-
nos mais baixos planos involutivos, a fim de salvar o ser, atrain- sa, para camuflar a realidade dos interesses que ali se escondem
do-o para si, impulsionando-o a evoluir em direção ao alto. Mas por baixo. Trata-se de um fenômeno que se encontra em todos e
este impulso, por si só, não basta, se ele não for secundado pela nos mais diversos campos, mesmo naqueles de natureza oposta,
boa vontade e esforço do ser, cuja liberdade é respeitada, de seja ele religioso, político ou social. Isto porque, em todos os ca-
modo que ele pode aderir ou não, ficando livre para tomar a de- sos, a substância do fenômeno é a mesma, sendo dada não pelo
cisão de evoluir. O esforço para subir deve ser da criatura, por- ideal professado, que é utilizado para escondê-la, mas sim pelo
que, conforme determina a justiça, somente pode ser ganho o grupo humano que o representa, em função de seus interesses e
que tiver sido merecido. As dificuldades para vencer são neces- da luta que ele tem de conduzir para a sua sobrevivência. Na
sárias não só para que o esforço se realize e, com isso, obtenha- realidade, a vida está feita de tal maneira, que o mais urgente pa-
se o mérito, mas também para que a experiência vivida ensine e, ra se salvar em primeiro lugar são os interesses, e não o ideal. O
por meio dela, o indivíduo aprenda e construa para si novas qua- que assegura a continuação necessária da vida não é a moral da
lidades, consistindo nisto o processo de sua evolução. Os obstá- superação, mas sim a moral da sobrevivência.
culos superados representam a resistência na qual se enrijece o É assim que, hoje, assistimos este mesmo fenômeno em
lutador, o valor do soldado no campo de batalha, a prova da ca- dois campos muito diferentes. Por um lado, verificamos, entre
pacidade adquirida, o seu diploma de honra, que o qualifica para os seguidores do mesmo Cristo, uma divisão em religiões dife-
ser admitido num plano evolutivo mais alto. rentes e rivais, sendo que o fato das religiões adorarem o mes-
Não há, então, razão para se desencorajar, se por um mo- mo Deus não as une, mas sim as divide. Por outro lado, vemos
mento o mundo vence o ideal. Este, no final, sabe igualmente os comunistas de todo o mundo, seguidores do mesmo Marx e
triunfar, mesmo que, no seu percurso terreno, ele seja mancha- Lenine, lutarem entre si em nome do mesmo ideal, como a Rús-
do, maltratado, mutilado, emborcado. É lógico que não possa ser sia e a China. A realidade é que, debaixo da bandeira dos mes-
diferente este seu caminho terreno, cujo trajeto vai desde a sua mos princípios, formaram-se grupos com diferentes interesses,
aparição até à sua afirmação. Para poder transformar os demô- e são estes que prevalecem. Assim, o ideal se adapta e se trans-
nios em anjos, os anjos devem misturar-se com eles, sem contu- forma a serviço de fins mais próximos e concretos, que, não
do deixarem de ser anjos. Para iluminar melhor a Terra, a estrela tendo nada em comum com ele, terminam por substituí-lo.
tem de descer até ao lodo, mas nem por isso deve deixar de ser Debaixo da revolta religiosa de Lutero havia, em relação ao
estrela, tratando pelo contrário de iluminá-lo, para lhe vencer a império da Roma latina, um desejo de emancipação, originado
opacidade, até que o lodo se transforme em estrela. As condena- de um contraste de raças percebido pelas massas, sem o que a
ções, as perseguições, as quedas ao longo do caminho são partes emancipação não teria acontecido. Esta é a substância, mesmo
necessárias do processo da descida dos ideais e da sua afirma- que se queira justificá-la com o escândalo da venda das indul-
ção. Quando se observa bem, descobre-se que estes impulsos gências por parte de Roma, da qual o próprio Lutero não tinha
negativos terminam por se emborcar, funcionando positivamen- o direito de se queixar, pois também ele, de sua parte, cuidava
te, a favor, e não contra o processo. Vê-se então que estas difi- igualmente dos seus interesses. E por séculos, sob o mesmo
culdades têm uma potência criadora, porque excitam uma reação Cristo, as duas partes continuaram se acusando de erro. Na
a favor do perseguido, que adquire assim auréola de martírio, verdade, a revolta na Alemanha foi devida à intolerância para
excitando automaticamente a admiração do mundo. Tanto é as- com um domínio estrangeiro, ainda que este tenha sido somen-
sim que, para os grupos humanos de qualquer tipo, o mártir, ao te no terreno espiritual, revolta prontamente compartilhada
sacrificar-se pela ideia sobre a qual eles baseiam sua existência, também por sua própria inimiga, a Inglaterra, ambas unidas
torna-se mercadoria muito procurada, porque eles sabem muito contra o inimigo latino comum. Isto porque, para Roma, a
bem a potência psicológica de proselitismo que tal exemplo traz ideia da universalidade espiritual do cristianismo, na prática,
em favor do grupo e, portanto, do seu poder. A derrota de um havia-se transformado no interesse do poderio mundial do pa-
momento, no qual o involuído é o vencedor, torna-se, por meio pado, coisa essa que, mesmo nada tendo a ver com Cristo, es-
deste, a semente do futuro desenvolvimento do ideal, constituin- tava substituindo-se a Ele na realidade.
do-se num instrumento de vitória. Tendo-se tornado mais astuto, A mesma coisa, por razões similares, está sucedendo hoje
o homem moderno, enquanto vai em busca de perseguidos pelo na política, porque o atual tipo biológico, ainda situado naquele
ideal de seu próprio grupo, para venerá-los a favor deste e desa- mesmo nível evolutivo, não pode deixar de se conduzir da
creditar os grupo inimigos, acusando-os de perseguição, ao mesma forma em todos os campos. Teoricamente, a ideologia
mesmo tempo evita praticar perseguições abertas, porque com- comunista é a mesma na Rússia ou na China, mas é percebida
preendeu a potência que isto produz em favor dos perseguidos e de formas opostas, porque debaixo dela se agitam interesses
dos respectivos grupos. Concluindo, deve-se à sabedoria com opostos. Em razão disso, a ideia, que deveria unificar, acaba di-
que está arquitetado este fenômeno o fato de a própria derrota do vidindo, porque, na realidade, o que funciona não é a ideia, mas
evoluído e a vitória do involuído levarem ao triunfo do ideal. sim o interesse que se esconde debaixo dela. Assim, onde o in-
◘◘◘ teresse do grupo comunista coincidir com o do grupo capitalis-
Tratemos de desenvolver estes conceitos, observando alguns ta, haverá entre os dois grupos, apesar de serem inimigos, um
casos onde resulta mais evidente a contradição entre os dois acordo, mesmo que isto gere inimizade com os velhos compa-
opostos: o ideal e a realidade biológica. Mesmo estando escon- nheiros de ideal. Eis um exemplo em que vemos a realidade bi-
dida debaixo do ideal, esta contradição constitui uma realidade e ológica se substituir ao ideal. Amanhã, isto poderá mudar. Mas
acaba por se manifestar. Frequentemente, o ideal é usado sobre- hoje, em 1964, é o que de fato está sucedendo.
tudo para mascarar esta outra verdade, bem diversa. Assim se Neste caso, o que triunfa é a realidade biológica, e não o
explica como o fato de se seguir o mesmo princípio e programa, ideal. E a realidade biológica é que todas as revoluções, inde-
que deveria levar à união entre os seguidores, leva na prática à pendentemente da ideia professada, têm o seu ciclo pré-
rivalidade e à divisão, fazendo eles se destruírem mutuamente, estabelecido. Depois de um primeiro período de desencadeamen-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 49
to, elas se estancam, esgotando-se na fase de aburguesamento a separação; em vez da amizade entre inimigos, a inimizade en-
que logo sobrevém, na qual os revolucionários querem descan- tre companheiros; em vez da vitória do ideal, a sua destruição,
sar e gozar o fruto de seus trabalhos e conquistas, assim como pela coligação do mundo todo contra a nação que, representan-
aconteceu no fim com os seguidores de Napoleão. Esta segunda do tal princípio, busca a guerra para impô-lo.
fase é, por lei da natureza, a continuação da primeira. Observa- Esquecidas da ideologia, as leis da vida continuam funcio-
remos melhor, mais adiante, os períodos deste desenvolvimen- nando por sua conta, sendo acatadas de igual maneira por to-
to. O nosso intento agora é notar que, hoje, a revolução russa dos. A China não se dá conta que, levantando-se como uma
aspira o bem-estar do nível norte-americano, porque, para o ameaça mundial de guerra atômica, alternativa que as suas duas
homem, a finalidade de todo o seu esforço é o bem-estar mate- potências inimigas não querem, ela constitui a força decisiva
rial, e não a realização do ideal. É inútil criar ideologias que fa- para criar e manter a amizade entre a Rússia e os Estados Uni-
çam imposições à vida, quando esta, com suas leis invioláveis, dos contra ela, que é hoje o inimigo comum de ambas. As ami-
quer seguir outro caminho. Então, perante a vida, que é mais zades mais fortes não são tanto as determinadas pelo amor, mas
forte, é a ideologia que cede e se adapta, transformando-se. É sim aquelas devidas à necessidade de se defender de um inimi-
assim que, agora, quando aparece a ameaça de uma guerra atô- go comum. A este mesmo fato, num campo mais diverso, deve-
mica de destruição mundial, fala-se da conquista pacífica do se também o atual Concílio Ecumênico, buscando a fraternida-
poder mundial pelos comunistas, através da via eleitoral parla- de entre católicos e protestantes, com uma atitude nova, surgida
mentar burguesa, mais cômoda, em vez de se fazer propaganda agora, entre velhos inimigos religiosos (como inimigos também
da revolução violenta. Nada mais restou da ideologia, senão são a Rússia e a China, com interesses opostos sob o mesmo
aquilo que a natureza quer para todos. Ficou a vontade de des- ideal), que agora, quando os interesses coincidem, unem-se,
canso e bem-estar, coisas que todo homem ou grupo aspira de- porque sobrevêm a necessidade de se defenderem de um inimi-
pois de um trabalho pesado. Existe não só o medo da bomba go comum: o comunismo. E tal como, no caso da China, a ini-
atômica e da consequente destruição, mas também o espírito de mizade comum dos Estados Unidos e da Rússia contra ela tem
conservação e o desejo de paz, que segue naturalmente à tem- a força para aliar capitalismo e comunismo, também é uma
pestade da explosão revolucionária. Então a ideologia adorme- inimizade comum, neste caso contra o comunismo, que tem a
ce, e a vida continua a caminhar pelas suas vias. força e o mérito de fazer conciliar duas religiões até ontem ini-
Uma vez que a sua posição e realidade são diversas, a China migas implacáveis. Não podemos fazer outra coisa senão admi-
se afasta da revolução mãe. Então a mesma ideologia é utilizada rar a leviandade do homem e a sabedoria das leis da vida.
em função de outros interesses. A revolução soviética já é velha O princípio fundamental é sempre o mesmo: a unificação de
de 50 anos, enquanto a chinesa é uma filha sua de 35 anos so- elementos individuais, para a formação e a expansão imperialis-
mente. A China se encontra na fase inicial da revolução, dada ta de um grupo. Isto é verdade para a Rússia, a China e os Esta-
pela revolta faminta contra a opressão da velha ordem, e não na dos Unidos, assim como para as religiões cristãs divididas. Ou-
fase do ajuste e consolidação de posições no bem-estar, na qual tro princípio, também verdadeiro para todos, é o fato de que a
se encontra a Rússia. É assim que às alianças de base ideológi- aliança entre inimigos se produz em seguida, para sua própria
cas vão-se substituindo outras, com base no interesse, unindo os defesa, tão logo apareça um inimigo comum. O que prevalece
países pobres contra os países ricos. Por baixo dos princípios sobre todas as ideologias é esta realidade da vida, que se encon-
faz-se um acordo entre o comunismo soviético e o capitalismo tra escondida, trabalhando atrás delas. Esta realidade, na medi-
norte-americano, para formar uma aliança dita dos “ventres da do possível, adapta as teorias a si mesma, transformando-as
cheios” contra a dos famintos. Eis a realidade. Quanto à ideolo- e invertendo-as, sendo que, se não puder fazer isso, então ela as
gia, criada por um pensador em outros tempos e condições de repudia, livrando-se delas. Esta é a história da descida dos ide-
vida, trata-se de coisa demasiado teórica e longínqua para poder ais à Terra. A vida quer, antes de tudo, a sua própria continua-
continuar a se impor como foi concebida. Então nasce a discór- ção e, portanto, somente aceita os ideais quando estes lhe ser-
dia, e quem cede não é a realidade prática, da qual depende a vi- vem para os seus fins, utilizando-os onde e enquanto eles sejam
da, mas sim a teoria. E esta, quando não cede, então se desgarra. utilizáveis para ela, de modo que, quando não lhe servem mais,
Os ideais da China são concretos, utilitários, nacionalistas. ela os lança fora como um estorvo inútil. Aceita-os, enquanto
Na meta das revoluções, hoje, está a conquista do bem-estar isto lhe convém para evoluir, que é a sua grande e principal fi-
econômico de tipo norte-americano, e a medida do seu sucesso nalidade, porém, tão logo esta evolução se torne demasiado ar-
é proporcional ao grau alcançado por elas na realização deste riscada para a sua existência, a vida está sempre pronta para re-
objetivo , sendo que os meios – iguais para todos – são o traba- cuar até às suas posições mais atrasadas, que são mais seguras.
lho, a organização, a produção e a industrialização. O importan- ◘◘◘
te é alcançar esta meta. O fato de ser esta alcançada pela via do Dissemos anteriormente que as revoluções têm um ciclo pré-
comunismo ou do capitalismo pode tornar-se um fato secundá- estabelecido. Como elas fazem parte do fenômeno da descida
rio, reduzindo-se a somente uma questão de método. Eis então dos ideais à Terra, o qual estamos agora estudando aqui, pode
que a ideologia se reduz a uma equivalência de diferentes mei- ser interessante observar a técnica de desenvolvimento deste ci-
os perante o mesmo fim, justamente aquele desejado pela vida. clo. Poderemos assim compreender a estrutura, o significado e
Assim os princípios teóricos passam para um segundo plano. a função biológica das revoluções. Elas representam uma tenta-
Além do bem-estar econômico, com a elevação do seu nível de tiva da vida para realizar um salto adiante no caminho da evo-
vida, a China quer para ela o que lhe serve em primeiro lugar, lução, com o fim de superar a velha ordem e estabelecer uma
mesmo isto não servindo à Rússia de nenhuma forma, ou seja, nova. A realidade biológica contra a qual o ideal se choca é a
ela quer tomar posse de alguns territórios da Sibéria, hoje nas velha ordem, que resiste para sobreviver.
mãos dos russos, e ter a bomba atômica, para poder impor-se Uma revolução, para poder vencer, deve apoiar-se sobre um
com a força e a guerra mundial, porque é interesse seu que os fundo biologicamente vantajoso, que a justifique e a sustente;
Estados Unidos e a Rússia se destruam mutuamente, a fim de deve ser um meio de superação e de conquista de novos valores;
que somente ela sobreviva, senhora do mundo. Onde foi termi- deve possuir, por trás de um manto teórico de ideologia, algo de
nar a ideologia comunista? Este é o velho imperialismo de to- substancialmente vital, de solidamente positivo para a existên-
dos os tempos, fruto do atávico espírito de conquista de todos cia; deve, enfim, realizar-se em função da evolução, lei funda-
os povos. É assim que o ideal vai terminar onde os teóricos mental da vida. De outra maneira não se trata de uma revolução,
de origem nunca haviam pensado, alcançando, em vez da união, mas somente de um “complot” com finalidade partidária, que
50 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
não interessa à evolução. Assim, o tipo de ideal ostentado com traição e um desvio. O desenvolvimento do fenômeno segue a
palavras tem importância relativa. A vida tem uma inteligência, sua própria lógica, que é a lógica da vida. Trata-se de uma ló-
sabedoria e vontade próprias, interessando-se e, somente por is- gica utilitária, mas não no sentido do justo aproveitamento, e
so, permitindo apenas o triunfo daquilo que lhe serve para os sim da obtenção do máximo resultado com um mínimo dis-
seus fins. Esta é a razão pela qual a mecânica das revoluções é pêndio de energias, que evita assim inúmeros desperdícios. A
mais ou menos a mesma para cada um dos seus tipos, sejam elas vida impõe esforços, mas sempre em vista de uma melhoria, o
políticas, sociais, econômicas, religiosas etc. A lei que lhes regu- que é lógico e justo, pois ela, por meio da evolução, quer as-
la o desenvolvimento parece seguir um mesmo modelo. cender do Anti-Sistema ao Sistema, e isto significa salvar o ser
Antes de se manifestarem, as revoluções são preparadas do mal, da dor e da morte, eliminando toda a negatividade que
num período de incubação subterrânea, sendo maturadas no afoga a vida, tanto mais quanto mais ela for involuída. É ins-
subconsciente coletivo. O primeiro movimento é teórico e abs- tintivo, efetivamente, que os deserdados mais atrasados não ar-
trato, nascendo no cérebro de um pensador isolado. Se a sua risquem suas vidas numa revolução, correndo o risco dos peri-
ideia corresponde aos desejos e serve para as necessidades da gos inerentes, apenas para nada, mas somente realizem um tal
maioria, ela terá seguidores e será traduzida em fatos, adquirin- esforço para alcançar condições de vida melhores. De resto, é
do valor prático. A este primeiro período de preparação sucede por isto que a vida faz as revoluções, pois sua finalidade é evo-
a fase de explosão, na qual a nova ideia se afirma, realizando-se luir, o que significa melhorar, subindo em direção a um nível
concretamente. Isto acontece em dois momentos sucessivos. biológico mais elevado. As próprias religiões não tiveram ou-
Primeiro ocorre a destruição da velha ordem e do respectivo tro método para induzir os fiéis a praticar o sacrifício das vir-
poder, para depois haver a implantação e primeira estabilização tudes, senão a promessa de uma recompensa paradisíaca no
da nova ordem. Neste segundo momento, a ideia é arrancada do além, com um substancial melhoramento de vida. É biologi-
pensador que a fez descer à Terra, passando para as mãos dos camente absurdo realizar um esforço para nada, fazendo a re-
homens de ação, que se apoderam dela, para transformá-la em volução pela revolução ou a renúncia pela renúncia. Um risco
realidade. São necessários instrumentos diferentes, para serem e um esforço não podem ser aceitos senão como um meio para
utilizados cada um segundo as suas capacidades, pois quem alcançar uma vantagem que compense ambos. A este esforço
sabe pensar não pode estar especializado na ação, e quem sabe do ser para melhorar corresponde, como é justo, uma ascensão.
atuar não o pode estar no pensamento. Então o desenvolvimen- Mas isto implica em um prêmio merecido, conferido pela Lei
to da revolução conduz a uma etapa decisiva, que é a fase de ao ser, quando este o ganhou com o seu esforço. Os movimen-
expansão, pela qual a ideia de origem se irradia, sendo lançada tos da vida se realizam acompanhados pela balança da justiça.
para longe e difundindo-se pelo mundo. Assim sucedeu com o Eis a razão do aburguesamento. Ele representa um melhora-
cristianismo (levado pelos apóstolos até Roma), com a Revo- mento, constituindo a compensação imediata com a qual a vida
lução Francesa (difundida nas guerras napoleônicas) e com a atraiu e induziu o ser ao esforço, recompensando quem se es-
Revolução Comunista (expandida pela conquista dos estados forçou para ascender. Com isto, ela alcançou o seu fim, que é a
satélites e da China). Depois disto, chega-se à fase de acomo- substituição da velha ordem por uma mais avançada. Isto nos
dação, na qual se consolidam as posições conquistadas, legali- explica também como é lógico que, tendo assim subido um de-
zando-as com uma estrutura jurídica própria, no seio de uma grau, a vida tenda de momento ao repouso, necessário para
nova ordem. Esta é a idade madura, fase na qual ocorre tam- preparar um novo impulso para frente. A cristalização final re-
bém a filiação, quando nascem as novas propagações, que nem presenta o término desse processo evolutivo, após o qual se
sempre são fiéis à ideia-mãe, mas que, mesmo deslocadas em iniciará um outro. Na economia da vida, esta fase representa o
posição, derivam dela, afastando-se assim em forma de cismas, plano realizado e o fruto produzido, concluindo a execução de
a exemplo do protestantismo e do comunismo chinês. Trata-se um passo a frente. O processo despertará novamente, quando
de um período ainda vital, de expansão, mas sobretudo de tiver amadurecido para realizar o passo seguinte.
aburguesamento e de engorda, tendendo ao descanso. Depois Assim se desenvolve a técnica do fenômeno da descida dos
disto chega-se à fase final, de cristalização ou mumificação, na ideais na Terra por meio das revoluções. Descida do alto signi-
qual o impulso original da ideia se esgotou e tudo se imobiliza, fica descida de planos de evolução mais elevados, o que é um
petrificando-se nas formas. Então o ideal, que pediu à matéria conceito positivo. Trata-se da descida de algo que está em posi-
a vestimenta indispensável para poder tomar corpo no mundo, ção evolutivamente mais avançada até aos planos mais atrasa-
acaba por ser envolvido pelas superestruturas materiais. Com a dos, para dinamizá-los e elevá-los em direção ao alto. E é o es-
substituição da substância pela forma, o ideal é então vencido pírito que, encontrando-se mais alto, desce para elevar a maté-
pela matéria e, tendo esgotado a sua tarefa, extingue-se na Ter- ria. É como uma descida do divino no mundo, trazendo o Sis-
ra. Com isto se encerra aquele ciclo, sendo que, para continuar tema para próximo do Anti-Sistema, para que este seja alvo.
progredindo mais ainda, é necessário começar outro, com uma Trata-se de um processo de redenção. Desta forma, quem se
nova revolução, seja ela política, para construir uma nova or- encontra mais embaixo sobe pela vertente da montanha da as-
dem social-econômica, ou religiosa, para alcançar uma doutri- cese, guiado e ajudado pela mão que Deus lhe estende do alto.
na mais avançada, com bases mais profundas. É assim que o Tudo isto nos explica porque, na primeira fase da descida
novo abre caminho e vai para frente, realizando-se a evolução. do ideal – a fase explosiva – a ideia motriz que ele representa
Esta é a forma pela qual, através de sucessivos impulsos, os nos chega com toda a sua potência. Uma vez que o dinamismo
ideais se afirmam na Terra, vencendo a velha ordem, que, en- do espírito está todo concentrado nela, o fenômeno, neste seu
trincheirada nas posições já conquistadas, resiste em nome de primeiro período, apresenta-se-nos em forma de expansão ex-
Deus, dos princípios, da justiça, da honestidade e das leis, fei- plosiva. Nesta fase, a sua função é a difusão. Mas eis que esta
tas, antes de tudo, para ela mesma. tende a esgotar o impulso de origem e, com isto, a deter-se, o
Todos estes acontecimentos, do princípio ao fim, represen- que se verifica depois de terem sido realizadas as devidas des-
tam um esforço realizado pelo ser para ascender, justamente o locações biológicas, porque a vida as recebeu e as fixou em si,
sentido no qual a vida quer evoluir. Esta, então, vendo-se se- para conservá-las como suas novas qualidades assimiladas.
cundada na ascensão do seu impulso fundamental, não pode Chegando a este ponto, o lançamento da ideia alcançou a sua
deixar de encorajar semelhante esforço, premiando-o. Esta é a finalidade e, neste momento, não existe razão para que se exija
razão pela qual, nas revoluções, pode-se verificar no final um outros esforços no sentido de realizar outros avanços à frente.
aburguesamento e uma cristalização, ainda que isto pareça uma Então o processo genético se acalma. O ser executou o seu de-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 51
vido passo e, agora, pode parar, a fim de repousar e, assim, do impulso em direção ao alto, sofreu uma deslocação das suas
acumular as forças necessárias para realizar um novo salto posições anteriores. Assim, foi abolida a escravidão, tendo si-
evolutivo, consolidando-se ao mesmo tempo nas posições con- do introduzido na vida social um sentido de justiça mais pro-
quistadas. Este é o modo como a natureza trabalha, previdente fundo. Em 2000 anos, o paganismo de Roma foi levado muito
e econômica. Para não romper o equilíbrio do processo evolu- mais à frente, tanto que até lá já não é mais possível retroceder.
tivo e possibilitar sua realização de acordo com os meios dis- E se tiver de surgir uma nova revolução religiosa, como é pro-
poníveis, a vida procede prudentemente, por graus sucessivos, vável que aconteça por meio da ciência, ela não poderá mais
de modo que, antes de ascender a um nível superior, ela quer partir do nível do paganismo, mas sim de um nível muito mais
confirmar as conquistas no inferior. Não se pode edificar um adiantado, dado pelo cristianismo atual, e isto significa poder
plano sobre outro, se, primeiramente, não nos asseguramos que alcançar, no final da nova trajetória, um cume de onda evoluti-
o precedente foi solidamente alicerçado, para poder continuar va muito mais elevado do que o já alcançado agora pelo cristi-
com segurança a construção por cima dele. Assim, há na histó- anismo, que partiu de bases muito mais atrasadas.
ria períodos de repouso, nos quais a vida suspende momenta- A revolução russa e a chinesa não estão de acordo, porque
neamente o seu esforço evolutivo, parecendo adormecer. Mas se encontram em diferentes fases de desenvolvimento. A pri-
o que ela amadurece interiormente nestes períodos é percebido meira é mais velha do que a segunda, além disso, como já refe-
apenas depois, quando irrompe uma nova explosão, com a des- rido anteriormente, a chinesa encontra-se ainda em fase explo-
cida na Terra de um mais alto ideal. siva, enquanto a russa está em fase de estabilização. Esta já
Podemos, assim, traçar a linha que a evolução percorre na conquistou os seus estados satélites e realizou a sua expansão
sua ascensão. O dinamismo do ideal levanta uma grande onda, imperialista, que é a tendência de todas as revoluções, como
que conduz o homem a um nível biológico superior àquele no parte normal do seu processo de desenvolvimento. A Rússia
qual teve início o movimento. Alcançando o ápice da subida, chegou até Berlim, assim como Napoleão invadiu a Europa. A
decorrente do poder explosivo do ideal, a trajetória volta a China quer chegar até Calcutá, à África e à Austrália. A revolu-
descer, mas apenas até um certo ponto, o qual está sempre em ção chinesa é uma filiação cismática da russa. Trata-se de dois
um nível mais alto do que o precedente ponto de partida. Des- processos sucessivos, que recordam a desintegração atômica
se modo, depois das revoluções, que representam uma reação em cadeia. A revolução russa, em sua fase explosiva, ateou fo-
evolutiva em subida por parte da Lei, verifica-se do lado go à chinesa, que se tornou depois centro de uma nova explosão
oposto uma contrarreação involutiva por parte do ser, em des- e expansão, ateando fogo a outros países. Tratando-se de dois
cida, na qual ele tende a regressar ao nível precedente, sem centros de expansão, é natural que se choquem mutuamente. O
contudo alcançá-lo – condição esta pela qual se realiza o pro- resultado do impulso da mesma ideologia foi que a Rússia fez
gresso – detendo-se um pouco mais acima, num ponto que, uma revolução para si mesma, para a sua expansão no mundo,
em relação àquele no qual se iniciou o movimento precedente, da qual a revolução chinesa é agora um efeito, enquanto a Chi-
é mais avançado, a partir do qual será iniciado depois o novo na, uma vez tendo captado o impulso recebido, tornou-o seu de
impulso para frente. A descida do ideal produziu pela explo- fato, como causa independente, e agora ela também faz a sua re-
são um abalo que rompeu os equilíbrios nos quais repousava a volução para si mesma, para a sua expansão no mundo. O fogo
vida, deslocando-a e impedindo, assim, que ela reencontrasse se comunica, mas cada um o consome para si, ardendo à sua
os equilíbrios das posições anteriores. maneira. Poderá suceder em outras nações o mesmo processo
Assim, por exemplo, Napoleão, filho da Revolução France- ocorrido com a China, se esta quiser e conseguir comunicar-lhes
sa, resolveu regressar ao modelo monárquico, julgando possí- o seu impulso revolucionário. A passagem de uma ideia de um
vel fundar com a sua família uma nova dinastia e reproduzir a país para outro, de acordo com as diversas condições de fato que
estrutura social que a revolução havia destruído. Mas já não se ela encontra, acaba tomando a forma de cisma. Os filhos são
podia retroceder até esse nível. A Revolução Francesa tinha uma consequência, mas nunca uma exata continuação da vida
terminado com o sistema monárquico de origem feudal, que dos pais. A ideia se transmite, mas depois cada um a adapta ao
era uma forma mental já superada. A esse plano de organiza- seu ambiente e posição histórica. Assim, se o comunismo se ex-
ção social, portanto, já não era mais possível descer. Então, pandisse, teríamos dele tantos tipos diferentes, quantos seriam
como tinha de ser, o projeto de Napoleão ruiu, e esse sistema os povos que o adotassem. Não é instintivo que os filhos se se-
foi sendo abandonado pouco a pouco em todo o mundo. É as- pararem dos pais para seguir uma vida própria independente?
sim que, nestes períodos de descida, tende-se a regressar ao Uma vez lançado um impulso, este continua autônomo. As-
passado (tentativas de reconstrução monárquica na França, sim o ideal, comunicando-se de um país a outro, ecoa na Terra,
com Luís XVIII, depois da queda de Napoleão, procurando re- emigrando e se expandindo. As ideias da Revolução Francesa
petir os erros, os abusos e as culpas da classe que a revolução transplantaram-se para a democracia norte-americana, assim
condenou e eliminou). Mas trata-se de tentativa inútil, porque, como a ideia de Cristo arraigou-se em Roma. A semente é le-
depois do abalo recebido, o velho sistema já não tem mais con- vada longe, em busca do terreno mais adequado para dar fruto.
sistência e, se for reconstruído, desmoronará prontamente. Ao Essa semente foi depois levada para mais longe, além de Ro-
ponto de partida da revolução precedente não se pode voltar. ma, gerando nos países anglo-saxões o protestantismo, no qual
Este é o seu fruto. E quando tiver lugar uma nova revolução, o outra raça utilizou para as suas necessidades, em forma dife-
seu ponto de partida estará mais alto, de modo que, no ápice da rente, a mesma ideia de origem. Assim, o processo da descida
nova onda, é possível chegar mais alto ainda. dos ideais se realiza não só na profundidade das almas, trans-
É assim que a revolução comunista na Rússia, onde ela é formando-as evolutivamente, mas também em superfície, in-
mais antiga do que na China, tende a se aproximar do capita- vadindo espacialmente o mundo. O processo se cumpre em pe-
lismo do tipo europeu e norte-americano, que se tornou mode- ríodos de esforço alternados com outros de descanso, para con-
lo mundial de bem-estar. Com isso, ela voltou a descer, mas tinuar depois, mais adiante, com outro esforço e, assim, chegar
não até ao nível do capitalismo czarista. Da mesma forma, a mais acima, para descansar e logo depois recomeçar de novo.
revolução espiritual do cristianismo, já assentada jurídica e Tudo isto é parecido com a construção de um arranha-céus,
economicamente numa casta com poder político, amalgamada onde um plano é construído acima de outro, servindo a cons-
com o mundo, seu inimigo, do qual adquiriu as qualidades, trução precedente de base para a seguinte, e assim subindo
voltou a descer em direção ao nível do paganismo, mas sem sempre mais alto. Virá o dia no qual o comunismo, assim co-
alcançá-lo e apenas temporariamente, porque, devido à força do mo o cristianismo na sua forma atual, serão ideias velhas e su-
52 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
peradas, como seria hoje um movimento do tipo da Revolução Semelhantes conceitos, porém, somente se tornaram racional-
Francesa, feito para destruir o sistema social do feudalismo. mente aceitáveis com as teorias da evolução e da reencarnação.
Para continuar evoluindo, o mundo necessita de outras revolu- As coisas do mundo não são más em si mesmas, porém, quando
ções, que partam de um ponto mais avançado, para chegar a se faz um mau uso delas, ficam envenenadas por esta distorção,
um mais adiantado. Assim ele poderá alcançar formas religio- de maneira que a vida as repele. Neste sentido, Cristo se faz
sas e econômico-sociais mais evoluídas. inimigo do mundo. Se, hoje, o instituto da propriedade – um fa-
Os encarregados de executar o trabalho de personificar e di- to justo e natural, conhecido e admitido até mesmo pelos ani-
vulgar na Terra o ideal são os tipos biologicamente mais avan- mais – está sendo combatido, é porque se cometeu tanto abuso,
çados. Eles são incumbidos do lançamento de novos impulsos e, que a concessão da posse pode constituir um mal.
por isso, são chamados em missão, como dinamizadores da vida. Na Terra, podemos constatar a presença de duas morais
Eles representam o princípio que, constituindo o fulgor de pen- opostas. Pode-se sacrificar a sobrevivência pela superação, re-
samento que se descarrega na Terra, desce dos planos superiores nunciando a vida presente, para ganhar a vida futura, ou pode-se
do espírito ao nosso mundo. Aqui, na matéria, ele encontra a sacrificar a superação pela sobrevivência, renunciando a vida fu-
mulher fértil, que, na atmosfera de destruição, espera o homem tura, para gozar a vida presente. As duas vantagens juntas não se
fecundador aproximar-se dela, para refazer tudo desde o princí- pode obter. É sobre estes conceitos que se baseia a moral das re-
pio, aceitando e absorvendo dele o poder que lhe dá forma con- ligiões, sobretudo o cristianismo. No entanto elas, falando so-
creta na vida. No processo da descida dos ideais, os dois ele- mente de céu e paraíso, não dão uma explicação lógica e ponde-
mentos se unem e ficam juntos para colaborar na gênese do no- rada, deixando no estado nebuloso de fé um problema de impor-
vo. À ideia corresponde o dever de arrastar as massas, mesmo tância vital, que, visto segundo a teoria da evolução, torna-se
que isto signifique submergir-se no lodo. Às massas corresponde claro. Todo indivíduo, segundo o ponto de referência em direção
o dever de aceitar e absorver. Enquanto a ideia apresenta e lança ao qual a sua natureza o leva, escolhe um ou outro caminho. O
o pioneiro da evolução, as massas fornecem, com o rebanho de imaturo é atraído pelo mundo, onde encontra o que ele gosta e o
seguidores, a matéria a ser plasmada. Forma-se assim um pro- que lhe serve para realizar-se. Quem está maduro para dar o sal-
cesso de colaboração. Mesmo lutando um contra o outro, os dois to à frente, em direção a um superior nível evolutivo, não é atra-
termos, justamente porque lutam, abraçam-se. Se eles são inimi- ído pelo mundo, onde não encontra o que gosta nem pode se rea-
gos, então entram em choque, mas isto os leva a se conhecerem lizar, e por isso lhe vira as costas, buscando outro lugar, onde
melhor. Com efeito, ao homem do ideal o mundo oferece o mar- possa melhor se realizar, segundo a sua natureza.
tírio, porém, logo depois de ter feito dele uma vítima, termina O contraste das posições faz que, onde um afirme, o outro
por glorificá-lo e venerá-lo. Assim se explica a contradição hu- negue; onde haja vantagens para um, haja perda para o outro.
mana em que a perseguição é o precedente natural e habitual da Cada juízo e apreciação depende da posição assumida, de modo
aceitação e exaltação. Mas isto não é contradição. Trata-se ape- que, passando de uma para outra, inverte-se a tábua dos valores.
nas do choque entre dois termos opostos, que constituem os dois É lógico que seja assim, porque a nossa dimensão, na qual vi-
momentos diversos e necessários do mesmo fenômeno. Este, as- vemos, é o relativo. As mesmas coisas podem ser vistas em
sim, desenvolve-se num encadeamento de causas e efeitos, ao função do Céu ou da Terra, o que leva a conclusões opostas.
final do qual, do incandescente impulso de origem não restam Que sucede então, quando os ideais descem a Terra, onde
senão as consequências fixadas na forma da vida. Mas isto é eles são naturalmente vistos e entendidos em função dela, que é
precisamente o que a vida quer, porque então a finalidade da o ponto de referência humana? Que faz o involuído com estes
descida do ideal – realizar a evolução – foi alcançada. Num conceitos, destinados antes para os maduros, que querem se
mundo em que a existência consiste num contínuo vir-a-ser e afastar da Terra? A vida do imaturo será uma negação contínua
qualquer posição definitivamente estática é impossível, nenhum das coisas do espírito, enquanto que a dos maduros será uma ne-
ser pode permanecer fixo em condições de imobilidade. A des- gação contínua das coisas do mundo. É assim que, de fato, sen-
cida dos ideais, realizada em ondas sucessivas, marca o ritmo do do o tipo involuído a maioria no mundo, não encontramos o ide-
universal processo evolutivo, animando-o e sustentando-o, para al, mas sim uma tentativa de inversão dele. Mais do que servir
que ele eleve e arraste tudo até Deus. para elevação e santificação em direção ao alto, ele é utilizado
para abaixamento e corrupção em direção à animalidade. Obser-
II – O Evangelho e o mundo vemos este fenômeno, a fim de nos darmos conta da contradição
que, por detrás das teorias e das palavras, vemos existir nos fatos
Continuemos observando a luta entre os dois termos opos- e da qual não saberíamos de outro modo encontrar a razão. Este
tos: o ideal e a realidade da vida, cada um deles representado é o ambiente no qual o evoluído deve estar imerso, para santifi-
pelo seu correspondente biótipo – evoluído ou involuído – e a car-se, um mundo carregado de animalidade, que trata de masca-
sua respectiva moral. Tem-se, por um lado, a superação, apon- rar e sufocar tudo o que é espírito, para se livrar deste. Devido a
tando para planos superiores de evolução, e, por outro, a sobre- esta diferente moral do mundo e suas respectivas finalidades, é
vivência na Terra, consolidando e radicando a posição no mun- natural que se tome aqui em consideração o ideal sobretudo para
do. Trata-se de duas concepções opostas. Ou se vive em função torcê-lo e adaptá-lo. No mundo, ele é um estranho e um intruso,
da Terra, aderindo-se ao mundo e à vida presente, ou se vive que pretende impor a sua lei em casa alheia. Ele representará o
em função do Céu, visando-se a vida futura, situada num mais futuro, mas hoje, na Terra e no atual grau de evolução, represen-
alto nível biológico. Neste último caso, tendo em vista realiza- ta uma deslocação anacrônica, algo fora de lugar, em contraste
ções mais longínquas, descuida-se daquelas imediatas, tal como com a realidade da vida. Que pretendem fazer os anjos no reino
faria o homem previdente, que trabalha e leva uma vida modes- da animalidade? E que diriam eles, se representantes deste nível
ta no presente, para poder um dia gozar de um futuro folgado. inferior se colocassem no Céu, penetrando um mais avançado
A existência presente, então, não é um fim em si mesma, mas plano evolutivo, para impor ali as suas próprias leis atrasadas?
serve somente como preparação para uma vida melhor. Esta foi Tomemos o caso do Evangelho. Observemos como ele pode
a concepção das religiões cristãs da Idade Média, ideia surgida aparecer, quando é visto com os olhos do normal tipo animal-
sobretudo devido às duras condições de vida da época, pelas humano, bem afirmado no seu nível biológico, com a sua cor-
quais se acabava induzido a buscar uma fuga da selva feroz respondente forma mental, que o leva a julgar tudo em função
e inabitável que se tornara o mundo, procurando uma evasão da Terra, seu ponto de referência. Para este biótipo, fechado
e compensação para, pelo menos, sobreviver em algum lugar. dentro desta realidade, o Evangelho parece um absurdo, contra
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 53
o qual é a própria vida que, impondo a revolta do ser através um santo seja condenado em nome de Deus, precisamente por
dos instintos, acaba rebelando-se. Eis que este absurdo é prega- aqueles que se declaram Seus ministros. Se Cristo tivesse sido
do e proposto ao ser como exemplo de coisa superior, imposto somente um teórico idealista, o Sinédrio não teria se incomoda-
a ele para seu bem, no entanto a realidade da vida lhe diz algo do tanto por Ele. Mas a reação foi grande, porque a pregação de
bem diferente, mostrando que tudo isto significa sacrifício, re- Cristo tocava interesses vitais de sobrevivência, ameaçando os
núncia, sufocação e dor. A compensação que justifica tanta alicerces materiais do clero de então.
perda é longínqua e nebulosa, estando situada no além e consti- Isto permanece verdadeiro para todos, tanto grandes como
tuindo somente um objeto de fé, não controlável. Será então pequenos, pois a lei do fenômeno é a mesma e se repete em
verdade? A vida nos ensina que é melhor não confiar. cada caso. A descida dos ideais não pode ter lugar senão atra-
No entanto é certo que também a Terra tem a sua lógica, a vés do sacrifício de quem procura realizá-lo, porque tudo na
sua moral e as suas leis, sendo que estas costumam aplicar du- Terra se coliga contra este tipo de ser, constituindo um martí-
ras sanções a quem as viola. Se no Céu há um castigo para rio infligido a ele, até mesmo em nome de Deus (Sinédrio) e
quem faz o mal, na Terra há o castigo para quem, com o fim de da justiça (Pilatos), pelo tipo involuído dominante, que, pro-
fazer o bem, deixa-se esmagar. Aqui, o que importa não é a jus- fessando-se defensor do ideal, utiliza-o de forma invertida,
tiça, o bem ou o mal, mas sim a força e a astúcia para vencer. mostrando-nos assim o uso que se pode fazer dele na Terra. O
No mundo comanda a lei da luta pela vida, e quem não lhe mundo se rebela contra os ideais, que o incomodam. Ele quer
obedece é severamente castigado. Cristo foi morto porque vio- de fato a religião que, através de um trabalho milenário, esteja
lou as leis da Terra, tendo feito isso na casa delas, no lugar que ajustada às suas comodidades, feita de práticas exteriores, as
elas dominam, aonde Ele desceu, vindo do seu plano, situado quais, uma vez satisfeitas, não impeçam a realização dos negó-
bem longe nos céus. Ele desafiou o mundo. Mas este O fez pa- cios e interesses de cada um. No entanto ele não se dá conta
gar caro a sua revolta, respondendo-lhe com a traição, para de- que, assim, demonstra não entender de substância, mas apenas
monstrar com isto que é o mais forte na própria casa e que, co- de forma, não sabendo o que é de fato religião.
mo tal, tem direito à obediência. Se as leis do Céu castigam o Pode suceder deste modo um fato estranho. Quando se trata
violador com o inferno, as leis da Terra o fazem com a morte. de problemas religiosos, a reação e a condenação contra qualquer
E, se Cristo quis viver, teve de fazê-lo fora da Terra, indo em- erro é tanto mais provável e decidida quanto mais os interesses
bora e ressurgindo noutro tipo de vida, situada nos céus, en- humanos são atacados pelas teorias. De um modo geral, todo
quanto aqui embaixo venceram e ficaram vivos os seus inimi- grupo humano é, inicialmente, induzido a conceber a ideia em
gos. As leis do inferno, assim como as da Terra, não ultrapas- função da sua utilização terrena. De outro modo, para que ser-
sam os seus limites, mas, dentro deles, são donas absolutas. As viria ela na Terra? Não se saberia o que fazer com ela. Então
compensações extraterrenas não interessam ao mundo. Para ele, aquele que vê a ideia em si mesma, pela sua realização, e não em
a vida terrestre representa a vida toda e, portanto, estas vitórias função da sua utilização terrena, é repelido, porque vai contra a
sobre-humanas são uma fuga da vida. Para os terrestres, as con- corrente, sendo condenado como inimigo do ideal, quando, na
tas são pagas em seguida, na própria Terra, não lhes importan- verdade, é o seu melhor amigo. O erro nasce do fato de que o
do o Céu e as suas superiores compensações futuras. cristianismo parece representar Cristo, quando, de fato, não é se-
Trata-se de duas leis e morais opostas, que se negam reci- não uma adaptação que o mundo fez para si mesmo de Cristo,
procamente, e cada uma, na própria casa, castiga quem segue a seu inimigo. Então é amigo da religião quem está do lado do
lei e a moral da outra parte. Aquilo que para uma constitui culpa mundo, e não quem está do lado de Cristo, não podendo ser se-
e, portanto, é castigado, para a outra significa virtude e, portan- não assim na Terra. Por lei biológica de conservação, o que mais
to, é premiado. O prêmio no Céu é pago, portanto, com o castigo interessa para qualquer grupo humano não é tanto o conhecimen-
na Terra, mas o castigo no inferno também é compensado com to ou a verdade, mas sim a defesa da própria posição terrena. Os
um precedente gozo na Terra. Explica-se, assim, como tantos, altos princípios são defendidos somente quando levam à posição
para não trocar o certo pelo incerto, preferem buscar, antes de do “eu comando” e, portanto, “tu obedeces”. Isto é o que mais
tudo, as satisfações terrenas mais imediatas e tangíveis, dado importa. O ideal, mais do que um fim, é um meio. Não se discute
que não se pode usufruir simultaneamente daquelas superiores. sobre a própria autoridade e a obediência alheia. Assim, se o in-
Mas nem por este motivo o engenho humano parou. Então, divíduo obedece, então ele é bom, de boa moral, louvável e pre-
na tentativa de usufruir ambas, surgiu a escola das adaptações, miado. Mas, se o indivíduo se coloca na posição de “eu coman-
especializada na função de conciliar os dois opostos, para extra- do”, então certamente será desencadeada imediatamente a bata-
ir vantagem dos dois lados, diluindo em porções suportáveis lha entre rivais no poder, mesmo que ele tenha agido assim para
somente uma determinada percentagem do Evangelho, de modo não ceder às acomodações e salvar a integridade da ideia.
a poder ir para o Céu sem grande incômodo. A louvável tenta- Quando o homem atribuiu a Deus as palavras: “Eu sou o Se-
tiva não deu como resultado senão um produto híbrido, que não nhor teu Deus, e não terás outro Deus senão a mim”, expressou
é nem Céu nem Terra, mas sim um céu que, tornando-se menti- um pensamento próprio, antropomórfico, imaginando para si
ra, corrompeu-se na Terra e uma Terra que, em vez de ser sane- mesmo um Deus feito à sua imagem e semelhança. A base de
ada pelo Céu, procura corrompê-lo. Dado isto, pode-se verificar cada posição consiste em eliminar os rivais, assegurando-a. Esta
o fato de que, por seguir a Cristo e o Evangelho, quem gosta de é a lei do grupo e o direito do seu chefe. É ortodoxo quem,
fazer as coisas com seriedade encontra-se condenado não só pe- mesmo não crendo, é praticante e trabalha a favor do grupo, ain-
lo mundo, seu natural inimigo, mas também pelos acomodados da que a ideia não lhe interesse. Mas pode parecer herege quem
bem-pensantes, que se aninham em bandos dentro das religiões. se apaixona pela ideia e pesquisa a verdade, visando o progresso
Pode suceder então que o verdadeiro cristão se encontre isolado espiritual; quem sente a febre das conquistas superiores, sobre-
contra a corrente, sendo repelido pelo mundo e, em razão de tudo se, por amor à verdade e honestidade, mostra as lacunas,
sua não ortodoxia, olhado com suspeita pelas religiões, adapta- para eliminar defeitos. Quem não apoia e não se coloca do lado
das à forma mental terrena da maioria. Não foi justamente esta do próprio grupo, é julgado inimigo da verdade, que é somente
a razão pela qual Cristo foi crucificado por uma religião que, no aquela do grupo, sobre a qual se baseiam seus interesses. Este
final das contas, representava somente interesses terrenos? Ele conceito, na Terra, é a base dos juízos, seja da razão ou do erro,
era inimigo do mundo, e não da religião. Se esta o condenou, da aprovação ou da condenação. A ideia da verdade e da justiça,
foi porque ela acabou representando o mundo, inimigo de Cris- na Terra, está ligada ao poder soberano que as outorga. Assim, é
to. Assim se explica como pode acontecer a contradição de que verdadeiro e justo o que a ele lhe agrada no seu interesse. Portan-
54 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
to, tornando-se agradável e submentendo-se a ele em obediên- a verdadeira e a falsa religião, entre aquela substancial, que é
cia, obtém-se tudo dele. Se esta é a forma mental humana que se cansativa, mas feita para ascender, ou aquela formal, que é
construiu ao longo da história, como impedir que esta represen- cômoda, mas feita para perder tempo. A decisão é determinada
tação antropomórfica sobreviva nas religiões? É assim que espe- pela natureza do indivíduo, segundo a qual ele se sente instin-
ramos obter algo de Deus não por um princípio de justiça e de tivamente atraído por um lado ou pelo outro, ficando mais à
merecimento, como quer a Lei, mas sim exigindo-o de Deus vontade num ambiente do que em outro. O involuído vai para
como um caprichoso favor, tentando tornar nosso interesse van- um lado, onde o mundo todo está pronto para recebê-lo. O
tajoso para Ele, subornando-O com sacrifícios e ofertas. evoluído vai para o outro, onde Cristo espera estes solitários
Há uma grande diferença entre aqueles que criticam a reli- incompreendidos. Os dois tipos se separam. Um caminho vai
gião com espírito agressivo, para destruir, e os que, desejando o em direção a Terra, o outro vai em direção ao Céu. O primeiro
melhoramento e o progresso de tudo, expõem a posição atrasa- parece dirigir-se para o Céu, mas o que importa não é a apa-
da mantida por ela. No entanto ambos os casos são confundidos rência, e sim a substância. Há indivíduos que se encontram
e frequentemente recebem o mesmo tratamento. É o caso de perfeitamente à vontade onde outros se sentem sufocar. Quem
Savonarola, cuja reabilitação inclusive se comenta hoje. Na gosta de usar a sua inteligência para obter vantagens terrenas e
Terra, quem não apoia, deixando de participar, é julgado inimi- imediatas, mesmo que para isso prostitua o ideal, termina por
go. Vê-se assim um ataque onde ele não existe. Mas o espírito obtê-las e, com isto, é compensado pelo seu trabalho e valor.
de luta com o qual se rege a sobrevivência do grupo armado em Mas existe também quem, não podendo e não sabendo fazer
defesa própria é tal, que se é levado a reagir contra qualquer tão mau uso da sua inteligência, sente-se inclinado a utilizá-la
dissidência, mesmo quando ela está a favor dos princípios sobre para fins mais elevados, elegendo o ideal e com ele alcançando
os quais se baseia o grupo. Não há nada que irrite tanto os aco- também uma compensação, mas não na Terra, porque, não
modados como denunciar as razões das suas acomodações. O sendo esta a sua casa, não é possível ele ser pago aqui por se-
interesse maior de quem utiliza o ideal para finalidades terrenas melhante trabalho e valor. Tais evoluídos, porém, são poucos,
é precisamente esconder este fato, para se fazer visto como se- e as religiões, que são feitas para as massas, devem se confor-
guidor de fins espirituais. Como se pode harmonizar quem quer mar em levar um pouco mais adiante a animalidade humana.
fazer as coisas seriamente com quem se limita somente às apa- Trata-se de um trabalho elementar e pesado, este de disciplinar
rências? Na verdade, o primeiro tipo aparece ao segundo como e educar o animal, para transformá-lo em homem. O evoluído,
um grande perturbador, que urge eliminar. Ele incomoda mais então, não pode deixar de avançar sozinho. Mesmo mostrando-
do que os ateus materialistas, que são mais fáceis de combater, se obedientíssimo, permanece independente em substância,
porque se colocam na posição de inimigos, enquanto aquele fa- como é o espírito. Mesmo que a sua religião, para ser mais
la em defesa dos mesmos princípios, convidando a observá-los. próxima de Deus, possa parecer ao mundo irreligiosa e heréti-
É assim que o melhor amigo do ideal é tratado como seu inimi- ca, ele permanece fiel ao ideal. Em qualquer sociedade, quem
go. Não foi este o caso de Cristo? Cuidado, portanto, ao se la- se encontra fora dela, porque está acima ou abaixo da média
mentar da falta de religiosidade das religiões. Quem é verdadei- normal, que estabelece a lei, é sempre segregado e condenado,
ramente religioso acaba sendo condenado por irreligiosidade. seja porque ele está demasiado adiantado (o super-homem), se-
Mas, por outro lado, que fazer, se a forma mental humana não ja porque está demasiado atrasado (o delinquente).
sabe conceber as coisas senão em função da sua utilização ter- ◘◘◘
rena, mesmo quando se referem a Deus? Na prática, o que mais Voltemos ao caso do Evangelho. Que acontece quando ele,
agrada ao grupo, pois serve para sua defesa, é o espírito sectá- que representa a lei de um plano evoluído superior, encontra-se
rio, origem da intransigência contra os outros grupos. O resul- com o mundo, vindo a conviver e, com isto, a chocar-se com lei
tado é que, assim, não pode permanecer dentro desta psicologia de um plano inferior? Que reações são desencadeadas? Trata-se
quem é obrigado, para permanecer religioso, a isolar-se, elimi- de um choque entre elementos e impulsos diferentes, que origi-
nando as formas exteriores exigidas para encerrar o indivíduo nam determinadas reações, estabelecidas por leis que regulam o
num grupo ou em outro. Tal indivíduo, acaba assim por ficar fenômeno, tal como nas combinações químicas. Ninguém nega a
somente com Deus, seguindo uma religião não de palavras mas beleza do ideal. Mas que sucede quando queremos aplicá-lo no
de fatos, não de forma mas de substância. Trata-se, porém, de ambiente terrestre? O ideal exige honestidade, bondade, altruís-
casos excepcionais, que não interessam às massas, pois estas mo, desinteresse e justiça, o que significa sacrifício do indivíduo
não sabem funcionar senão como rebanho, formado de indiví- em benefício dos outros. A lei da Terra fala bem claramente que
duos aos quais não podem ser concedidas semelhantes liberda- somente quem é mais forte e sabe vencer com qualquer meio
des, porque eles carecem de consciência, autocrítica, sentido de tem o direito de viver. Ao débil resta apenas ser escravizado,
responsabilidade e conhecimento, qualidades do evoluído. explorado, devorado e, por fim, eliminado. Ora, não importa por
No entanto é a este tipo excepcional, expulso das filas, que quais princípios superiores ele o faça, mas o Evangelho, na Ter-
é confiada a função evolutiva de realizar os ideais, fazendo-os ra, quer colocar o indivíduo nesta posição débil, porque o de-
descer à Terra. Por isto Cristo se encarnou, para impulsionar sarma e lhe impõe a não resistência, para que, mesmo sendo um
em frente a humanidade e possibilitar que se começasse a apli- forte, ele não se defenda quando o assaltem e seja assim devora-
car no mundo a lei de um nível biológico superior. Ele foi um do e eliminado. Resumindo em poucas palavras, na linguagem
pioneiro da evolução, assumindo a posição de vanguarda, como do mundo, à força de virtuosas renúncias para si e generosas
antecipação de nosso futuro, porque evoluir é uma tremenda concessões ao egoísmo dos outros, o Evangelho desejaria trans-
necessidade da vida. E todos os seguidores de Cristo são seus formar o indivíduo neste tipo que, ao ser golpeado, é paciente,
colaboradores neste imenso trabalho. Esta é a função biológica sendo este justamente o exemplar mais procurado na Terra, o
do ideal e o significado da sua descida na Terra. cordeiro de cujas carnes se aproveitam os lobos, para banquetea-
Ora, o que faz o indivíduo, em particular, decidir-se por um rem-se e engordarem. O Evangelho diz: “Vai à floresta cheia de
ou outro destes dois caminhos, isto é, escolher o caminho do feras, mas sem armas, para abraçá-las e amá-las”. Porém, em
ideal, por ele sacrificando a vida no mundo, ou o caminho do vez do seu amor, as feras querem a carne dele, para devorá-la, e
mundo, desfrutando do ideal para sua própria vida? Esta deci- se apressarão em destruí-lo. Como respondeu então o mundo ao
são é oferecida a todos, mas as respostas são diferentes. Há convite evangélico? Conhecendo bem o seu ambiente e não per-
quem se sacrifique para seguir o ideal, e há quem o prostitua, dendo a cabeça, a sua resposta foi usar o Evangelho como bela
fazendo comércio com ele. O indivíduo pode escolher entre teoria, para pregá-lo aos outros, sobretudo porque isto podia ser
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 55
utilizado para transformar os lobos em cordeiros, permitindo Terra um Evangelho que se apresenta numa forma antivital em
banquetear-se com suas carnes e engordar melhor. relação ao ambiente, como perda, e não como benefício, como
Se queremos compreender o que acontece na Terra, devemos negação, e não como afirmação. É certo que, se o ponto de refe-
nos referir às leis biológicas que imperaram até aqui, e não às rência não for mais a Terra, mas sim o Céu, então a negação se
estruturas metafísicas sobrepostas a elas e situadas fora dessa re- torna afirmação e a afirmação, negação. Também o involuído
alidade. Esta nos ensina que a vida, no ambiente terrestre, não se possui a sua afirmação, mas ele está a favor do mundo, contra a
baseia na bondade e na justiça, mas sim sobre a força e o enga- evolução, e, além de ser, também quer permanecer atrasado no
no. Qualquer vantagem que se queira obter é extraída com estes seu nível, sem arriscar-se em aventuras evolutivas para as quais
meios, pois, de outra forma, ninguém a concede. É sobre estas o indivíduo ainda não está maduro. Ele não pode sair repentina-
bases que de fato se apoiam as relações com o próximo: “devora mente do baixo nível da sua animalidade, que constitui a sua na-
a teu próximo, se não queres que o teu próximo te devore”. En- tureza e a sua sabedoria, sendo toda a equipagem de que dispõe
tão cada um poderia replicar: “Se eu escuto o Evangelho e o si- para poder continuar vivendo. Não se pode transportar as feras
go de verdade, quem defenderá depois a minha vida? Ele me para fora da floresta, onde vivem como tais, conforme sua apti-
oferece como compensação o paraíso, mas me deixa morrer na dão e como exige a sua vida, pois transportá-las para um ambi-
Terra. Isto resultará na ascensão a um plano de vida superior, ente civilizado significa matá-las.
mas eu devo primeiro viver a minha vida no nível evolutivo atu- De tudo isto se poderia concluir que a proposta feita pelo
al”. Com efeito, a religião pede sacrifícios com vista a benefí- Evangelho ao mundo não é aplicável senão coletivamente. En-
cios longínquos, mas o que nos oferece ela como proteção na lu- quanto isto não ocorrer, ao pioneiro isolado não lhe restará se-
ta pela vida, que é mais urgente? Poderá nos santificar depois da não o martírio, a hostilidade do ambiente e a fuga através da
morte, se isto serve aos seus fins e se houver quem esteja inte- morte. O seu sacrifício o eleva, mas o mata na Terra. A econo-
ressado nesta santificação. Mas tudo isto de nenhum modo nos mia da vida terrestre se baseia em outros princípios. O Evange-
ajuda na vida, não sendo possível, depois de morto, acrescentar lho, em forma estável, somente é realizável no mundo em um
ou tirar nada ao que de fato se é perante Deus. regime de reciprocidade, onde cada um recebe, por lhe ser in-
O Evangelho diz: “não sejas egoísta, pensa nos outros antes dispensável para sobreviver, uma compensação pelo que faz
que em ti mesmo”. Mas pode-se responder: “os outros pensam com o seu sacrifício para o bem dos outros, e vice-versa. Mas,
em si mesmo, e não em mim”. Então tudo se resolve numa es- onde esta reciprocidade não existe, o Evangelho significa sacri-
poliação. O dano é imediato e tangível, sendo que a recompen- fício somente por parte de quem o aplica e aproveitamento, às
sa é longínqua e misteriosa. Como, portanto, dadas as leis da custas deste, por parte de quem recebe e não corresponde.
vida que vimos anteriormente, não deve o indivíduo se rebelar O resultado é que o Evangelho, isoladamente vivido na Terra,
com isto, que pode parecer um atentado à sua vida? Como pode leva à sufocação do indivíduo. Isto poderá constituir um supremo
o seu instinto utilitário, anteposto pela natureza para sua con- holocausto, uma sublime conquista evolutiva. Poderá interessar
servação, aceitar uma mudança tão incerta e arriscada? Primei- ao indivíduo maduro, que está pronto para superar o atual nível
ro viver, e só depois evoluir. Não se deixar ser morto, para evo- biológico, a fim de se evadir dele e alcançar outro mais avança-
luir. A vida, em função dos seus fins, é prudente e econômica, do. Mas estas coisas estão fora da realidade da vida, tal como ela
não admitindo, portanto, tais desperdícios de seus valores. O é para a maioria no ambiente terreno, e nem sequer são examina-
instinto de conservação nos foi dado por Deus para continuar- das. Tais problemas, tratados aqui por nós, a maioria resolve fa-
mos vivendo. Será que nós, para conquistar os ideais, devere- cilmente na prática, ignorando-os e nem sequer pensando neles.
mos violá-lo, com o belo resultado de nos deixar matar pelos A vida não pode prosperar alimentando-se somente do sacrifício
piores, que se tornam assim vencedores, estimulados com isto e da abnegação do individuo a favor dos outros. O que representa
ao mal por nós mesmos? Pode Deus nos pedir que busquemos vida para os outros, que disso se aproveitam, significa morte para
voluntariamente semelhante suicídio? É verdade que não nos quem, buscando a utilidade destes, sacrifica a sua própria. Onde
matamos, mas não será isto, além de um convite para nos ma- há um que manda deve haver quem obedeça; onde há um que
tarmos, procurando a morte ao nos colocarmos em condições goza deve existir quem pague essa satisfação. O direito de um se
de sermos liquidados, também uma instigação para os demais baseia sobre o dever do outro. A generosidade e o altruísmo, co-
cometerem homicídio? O Evangelho pode significar para nós mo no caso do amor materno, têm finalidades definidas na vida –
não apenas culpa de suicídio, mas também culpa de incitar ho- que as calcula muito bem – e não podem ser generalizadas.
micídio por parte dos outros, tudo isto para chegar à liquidação Quem, evangelicamente, carrega-se de deveres oferece aos ou-
dos bons e a uma seleção dos maus. Se os lobos devoram o tros a oportunidade de se investirem de direitos. Quanto mais vir-
cordeiro, a culpa é também deste, que se oferece como vítima tuoso e bem educado é o indivíduo, mais espaço oferece aos vi-
para eles. Na Terra, a luta é lei e a defesa é um dever, tanto que ciosos e mal educados. Enquanto um se retrai, o outro avança. O
a vida castiga com a morte quem não o cumpre. altruísmo de um serve para que possa afirmar-se melhor, para seu
O impulso da evolução, atraindo para Deus, poderá prevale- dano, o egoísmo dos outros, para vantagem destes.
cer em indivíduos excepcionais, que, por haverem atravessado O Evangelho somente poderá tornar-se uma norma de vida
todas as experiências humanas, alcançaram o limite onde explo- na Terra, deixando de ser apenas um método de fuga para os
de a hora da superação. Mas, para as massas, ainda submersas evoluídos maduros emigrarem para mundos mais avançados,
na animalidade, pedir semelhante sacrifício representa somente quando comando e obediência, direitos e deveres, desfruto e es-
destruição de vida, porque o involuído, além da sua vida terres- forço, virtude e educação, forem de todos, e não apenas de pou-
tre, não sabe ainda conceber outra vida superior. Sucede então cos, porque, enquanto não forem de todos, estes poucos paga-
que, na luta entre Evangelho e mundo, o primeiro, por ser apli- rão por todos. Enquanto não se tornar norma social de massa,
cado aos imaturos, não pode se manifestar senão como força ne- fazendo progredir assim toda a coletividade até um nível bioló-
gativa, servindo para destruição da vida animal inferior, mas gico mais elevado, o Evangelho não poderá servir senão para
sem poder substituí-la pela superior vida do homem e do super- ajudar os evoluídos a fugir do mundo, deixando aqui os piores.
homem, porque, para o primitivo, a primeira representa a vida Continuemos observando esta realidade da vida, que os fa-
toda, e nada lhe fica, se a tiramos. Assim, na Terra, realiza-se do tos colocam debaixo dos nossos olhos. O evoluído vive em
Evangelho a parte que é negação da vida no nível animal do função de um futuro longínquo, voltando as costas ao mundo
homem atual, enquanto não se realiza a parte que é afirmação de e seguindo o ideal. Mas isto não significa que, para ele, a lei
vida num plano evolutivo mais alto. A vida não pode aceitar na da Terra não continue a funcionar. Ela não se detém e continua
56 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
a circundá-lo, assaltando-o a cada instante. Com o seu ataque, que o medo da prisão para deter o ladrão. É surpreendente quão
a luta não dá trégua. A presa é o homem do ideal, que, aman- pouca consciência se tem dos direitos e deveres inerentes à pro-
do o seu próximo, dando e perdoando, responde ao egoísmo priedade. Mas que fazer, quando ela mesma pode representar a
com o altruísmo, à voracidade alheia com a renúncia, à agres- legalização de uma posição alcançável por qualquer meio? E é
são com a não resistência. Ele é a vítima feita sob medida, precisamente este meio qualquer que se procura, para depois,
que, oferecendo-se, excita o apetite dos devoradores, prontos formalmente, legitimar para si o produto.
a aceitar o convite para tão apetitoso banquete, do qual podem Pode acontecer também que o homem honesto levante a
gozar impunemente. Poderá haver algo melhor? Eis como, voz, para fazer o Evangelho ser aplicado não só por ele, mas
verdadeiramente, o grande ideal é satisfeito. também pelos outros, ao menos em relação ao que eles pregam
Podemos nos perguntar, então, para que serve esta atitude de e professam. Surge então a turba dos bem pensantes acomoda-
deixar-se devorar gratuitamente? Que melhores qualidades isto dos, santos por fora, mas astutos por dentro. Eles constituem os
estimula e desenvolve? O bem caberá totalmente para o evoluído, grandes defensores dos ideais, porém apenas para que os outros
que trata de ser eliminado do inferno terrestre. Mas, para quem o pratiquem, estando sempre prontos a se erguerem e condena-
permanece aí, que resultados lhe produz submeter-se a todo este rem, tão logo se mencione fazer as coisas a sério. Mas trata-se
mal? Para que serve tornar-se evangelicamente em cordeiro, pro- de um outro tipo de evangélico, que sabe viver bem na Terra,
curando ser uma boa comida para os lobos? A função do Evange- porque, sob o Evangelho, esconde habilmente as armas para a
lho, neste caso, seria fazer uma criação de cordeiros, para alimen- luta, como é necessário no mundo, aparentando ser suave e
tar os lobos, estimulando-lhes a voracidade, sendo que para estes, humilde de coração. Desta forma é possível ser evangélico sem
de acordo com a sua forma mental, seria justo devorar tais presas, alterar a substância da vida, feita de posições armadas e defen-
porque tratar-se-ia de seres débeis e ingênuos. A lei da Terra é didas. O Evangelho pode, então, permanecer comodamente na
assim e exige que este tipo seja eliminado. Não se é forte na Terra, mas sendo, desse modo, utilizado em posição invertida.
guerra para distinguir se alguém é bom por bondade ou por debi- Assim, sem ser negado, ele se enxerta no mundo, misturando-se
lidade. Para o forte, tal exemplar é simplesmente um débil, que, com a lei da luta desse plano, mas cumprindo a função de não
como tal, é mais útil e fácil esmagar. Existe também o fato de deixá-la transparecer, de modo a tornar mais fácil dirigi-la à
que, em geral, o bom é assim porque não tem força para ser mau. custa dos ingênuos, que são, desta maneira, melhor enganados.
Quem a possui, na Terra, não renuncia a ela, usando-a na luta pa- Tampouco se pode dizer que os astutos, por causa da forma
ra o ataque e a defesa em seu próprio benefício. Se o indivíduo mental própria do plano biológico humano, não usem com plena
não a usa, isto significa que ele não a possui e que, portanto, não sinceridade este jogo em beneficio próprio. Assim está moldada
tem valor, razão pela qual é legítimo se fazer dele o que bem se a sua consciência e assim ela lhes indica que ajam, sendo esta
quiser, pois isto pode ser feito impunemente. A impunidade, ma- orientação confirmada e experimentalmente comprovada pelos
nifestada na ausência de uma sanção punitiva, confere qualquer bons resultados que resultam de tal método. Por outro lado, a lei
direito na Terra. Eis então que, quando um indivíduo se deixa de- da luta pela vida significa regime de guerra, e na guerra tudo é
sarmar pelos seus princípios ideais, ele fica sem defesa, estando lícito. Tal é a moral do animal-humano, assim como o ato de
exposto a todo tipo de assalto, que não se deterão, enquanto não agarrar para comer faz parte da moral da fera, que não pode ser
acabarem com ele. Segundo a lei biológica do plano evolutivo considerada malvada por isto. Por que, nos planos evolutivos
animal-humano, não há qualquer razão pela qual não se deva mais baixos, a vida não deveria usar a mentira, quando ela é útil
aproveitar da bondade do homem evangélico, inclusive para lhe para a finalidade maior, que é a sobrevivência? Tudo isto se tor-
tirar a vida. Eis para que serve o Evangelho na Terra! na imoral somente num nível biológico mais avançado, sendo
Que moral extraem os involuídos vencedores de semelhante percebido no plano humano apenas pelos poucos que estão
experiência evangélica? O resultado os confirma no mal, porque emergindo dele. Quem, embora tenha aprendido a demonstrá-la
são encorajados pelo feliz êxito da sua empresa. Assim, os bons com palavras, não está maduro ainda para tal sensibilidade mo-
se tornam melhores e os maus piores, acentuando-se a separação ral, considera, por íntima convicção, tais conceitos uma perigosa
entre eles. Enquanto sobe ao céu mais um santo, a Terra se en- utopia, um ideal de quem vive fora da realidade.
che cada vez mais de demônios. Culpa do Evangelho? Mas co- Eis para que pode servir o Evangelho na Terra e como ele
mo impedir o homem, que é livre, de fazer o bem ou o mal, con- pode ser utilizado, mesmo o sendo fraternalmente, com as ar-
forme a sua vontade? É assim que os melhores se vão, enquanto mas escondidas, para levar adiante a própria luta, já que esta é a
os piores são lançados de volta para o seu inferno terrestre. maior ocupação para sobreviver, à qual é necessário dedicar-se.
A lição que nascerá desta experiência evangélica será dife- O jogo do engano, pelo fato de ter-se demonstrado útil à vida
rente para cada um. Para o bom, restará o terror de uma vida re- no longuíssimo passado, fixou-se como instinto no subconsci-
duzida a calvário, da qual é felicidade libertar-se. Para o malva- ente e, agora, já funciona como automatismo, apresentando-se
do, que se aproveitou dele, o resultado será seu aperfeiçoamento assim como premissa axiomática da ação. Antes de extirpar tão
na arte de explorar o próximo, porquanto a experiência vivida inveterado costume, serão necessários milênios de experiências
lhe confirmou a utilidade desta sabedoria, dada pelo prêmio con- em sentido contrário, para chegar à construção de instintos
ferido a ele pela vida, com as vantagens que esta lhe permitiu opostos, de tipo evangélico, em substituição aos antigos, de tipo
conquistar através de semelhante método. Com isso, o mal é animal. Mas não se pode impedir que o indivíduo do atual nível
confirmado e estimulado pelo êxito, enquanto deveria ter sido evolutivo, justamente por ser involuído, não esteja convencido
eliminado em seguida, por meio de uma dor imediata, infligida de que o Evangelho se encontra otimamente utilizado deste
ao agressor, e não à vítima. É assim que temos uma moral em- modo, porquanto a experiência lhe ensinou e continua ensinan-
borcada, pela qual é premiado quem pratica o mal e castigado do que esse método produz indiscutíveis vantagens. Neste nível
quem faz o bem. Deste modo, as leis da vida, tal como se apre- evolutivo, a vida, em vez de castigar o astuto, que engana, pelo
sentam no plano humano, tendem, com semelhante experiência, contrário o recompensa, porque ele, com a sua astúcia, deu pro-
a ensinar o bom a não repetir mais tal aventura, incentivando-o va de saber lutar, enquanto ela castiga o ingênuo, por ele ter-se
pelo contrário a fortificar-se na luta. Por outro lado, as mesmas deixado enganar pelo astuto, para que ele também, por sua vez,
leis, premiando os prepotentes com o êxito, estimulam-nos cada torne-se astuto e não se deixe mais enganar. Esta é a honesta
vez mais na caçada aos bons evangélicos (que as religiões for- moral biológica do atual nível de evolução humano.
mam), para explorá-los e eliminá-los. Quanto mais cordeiros en- É assim que, na Terra, o Evangelho permanece pregado, en-
contra, tanto mais o lobo engorda. É incrível não existir mais do sinado e repetido, mas sem entrar na realidade da vida. Quando
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 57
não é emborcado, ele fica de fora, sendo utilizado para outros VIII. DESENVOLVIMENTO DO CRISTIANISMO
fins, e não para aquele que foi feito. O Evangelho é entendido
como poesia, como um ornamento da vida, uma evasão da sua Por que um indivíduo – ao apontar as faltas e defeitos do
dura realidade, uma realização do ideal que, em forma de sonho mundo, para propor melhorias, sendo movido pelas mais since-
e piedoso desejo, é feita com pouco esforço, uma satisfação do ras e honestas intenções, com a finalidade de levar luz e pro-
sentimento, uma doce miragem de paz e bondade na qual se gresso, sem qualquer espírito de polêmica – é julgado em se-
tem trégua na guerra, uma terna carícia para relaxar e repousar guida como um inimigo com intenções agressivas, sofrendo to-
da luta, uma esperança de ajuda gratuita que nos cai do alto, um da sorte de pressão para se calar? Por que o ato de fazer obser-
traço de céu que, apesar de ser julgado ilusão, é belo contem- vações com uma finalidade de bem, para compreender e escla-
plar. A vida gosta de construir estas superestruturas, estes seus recer, é entendido, na prática, como uma crítica agressiva e uma
embelezamentos, como as asas de variadas cores das borboletas ofensa? Quem cai em semelhante mal-entendido deve ser, en-
e o canto dos pássaros, que, no entanto, encontram a morte tão tão, um ingênuo que, deixando-se iludir pelos sinais exteriores,
logo cometam erros na luta de cada instante para sobreviver. não vê a verdade oculta atrás destas aparências.
Assim, enquanto o poeta canta e morre de fome, o usurário en- A realidade é outra coisa. A forma mental humana – o ins-
gorda. Quem, em vez de pensar no lucro, pensa no ideal acaba trumento que fornece a verdadeira unidade de medida do juízo
por ser liquidado. Sonhar na Terra pode custar caro. Assim fun- – formou-se através da luta pela sobrevivência, pela qual se é
ciona a vida, e para isto está feito o cérebro humano. É isto que levado a ver tudo em função dela. Eis que, na verdade, os ide-
o seu ambiente exige e estas são as aptidões que o homem teve ais, se quiserem existir na Terra, devem estar sujeitos a esta lei
de conquistar no seu passado. Se ele chegou até hoje, é porque de luta, incorporando-se nas formas que os representam, para
aprendeu tudo isto que o ideal combate. E se continua sobrevi- permanecerem protegidos dentro de castelos armados. Nesta
vendo, é porque, para sua conservação, não está disposto a es- condição, qualquer apreciação feita por estranhos é julgada co-
quecer o que aprendeu. É a própria vida que, na sua sabedoria, mo uma ação de guerra, de ataque e defesa, sendo considerada
procura não deixá-lo esquecer. Na prática, todo o espaço vital à suspeita, como uma intromissão indevida na casa alheia, que o
disposição do ser está ocupado por esta realidade, restando para dono deve defender acima de tudo. Esta é a realidade, e é por
o ideal somente suas sobras, abandonadas pela vida. É certo isto que a exposição de uma ideia, na busca pela verdade, tende
que as coisas são bem diferentes, quando, pelo contrário, olha- a se transformar em polêmica, pois o instinto humano leva a in-
se para o céu. Mais adiante, iremos observá-las deste oposto terpretar tudo em sentido agressivo. A paixão é vencer para
ponto de vista. Aqui quisemos, sobretudo, expor a forma de submeter e dominar, e não subir espiritualmente.
conceber própria do involuído. Observando a sua conduta, te- Se o interesse fundamental estivesse no aperfeiçoamento, de
mos motivos para crer que ele, sendo feito antes de tudo para modo que a vida fosse vivida em função de um ideal superior a
viver na Terra e segundo as leis desta, pense deste modo, quan- alcançar, então uma crítica razoável, com um fim benéfico, de-
do se encontra perante o ideal que desce do céu até aqui. veria ser não apenas agradecida, mas também considerada uma
A vida, portanto, está construída de tal maneira, que a vi- amigável oferta, da qual se poderia aproveitar para ascender.
vemos em função ou do presente ou do futuro, ou da Terra ou Mas o ideal interessa a bem poucos e o aperfeiçoamento, menos
do Céu, como involuído ou como evoluído. Ao se ganhar de um ainda. Deste modo, a crítica é entendida não apenas como um
lado, não se pode evitar perder do outro. Quem se interessa estorvo inoportuno – do qual, pelo fato de pretender um esforço
principalmente pelas coisas do mundo trabalha sobretudo para que não se quer enfrentar, todos se afastam – mas também, e
se instalar bem na Terra, porém se desinteressa da outra vida e, pior ainda, como um ataque de um rival que julga somente para
no momento da morte, encontra-se no vazio. Quem, pelo con- mostrar deficiências e se aproveitar para destruir.
trário, interessa-se primeiramente pela vida espiritual, trabalha Prevalece então, não a procura do verdadeiro – que, por
para superar-se, a fim de alcançar uma posição melhor em um tender a se inverter em ataques demolidores, é sufocada – mas
nível mais evoluído, e, apesar de se encontrar mal na vida, pois sim o princípio de autoridade, porque a preocupação principal
pesa sobre ele o trabalho duplo de luta e evoluir, acha-se bem na Terra é manter a disciplina e a obediência dos súditos, e não
no momento da morte, quando se trata de entrar em um novo conhecer e subir. O instinto fundamental do homem não é a
mundo, para o qual ele se preparou. O triunfo do involuído está conquista da verdade, mas sim a revolta. Também nas religi-
na vida. O triunfo do evoluído está na morte. São duas semea- ões, cada lei somente se torna válida pela força, mesmo sendo
duras e duas colheitas diferentes. Tudo está balanceado. Cada isto obtido através da opressão psicológica para submeter, ar-
um opera como crê e como melhor sabe fazer, segundo o que mada de sanções e castigos adequados para infligir dano, ainda
ele é. Tudo já está estabelecido nas leis da vida. Ao homem res- que espiritual, aos transgressores. É assim que o instinto de de-
ta a liberdade de se mover de uma atitude à outra. fesa do grupo leva à inibição da discussão esclarecedora do
Isto não é válido só para o problema ético ou religioso, mas pensamento, congelando-o em afirmações dogmáticas, pois o
também para todo problema biológico universal. É dentro dessa mais urgente para sobreviver é estabelecer as posições de co-
perspectiva, e não como base de alguma determinada religião, mando e de obediência, constituindo uma ordem que impõe
que sentimos e enquadramos o Evangelho, porque só nesta barreiras e luta contra todas as outras. Este é o motivo funda-
forma ele vale para todos e pode, de um modo positivo, ser to- mental da vida, o qual todos entendem e ao qual tudo, portanto
mado em consideração, como lei biológica realizável pelo ho- também o espiritual, é levado e reduzido.
mem através da evolução, quando ele souber alcançar um plano Assim se explica como, ao legítimo desejo de evoluir e fazer
de vida mais evoluído. Pode-se assim concluir que o Evangelho evoluir, responde-se, num ato de defesa, com um levantamento
realiza na Terra uma função biológica positiva, representando de barreiras. Em cada aproximação humana, a primeira ideia que
uma lei, porque ele existe para criar um tipo de vida superior, surge, por instintivo produto do subconsciente – filho do passa-
adequado ao biótipo mais evoluído do futuro, não importando do feroz que o construiu – é a de alguém que se aproxima de nós
sua religião ou raça, mesmo que seja ateu ou materialista. Por- não para nos ajudar, mas sim para nos agredir, e que, portanto,
tanto o Evangelho significa um avanço, constituindo atualmen- deve ser inevitavelmente tratado como um inimigo.
te um programa que, em forma de ideal, ainda não se realizou O mal entendido decorre do diverso grau evolutivo dos se-
na Terra, mas que, por lei de evolução, deverá fatalmente se res, o que implica em formas mentais diferentes, funcionando
concretizar amanhã, pois ele é uma necessidade da vida, e não cada uma em relação a pontos de referência opostos, em função
apenas o produto de uma religião qualquer. da Terra ou do Céu, ou seja, em função da atual fase animal de
58 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
evolução ou da mais avançada fase futura, hoje antecipada teo- Dessa forma, é aceito quem coopera no interesse material do
ricamente pelo ideal. É natural que cada um não possa ver se- grupo e é importuno quem deseja levá-lo ao plano espiritual.
não com seus próprios olhos, percebendo, portanto, somente o Ao invés de quem pensa e discute, para compreender e avan-
que estes possam ver. Foi assim que a casta político-religiosa, çar, deseja-se quem crê e obedece, para servir e não incomo-
então dominante, julgou a Cristo, porque ela só foi capaz de ver dar. Isto, moralmente, prejudica o grupo, mas não o indivíduo,
Nele um perigo para os seus próprios interesses terrenos, que cuja vida espiritual ninguém pode limitar, dado que não se ne-
lhe pareciam ameaçados por um reformador da lei. Elas não cessita do próximo para falar com Deus.
compreenderam nada da verdadeira função Dele, que era dar O cristianismo foi implantado por Cristo em posição de an-
um grande impulso ao progresso da humanidade. O mesmo fe- tagonismo contra o mundo e, se teve de adaptar-se a este am-
nômeno de incompreensão se repetiu em casos menores, com biente, não foi culpa sua, pois esta era uma condição necessá-
todos aqueles que seguiram Cristo ao longo do mesmo cami- ria para ele poder sobreviver. Mas o fato é que tal sobrevivên-
nho. Esta é a razão pela qual, com uma forma mental emborca- cia teve de ser paga com a corrupção do ideal que a religião
da, entende-se tudo ao contrário, de modo que o impulso para afirmava representar, razão pela qual este, em grande parte,
melhorar é tomado como um ato de agressão, produzindo assim tornou-se mundano, contentando-se assim em se realizar na
uma reação de defesa, em vez de gratidão. O mal-entendido é Terra apenas no espaço concedido a ele pelo mundo, senhor na
natural, porque na Terra há de fato outro significado para a pre- própria casa. Sem dúvida, a evolução se fará de maneira tal
sença dos ideais, que existem aqui na forma de castelo armado, que, no fim, Cristo vencerá. Mas, na fase atual, após dois mil
dentro do qual se aninham interesses, sendo sustentados apenas anos, verificamos que, ao invés do ideal ter vencido o mundo,
enquanto servem para defender tais interesses. É assim que sur- foi o mundo que venceu o ideal. É verdade que a vida deste
gem nas religiões o fanatismo, o sectarismo e o proselitismo, germe está cheia de imensas possibilidades futuras, mas, no
prevalecendo o espírito gregário sobre o espírito da verdade. momento, ela é só vida latente, à espera de se desenvolver. Ho-
Prefere-se então o cúmplice amigo, em vez do idealista, que, je, nos fatos, o cristianismo está mais do lado do mundo do que
sendo amigo apenas do ideal, pode ainda se tornar inimigo, ao lado de Cristo, enquanto o verdadeiro cristianismo se en-
porque está situado nos antípodas dos interesses terrenos. contra ainda no estado de boa-nova. Todavia é lógico e justo
No entanto o grupo religioso pode se opor a tais intromis- que a mente humana não possa expandir-se em direção a mais
sões por parte do idealista, com um justíssimo argumento: “Nós vastos horizontes, como o ideal cristão preconiza, se ela ainda
estamos em nossa casa, que foi por nós construída em terreno não está madura para isso. E é lógico também que, nos primi-
de nossa propriedade. Por isto temos o direito de mandar aqui e tivos, tal ideia deva ser primeiramente usada como instrumento
de impor a nosso modo a nossa verdade, expulsando os estra- de defesa da vida, em função dos interesses terrenos. Tudo isto
nhos que pretendem, a seu modo, impor a sua”. Argumento jus- está proporcionado às finalidades que a vida quer alcançar,
to mas terreno. E uma potência espiritual que recorre a ele, conforme o nível atingido, e responde às leis da evolução.
apoiando-se na Terra em vez do Céu, pelo menos nesse mo- Numa fase inferior, é natural que o inimigo a vencer, contra
mento, não é espiritual, porque abdica da sua verdadeira posi- quem se desabafa o instinto de luta, seja o próprio semelhante,
ção superterrena, reduzindo-se a um grupo humano que, como porque a mente não é capaz de entender nada além disso. Mas
todos os outros, defende com argumentos humanos os seus in- é natural também que, com o desenvolvimento da inteligência,
teresses. Então, se ela não pertence a Deus, mas sim ao mundo, prefira-se enfrentar inimigos mais importantes, lutando para
que fique no mundo, deixando de se misturar e de utilizar, para superar a animalidade contida em cada um, conquistar o igno-
os fins deste o ideal, o espírito e o divino. Não se pode ao to, revelar o mistério e fazer que o amor não seja somente para
mesmo tempo servir a dois senhores. Não é possível seguir dois a mulher, com a finalidade de gerar, mas sim para o superser
objetivos opostos, o espiritual e o temporal, sob perigo de aca- que, através do ideal, encarna um tipo superior de vida. A fun-
bar utilizando o primeiro a serviço do segundo. Portanto a reli- ção das religiões é exatamente cultivar, armazenar e oferecer
gião é uma organização humana, que usa os métodos humanos tais modelos, para que eles possam ser imitados.
e que, como tal, deve ser considerada. ◘◘◘
Os dois pontos de vista são demasiado diversos para pode- É certo que existe contradição entre o programa evangélico,
rem coexistir sem que um dos dois deva ser afastado. Para o in- como ele foi traçado por Cristo, e a sua realização prática na
voluído, o centro da vida está na Terra e no presente, consti- vida dos seus seguidores, sejam eles pastores ou rebanho. O
tuindo-se de interesses materiais. Ele considera a vida mais mundo, com os seus cidadãos, não se deixou de nenhum modo
ampla na eternidade, depois da morte, apenas um prolongamen- vencer por Cristo e continuou com os seus métodos. Mas isto se
to nebuloso, no qual pensará apenas em último lugar, depois de explica. Quando um ideal desce à Terra, o contraste entre ele e
haver-se esgotado a atual, aquela que vale para ele. Para o evo- o mundo é inevitável. Isto salta à vista imediatamente. No en-
luído, o centro da vida está além da Terra e do presente. Ele tanto a contradição é sanável, resolvendo-se com o conceito de
considera que sua vida atual vale somente em função de uma evolução. A solução está em entender o Evangelho em sentido
outra – maior, situada na eternidade – não sendo um fim em si dinâmico-evolucionista, e não estático-definitivo, observando-o
mesma, mas apenas um meio para preparar e alcançar a realiza- como um processo em formação, que se projeta e se cumpre no
ção de finalidades mais longínquas. Assim, perante diferentes futuro, e não como uma posição fixada no presente. Mas se isto
amplitudes de horizonte, o problema da vida é conduzido de explica e justifica o estado atual, nem por isso o altera, perma-
modos diversos. Enquanto o homem prático se realiza imedia- necendo o fato de ser uma contradição. A solução está na trans-
tamente na Terra, o idealista se realiza a longo prazo, depois da formação de tudo por evolução, algo que, só podendo acontecer
morte, mas seguindo um plano muito mais vasto. Os seus inte- com o tempo, encontra-se hoje em posição de espera perante o
resses estão fora do mundo. As duas formas mentais são, reci- futuro. Permanece, no entanto, a contradição, a qual é bom ob-
procamente, uma o emborcamento e a negação da outra, estan- servarmos, para compreendê-la, pois dessa forma, mesmo que
do por isto empenhadas em se condenarem uma a outra. isto revele sua negatividade, é possível prever os seus futuros
É assim que na Terra fica-se grato não ao amigo da verda- desenvolvimentos. Observemo-la então.
de, mas ao amigo do grupo. Para o evoluído poder ser aceito O Evangelho fala clara e repetidamente a respeito da posse
pelo involuído, é necessário ele se abaixar ao nível deste, que de bens, de um modo que não deixa dúvidas. “Se quiseres ser
lhe paga este abaixamento, garantindo-lhe o bem-estar. Se o perfeito, vai, vende o que tens e dê tudo aos pobres (...)”; “Em
idealista não se deixa domesticar pelo grupo, é expulso deste. verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no reino dos
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 59
céus. Sim, repito-vos: é mais fácil um camelo passar pelo bu- negócio, política etc., descendo ao nível comum da luta pela
raco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”; vida. Mas podem os homens mudar seu modo de ser e assumir
“Não acumuleis tesouros na Terra (...)”; “Ninguém pode servir a forma mental evangélica, tão afastada do seu mundo, só pelo
a dois senhores: ou amará um e odiará o outro, ou se afeiçoará fato de fazerem parte da organização eclesiástica? O resultado
a este e desprezará àquele. Não podereis servir a Deus e a desta simbiose entre Cristo e mundo é que de cristão não resta
Mamom”; “Quem dentre vós não renuncia a tudo o que possui ao cristianismo atual senão pregação, retórica e hipocrisia. Im-
não pode ser meu discípulo”. põe-se, pelo contrário, e prevalece o que na Terra é mais im-
Os banqueiros mais bem informados calculam valer entre portante, ou seja, a necessidade de administrar, algo indispen-
dez a quinze bilhões de dólares as riquezas do Vaticano, que sável tão logo se forma uma comunidade.
possui grandes investimentos em bancos, seguros, produtos Um pastor, vivendo com sua congregação perto de Roma,
químicos, aço, construções, imóveis etc. Os dividendos servem escrevia para mim e, por ser honesto, expressava sinceramente
para manter de pé toda a organização, inclusive as obras de be- o seu pensamento, que se resumia em afirmar: “O Evangelho
neficência. Sobre estas entradas, o Vaticano, pelo menos até mata, e que morte! Por isto existe a autoridade da Igreja, à qual
hoje, no início de 1965, na Itália, não paga impostos. Que se di- confiar-se”. Eis, portanto, a solução: põe-se Cristo de lado e
zer então dos séculos passados, quando a Igreja, com o poder exercita-se o comando em seu nome. De resto, esta é a tendên-
temporal, tinha-se submergido no mundo até ao pescoço, exi- cia normal dos administradores. Quem trabalha em nome de
gindo impostos, armando exércitos e ligando-se à política? A outros acaba por se tornar o produto do seu trabalho. Isto signi-
contradição justifica-se, mas é evidente. fica que o cristianismo atual não se constitui somente dos ensi-
O que a justifica são as inderrogáveis exigências do ambien- namentos de Cristo, mas é um seu produto, manipulado e
te social do “mundo”, onde não sabemos nos imaginar fazendo adaptado depois pelos homens, para seu próprio uso. Resultou
parte de alguma organização que não possua meios. Eles são disso uma Igreja que, misturando humano e divino, tornou-se
indispensáveis à Igreja, para ela cumprir a sua função. Mas, en- um produto de aparência híbrida, querendo ser as duas coisas,
tão, o erro de previsão é de Cristo, pois, para poder funcionar mas não sendo exclusivamente nem uma nem outra. É como
na Terra, o cristianismo devia renunciar a ser perfeito, indo um jovem que, não sendo nem menino nem homem, está, po-
contra o conselho de Cristo. Os primeiros a estar em falta são rém, destinado a ser homem.
os próprios pastores. E, se semelhante exemplo vem deles, que Não se trata, portanto, de um produto híbrido, mas sim de
deverão fazer então os seus discípulos? Mas será culpa da Igre- uma forma de transição. Temos, tal como a alma e o corpo, um
ja o fato de estar ela obrigada a isto, para poder cumprir o seu composto através do qual o humano imperfeito, para melhorar,
mandato? E, se a culpa não é da Igreja, como não lançá-la sobre lança-se em direção ao divino, e o divino, para elevar o huma-
Cristo? Se um representante do Vaticano perguntasse a Cristo: no, desce até ele. Isto não significa que Cristo tenha demons-
“Que devo fazer para obter a vida eterna?”, certamente Cristo trado desconhecer a natureza do homem, ao ditar-lhe um pro-
não poderia responder outra coisa senão: “Se quiseres ser per- grama irrealizável, exigindo algo que esta pobre criatura não
feito, vai, vende o que tens (...)”. E a Igreja deveria objetar: “Se tem a capacidade de fazer. De fato, Cristo não lhe propôs o
queres que eu cumpra a tua ordem de representar-Te na Terra, impossível. Pelo contrário, foi precisamente por conhecê-lo
devo possuir os meios do mundo”. Mas a ordem é clara: “Tu és que Ele, através do Evangelho, estabeleceu para o homem uma
Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (...); “Apas- meta distante, em direção à qual este devia avançar, para al-
centa as minhas ovelhas”. Não havia, portanto, outra escolha: cançá-la no fim. O estado atual do cristianismo não é, portanto,
para poder obedecer de um lado, era necessário desobedecer do uma farsa perante Cristo, mas apenas a fase inicial de um pro-
outro; para poder cumprir o mandato, era imprescindível renun- cesso evolutivo do qual Ele, no Evangelho, expressou o ponto
ciar a ser perfeito. Não havia outra alternativa, senão adaptar-se de chegada, a posição final. Trata-se de um estado de imper-
à Terra e pactuar com o mundo inimigo. Assim, não seguindo o feição transitória, que parece uma negação de Cristo, porque
conselho de Cristo, a Igreja apossou-se de bens, ainda que isto ainda não O alcança na sua plenitude, mas isto sucede apenas
necessariamente a tornasse um instrumento imperfeito. Tendo como uma primeira aproximação, constituindo uma imperfei-
de viver em casa alheia, o ideal devia aceitar as leis do mundo. ção que, no entanto, está em marcha para chegar à perfeição
A este preço, o cristianismo conseguiu sobreviver por dois mil evangélica e à plena afirmação de Cristo.
anos, habitando a casa do inimigo. É natural que, no meio do caminho, o ideal deva adaptar-se
O problema está em saber se isto, que é uma necessidade às condições do ambiente, assumindo posições humanas e até
imposta pela realidade da vida, representa uma traição de prin- mesmo, quando não encontra outro modo para sobreviver na
cípios, uma prostituição do ideal. É lícito arrogar-se a posição Terra, transformando-se em hipocrisia. Mas isto não é tão im-
de representantes de Cristo, sem, no entanto, seguir os seus di- portante, pois, mesmo tendo de lutar para nascer num ambiente
tames? E, se tais ditames presumem a presença de heróis e adverso, a semente está no terreno. Também o ideal possui for-
mártires, que não existem na prática, quem sobraria então para ça. Alguma coisa do seu poder acaba por penetrar na alma hu-
constituir a Igreja no cumprimento do seu trabalho? Se a apli- mana. Torcido, vilipendiado, transviado e explorado, o ideal,
cação integral do Evangelho no mundo conduz à morte, de que apesar disso, existe na Terra e aí permanece, funcionando tam-
serviria na Terra uma Igreja de santos transferida para o Céu? bém à sua maneira entre outras tantas forças da vida. Entretanto
Ela deve ser constituída de homens que saibam viver no mun- espera e trabalha, serpenteia, penetra, enxerta-se e, depois de
do, e não de santos devotados à morte. É assim que a Igreja, longa insistência, fixa-se finalmente nos espíritos. Trabalho len-
estando sujeita às leis do mundo, do qual fatalmente ela faz to, mas que, no fim de cada milênio, consegue fazer o homem
parte, teve de se tornar uma organização terrena, sendo cons- avançar um passo em frente, mesmo se pequeno. Pode-se fazer
truída com o material humano corrente, pois não havia outra do ideal os mais diversos usos, mas quando se maneja uma coi-
maneira para representar a Cristo. Tal fato, porém, ainda que sa, um pouco dela sempre fica impregnado nas mãos.
seja inevitável, rebaixa imediatamente o nível desta organiza- É certo que a função da evolução é melhorar, purificar e
ção até ao plano terreno, colocando-a lado a lado com todas as aperfeiçoar tudo, não podendo o cristianismo constituir uma
demais, para ser tratada como tal. Temos então uma Igreja que, exceção a esta regra. Ele se instalou num mundo onde tudo está
mesmo sendo isso para santificá-lo, tornou-se mundo, asseme- em evolução e, justamente por ser um ideal, corresponde-lhe a
lhando-se assim àquilo que deveria ser o seu maior inimigo. função de realizá-lo. Se o Evangelho está no meio do mundo e
Desse modo, ela se tornou administração de bens, burocracia, se adapta a ele, tendo chegado ao ponto de conviver com o ini-
60 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
migo numa estranha simbiose, o que pode parecer degradação, se de bens, sem com isso deixar de existir, como lhe é necessá-
isto apenas acontece para transformar o mundo, até transformá- rio para cumprir a sua obra de civilização.
lo naquilo que o Evangelho quer. No seio do mundo, ele repre- Assim, o cristianismo também está sujeito ao processo evo-
senta a semente do futuro, que cada semente espera, porque lhe lutivo, que arrasta em seu seio tudo o que existe. É a vida inteira
pertence. A superação do passado é a tendência constante da que progride no planeta, estando tudo envolvido nesse processo.
vida, que luta por isto a cada instante. Nenhuma instituição, mesmo que se proclame sobrenatural, po-
É assim que, ao longo do caminho da evolução, quanto mais de existir e funcionar fora das leis da vida. Então não é culpa da
retrocedemos no tempo, tanto mais vemos o mundo ficar forte e Igreja, se o atual baixo nível de evolução – que também é o seu,
o cristianismo ter de se adaptar a ele. Devido ao princípio evolu- pois este é o nível da humanidade da qual ela faz parte – não a
cionista, é natural que, quanto mais se é atrasado, tanto mais a deixa ser cem por cento evangélica. Mas cada século altera um
matéria prevalece sobre o espírito. Com o fim do período das ca- pouco esta percentagem da relação entre as duas partes, aumen-
tacumbas, das perseguições e dos mártires, esgotando-se o pri- tando a parte Evangelho e diminuindo a parte mundo. Assim se
meiro impulso dado por Cristo, o inimigo tomou a dianteira, e a explica e justifica o estado presente, porquanto, se ele não cor-
Igreja, com a conversão de Constantino, fixou-se materialmente responde a um cumprimento do Evangelho, tal condição é ape-
com os pés na Terra, tornando-se coisa do mundo. Terá sido isso nas um não cumprimento em evolução, o que significa estar em
degradação do ideal? Não! Foi necessidade histórica. O poder via de correção, para se cumprir progressivamente, cada vez
temporal foi o veículo material indispensável para que uma ins- mais, constituindo uma negação que cada vez mais vai-se inver-
tituição, formada em grande parte de almas ainda toscas, pudes- tendo em direção à afirmação. Graficamente, isto poderia ser
se sobreviver em tempos ferozes; foi o meio imprescindível para expresso com o deslocamento em subida, segundo uma linha
que aquele primeiro núcleo de espiritualidade, perdido num oblíqua, movendo-se em relação a dois eixos ortogonais: um ho-
mundo selvagem, pudesse percorrer todo o bimilenário caminho rizontal, que expressa o desenvolvimento da linha do tempo, e
medieval e chegar até hoje, trazendo até nós o pensamento de outro vertical, que, partindo do ponto zero, a matéria, expressa o
Cristo. Foi necessário possuir bens até ao ponto de tornar o su- grau de espiritualização alcançado.
cessor de Cristo um dos reis da Terra, como senhor no mundo, Se a Igreja, no passado, começou a reinar na Terra, naquele
ao qual o temporal se integrou plenamente, colocando-se no plano de evolução, isto não foi para se realizar como potência
mesmo nível espiritual, pois era forçado, como todos, a mergu- material, mas sim porque este era um meio indispensável para
lhar na luta, usando os métodos mundanos, baseados na força, poder sobreviver e funcionar, até onde fosse possível, como po-
na astúcia e na mentira política. Mas é também verdade que, em tência espiritual. Se isto, hoje, justifica o passado involuído, por
tal mundo, uma sociedade de santos teria sido destruída. Naque- outro lado exige que ele seja superado, para ela retomar, o mais
las condições não havia outra escolha. Caso se quisesse sobrevi- rapidamente possível, o caminho em direção ao alto, à sua ver-
ver, para cumprir o mandato de Cristo, era indispensável aceitar dadeira meta, que é espiritual. Em qualquer fase do desenvol-
o ambiente e renunciar à aplicação integral do Evangelho. vimento, a tendência constante deve ser aproximar-se do Evan-
◘◘◘ gelho, lutando para superar todos os obstáculos que separam a
Mas eis que, no mesmo processo, ligado à limitação de ter o Igreja da sua realização. O verdadeiro objetivo é superar o
ideal que se adaptar para descer, está implícita sua necessidade mundo, e não instalar-se na Terra, e muito menos reinar nela.
de fazer tudo evoluir e elevar-se sempre mais. O espiritual não As adaptações, através das quais o ideal desce ao nível humano,
pode viver separado do mundo, que representa o seu terreno de podem ser um mal necessário, mas ele deve ser transitório, sen-
operações, pois lhe oferece o material a ser elaborado. Assim o do aceitável somente em vista de sua eliminação. É apenas nes-
cristianismo, mesmo contribuindo para isso, não pode progredir te sentido que elas são toleráveis. De outra maneira, constituem
senão em função da evolução geral da humanidade. Assistimos uma permanente corrupção e negação do ideal, condição que o
então, em relação à Igreja, a um contínuo trabalho, que poderí- leva ao fim. Se desaparecer esta esperança de salvação futura,
amos chamar de polimento, pelo qual a posse de bens, adaptan- dada por um endireitamento de posições em sentido evangélico,
do-se aos tempos, pode assumir formas cada vez menos materi- o cristianismo não terá mais razão de existir, de modo que as
ais. Nada mais antievangélico podia haver, como antigamente, leis da vida acabarão por eliminá-lo, como fazem com todas as
do que um governo de estado, com exércitos e poder político, coisas que não cumprem a função para a qual existem. Assim
apoiado no espiritual. Depois, com a queda do temporal, o po- terá lugar a sua substituição por outras formas religiosas, cons-
der tornou-se somente econômico. Amanhã, numa sociedade tituídas por outros homens e instituições. Estes farão, então, o
mais avançada, quando for reconhecida a função vital das reli- que o cristianismo dos primeiros dois milênios ainda não fez.
giões, então o ato de sustentá-las, oferecendo os meios necessá- Cristo faz parte das leis da vida, e nada pode detê-las. Desse
rios para elas realizarem essa função, constituirá uma obrigação modo, quando procuram paralisá-las, os homens são afastados,
do Estado, que provê à satisfação de todas as necessidades da e Cristo continua avançando sem eles.
coletividade, incluindo as espirituais. Assim a Igreja poderá li- É verdade que a Igreja, tornando-se Estado para poder so-
bertar-se da posse material, pois lhe estarão assegurados, por breviver no mundo, devia governar. Porém, apesar de santidade
parte do mundo, os meios para viver, o que lhe permitirá deixar e perfeição levarem certamente para o Céu, não se governa, na
de ser mundo. Mas se, numa futura sociedade orgânica, serão Terra, com essas qualidades. Também é verdade que muitas
providas todas as funções sociais, inclusive a religiosa, como se coisas, admitidas por várias razões como lícitas no feroz mundo
pode hoje, quando isso não sucede, eliminar a necessidade de medieval, já não são mais necessárias hoje, pois a humanidade
possuir bens, se esta é uma condição indispensável para a reali- passou a formas de vida mais justas e evoluídas. Quem governa
zação daquela função? Trata-se de uma função que foi e é civi- pode, em certos momentos, ser forçado a colocar-se em propor-
lizadora, sendo de grande importância para a evolução. A Igre- ção ao grau de evolução dos governados, mas deve estar sem-
ja, no passado, teve de afirmar, num mundo feroz de invasões pre à frente, um passo mais avançado que os outros.
bárbaras, um princípio superior então desconhecido. Que por- Este caso do cristianismo faz parte do fenômeno da trans-
tentosa luta teve de sustentar o espírito, para se introduzir na formação matéria-espírito, que representa um deslocamento bi-
casa de tamanho inimigo, como era o mundo de então! A Igreja ológico profundo e que, por isso, não pode verificar-se num dia.
não pode progredir senão em relação às condições de vida ofe- Sendo, como tantos outros, um processo de crescimento da vi-
recidas a ela pelo mundo, elevando-se na medida em que lhe da, ele somente pode realizar-se lentamente, por graus sucessi-
seja permitido, através destas condições, desprender-se da pos- vos, da mesma maneira que se realiza a evolução em todos os
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 61
seus níveis. Estas transformações são o resultado de maturações mais baixos. Por sua vez, o material de tipo inferior, que serve e
e equilíbrios, de impulsos proporcionados às reservas de ener- ajuda com o seu trabalho mais rudimentar à execução de outro
gia, às possibilidades de esforço e ao fim a alcançar. Transfor- mais avançado, também é levado a avançar, ao tomar parte de
mar-se de repente, com impulsos de improviso, pode pôr em organismos e ficar, portanto, adstrito a trabalhos mais comple-
perigo a sobrevivência, fato de enorme importância. Não po- xos. Quem domina e dirige todo este processo é o elemento que
demos nos escandalizar com o estado atual, quando sabemos está evolutivamente mais elevado, isto é, o espírito. Na escala
que ele, apesar de involuído, encontra-se apenas no início e que evolutiva existe uma hierarquia de valores, pela qual quem é
está inserido dentro de um irrefreável transformismo, pelo qual mais avançado utiliza como instrumento quem é mais atrasado,
é levado em direção ao alto. Sabemos que tais posições, mais mas ao mesmo tempo o educa, levando-o a viver coordenado
avançadas ou mais atrasadas, não são senão momentos de um com outros elementos no seio de unidades mais complexas e,
processo evolutivo, destinado a levar tudo à perfeição. assim, a funcionar em formas sempre mais evoluídas. Maravi-
Para se compreender o cristianismo, é necessário se referir a lhosa e complexa organização da vida, pela qual quem é mais
ele como um fenômeno progressivo, concebendo-o como uma avançado se volta em direção aos que lhe são inferiores, para
gradual realização do programa de Cristo. O tão condenado admiti-los no seu próprio trabalho, mas ao mesmo tempo, com
princípio evolucionista é justamente o conceito que pode justi- isto, envolve-os e arrasta-os consigo na sua própria evolução.
ficar a Igreja, lançando-a da sua velha posição estática no di- Com este método, a vida caminha em direção à sua espiritu-
namismo da vida e, assim, fazendo dela um fenômeno em evo- alização, da qual hoje já se percebem os primeiros sintomas,
lução. A perspectiva então muda completamente, abrindo-se em expressos pelo processo de cerebralização ao qual está subme-
direção a mais vastos horizontes. O dogmatismo conservador se tida a humanidade, fenômeno hoje mais evidente, dado que ela
transforma numa marcha em ascensão. Tudo se vivifica, porque o está vivendo mais intensamente na atual curva do seu trans-
está animado da potência do espírito, que toma posse do fenô- formismo evolutivo. Esta rápida passagem do antigo tipo de vi-
meno, para levá-lo cada vez mais adiante. da no plano físico a um tipo nervoso e cerebral, característica
Observemos a grandiosidade deste fenômeno sobre o fundo de nosso tempo, não é senão um sintoma que precede um imen-
do transformismo universal físico-dinâmico-psíquico, que ana- so desenvolvimento futuro. Esta deverá ser a direção a ser to-
lisamos exaustivamente em A Grande Síntese. A descida dos mada agora pela evolução da vida, que atingiu no planeta o seu
ideais e a evolução das religiões não são senão um momento superior grau de humanidade.
desse fenômeno. Então a vida assume um significado profundo, Deste imenso movimento fazem parte as religiões. Enquanto
porque se revela como uma progressiva espiritualização no seio a matéria sobe até se tornar instrumento da psique, os ideais
do evolucionismo universal. As religiões, por sua vez, assumem descem, para ajudar a realização deste transformismo espiritua-
uma verdadeira função biológica, porquanto elas representam o lizante. Eles cumprem uma função biológica, razão pela qual as
ideal que, descendo à Terra, vem de mais avançados planos de religiões, uma vez que fazem parte do perene processo evoluti-
existência, para levar o homem até eles. É assim que, mesmo vo, não podem morrer. Mas, justamente por isso, elas devem se
perante a ciência materialista, as religiões adquirem um signifi- renovar, como o faz a vida a cada momento, da qual elas fazem
cado biológico positivo, na medida em que elas, promovendo a parte. Renovar-se significa melhorar. Por isso, em comparação
espiritualização, cumprem uma função evolucionista funda- com o que nos espera no futuro, não nos deve surpreender o atu-
mental. A grande marcha da vida é nesta direção. Trata-se de al estado involuído. Hoje, exatamente pelo fato de ser frequen-
uma espiritualização no sentido lato, que abraça, investe e ar- temente uma farsa, o ideal está destinado a se converter em ver-
rasta todas as formas de existência, desde o seu nível mais bai- dade. As reações da lei de Deus se ocupam em corrigir todos os
xo, a matéria, ao evolutivamente mais alto, o espírito. nossos defeitos. Assim realiza-se a evolução, sendo fatal que tal
Como diria Teilhard de Chardin, a bioesfera formou-se so- melhoramento – hoje eliminado da realidade da vida, por ser
bre a geoesfera planetária, para realizar a função de transformar considerado utopia – transforme-se amanhã nesta realidade. Isto
a geoesfera em noosfera. A cada dia, um incontável número de custará esforço e muitas dores, mas é este trabalho criador que
plantas transforma em material orgânico a matéria prima inor- dá significado e valor à vida. Apesar de tudo, Cristo brilha como
gânica, assimilando-a em seu organismo; bilhões de animais um farol no futuro. O Evangelho é um fenômeno em evolução,
comem e assimilam este material, transformando-o em carne e, constituindo-se num caminho para alcançar aquele centro de luz.
assim, levando-o a um nível mais alto; bilhões de seres huma- Se, com isto, tudo se explica e justifica e se tudo, por evo-
nos, sem poderem deter-se, devem ingerir, para viver, monta- lução, deverá passar da imperfeição à perfeição, seria possível
nhas de toneladas deste material que plantas e animais lhes for- concluir-se, então, que não haverá outra coisa a fazer, senão
necem, transformando-o em substância ainda mais evoluída, na esperar a evolução se cumprir? Dada a condição da maioria
forma de nervos e cérebro, que são produtores de dinamismo dominante, adormecida perante o ideal, que poderão fazer
volitivo e mental. Gradualmente, a quantidade diminui em fa- aqueles poucos mais avançados, para os quais chegou a hora
vor da qualidade, na qual ela se transforma, destilando e con- da realização, se eles, em vez de permanecer com a massa das
centrando os valores espalhados na massa. Para que serve esta pessoas que – religiosas ou não – formam o mundo, querem
contínua ingestão de matéria de grau menos evoluído, colocada estar do lado de Cristo? Como tais indivíduos poderão encon-
assim em circulação, senão para cumprir funções cada vez mais trar-se à vontade no rebanho, compartilhando com a respecti-
elevadas em organismos mais evoluídos? Começando pelas va psicologia e métodos? Como é possível aceitar esta condi-
plantas assimiladoras do terreno e, depois, elevando-se até ao ção, para adaptar-se ao mundo?
homem, vemos que, do seu estado inorgânico, a matéria passa O Evangelho está feito para nos santificarmos individual-
por uma elaboração contínua, na qual seus átomos componentes mente e para transformar as massas, fazendo delas uma soma
chegam ao estado orgânico da vida e atingem o nível nervoso e de indivíduos assim santificados. Mas termina emborcado,
cerebral, no qual devem saber funcionar como elementos do quando dele se faz um meio para governar. Também os segui-
instrumento usado pelo pensamento, dispondo-se a colaborar de dores de Cristo queriam torná-lo um chefe de governo, mas Ele
mil maneiras e devendo aprender muitas coisas. Assistimos as- recusou todo o poder terreno. Trata-se de duas psicologias e fi-
sim a uma espécie de curso de educação da matéria. nalidades diversas: uma dirigida à Terra e outra, ao Céu. O se-
Neste processo, o ser mais evoluído aproveita o trabalho fei- guidor de Cristo é um tipo de indivíduo diferente do seguidor
to pelos menos evoluídos, e a vida, à semelhança de uma pirâ- do mundo. Entre os dois há um abismo, porque cada um vê e
mide, eleva-se em direção a planos mais altos, apoiando-se nos entende o outro em posição emborcada. Eles falam línguas dis-
62 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
tintas e atuam com mentes diferentes. Há um muro entre os minando uma amplitude cada vez maior dela, o que, também pa-
dois, dado pela distância que separa um plano evolutivo do ou- ra os ateus, significa acercar-se de Deus. É em função deste pen-
tro. O grau social ou a posição hierárquica no grupo a que se samento orientador da existência que, nos limites do conheci-
pertence não têm importância. O que vale de fato é o tipo de mento humano, nós fazemos perguntas e podemos dar respostas.
homem, e não a sua veste. Quem inverte o mundo, para viver Permanecendo agora num terreno humano, no qual encon-
com Cristo, não pode estar de acordo com quem inverte Cristo, tramos as consequências e aplicações dos princípios gerais da
para viver no mundo. As metas são opostas. referida lei, perguntamo-nos: Qual é a posição atual da huma-
A tendência da vida é que os semelhantes se atraiam e os nidade em relação às suas metas futuras? O que a história pre-
não semelhantes, quando não tenham de se compensar por tende realizar hoje? Colocando-nos perante a presente realida-
complementaridade, repilam-se. Nos dois casos, devido ao dife- de histórica, podemos formular uma questão mais exata. Se é
rente nível evolutivo, a forma de entender as coisas é demasia- Deus que, com a Sua lei, dirige a história, qual é então o signi-
do diferente. Para quem está espiritualmente mais avançado, a ficado do comunismo materialista ateu e para onde se dirige
vida na Terra não representa a satisfação dos seus próprios de- sua atual difusão? Trata-se de fenômenos situados em polos
sejos, mas sim exílio, sacrifício e missão. Ele pode sentir tam- opostos, ambos positivamente existentes. Mas como explicar a
bém amor pelos irmãos atrasados, mas não pode compartilhar contradição entre eles? Se Deus é o verdadeiro senhor e se o
os respectivos instintos, psicologia e conduta. As formas co- Seu pensamento ou Lei constitui a norma que deve ser aplica-
muns de religião estão feitas para a maioria, e não para a exce- da, então por que ocorrem nos fatos esta oposição de contrá-
ção. Então, escondendo-se das filas e permanecendo fora das rios e esta resistência à sua atuação? Se, por um lado, temos o
massas de cristãos que pertencem ao mundo da exterioridade polo positivo, onde tudo é sempre construtivo, que trabalho
formal, o indivíduo verdadeiramente espiritual afasta-se silen- útil corresponde cumprir a este oposto impulso negativo, de
ciosamente, para retrair-se numa religião de substância, ao lado destruição? Não se tratará então de uma fase destrutiva neces-
de Cristo. Quem O compreendeu e O vive não pode se adaptar sária, cumprida em função de uma oposta realização construti-
a retroceder a um nível evolutivo inferior, como exige a maio- va? Ora, é o negativo que trabalha em favor do positivo; é o
ria, que gostaria de rebaixar todas as coisas ao seu plano. mal que é colocado a serviço do bem. Mais particularmente,
Tudo isto o leva a isolar-se do mundo, o que constitui van- talvez isto tudo responda à necessidade de se varrer as constru-
tagem. Contudo ele não se isola de Cristo, pelo contrário avizi- ções humanas feitas através do tempo sobre a ideia de Cristo –
nha-se ainda mais Dele. Através de uma íntima atitude de espí- tão desvirtuada ao longo do caminho – para regressar a ela e
rito, estabelece-se entre sua alma e Deus um colóquio no qual realizá-la como Cristo a queria, desde o princípio.
nenhuma autoridade espiritual terrena pode intervir. Quem quer Nas revoluções, a fase destrutiva é necessária para nos li-
tornar-se santo, faz-se tal por sua conta, perante Deus, e não pe- bertarmos do que é velho, pois este ocupa o terreno sobre o
rante o mundo, do qual não tem nenhuma necessidade. Os jul- qual se pode reconstruir mais em direção ao alto, sendo ela o
gamentos deste não lhe interessam, mas apenas os de Deus. Os natural precedente de uma sucessiva fase construtiva, para al-
homens podem utilizar a santidade dos outros como estandarte cançar posições evolutivamente mais avançadas. Isto é o que
que dá brilho ao próprio grupo, mas só Deus pode julgá-la. É normalmente vemos suceder nas revoluções, usadas pela vida
inútil, para salvar-se, cobrir-se com o manto dos santos. O ideal como método normal de renovação. Então o comunismo pode-
vivido por eles se mantém distante da prédica e da ostentação ria ter uma função histórica construtiva, inclusive no sentido
que dele faz o mundo para as suas finalidades, pois, enquanto cristão lato. Mas lato, neste caso, não significa que a sua fun-
aqueles atuam a sério, este apenas desejaria fazer crer. Mas há ção seja constituir nos planos de Deus um instrumento para a
momentos na história em que não têm mais valor as sagacida- vitória do atual grupo social que se qualifica hoje como repre-
des e poderes humanos. Então quem não se manteve seriamente sentante de Cristo. Trata-se, isto sim, do triunfo da ideia de
em contato com Deus, está perdido. Enganando a Cristo, ao re- Cristo, a qual pode se desvincular dos seus atuais representan-
duzir a aplicação de Seu programa somente a palavras, a huma- tes, quando estes não lhe sirvam mais, porquanto, nos planos
nidade se redime pelo avesso, uma vez que, procurando eximir- de Deus, o que importa é o avanço daquela ideia, e não os inte-
se com as suas adaptações terrenas, termina por construir a sua resses e a sobrevivência destes. Quando eles não cumprem
própria cruz. Hoje essa cruz já está pronta, e o Evangelho, que mais a função que lhes justifica a existência perante a vida, sua
não foi aplicado por convicção e por amor, deverá ser aplicado liquidação pode ser automática, pois torna-se indispensável pa-
à força. E é sobre essa cruz que a humanidade deverá ser pre- ra o progresso, sendo fenômeno biológico normal ao se verifi-
gada, porque a evolução em direção ao espírito deve cumprir- carem tais condições. Podem formar-se então outros grupos,
se, não sendo possível fugir-se à lei de Deus. compostos de homens novos, sendo possível utilizar-se a
mesma organização atual, mas com homens renovados no seu
IX. CRISTIANISMO E COMUNISMO espírito, selecionados na luta, purificados pela dor e, por isto,
levados a representar Cristo não só na forma, mas também na
Em nossos escritos, encontramos e usamos um ponto fixo de substância. Trata-se de uma posição totalmente diferente, por-
referência, em função do qual nos é possível formular juízos. quanto a atividade e o centro dos interesses deve passar do ex-
Este ponto de referência, situado fora e além do transformismo terior ao interior, da aparência à substância, da exterior reali-
universal – exatamente no polo oposto – envolve tudo em seu dade do mundo à interior realidade do espírito.
movimento. Dessa sua posição, este ponto imóvel e absoluto di- Qual poderia ser então, mais exatamente, de um ponto de
rige tudo o que é móvel e relativo. Trata-se do pensamento de vista cristão, a função do comunismo? Se o Evangelho, que
Deus. Este pensamento não se encontra abstrato nos céus, mas sustém a justiça social, não foi aplicado até hoje senão em mí-
está escrito e é legível em Sua lei, que é a sua expressão e cons- nima parcela, por razões de imaturidade da raça humana, tanto
titui a norma anteposta como guia do funcionamento orgânico de governantes como de governados, e se Cristo não pode ter
do universo. Nos seus vários capítulos e planos de atuação, esta sofrido para ensinar em vão, então a vida, que o homem não
lei não é toda compreensível para o homem, sendo conhecida pode deter, é levada a confiar a outro, fora do atual cristianis-
somente numa parte mínima. As descobertas da ciência não são mo, a tarefa de realizar, com outros meios e de outra forma, es-
senão progressivas revelações deste pensamento: a Lei, que fun- se programa, lançado há dois mil anos e ainda não realizado pe-
ciona nos fenômenos, independentemente do conhecimento que los cristãos. Então Deus permite que os demônios se desenca-
o homem tenha ou não dela. À medida que progride, ele vai do- deiem, reativando as forças negativas e utilizando-as para reali-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 63
zar o que as positivas ainda não fizeram. A princípio, o desen- países onde mais dominou a Santa Inquisição, a qual foi exerci-
volvimento histórico não estava ainda maduro para esta refor- da em defesa da religião. Frequentemente, os ateus surgem não
ma, e Deus permitiu que o cristianismo dormisse no cômodo porque queiram pôr-se contra Deus, mas porque, desiludidos,
leito das adaptações humanas. Mas, agora, chegou-se a uma colocam-se contra os seus representantes. Estes são a coisa
curva do caminho da evolução em que é necessário despertar, concreta que se vê neste mundo. E, quando ela não corresponde
mover-se e caminhar. A função histórica do comunismo pode às afirmações, então se foge para outras lides. Há quem, para
ser precisamente despertar os adormecidos, para tirá-los do lei- libertar-se da contradição, nega tudo, e há quem, convertendo-
to das suas comodidades, tarefa que deve ser realizada à força, se, para entrar em outros grupos semelhantes, vá buscar Deus
porque o mundo se organizou na defesa das suas velhas posi- em outra parte, ou então vá buscá-Lo por si mesmo, sem esses
ções de comodismo e resiste, não se dispondo a renunciar a intermediários, que, quando passam a pertencer ao mundo, não
elas. Eis então que, para abrir caminho, é necessária a força, representam senão a si mesmos. Então o ateísmo os repudia, e
coisa que o cristianismo não pode usar e que agora lhe vem em os que não querem aniquilar-se dessa forma seguem sós, com
sua ajuda numa hora decisiva, quando, depois de dois mil anos, Deus. A luta é entre os homens, e não contra Deus, porque nin-
o sistema apenas da bondade deu prova de não ser suficiente guém pode ter interesse em lutar contra quem está fora do
para transformar o mundo em sentido evangélico. A força é de mundo, tão longínquo, invisível e inalcançável. A revolta pode
fato, nas transformações sociais, a primeira fase: revolucionária nascer só de uma rivalidade entre semelhantes, por um prejuízo
e destruidora. É desta forma que nascem as revoluções, para recebido, o que é absurdo em relação com Deus.
depois se desenvolverem, seguindo fatalmente a sua lei. Os vio- Para convencer, é necessário estar convencido, assim como,
lentos da primeira hora são depois liquidados, quando a sua para estabelecer a fé, é necessário primeiro tê-la dentro de si,
função de varrer o que é velho está cumprida. Quem com ferro crendo a sério, com fatos, e não só com palavras. A pregação
mata, com ferro será morto. Robespierre foi guilhotinado, e a que não corresponde à realidade da vida não persuade, tornan-
sua morte marcou o fim do terror. Ficam e são depois chama- do-se hábito escutá-la apenas como uma bela apresentação. O
dos a atuar os mais calmos, para realizar o trabalho de instala- ideal, reduzido a exercício de retórica, não arrasta, porque falsi-
ção nas novas posições e de assimilação das novas ideias, para fica o que devia ser paixão avassaladora, afirmação sentida e
se reconstruir num plano mais alto, numa nova ordem. testemunho sincero de realização vivida. Quem escuta percebe
Eis de que maneira, historicamente e em sentido lato, o este atentado à sua boa fé, mas, porque lhe convém, acostuma-
comunismo poderia ser útil ao cristianismo, cumprindo a fun- se ao cômodo jogo das adaptações. Então a religião se reduz a
ção de purificá-lo, condição indispensável para que este possa uma farsa coletiva convencional, na qual todos estão tacitamen-
continuar a cumprir a sua função, pela qual a sua existência é te de acordo. O rebanho é constituído de homens do mundo,
justificada. A tarefa do comunismo seria, portanto, salvar o que conhecem as astúcias da vida, sabendo perceber e gostando
cristianismo da sua liquidação. Lição realizada à força, dada a de descobrir o que se esconde atrás das aparências. Estando
tenacidade de resistência da parte do que é velho. Ajuda de cheio de enganos, o mundo está acostumado a desconfiar e se
Deus, mas não para favorecer os homens a manterem, basea- apercebe prontamente, quando se usa o ideal à procura do ingê-
das no cristianismo, suas posições terrenas, mas sim em favor nuo para crer nele. A demasiada insistência na fé cega do crente
do ideal cristão, para que ele seja vivido e realizado, porque à pode dar lugar a suspeitas, porque se presta otimamente para
vida interessa a evolução, a conquista das finalidades da histó- prender os simples de boa fé. Por fim, chega-se a um consenso
ria e a atuação dos princípios superiores, e não a prosperidade geral, porque é cômodo para todos não se aprofundar em dema-
de um determinado grupo humano. A vida tende a acabar com sia no porquê das coisas, permanecendo na superfície.
tudo que é improdutivo e que, por isso, não contribui para a Sucede, no entanto, que, quando tudo isto se torna hábito,
realização dos seus fins. constituindo um sistema de aceitação comum, fixado em uma
É necessário compreender o que está sucedendo hoje. Pode forma mental, então a religião se corrompe e decai. Que resul-
ser um mal-entendido identificar o ministro de Deus com o ide- tados espirituais se poderão obter então? Se a semente que se
al cristão, uma vez que, nos fatos, pode-se tratar de duas coisas lança na alma dos fiéis é desta qualidade, qual a planta que po-
diferentes, isto é, pode suceder que, em vez de se viver em fun- derá nascer dela? É certo que os ingênuos são muito procura-
ção do ideal, utilize-se o ideal em função da própria vida, su- dos em nosso mundo, mas também é verdade que a sua espé-
bordinando-o a esta. Trata-se de uma inversão de valores pela cie, sob os duros golpes da luta pela vida, tende a desaparecer.
qual as posições se emborcam, de modo que a espiritualidade, Como pode um edifício, baseado sobre o ideal e sobre a fé nele
ao invés de vencer o mundo, é por ele vencida. Pode ser que depositada em relação à sua fiel e sincera atuação, deixar de
hoje a história queira endireitar estas posições e repor cada coi- desmoronar, quando as posições são assim emborcadas, fazen-
sa em seu lugar, fazendo que o ideal não mais esteja a serviço do a fé assumir um outro significado e a incredulidade se tor-
do homem, mas sim que o homem esteja a serviço do ideal. Em nar quase um ato de sinceridade?
resumo, a ideia de Cristo finalmente se move para de fato ven- O mundo está mudando e exige clareza. A melhor renova-
cer o mundo, ainda que este se tenha acostumado a vencê-la e ção que o cristianismo pode fazer não é modificar suas formas
esteja decidido a continuar por este caminho. de rito, de tolerância ou de expansão de domínio, mas sim acre-
Esta imensa onda de ateísmo que invade o mundo e que é ditar verdadeiramente nos seus ideais, oferecendo ao seu reba-
composta também de cristãos, não será uma doença do cristia- nho uma demonstração racional, para que seja possível crer ne-
nismo, tornando necessária uma salutar operação cirúrgica para les por haver compreendido, e não por ter acreditado com fé
curá-la? Que os homens do cristianismo possam, como homens, cega, de olhos fechados. Isto significa fazer os outros sentirem
ir à falência é aceitável, mas não se pode admitir que isto suceda que existe quem crê a sério, a ponto de viver a sua fé e de, pelo
com Cristo. É lógico que, para eles, quando se separam da pri- fato de crer, dar prova disso com o exemplo.
meira fonte de vida espiritual e ficam sozinhos no mundo inimi- Antigamente, a astúcia aconselhada por Maquiavel passava
go, não haja mais remédio. Eles poderão se perder, mas nem por por sabedoria. Ele dizia que era necessário mostrar as virtudes,
isso poderão paralisar a obra de Cristo, que está acima de todos mas tendo o cuidado de não possuí-las e praticá-las de verdade,
os interesses humanos e elege os seus instrumentos onde quer. para não se deixar enganar pelos princípios idealistas, os quais
Se hoje o mundo, com o ateísmo, afasta-se de Cristo, isto devem ser pregados aos outros, para que eles os pratiquem e,
pode representar um protesto não contra Ele, mas contra quem assim, seja mais fácil dominá-los. Hoje, no entanto, dá cada vez
O representa. É notório que a difusão da blasfêmia é maior nos menos resultado fingir para que os outros creiam. Pensar que
64 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
eles se deixem enganar assim facilmente não é astúcia, mas sim inconsciente colaboração para realizar a mesma construção? O
ingenuidade. O número destes diminui a cada dia. Aquela era comunismo ateu, nos grandes desígnios de Deus, que ele igno-
uma fase mais primitiva, e desde então o mundo caminhou. ra, não estaria, sem sabê-lo, trabalhando a serviço Dele, para
Torna-se cada vez mais assinalada a tendência de colocar de la- realizá-los, varrendo com tudo aquilo que, em nome de Cristo,
do o hipócrita que engana, como elemento antissocial. O méto- foi feito para os interesses humanos? Em última análise, qual é
do de Maquiavel pressupõe o ingênuo que crê, enquanto hoje é a verdadeira função do comunismo?
comum deparar-se com a reação do enganado. Eliminando o Não se pode contestar a sua expansão, sendo necessário
ingênuo, aquele método falha, e é o que está sucedendo hoje, explicá-la. Sem interesses partidários e preferências pré-
como benéfico resultado do seu longo uso. Assim foi eliminado concebidas, queremos compreender o que está sucedendo em
qualquer tipo de fé, e as massas foram educadas em sentido profundidade e qual a razão para isto. Admita-se ou negue-se
oposto, sendo obrigadas a desenvolver a desconfiança e, com a existência de Deus, resta o fato de que a vida, e com ela a
isto, o sentido crítico e o controle, tornando mais apurada sua história, encontra-se dirigida por uma inteligência. Vemos que
inteligência. Estes são os salutares efeitos da prática generali- há uma lei que, para todos, crentes ou ateus, reage contra o er-
zada e constante, em todos os setores humanos, desse método ro e o corrige, obrigando-nos com a dor a reconstruir a ordem
da pesca do ingênuo, segundo Maquiavel. Por obra de uma for- violada. Quem conhece as leis da vida sabe que um afasta-
ça negativa, surgiu, em sentido criador, uma automática seleção mento do reto caminho da evolução é submetido a um proces-
natural, pela qual sobreviveram apenas os mais astutos, os me- so de retificação. Em termos religiosos, diz-se: “é a mão de
nos dispostos a crer e a cair como presa dos enganos dos outros. Deus, que faz justiça”. Em termos racionais, diz-se: “trata-se
Eis mais um caso no qual o mal é utilizado para os fins do bem, de um movimento de forças imponderáveis, incumbido de res-
de modo que, com a evolução, o negativo tende a se inverter no tabelecer os equilíbrios alterados”.
positivo, não apenas autodestruindo-se, mas também funcio- Ora, possuindo a mesma natureza negativa de tais impul-
nando como elemento de construção. sos reativos, entram em ação neste caso, espontaneamente, as
Hoje procura-se a substância. Os homens não se contentam forças do mal (Anti-Sistema), que são particularmente ade-
mais com vagas promessas de incontroláveis e longínquas ale- quadas a uma ação agressiva e destrutiva. No plano físico, isto
grias, situadas no além e obtidas como compensação das dores se repete no caso de um organismo corroído, contra o qual a
atuais, que, em vista de tal consolação, devem ser suportadas vida lança a doença, para, das duas uma, provar a sua resis-
pacientemente, enquanto outros, mais afortunados, gozam a vi- tência, obrigando-o assim a lutar e, com isso, a desenvolver as
da no bem-estar. Por ser positivo, o homem moderno exige rea- suas qualidades sãs e vitais, ou então liquidá-lo, se, por estar
lizações imediatas e concretas, de modo que, em se tratando de demasiado corroído, não é capaz de fazê-lo. Vemos, portanto,
promessas, ele quer ver claro sobre sua futura viabilidade. Ao que tais medidas corretivas fazem parte das leis da vida. Con-
pobre, hoje, já não lhe basta o submisso dever de depender da siderar que os ateus estejam isentos delas seria como pensar
generosa e caprichosa concessão de benesses por parte de quem que eles pudessem, por ser incrédulos em matéria de doenças,
possui. A humilde súplica em busca de compaixão transfor- ficar imunes aos ataques patogênicos contra seu organismo. O
mou-se, atualmente, no direito à vida, o qual não pode depender ateísmo não outorga imunidade contra as consequências do er-
da vontade de poderosos que aceitem reconhecê-lo, concedendo ro, nem subtrai ninguém às leis da vida. Uma vez cometido o
favores, mas deve ser regulamentado como todos os direitos, erro, não é possível deter os seus efeitos.
sobre princípios de justiça. Então não mais se admite apenas a As doenças, assim como as revoluções, são tempestades de
beneficência de quem dá porque decidiu fazer uma concessão – purificação, constituindo meios de reação contra a deterioração,
insuficiente compensação para as diferenças de posição – mas que corrompe e destrói. No fundo, trata-se de cataclismos vi-
exige-se, entre os elementos do organismo social, um cálculo tais, com o objetivo de saneamento. A atual crise do mundo é
positivo de direitos e deveres, que se realize imediatamente na de sinal positivo, pois, em meio à destruição de que é feita, con-
Terra, sem problemáticos adiamentos para outras vidas, organi- tém também grandes impulsos construtivos. Trata-se de uma
zando-se o trabalho e as previdências sociais em favor de cada crise de morte no que diz respeito ao passado, mas é crise de
um dos componentes da coletividade. nascimento em relação ao futuro. Isto é provado pelo fato de
Se, tanto do lado do comunismo como do capitalismo, é que a temperatura psíquica da humanidade está subindo rapi-
possível hoje realizar este processo, isto se deve ao fato de damente. O comunismo é uma das forças que está funcionando
que as mais baixas classes sociais alcançaram uma certa cons- dentro do desenvolvimento deste fenômeno, mas é necessário
ciência coletiva, condição necessária para saberem organizar- ver em que posição e com que finalidade a cumprir. Pelo fato
se nas atuais formas, inconcebíveis na Idade Média, e pode- de estar incluído num processo de evolução, hoje particular-
rem atingir assim o exercício dos próprios direitos. Esta é a mente intenso, ele não se torna, só por isso, uma força de tipo
forma pela qual a humanidade desperta, organiza-se e coleti- positivo, benéfica, de acordo com o Sistema. O comunismo
viza-se em mais equilibradas formas de justiça social. Logi- continua sendo uma força negativa, maligna, de tipo Anti-
camente, se o mundo fosse mais evoluído, não teria sido ne- Sistema. A mente universal, que dirige o percurso da história,
cessário o assalto revolucionário comunista, para que ele de- utiliza aquela força com uma finalidade de bem, empregando-a
cidisse iniciar esta nova ordem de ideias. para a destruição, mas com um objetivo construtivo. Tal impul-
O que representa, portanto, na evolução da vida, o fenôme- so negativo então, guiado para concluir a sua ação na obtenção
no comunismo? O que ele significa no pensamento de Deus, de resultados positivos, constitui em última análise um mal ne-
do qual nenhum fenômeno pode escapar e que, estando presen- cessário, cuja finalidade é benéfica.
te também neste caso e momento, estabelece a direção da his- Talvez a função histórica do comunismo também seja pro-
tória? Em que posição se encontra este acontecimento perante vocar uma reação purificadora do cristianismo, obrigando-o a
o caso de Cristo, muito mais vasto e importante? Estará ele seguir a ideia de Cristo, para vivê-la na forma em que, pelas
talvez incluído neste caso maior, constituindo uma fase transi- razões anteriormente explicadas, não pôde fazer até hoje. As-
tória do seu desenvolvimento? Por caminhos tão diferentes, sim, o cristianismo poderá tornar-se cristão. Este seria o ver-
com métodos e movimento opostos, que parecem querer anu- dadeiro triunfo de Cristo, resultado imenso, o qual vale as do-
lar-se reciprocamente, não quererão eles levar a humanidade res que custará para ser alcançado; este seria o verdadeiro im-
ao mesmo ponto? Tratar-se-á de uma luta entre dois inimigos pulso para frente no caminho da evolução, com uma redução
inconciliáveis, para destruírem-se, ou, pelo contrário, de uma de poder terreno e uma correspondente conquista de valores
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 65
espirituais; este seria o verdadeiro progresso em direção a nismo não realizou, mas sim castigar o cristianismo por ele não
formas de vida mais elevadas, para civilizar o mundo e trans- o ter realizado, obrigando-o a isso através de métodos bastante
formá-lo em sentido cristão, regressando ao centro do cami- persuasivos. Se é indiscutível que, na Terra, devido à natureza
nho da evolução, sobre o qual a vida nos quer reconduzir, do homem, nada se obtém com os métodos evangélicos – ade-
quando nos perdemos pelas vias do mundo. quados somente para seres mais evoluídos – isto, no entanto,
O comunismo representa um impulso em direção a este en- permite ao comunismo insurgir-se no campo das atuações ter-
direitamento. Por haver resistência à transformação, é necessá- renas, que nada tem a ver com espiritualidade.
rio que este impulso seja enérgico, dotado de meios persuasi- O fenômeno se explica. O Evangelho está marcado ao longo
vos, e o comunismo os conhece bem. A luta é grande, porque o da linha da evolução como realização futura, razão pela qual,
cristianismo resiste, procurando conservar a velha ordem, cujas hoje, apresenta-se no alto, por sobre a vida vigente, como um
vantagens goza e sobre as quais baseia as suas posições. No en- ideal que, antecipando o amanhã, está à espera para tomar cor-
tanto ambos estão fechados dentro do mesmo processo históri- po na Terra. O comunismo surge, pois, dois mil anos depois de
co, para realizar a mesma obra de construção. O cristianismo Cristo, em tempos mais maduros, que tornam possível tentar-se
possui a ideia, e o comunismo tem a força para forçar a sua rea- uma distribuição mais equitativa de bens, não só como caso iso-
lização. A ideia, por si só, permanece uma abstração fora da re- lado, por iniciativa individual e fins espirituais, mas em escala
alidade. A força, sem a ideia para lhe dirigir a ação, pode ser social, assumindo uma organização coletiva e tendo reais fina-
levada a realizar as piores coisas. A vida produz os opostos e lidades terrenas. Eis porque o comunismo se encontra realizan-
depois os aproxima em posição de complementaridade, para fa- do alguns pontos do Evangelho. Mas, mesmo nestes, há uma
zê-los colaborar, lutando como rivais para alcançar o mesmo grande diferença: o comunismo não se limita a aconselhá-los,
fim – colaboração entre opostos complementares – como acon- mas os realiza; não os propõe ao indivíduo para a sua perfeição,
tece na luta do casal macho-fêmea, destinado à procriação. Por mas os impõe às massas; não se ocupa de longínquas metas es-
lei de evolução, é lógico e justificável que, no passado, numa pirituais, mas busca realizações humanas imediatas. Disto deri-
primeira fase do seu desenvolvimento, o cristianismo, para va a diferença de método. Quem segue a técnica evangélica da
chegar até hoje, tenha sido obrigado a aceitar os métodos da bondade trabalha só no terreno do ideal, mas quem deve agir na
época, adaptando-se ao estado involuído da humanidade de en- Terra tem de seguir os métodos do mundo, bem diversos daque-
tão. Mas, pela mesma lei de evolução, é lógico e necessário que les de Cristo, feitos para as realizações espirituais, porquanto
hoje, em uma mais avançada fase de seu desenvolvimento e do aqui estamos no plano material. Os métodos evangélicos pre-
mundo, o cristianismo desperte e passe de verdade à realização sumem um grau de evolução e civilização ainda não alcançado.
do seu programa, aproveitando a oportunidade e os incitamen- É assim que, numa humanidade ainda imatura, a força e a vio-
tos que Deus lhe oferece nessa nova maturidade histórica. Num lência, que estão nos antípodas do ideal, podem formar parte
universo em que tudo está conjugado e atua em colaboração, o indispensável da técnica da sua descida na Terra. Esta descida
negativo e o positivo, mal e bem, se bem que em posições reci- implica ingentes deslocamentos de ideias, interesses e posições,
procamente contrárias, trabalham de acordo, inseridos no mes- mas o estabelecimento de uma nova ordem no lugar da velha,
mo processo bipolar a favor da evolução. Com o tempo, as re- que não se deixa demolir, somente pode ser obtido à força. Um
voluções acabam por devorar os seus filhos e, com isso, o mal pioneiro isolado pode vencer com o martírio; as massas, não.
acaba por eliminar-se a si mesmo. No entanto o bem – que o As funções históricas do cristianismo e do comunismo, mesmo
mal, com o seu esforço emborcado, conseguiu estimular, purifi- que ao longo do caminho possam encontrar algum ponto de
cando-o e renovando-o – permanece, enquanto, para as novas contato, são diferentes. O primeiro estabelece as metas longín-
gerações, fica o avanço evolutivo conquistado. quas, ainda situadas no nível super-humano do ideal, enquanto
Não é algo novo para a vida este método de utilizar tudo o segundo está no meio do mundo, para causar um estremeci-
num sentido criador, inclusive os elementos destrutivos. Assim mento que leve à realização concreta daquela meta. É evidente
o comunismo, visto em sentido lato, pode ser entendido como que, devido à estrutura de nosso mundo, não há outro caminho,
uma reação corretiva por parte da lei de Deus, representando ainda que isto pareça uma contradição, para passar da teoria do
uma tempestade de dor cuja função é despertar o espírito, meta cristianismo pregado à prática do cristianismo vivido. E isto
da evolução. Foi dito que: “o comunismo testemunha os deve- nos prova o passado. Trata-se de uma tentativa inicial, de grau
res que o cristianismo não cumpriu”. Mas por que testemunha? ainda involuído, como demonstram os métodos usados, inevitá-
Será que é para cumpri-los, ou é somente para ressaltar que eles veis quando se quer realizar algo no atual nível evolutivo da
não foram cumpridos e, assim, sentir-se autorizado a agredir e humanidade, como movimento de massa. Descer à atuação prá-
liquidar quem deveria tê-los cumprido? De que púlpito parte a tica significa ter que mergulhar em nosso mundo tal como ele é,
pregação? Como pode fazê-la um comunismo que, nos fatos, para realizar um trabalho que somente quem tem a força bruta
pratica métodos que estão nos antípodas do Evangelho? Como do primitivo pode ter a capacidade de cumprir. Depois desta
pode quem tem defeitos condenar os defeitos dos outros? O fa- nova irrupção de impulsos evolutivos, o novo cristianismo, pu-
to é que os homens são todos da mesma raça e fazem em toda a rificado pela tempestade, poderá retomar, sobre a estrada aplai-
parte as mesmas coisas. São os fatos e o modo de atuar que, por nada pelo cilindro compressor de revoluções e guerras, o seu
detrás das palavras e das ideologias, revelam qual é a realidade. caminho triunfal em direção a Cristo.
Mas, se à teoria não corresponde à prática, pois o Evangelho Este é o fenômeno nas suas grandes linhas. Mas que sucede-
comunista mata em nome do ideal, enquanto o evangelho de rá, se olharmos mais em detalhe, mais de perto? Vivemos num
Cristo induz a deixar-se matar pelo ideal, tudo isto significa momento histórico decisivo, de deslocações de equilíbrios e po-
que, de fato, os dois Evangelhos estão nos antípodas, sendo um sições, de mudanças profundas, que levam a humanidade a gra-
o contrário do outro. Vê-se, por isso, quanta confiança pode vitar em direção a outras metas e realizações, em função de ou-
merecer um Evangelho comunista camuflado de Evangelho tros pontos de referência. Uma necessidade de sinceridade e
cristão. É inútil mudar os termos. Os dois terrenos são comple- clareza impulsiona a uma revisão dos valores tradicionais, para
tamente diversos: um é material, o outro é espiritual; um é polí- eliminar os fictícios e ficar com os reais. O cristianismo está
tico, o outro é religioso. Que significa esta atitude de se apro- colocado numa bifurcação: ou se faz cristão a sério, ou será li-
priar do Evangelho, para usá-lo ao contrário, buscando destruir quidado, pois, não cumprindo mais a sua função, não terá mais
Cristo e levar à supressão do setor espiritual da vida? Então a razão de existir. Então o desenvolvimento do programa evangé-
função do comunismo não é cumprir o Evangelho que o cristia- lico poderá continuar, mas confiado a outros homens, a outros
66 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
instrumentos que serão chamados por Deus, adequados à reali- deve mais consistir em colocar-se no nível do atacante, rebai-
zação daquele ideal, que fatalmente se cumprirá. A atuação dos xando-se a lutar com ele no seu terreno, onde a vitória é do po-
planos de Deus não pode ser limitada aos interesses de uma der econômico, da astúcia das alianças com os poderosos e da
classe dominante. O Evangelho, além de fenômeno religioso, é curta sapiência do mundo, justamente o campo no qual o opo-
também fenômeno social e biológico, de importância funda- nente é forte, mas deve, isto sim, consistir em elevar-se sobre
mental no desenvolvimento da evolução da vida no plano hu- ele, para atuar num plano aonde o mundo não chega, utilizando
mano da coordenação coletiva, para passar à fase orgânica. forças que ele não conhece e que não lhe obedecem.
Neste desenvolvimento, está envolvida a existência de todos os Mas quem é imparcial deve saber ver também o que sucede
homens, tanto dos cristãos como dos ateus. A descida dos ide- na parte oposta. Será o evangelho comunista o verdadeiro
ais, embora se realize através das religiões, faz parte integrante Evangelho, ou trata-se de comunismo disfarçado de cordeiro,
do fenômeno da evolução, que antecipa e obriga a avançar, in- de Satanás mascarado de Cristo? Não convence aquela prega-
teressando, portanto, também à ciência positiva dos ateus. ção de uma justiça evangélica realizada por meios ferozes, que,
Eis então que o comunismo pode ter a função de despertar tentando parecer justiça, constitui de fato astúcia para, assim
o cristianismo, obrigando-o a cumprir a sua função e, assim, camuflado, penetrar melhor em casa alheia, aproveitando a cre-
contribuindo para que ele não seja liquidado pela vida. O co- dulidade dos ingênuos. Porém, uma vez tendo entrado, a reali-
munismo pode ser entendido como um bisturi em mãos de um dade é bem diversa. O comportamento no desenrolar dos fatos
hábil cirurgião. O bisturi corta as carnes, mas o cirurgião sabe revela o verdadeiro conteúdo da ideologia. É assim que a práti-
o que faz, operando para curar, e não para matar. A vida está ca não corresponde à teoria em nenhuma das duas partes. Na
do lado do doente, para curá-lo, por isso o opera, pois quer realidade, cristianismo e comunismo são apenas dois grupos de
que viva e que evolua ainda. Curar-se, para o cristianismo, homens e interesses, que, à sombra dos ideais, fazem no mesmo
significa reencontrar os seus valores mais vitais, que são os nível a mesma guerra pela própria sobrevivência. Não temos,
espirituais. Se ele voltar a encontrar Cristo, salvar-se-á, de ou- portanto, como deveria ser, o choque entre dois planos biológi-
tro modo ficará só e, sem Cristo, acabará por se perder. O que cos, um superior e um inferior, entre o ideal e o mundo, entre
morre não é Cristo, mas sim a organização humana, pois a lei espírito e matéria, mas entre dois grupos substancialmente da
de Deus não lhe permitirá continuar vivendo, visto que ela já mesma natureza, que atuam com os mesmos métodos humanos,
não representa a Sua ideia e que esta foi a condição pela qual situados no mesmo nível. Uma vez que a luta é travada entre
Cristo permitiu a sua sobrevivência. semelhantes e no mesmo terreno, ação e reação são do mesmo
Não é com finalidade destrutiva que estamos fazendo estas tipo. Podemos, assim, explicar a razão pela qual o assalto do
afirmações, mas ao contrário. A lógica colocação deste fenô- comunismo toma também esta forma de engano.
meno, tornando-o compreensível, permite-nos conhecer qual Como tínhamos explicado anteriormente, este ataque é de-
deve ser a técnica defensiva da parte do cristianismo contra o vido à reação da Lei, que dirige, segundo a inteligência do uni-
assalto comunista. Que deste lado se ataque e que do outro se verso, o funcionamento orgânico todo. A reação é contra uma
resista em posição de defesa é fato evidente. Mas como con- violação da ordem, e o seu objetivo é restabelecer o equilíbrio
duzir a defesa? Foram usadas as armas espirituais, com exco- violado. Podemos nos permitir aqui formular estas apreciações,
munhões e coisas similares. Mas estas sanções se realizam uma vez que as deduzimos como consequência de soluções ge-
apenas no além, que está, portanto, fora do terreno positivo, o rais já alcançadas por nós em outro lugar, as quais lhes consti-
único levado em conta pela parte oposta. Trata-se de pressão tuem a base, autorizando-nos assim a concluir. Ora, a razão está
psicológica, válida somente enquanto existe um estado de fé e no fato de que a reação da Lei é levada a assumir a mesma for-
a correlativa sugestionabilidade, coisas que, com o materia- ma e a seguir o mesmo tipo do erro que a gerou, pois a reação
lismo desagregante, vão desaparecendo. Procurou-se então nada mais é senão o mesmo impulso violador, retrocedendo
pactuar, buscando o colóquio, para amansar o inimigo. Ten- contra quem o lançou. O primeiro e o segundo movimento são
tou-se assemelhar-se a ele pelo caminho das concessões, para simplesmente as duas fases, ida e volta, do percurso realizado
chegar a uma convivência pacífica. O comunismo sempre se pelo mesmo impulso. Causa e efeito não podem deixar de ser
aproveitou disso para avançar. da mesma natureza. Quem engana lança sobre si mesmo o en-
Existe uma tática segura, porém mais difícil de realizar, con- gano. A falsa santidade acaba por fazer aparecer o diabo vesti-
sistindo em eliminar os próprios pontos fracos, que, atuando do de santo. Assim o comunismo é levado a usar a técnica do
como portas abertas, permitem ao inimigo entrar. Que poderia o engano, sendo atraído a isto porque o erro através do qual o
comunismo contra a pessoa de Cristo? Nada haveria para repro- cristianismo provocou a reação da Lei – cujo instrumento de
var-lhe nem tirar-lhe. Se o cristianismo se tornasse como Cristo, efetivação foi o comunismo – é do mesmo tipo. Foi o cristia-
que poderia o comunismo objetar-lhe? Este só pode atacar onde nismo que, deste lado, lhe abriu as portas, oferecendo-lhe, com
o cristianismo não é como Cristo. Se o cristianismo permaneces- este tipo de ponto fraco e consequente vulnerabilidade, o “lugar
se por sobre o mundo, fora do campo político e econômico, as- de menor resistência”, onde é mais fácil romper as barreiras e
sumindo sua função espiritual, que lhe pertence de direito e penetrar nas defesas do inimigo.
constitui um terreno inexistente para o comunismo ateu, as ra- Assim como a força do assalto microbiano está na vulnerabi-
zões para o ataque deixariam de existir. Mas o problema é que, lidade orgânica do indivíduo, a força do comunismo também é
para a maioria dos homens, o terreno espiritual é uma zona ine- dada pelos pontos fracos do cristianismo. Qualquer atacante es-
xistente, da qual se foge, para não renunciar à vida na sua forma tuda as brechas que o inimigo oferece para ser atacado. O co-
material, que é a única forma na qual ele a consegue conceber. munismo descobre e utiliza estes pontos. Nas nações, eles são os
Mas já vimos como o cristianismo se adaptou ao mundo, assu- governos fracos e corrompidos, a desorganização, a miséria. No
mindo-lhe o respectivo modo de viver e, portanto, chocando-se caso do cristianismo, um deles é a tradicional simbiose cristia-
com o comunismo no terreno onde este quer imperar. No entan- nismo-capitalismo, que sai do terreno espiritual, ao qual o co-
to, para um organismo de natureza espiritual, como é o cristia- munismo não tem acesso, para entrar no terreno específico des-
nismo, não há outro meio de defesa senão permanecer coerente te, que é o terreno econômico. A referida aliança forma o grande
aos princípios básicos da instituição, que representam uma força grupo das classes dominantes, das pessoas de bem que estão do
proveniente de um plano desconhecido pelo comunismo, o espi- lado da ordem e das virtudes e devem, portanto, demonstrar que
ritual, constituindo, para quem sabe usá-la, uma força tão válida respeitam aquela e possuem estas, sob pena de serem acusadas
e concreta como as de origem material. A reação defensiva não de falsas. Então aqueles que mostram tão excelsas qualidades
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 67
caem nos laços por eles mesmos lançados. O seu inimigo exige pressão do mesmo sistema. Hoje, como já explicamos, o pobre
que eles mantenham a sua palavra e pratiquem nos fatos as vir- não se contenta mais com simples concessões, com as quais é
tudes que professam, cobrando que sejam bons, honestos e jus- colocado à disposição do arbítrio alheio, mas assenta os seus di-
tos de verdade, porque tudo isto os desarma, debilitando-os na reitos e os faz valer, exigindo que os outros cumpram com os
luta, o que agrada à parte oposta, porque facilita a sua vitória seus deveres a seu respeito. O cristianismo havia criado a ove-
contra eles. Fazer a guerra contra um santo que se deixa martiri- lha paciente e submissa, que espera e agradece, mas o comu-
zar, perdoando, é mais fácil que fazê-la contra uma fera ou um nismo está criando o indivíduo organizado, que discute sobre
inimigo bem armado. Se Cristo, em vez das Suas legiões de an- justiça social e exige a sua aplicação.
jos, tivesse empregado legiões de soldados aguerridos, os roma- Tampouco, porém, pode a ação comunista, por este lado, ser
nos e os judeus O teriam tratado diversamente. justificada, porque à fraude do cristianismo corresponde a frau-
Através desta sua simbiose com o capitalismo, o cristianismo de do comunismo, que faz alarde da justiça social, para melhor
desceu do seu superior plano espiritual para submergir-se naque- penetrar e dominar. Em teoria, ele se proclama defensor dos de-
le terreno, onde está situado o comunismo. É neste nível huma- serdados, sublevando-se contra as injustiças do mundo. Mas, na
no, bem diverso do divino, que tem lugar o choque. Lutar contra prática, que benefício deste nivelamento gozam as massas? Este
Deus, em si mesmo, não interessa ao ateu, porque é absurdo lu- novo método de vida social melhora as suas condições de exis-
tar contra algo que não se acredita existir. A luta surge quando tência em confronto com a dos países capitalistas? O comunis-
aparecem na Terra, em forma tangível, homens que, como re- mo desejaria ser uma tempestade de saneamento contra as mui-
presentante de Deus, atuam no plano humano. Então a luta do tas injustiças, mentiras e corrupção. Estas, de fato, existem, e a
comunismo contra o cristianismo não é entre o homem e Deus, revolta contra tudo isto é uma esperança de libertação, que im-
mas é luta entre homens. Não se trata de uma luta de princípios, pulsiona as massas em direção ao comunismo. Trata-se de um
mas sim de interesses, que são a razão pela qual os homens pro- impulso negativo, determinado não por uma atração em direção
cedem assim na Terra, seja em nome da ideologia defendida pe- a uma ajuda, mas sim por uma repulsão que induz a fugir de um
los comunistas, seja em nome dos ideais pregados pelos que se inimigo perigoso. Mas pode a passagem de um partido político
fazem representantes de Deus. Ao comunismo não interessa a a outro transformar o homem e torná-lo melhor? Por acaso não
negação teórica de Deus, mas sim a negação prática das organi- continua ele sendo o que é, para fazer as mesmas coisas em
zações humanas que, em Seu nome, possuem poderes econômi- qualquer partido em que se encontre? Existe no homem um de-
cos e políticos. O que é puramente espiritual, sendo de domínio sejo de justiça, mas que tende primeiramente a realizar-se em
íntimo, escapa por sua própria natureza a qualquer intervenção favor do seu próprio egoísmo, começando pelos direitos pró-
do exterior. É difícil, portanto, controlá-lo coativamente. O cho- prios e pelos deveres dos demais. Dentro desta obscura revolta,
que depende, assim, desta descida do cristianismo do plano espi- contra tantos males sociais, em busca de honestidade e justiça,
ritual para o temporal, que o coloca no mesmo nível do segundo. frequentemente se agitam os impulsos mais baixos e desorde-
Se o cristianismo tivesse ficado no seu plano, se não tivesse bai- nados. Tudo isto é náusea da corrupção alheia, mas é também
xado até se tornar coisa do mundo, como é o comunismo, teriam desejo de fazer o mesmo e inveja por não poder gozar as mes-
faltado os pontos de contato e de rivalidade, que são o motivo de mas vantagens. Não se quer a mentira dos outros porque nos
luta. Entre dois grupos humanos que usem bandeiras diversas a traz dano, mas se aceita alegremente a própria, que nos traz
luta é inevitável. Porém Deus está acima de todos, dirigindo tu- vantagem. Prefere-se inclusive arriscar uma destruição geral, na
do para os seus fins, diferentes dos humanos. esperança de que, na confusão, haja individualmente alguma
Nos planos de Deus, para que serve então e onde quer che- coisa a ganhar. Então, com a palavra justiça, tenta-se de fato
gar esta luta? O seu resultado benéfico poderá ser que o cristia- mascarar a tentativa de aproveitar-se e o desejo de vingança.
nismo seja obrigado pelo comunismo a retirar-se ainda mais do O resultado de tudo que observamos, então, é a luta de clas-
campo material, para expandir-se no seu terreno, que é espiritu- ses, com o ódio entre elas impulsionando à guerra. Por este ca-
al, deslocando os seus interesses do primeiro para o segundo. minho, os dois grupos que proclamam o Evangelho chegaram ao
Isto é o que Deus quer, porque isto é espiritualização, signifi- seu polo oposto, obtendo ameaças de guerra, ao invés de paz;
cando o regresso ao plano fundamental da evolução, razão da agressividade, ao invés de colaboração; ódio, ao invés de amor.
existência. Em outros termos, no desenvolvimento da história, Assim o Evangelho foi atraiçoado por ambas as partes, único
seguindo os planos de Deus, o grupo humano representante do objetivo no qual os dois inimigos concordam e colaboram. De
comunismo assalta o grupo humano representante do cristia- quem é a culpa? Se o remédio é pior do que a doença e o médico
nismo para forçá-lo a espiritualizar-se, obrigando-o a subir e está mais doente do que o doente, não será ela de ambos? Assim
aproximar-se de Deus. Isto significa um regresso a Cristo. Este o mundo tomou um caminho de egoísmos e antagonismos, de
é o significado do ataque comunista. destruição e de dor. O mundo está carregado de ódio e arde com
A fraude por parte do cristianismo neste caso é substancial, o desejo de descarregá-lo sobre alguém. O comunismo o reco-
pois se desenvolve num fator concreto: o terreno econômico. lhe, o organiza e o canaliza, para utilizá-lo nas suas finalidades
Ele pregou aos pobres a não resistência e a aceitação do sacrifí- de domínio, através do ódio de classes sociais, dirigindo-o de
cio, exaltando-os em teoria, compensando-os com consolações baixo para cima, generosamente intercambiado de cima para
de além-túmulo, mas deixando-os na Terra entregues à sua mi- baixo. Mais eis que a tão invocada igualdade, se ainda não foi
séria. Para salvar seus interesses, aliou-se com os ricos e pode- alcançada no terreno econômico, já o foi no terreno do egoísmo.
rosos da Terra, deixando aos deserdados as consolações do Céu A esta cisão entre classes sociais inimigas chama-se de amor
e a honra de saber sofrer. Se o cristianismo hoje vai ao encontro evangélico. De ambas as partes, tudo é negativo e involuído. Se-
das classes mais pobres, é porque elas se organizaram e, assim, rá que isto é produto do Evangelho de Cristo? Ou tudo que se
tornaram-se poderosas. No passado havia somente a esmola e a faz no mundo não passa de um emborcamento do Evangelho? A
beneficência, e não o direito ao trabalho e à vida. O cristianis- realidade escondida por baixo das palavras e dos ideais é bem
mo, se no passado tirou vantagem desta aliança, hoje não pode diversa e não pode deixar de produzir os seus efeitos. Como re-
deixar de estar envolvido nas consequências que dela decorrem. sultado de tanto progresso científico, o mundo hoje vive sob o
Da formação do binômio cristianismo-capitalismo inevitavel- terror de uma guerra atômica, e parece que a dor é a única pala-
mente deriva que ambos tenham a mesma sorte. Desde que o vra capaz de se fazer compreender em todas as línguas. Então,
primeiro deitou raízes na Terra como capitalismo, é natural que depois de imensas tempestades destrutivas, os sobreviventes tra-
o comunismo queira eliminá-los ao mesmo tempo, como ex- tarão, fraternalmente, de se colocarem realmente de acordo, sem
68 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
mais enganarem-se com as palavras. Então poderá aparecer o capacidade de compreender, não se pode mais viver como au-
amor, o Evangelho verdadeiro, vivido a sério. tômatos inconscientes, manobrados só pelos instintos, pois sen-
A estrada é longa, e nos encontramos apenas no começo da te-se a necessidade de saber orientar a própria conduta em fun-
grande curva. Não estamos formulando teorias. Estamos con- ção de uma finalidade superior a alcançar, vivendo inteligente-
tando uma história, em grande parte ainda futura. Se Cristo mente coordenado no funcionamento do todo, para realizar um
prometeu o triunfo da Sua verdade, esta deverá acabar por plano que explique, justifique e valorize a vida. Deste desejo
afirmar-se, mesmo que sejam necessárias semelhantes tempes- nasceram estes livros, o atual e os precedentes, escritos também
tades de dor, para vencer a tentativa do homem de deter a evo- na esperança de poderem eles satisfazer um igual desejo que
lução e retroceder ao Anti-Sistema. Sabemos, porém, que o de- possa ter nascido em indivíduos situados numa posição biológi-
sencadeamento das forças negativas não pode levar senão à vi- ca semelhante. Pode suceder que outros, para encontrarem satis-
tória das forças positivas. O resultado de um ataque não é a sua fação, necessitem de outras verdades. Tudo depende do grau e
afirmação, mas sim a afirmação da reação que ele provoca. Do tipo de anseio que cada um sente, segundo o seu próprio tempe-
ataque comunista, das revoluções e das guerras poderá surgir ramento, especialização de atividade e nível de evolução. Mas o
um cristianismo purificado. Então Cristo poderá ressurgir no que vale para todos não é tanto, como se costuma fazer, tomar
coração dos homens e o Seu amor poderá realmente afirmar-se uma verdade emprestada de outros, fornecida já pronta com as
no mundo. Se a culpa do cristianismo foi de fazer-se materialis- instruções para o seu uso, mas sim a verdade que se descobriu
ta com o mundo, o saneamento que o comunismo e as conse- por si mesmo, com as suas próprias forças, uma verdade que não
quências dele provocarão consistirá em obrigar o cristianismo a é repetição nem aceitação do pensamento já confeccionado por
espiritualizar-se e apoiar-se exclusivamente em forças deste ti- outros e que foi laboriosamente conquistada, experimentando na
po, inacessíveis para os involuídos, que não podem usá-las, própria vida e pensando com a própria cabeça, olhando com os
porque não as conhecem e, nas suas mãos, elas não funcionam. seus próprios olhos dentro das coisas e do seu funcionamento,
Se, dada a imaturidade evolutiva do homem, o cristianismo para ler o pensamento que está escrito nelas.
não pôde até agora alcançar uma aproximação maior da espiritu- Nestes últimos livros conclusivos da Obra, podemos descer
alidade, hoje, que a humanidade está evoluindo rapidamente, um cada vez mais aos pormenores, focalizando a observação sobre
batismo de dor com o ataque do comunismo pode ser providen- os fenômenos em detalhe, porque já foi traçado e demonstrado
cial para dar ao cristianismo um impulso para o alto e repor o o sistema científico-filosófico-teológico básico6, necessário pa-
mundo no caminho da sua progressiva espiritualização. Não se ra a orientação. A este sistema nos podemos referir agora, a ca-
pode culpar o cristianismo de não haver avançado mais do que a da momento, para explicar, segundo a lógica do todo, o caso
humanidade no passado. Mas culpado ele seria hoje, se não res- particular, mostrando o porquê da sua estrutura e de seu funcio-
pondesse de uma forma positiva, neste momento historicamente namento, dado que é difícil entender um fenômeno separado do
mais adequado para um salto em frente, aos incitamentos que todo, não orientado e enquadrado no plano geral, do qual ele
lhe são oferecidos para ele se decidir a ascender. Se a continua- faz parte. No fundo, estamos aqui fazendo simplesmente apli-
ção dos velhos sistemas foi justificável no passado, já não o se- cações da teoria universal estabelecida nos volumes preceden-
ria agora, que a humanidade está saindo do estado de involução tes, que, além de explicar casos e fatos, também ampliam o
ao qual eles estavam condicionados. Se o grande abalo chegou controle da verdade daquela teoria. Ao ser continuamente apli-
hoje, é porque é hora de despertar. A vida sabe o que ela quer e, cada e mantida em contato com a realidade, a teoria encontra
para alcançar isso, proporciona os devidos impulsos às condi- fatos que, ao invés de se chocarem com ela, contradizendo-a,
ções do momento e à capacidade de responder, colocando-os em vêm pelo contrário confirmá-la, comprovando-a. Portanto tudo
movimento, quando há uma possibilidade de êxito. Porque as isto demonstra que aquela teoria é verdadeira.
guerras se tornam cada vez mais ruinosas para os vencedores do Pelo fato de podermos apoiar-nos sobre tão vastas premis-
que para os vencidos; porque as revoluções se transformam, sas, foi possível concebermos o Evangelho não só como ele-
chegando até onde os seus promotores não pensavam; porque a mento de uma particular religião, mas também como um produ-
vida tende a evoluir, espiritualizando-se, é provável que o resul- to universal da vida, que por meio de Cristo foi lançado à Terra,
tado mais útil de tão grandes choques não seja a vitória de um como antecipação da futura evolução humana. Assim, o Evan-
grupo humano, religião ou partido, de um país contra outro, mas gelho já não se nos apresenta apenas como problema religioso,
sim do Cristo purificador de todos, para o bem de uma humani- mas sim como fenômeno biológico-ético-social, presente em
dade que O compreendeu e que, finalmente, encaminhada pelos qualquer lugar em que se encontre o homem ou qualquer ser
acontecimentos que a fizeram amadurecer, decidiu civilizar-se a que tenha alcançado o mesmo grau e tipo de evolução. Foi-nos
sério, vivendo realmente a lei de Cristo. possível observar o funcionamento do fenômeno da descida dos
ideais à Terra – tão pouco controlável em forma positiva – tra-
X. A CRISE DO CATOLICISMO tando dele de uma forma não vaga e misteriosa, como fazem as
religiões e o espiritualismo, mas sim racional e convincente, de
Neste volume, assim como nos precedentes, continuamos vi- acordo com a lógica e a ciência, como fenômeno enquadrado
ajando pelas estradas do pensamento, para analisar não só como em leis conhecidas, a exemplo da evolução, e orientado no fun-
é feito e qual a aspiração deste estranho animal, chamado ho- cionamento do todo. Pudemos assim realizar, com a forma
mem, que, no entanto, aspira tornar-se superior, mas também pa- mental positiva do mundo, o exame do fenômeno da descida
ra compreender o porquê da sua conduta tão ilógica e contrapro- das coisas do Céu, tão difícil de se captar.
ducente. Quem escreve aqui teve de fazer um trabalho de pes- Observemos, no entanto, que, até aqui, permanecemos no
quisa para sua própria orientação, pela necessidade de viver in- terreno do conhecimento puro. Devemos então completá-lo,
teligentemente, com consciência e conhecimento, compreen- dando-nos conta também de um outro fato. Existe um outro
dendo aquilo que se faz e por quê, para dar à vida um conteúdo problema, que se refere à realização prática dos ideais descidos
sério, que não deixe ela se transformar numa perda de tempo à do Céu, quando se trata de se materializarem no ambiente ter-
caça de ilusões. Tudo isto ele fez em primeiro lugar para si, a restre. Transportar estas teorias à realidade da vida humana po-
fim de conquistar a sua verdade, apenas oferecendo-a aos outros derá parecer fácil a um teórico. Nos fatos, porém, o problema
num segundo momento, na eventualidade de que também possa
servir a eles. Uma vez atingido um determinado grau de evolu- 6
V. os livros: A Grande Síntese, Deus e Universo, O Sistema e
ção biológica, dado pelo desenvolvimento mental e correlativa Queda e Salvação.
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 69
não é tanto possuir o conhecimento ideal de um sistema novo e ção educadora e civilizadora das religiões, explicando-se a con-
perfeito, mas sim dispor de material humano adequado, capaz tradição entre o que elas recomendam fazer e o que é feito na
de realizá-lo e, depois, fazê-lo funcionar. É inútil dispor de pla- realidade. Uma religião estende-se de um ao outro destes seus
nos teoricamente perfeitos, quando o material que se deve utili- dois extremos. De um lado, a pregação daquilo que deve ser
zar cai aos pedaços, de tão corroído. O Céu deve contar com as feito, mas que, constituindo um programa na expectativa de
condições que oferece a vida terrestre. Então o problema básico realização futura, ainda não se faz. De outro lado, aquilo que se
não é o ideal, mas o saneamento de tal material humano, a faz na realidade da vida e que cabe ao ideal das religiões trans-
construção do homem. Assim como, para construir o organismo formar lentamente. Elas estão entre estes dois polos: o polo An-
humano, antes de coordenar nele infinitas células, foi necessá- ti-Sistema do involuído e o polo Sistema do evoluído. Entre es-
rio construir cada uma delas como indivíduo-celular, também é tes dois extremos, uma religião abarca, na sua amplitude, todos
necessário, para construir o organismo coletivo humanidade, os graus de desenvolvimento compreendidos entre eles, abran-
construir cada um dos indivíduos, seus elementos componentes. gendo uma escala que vai do pecador ao santo, ao longo da qual
Todavia, na descida dos ideais, admira-se a sua beleza, mas os indivíduos estão situados e procuram subir.
pensa-se pouco em como o homem será capaz de usá-los, Assim desaparece a contradição e fica a função evolutiva
quando se apropriar deles no seu mundo. Age-se então como se das religiões. Estas então, apesar de serem apresentadas como
a perfeição do sistema pudesse ser suficiente para suprir a im- verdades absolutas e imutáveis, não devem ser entendidas deste
perfeição do instrumento utilizado para sua realização. modo, mas sim como verdades relativas, que evoluem em pro-
É assim que, nas revoluções, nas mudanças de regime, de porção à maturação alcançada pelos seus componentes e que,
partidos ou de religião, altera-se a forma, mas permanece a portanto, progridem incessantemente, mudando sempre em re-
substância, de modo que homem permanece o mesmo e faz as lação ao ponto fixo final da evolução, situado no absoluto, sen-
mesmas coisas, mudando apenas o estilo, a forma, a bandeira e do este o ponto de referência em função do qual as religiões –
o princípio teórico em nome do qual as coisas são feitas. Dessa umas mais e outras menos próximas dele – realizam a sua pro-
forma, os melhores programas e os mais altos ideais, no fim, gressiva deslocação evolutiva. Ora, este fenômeno permanece
não servem para nada, dado o uso que deles se faz. É inútil fa- incompreensível, se olhado com a forma mental das teologias
zer uma máquina perfeita e depois entregá-la nas mãos de um vigentes, feitas de abstrações situadas fora da realidade da vida,
macaco, se não se pensar primeiro em transformar o macaco, com verdades imobilizadas, apegadas ao absoluto, em cujo no-
para que ele não destrua a máquina por ignorância. É assim que me desejam eternizar a sobrevivência do próprio grupo. Porém,
os melhores sistemas chegam ao mesmo fim. Eles são aceitos apresentado assim, como o fazemos aqui, todo o processo fica
verbalmente e divulgados, tornando-se a crença de um movi- logicamente explicado. As sucessivas reencarnações permitem
mento, mas com a secreta intenção de explorá-lo para obter a assimilação de novas experiências e, com isto, a aquisição de
proveito. Então acontece o inevitável. O involuído, não com- novas qualidades, através da sua fixação no subconsciente, em
preendendo nada das leis da vida, ao se encontrar manejando forma de automatismos. Trata-se de um progressivo enriqueci-
forças que não conhece, consegue somente produzir o seu pre- mento, melhoramento e potencialização da personalidade. Eis
juízo. Assim ele fica com o edifício demolido em cima de si em que consiste a ascensão do Anti-Sistema ao Sistema, da ma-
mesmo, submetido à necessidade de recomeçar desde o princi- téria ao espírito; eis o que significa elevação em direção a
pio, tantas vezes quanto for preciso, até aprender a lição, para Deus. Não se trata de um dogma desta ou daquela religião. Tu-
saber fazer o justo uso dos ideais que descem a Terra. A peni- do isto é simplesmente biologia, cuja técnica evolutiva pode ser
tência é dele. Mas como poderia ele evoluir de outro modo? racional e experimentalmente controlada. Assim, quando fala-
Não será esta, na realidade, a história da descida dos ideais? mos de céu, de espírito e do Alto, podemos explicar seu signifi-
Ora, a nossa tarefa não pode ser impor outra conduta para cado mais profundo. Então estas palavras não mais expressam
transformar o mundo, mas somente explicar o que nele sucede. apenas uma vaga aspiração da alma, mas assumem um sentido
Devemos nos contentar em compreender o porquê e as conse- positivo, com um valor real e controlável. Desse modo, o
quências daquilo que o homem faz, e não forçá-lo a proceder Evangelho não fica fechado numa religião, mas assume um
de uma maneira em vez de outra. Nós podemos mostrar como significado biológico universal, como lei da vida humana do fu-
funcionam as forças da vida, mas nenhum poder temos sobre turo, porque é precisamente com a finalidade de nos preparar
os seus movimentos. A reação punitiva que retifica os erros es- para este novo tipo de vida que ele existe na Terra. Eis que a
tá escrita na Lei e funciona automaticamente, sendo que ne- sua presença no mundo, mesmo quando é por este emborcado e
nhum ser pode modificá-la. A uma criança que pratica movi- atraiçoado, justifica-se, pois, não obstante tudo, o Evangelho
mentos arriscados pode-se dizer: “toma cuidado, pois podes cumpre a sua função logicamente, segundo as leis da vida deste
cair e magoar-te”, mas não se pode evitar que para ela funcio- plano evolutivo. Assim torna-se tudo claro e compreensível, es-
ne a lei da gravidade. Por isso procuramos explicar àqueles clarece-se o labirinto das contradições, faz-se luz sobre tais
que possam compreender como funciona o fenômeno, dando problemas espinhosos e pode-se avançar, vendo a estrada sobre
um significado exato às palavras. a qual se caminha. Será possível então vivermos as religiões
O céu de onde os ideais descem não é aquele Alto do qual não mais como crentes cegos, mas sim como seres esclarecidos,
se fala com significado vago, sem se saber onde, como e em de olhos abertos, que acreditam porque podem ver.
que sentido está situado, pois a este conceito foi anteposta uma ◘◘◘
teoria geral do conhecimento, em cujo seio é possível orientar- Jamais impulsionados pelo desejo de agredir para destruir –
se. Para nós, o céu de onde os ideais descem é constituído por posição negativa da qual nos afastamos – mas sim pelo ideal de
planos biológicos ou níveis de evolução mais avançados, que preparar, com uma atitude positiva e construtiva, uma religião
são neste sentido superiores (o Alto) e que, através do processo mais evoluída e inteligente, como será a de amanhã, entremos
evolutivo, serão logicamente alcançados no futuro. É natural, agora em maiores detalhes, observando as posições do atual
por isso, que o ideal hoje represente utopia, pois ele é uma an- momento nos vários campos, para compreender quais os peri-
tecipação que desce ao nível terrestre inferior, para dar início ao gos que nos ameaçam e em direção a que novas formas de vida
trabalho de realização daquele ideal. As religiões são então um e modos de concebê-la nos conduz a evolução.
dos meios que a vida utiliza para a descida dos ideais à Terra, Observemos a atual crise do catolicismo. A crítica que fi-
no seu processo de antecipação do futuro, para ele poder assim zemos e ainda fazemos não é das religiões, mas da conduta
atuar na realidade dos fatos. Compreende-se, deste modo, a fun- do atual biótipo humano, quando ele, na posição de involuído,
70 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
encontra-se envolvido no problema religioso. Foram as poucas siste não só em se armar para combater contra o inimigo – pro-
observações feitas neste sentido, referentes à Igreja, há mais de vidência inútil, quando não se possuem as forças espirituais pa-
trinta anos, em A Grande Síntese, que provocaram, entre outras ra conduzir à vitória semelhante batalha – mas também em sa-
razões, a condenação daquele livro ao “Index”. A honesta ten- nar as próprias debilidades, fortificando-se no terreno reservado
tativa de harmonizar ciência e fé, para atualizar um cristianis- à própria competência, onde se é mais potente e onde os demais
mo em crise, porque ainda medieval, pareceu heresia e foi con- não podem entrar: o espiritual. Uma semelhante transformação
siderada um perigo para as almas piedosas. Assim, com o “In- seria um remédio seguro. Mas ele representa sacrifício, consti-
dex”, o perigo foi afastado. tuindo medicamento amargo, que se procura evitar, buscando
No entanto o problema continuou. Como se tratava somen- outros caminhos. Para quem representa o Evangelho, não existe
te da voz de um pobre homem isolado ou de poucos pioneiros, outra salvação a não ser segui-lo, pois, para quem caminha pe-
era fácil fazê-los calar. Hoje, porém, aquele problema se tor- las estradas do espírito, o poder e a defesa não podem estar se-
nou universal, pesando como uma ameaça, de modo que os di- não no plano espiritual. Ligar-se às forças do mundo significa
rigentes, não podendo mais sepultá-lo no silêncio, são obriga- atraiçoar e, portanto, perder esse poder e aquela defesa. E este
dos a enfrentá-lo e resolvê-lo. Hoje são as massas que querem erro pode ser fatal! É claro que, em se tratando de uma opera-
saber a verdade. Tornam-se cada vez mais numerosos aqueles ção cirúrgica, é melhor fazê-la por iniciativa própria do que ser
que pensam e, portanto, querem resposta para suas dúvidas, submetido a ela por imposição dos outros. Hoje, tudo parece
exigindo a solução dos problemas, que se tornaram candentes. calmo na Igreja, como se ela estivesse no auge do poder. Não
Enquanto o mundo avança vertiginosamente, os dirigentes, há cismas nem reações agressivas. Na Itália, todos, ou quase
por se terem feito representantes do eterno, pensando haver todos, declaram-se católicos, respeitosamente, por tradição.
com isso encontrado o segredo para conservar eternamente as Mas o problema religioso não interessa mais. Será esse desinte-
suas posições, dormem entre as almofadas das velhas teologi- resse o cansaço senil que precede a paz do cemitério? Não se
as, nas quais ninguém mais acredita. perde mais tempo em discutir e muito menos em agredir. As
Hoje, em 1964, nas revistas italianas autorizadas, segundo novas gerações se perguntam qual o significado desse mundo
declarações do próprio clero, encontramos catalogadas as se- que ficou fora da realidade. Com delicada deferência, como se
guintes constatações: deve fazer com as coisas beneméritas e preciosas, a vida aban-
1) Os indiferentes já constituem pelo menos dois terços da dona a religião à margem da estrada, como algo velho e inútil,
população. Esta constatação, feita por uma revista italiana, refe- incapaz de caminhar, e continua avançando por sua conta.
re-se à Itália, país que é o centro do catolicismo. Em 1950, veri- 2) Quando as células novas não substituem mais às velhas,
ficava-se em Roma que só 25% da população era praticante. E cessa a renovação do organismo, cuja vida assim acaba. Então,
o fato de ser praticante não significa necessariamente ser crente. porque o velho organismo já não lhe serve, a vida passa para ou-
2) As vocações ao sacerdócio vão rareando cada vez mais. tro, novo. Hoje, está desaparecendo a razão para que essa reno-
3) A difusão da psicanálise vai substituindo a função do vação se realize no seio da Igreja. Se o indivíduo é espiritualista,
confessor, havendo afirmação do culto da psicologia, que ex- ele se vê obrigado a entrar num organismo principalmente polí-
plora os segredos do inconsciente e pode curar os seus males, tico e econômico, no qual a espiritualidade se situa num segundo
conceitos desconhecidos do confessor. plano. Se o indivíduo atua por cálculo, não há razão para que ele
4) O desejo de espiritualidade se desloca, procurando fora deva eleger uma carreira de muitas renúncias e escassa remune-
das religiões a satisfação que não encontra nelas, dirigindo-se ração. No passado, a vantagem econômica e uma boa posição
para outras formas, não religiosas e não ortodoxas. podiam, mesmo que inconscientemente, dar origem a muitas vo-
Tudo isto é uma simples constatação de fatos, fornecidos cações. Hoje, porém, o poder terreno passou para outras mãos, e
por fonte católica. Procuremos compreender ponto por ponto o a vida oferece outras vias, mais proveitosas. É natural que, na
que eles significam. Terra, o cálculo da utilidade material esteja na base da vida. Por
1) O grande inimigo do doente não é o micróbio que o ataca, outro lado, quem deseja saber não estuda teologia, mas se satis-
mas sim a sua fraqueza orgânica, que permite o êxito de tal as- faz com o conhecimento científico, mais positivo, e quem quer
salto. Assim o grande inimigo do cristianismo não são o mate- ganhar obtém deste conhecimento resultados mais concretos e
rialismo e o comunismo, cujos assaltos vêm de fora, mas sim a vantajosos. Para a Igreja se apoiar, restariam as massas supersti-
cristalização, o cansaço senil, a inércia espiritual e a indiferença ciosas e ignorantes, que, antigamente, podiam servir de base,
geral, que constituem o mal situado dentro do organismo da re- mas que, hoje, vão desaparecendo nos países civilizados.
ligião. Pode-se até mesmo dizer que as primeiras causas da do- 3) Hoje, perante os novos conhecimentos psicanalíticos ad-
ença, aquilo que atrai o assalto microbiano e a sua ação destruti- quiridos, a técnica psicológica e terapêutica de remissão do pe-
va, é o próprio estado deteriorado do organismo. Em resumo, a cado com a penitência não governa mais. A cura do erro men-
patogênese depende, antes de tudo, da insuficiência ou vulnera- tal não se faz mais com base em abstrações filosóficas e teoló-
bilidade orgânica, e não do assalto microbiano, que é uma con- gicas, situadas fora da realidade biológica e aplicadas com re-
sequência delas. Ao chegar e encontrar o organismo saudável e gras mecânicas, mas sim empregando uma forma mais inteli-
armado para resistir, o próprio ataque o fortifica, despertando a gente e positiva, pela indagação no subconsciente, na estrutura
reação do instinto vital de defesa e impulsionando-o à vitória. O da psique, para demolir aquelas construções mentais erradas e
outro caso é mal de velhice do organismo, que se deixa morrer esclarecer aqueles enredos psicológicos chamados complexos
tranquilamente, em silêncio. Então materialismo e comunismo etc. A pesquisa psicológica descobriu novas profundidades na
teriam nascido como um efeito de tal debilidade orgânica, cha- alma, e o confessor, não possuindo nenhuma competência na
mados pela vida e utilizados como instrumentos de liquidação matéria, não pode assumir a direção da vida espiritual alheia,
daquilo que esgotou a sua função biológica. tarefa complexa e de gravíssima responsabilidade. Por isso
É importante, para a própria sobrevivência, compreender a muitos se dirigem ao psicanalista. Isto não representa uma so-
estrutura de tal fenômeno. Para que o doente possa se salvar, é lução melhor, mas demonstra que a necessidade de uma orien-
necessário um diagnóstico exato, porque só deste modo se sabe tação espiritual subsiste e se dirige para outro lugar, porque es-
dirigir a ação defensiva adequada contra o verdadeiro inimigo, ta função já não é mais satisfeita pelo confessor. Este, com a
que neste caso não é tanto o assalto proveniente do exterior, sua posição de tribunal armado de penas infernais, adapta-se
mas sim a debilidade do organismo contra o qual aquele assalto cada vez menos à mente moderna, porque, frequentemente, tra-
é dirigido. Isto significa que o tratamento para a salvação con- ta-se do caso de um enfermo que invoca compreensão e ajuda,
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 71
buscando um médico, e não um juiz que só sabe fazer-se intér- compromissos com o mundo ao aceitar as suas modas e colo-
prete e instrumento da vingança de Deus. car-se à sua disposição? Agora, o jogo destas adaptações, com
4) Confortando-se com a ideia de uma sobrevivência do de- a finalidade de conciliar à força dois termos opostos, já é per-
sejo de espiritualidade, as referidas revistas admitem que tudo cebido. Um poder que dura há dois mil anos não poderia ter
pode ser remediado, utilizando-se uma linguagem nova, com a feito outra coisa senão adaptar-se às mais contraditórias posi-
chamada “atualização”, como se, para poder resolver um caso ções históricas, mesmo àquelas que constituíam o mais estri-
tão grave, pudesse bastar uma substituição de palavras e posi- dente contraste com os princípios por ele professados. A histó-
ções, assim como se faz com a moda. Claro que se trata de uma ria fica escrita, e não se pode apagá-la. Aparentemente, no
crise. Então, vendo em perigo a própria sobrevivência, o clero meio de tantas mudanças, o único ponto que permaneceu sem-
se apressa a fazer reparações e, para remediar, adapta-se, aten- pre imutável, como referência absoluta, foi o método da pró-
dendo às exigências dos novos tempos. Mas poderão bastar as pria conveniência, um argumento que o mundo conhece e
hábeis medidas preventivas? Não se tratará agora de uma crise compreende muito bem. Percebe-se assim o poder que o mun-
mais profunda, que, em consequência de um método de contor- do tem para se impor às religiões. Vê-se que, na Terra, ele é o
ção do ideal, não cristão e já milenário, vem-se acumulando por dono e, portanto, manda, sendo que a ele até o absoluto obede-
séculos, mas que não pode, por lei da vida, deixar de explodir, ce, adaptando-se às suas vontades e desejos.
destruindo as velhas instituições corrompidas por este seu ínti- O comunismo não poderia ter avançado, se os pontos débeis
mo negativismo? Se a espiritualidade não se perde, apenas se da parte oposta não constituíssem tantas portas abertas para
desloca, buscando outros organismos, e se a organização ecle- deixá-lo entrar. Um organismo forte não adoece. Uma doença é
siástica, na forma que utiliza para representá-la, já não cumpre sempre a consequência de um defeito ou culpa. Mas então aca-
mais a sua função, tornando-se um produto repelido, então co- ba-se convivendo com o médico no hospital. Que esforço, que
mo poderá a vida manter de pé tal organização, que, deixando trabalho e que despesa, para recuperar a saúde! Então surge a
de realizar um trabalho útil, não tem mais razão de existir? Em pergunta: se estão se iludindo aqueles que creem ser possível
vez do problema da espiritualidade, não teria sido a própria so- salvar-se com tais recursos, não representará então o avanço do
brevivência o que mais interessou e ainda interessa àquela or- comunismo antes uma nêmese histórica, uma fatalidade inevi-
ganização? As massas observam, tornam-se inteligentes e que- tável, porquanto tudo isto não é senão o pagamento das dívidas
rem ver, não estando mais dispostas a aceitar só por principio contraídas perante as inexoráveis leis da vida, que exigem justi-
de autoridade e de fé. A sociedade moderna está se transfor- ça? Não seria então mais salutar, inclusive do ponto de vista da
mando num organismo onde cada indivíduo deve dar à coleti- própria sobrevivência, pôr-se sinceramente a trabalhar exclusi-
vidade uma contribuição útil, enquanto, paralelamente a este vamente para as coisas do espírito? Mas pode surgir uma dúvi-
seu dever, tem o direito de exigir, em contrapartida, que todos da. Compreenderão as massas tudo isto, ou será já demasiado
os outros ajam da mesma forma. Os parasitismos não são mais tarde para que elas possam se interessar por um trabalho de pro-
admitidos. Todos devem produzir alguma coisa, cumprindo funda renovação espiritual, ao qual se tornaram completamente
uma função, inclusive no campo espiritual. Assim, observando, insensíveis, depois que aprenderam a mentira institucionaliza-
controlando e fazendo as contas, abandona-se as teorias e pro- da? O exemplo do jogo das acomodações veio de cima e foi
curam-se as coisas concretas, eliminando-se o que não serve. aprendido pelos fiéis, que, por considerá-lo cômodo, já não re-
Esta mudança de métodos, tal como acontece no terreno da nunciarão a ele. Claro que, no passado, ele deu vantagens ime-
moda, torna-se pouco convincente, principalmente se tratando diatas, devendo-se a ele em grande parte a sobrevivência mile-
de quem baseia a sua posição sobre princípios absolutos e eter- nária. Mas é inevitável que se deva depois chegar até às últimas
nos. Então é o mundo que estabelece e impõe esta moda, en- consequências de cada ato. A salvação a longo prazo está na
quanto o absoluto se adapta a ela, aceitando as suas diretrizes. atitude única, retilínea e sincera. Qualquer desvio desta linha
Existe também o tradicional método de aliar-se sempre com o poderá seduzir no momento, pelas vantagens imediatas que ofe-
mais forte, aplicado não só no passado, ligando-se aos ricos e rece, mas representa um princípio negativo de envenenamento e
poderosos, mas também hoje, procurando ir ao encontro das corrupção, o qual tende a destruir o organismo que o aceita.
massas pobres, que, organizando-se e fazendo-se valer pela for- Não possuirá a Igreja uma força espiritual toda sua? Por que
ça do número, estão-se tornando o mais forte. Mas será que, pa- então ela renuncia a esta imensa força, para servir-se de outra,
ra o objetivo da sobrevivência, este tipo de jogo dará indefini- caindo vítima da ilusória força do mundo? Cada nação ou povo
damente resultado? Isto parece um jogo duplo, no qual se busca tem algo para dizer nesta nossa hora histórica, e a Igreja, se
uma aliança com Deus por um lado e com o mundo – o inimigo quisesse, teria coisas tremendas para dizer. A tempestade é for-
– por outro, resultando numa posição que, por ser contraditória, te. As velhas tapeçarias que tudo cobriam e escondiam, voam
é insegura. O homem já não é a criança de ontem, então ele vê, com o vento. Procura-se repará-las, sem se ver que o desmoro-
observa e, pelo fato de ter sido instruído a respeitar, cala e afas- namento é da própria casa e que é necessário fazer uma outra,
ta-se respeitosamente. Numa época em que se faz um novo desde a base. O cataclismo chega e o terremoto está em ação,
exame de todos os valores humanos, para selecionar os melho- no entanto não se pensa senão nos retoques. Antes da revolu-
res e descartar os inúteis, os erros passados, antigamente supor- ção, a aristocracia francesa, tal como aconteceu com a russa, es-
táveis, vêm à superfície e já não são tolerados. Historicamente, tava inerte. Isto talvez porque, quando a hora chega e o tempo
a religião, que deveria ter denunciado os abusos dos ricos, indo está maduro, é inútil pôr-se a reparar a velha casa, que não ser-
ao encontro dos necessitados, acabou por se aliar com aqueles e ve mais. Então a vida não perde mais tempo com isso e põe-se,
transformar-se num tranquilizante destes – ópio dos povos – pa- pelo contrário, a construir tudo desde o princípio. O problema
ra manter quietos os pobres, exortando-os à virtude da paciên- atual não é saber adaptar-se ao novo colorido do ambiente hu-
cia e prometendo o paraíso a quem sofre, enquanto os outros mano, para sobreviver, aceitando numa posição subordinada,
gozavam imediatamente o paraíso nas suas costas. apenas com o fim de salvar a própria posição, as transforma-
Para que servem então estes remédios improvisados? Não ções que ele impõe. Trata-se de gritar bem alto a palavra do es-
será uma grande ilusão acreditar que, para salvar o cristianismo, pírito e fazer ver com o exemplo que ela é verdadeira, colocan-
baste aplicar tais paliativos, feitos apenas de retoques na forma, do-se, em nome dela e por seu intermédio, acima do mundo,
em vez de se realizar uma mudança radical de método, fazendo- consciente do grande valor que se possui e que se tem o dever
se cristão a sério e tomando uma posição nítida e sincera do la- de afirmar para a salvação da humanidade. É necessário con-
do do espírito, sem assumir, para salvar a sua própria posição, quistar o sentido da sua própria missão no mundo e, vivendo-o
72 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
primeiramente em si mesmo, colocar em evidência os valores os ricos poderosos e metendo-se em política. Como reabsorver
do espírito, para que se possa tocar com as mãos a plena reali- tudo isto? Como fazer esquecer este passado? Ele é pesado, e
dade de seu peso e valor. É necessário descobrir e compreender as instituições milenárias não podem evitar ter de arrastá-lo.
que o espírito representa uma força tremenda, maior do que a Uma casa na qual se habita há dois mil anos torna-se tremen-
própria bomba atômica, à qual ele pode contrapor-se, vitorioso. damente velha, não sendo mais adequada para que se possa vi-
Mas, para chegar a isto, é necessário sentir, encarar e viver o ver dentro dela. Então, ou ela é deixada respeitosamente em
espírito, afirmando-se numa luta superior, de tipo evangélico, pé, como um documento histórico, indo-se habitar outro lugar,
conduzida com os fatos, e não somente com as palavras. É ne- ou ela é destruída, para utilizar a área edificável na construção
cessário compreender que as medidas tomadas com o objetivo de um novo edifício. Isto é necessário também para resolver o
de salvar os próprios interesses, nada salvam, nem sequer estes. problema da defesa, que, em nosso mundo feito de luta, é sem-
Semelhante método é negativo, expressando um desvalor e uma pre fundamental. Como o resolve a Igreja?
incompreensão da situação, que confirmam a inaptidão de sal- Uma vez que o Evangelho a despojou das armas materiais,
var-se. Para isto, é necessário ser positivo no sentido construti- com as quais se conduz a luta na Terra, onde, no entanto, tem de
vo que a vida exige, colocando-se assim em colaboração com se viver, e uma vez que, num mundo de luta, uma arma é indis-
ela. Se assim não for feito, pensando apenas em si próprio, en- pensável, à Igreja não restaram senão as armas espirituais, cuja
tão se ficará abandonado por ela. Muito cuidado ao se aventurar natureza é psicológica. Mas, com o passar dos tempos, estas se
contra a vontade da vida, que quer progredir. Ela está sempre tornaram antiquadas. Elas governaram perante a forma mental
pronta a ajudar a subir quem possua um valor, fazendo vencer ignorante, supersticiosa e sugestionável do passado, mas hoje,
quem se oferece como instrumento para secundar e realizar perante a moderna mente crítica e racional, não governam mais.
seus fins. As religiões possuem este valor e têm o seu monopó- Acontece então que hoje, na era da bomba atômica, não tem
lio, mas, em vez de utilizá-lo, deixam-no adormecido e bem mais valor tratar de defender o velho castelo com grossas mura-
guardado em cofres de ouro, para dar-se conta, um dia, que eles lhas, fossas e arcabuzes. Não persuade mais e, portanto, é de
estão vazios, pois o espírito, porquanto ninguém pode encerrá- efeito psicológico negativo a teoria de um inferno, pela qual um
lo, fugiu para ir reviver noutro lugar. anti-Deus vence definitivamente a Deus, fixando-lhe a falência
Claro que o desejo de espiritualidade permanece. Não se po- por toda a eternidade. Não aterroriza mais uma ferocidade cruel,
de destruir esta, que é uma necessidade humana, devida a um da qual, devido à atual civilização, falta a experiência quotidia-
anseio natural de evolução, que faz parte das leis da vida. Mas é na, que, antigamente, mantinha viva tal psicologia, cujo signifi-
precisamente nisso que reside o perigo, e não a salvação, para a cado como instrumento de defesa vai perdendo cada vez mais
religião. Uma vez que o impulso em direção à espiritualidade valor no mundo moderno. Portanto, mesmo se quisermos ficar
não desaparece, ele é então obrigado a dirigir-se para outra par- somente no terreno da luta pela própria sobrevivência, as armas
te. Este fato ocorre justamente porque a religião não sabe mais que a Igreja possui não lhe servem mais para este objetivo.
satisfazer este desejo de espiritualidade, o que significa não Ela teria meios maravilhosos para resolver o problema, por-
cumprir mais a função que lhe dá o direito à vida. Isto representa que Cristo não a deixou sem armas, antes deu-lhe outras, de na-
a falência da religião, que não corresponde mais aos imperativos tureza diversa. O difícil é compreendê-las e querer usá-las. A
impostos pela vida, cujas forças intervêm, para liquidá-la na sua Igreja poderia ter superado este problema da necessidade de uma
atual forma. É assim que a espiritualidade permanece, mas defesa com armas terrenas, emergindo por sobre o plano huma-
abandona uma religião que não a satisfaz mais. Pode acontecer no, em vez de ficar ali submersa, e colocando-se exclusivamente
que a mudança de casa traga pouco beneficio, ou que um outro no plano espiritual. Existiria um argumento poderoso, dado pela
lugar seja até mesmo pior. Mas a verdade é que se abandona afirmação da presença de uma lei Divina, racionalmente com-
uma casa inóspita, para se continuar andando à procura de outra, preensível e cientificamente demonstrável, à qual ninguém pode
que satisfaça o desejo de espiritualidade. É provável que se en- fugir e segundo a qual, independente de qualquer esforço reali-
contrem sempre as mesmas coisas, porque o homem é o mesmo zado, a vitória final não é da prepotência do homem, mas sim da
em toda a parte. Então a quem clama por espiritualidade não res- justiça de Deus, que comanda sobre todos e tudo. Mas, para
ta senão ficar sozinho com Deus, dado que, para ele, as casas do muitos, a aceitação de tal princípio encontra dificuldade, porque
mundo são quase todas mais ou menos inabitáveis. Não podendo não admite escapatórias, não permite fáceis acomodações, não
ele sozinho fazer algo para a salvação dos outros, não lhe resta suporta aquela elasticidade pela qual, sofisticando e interpretan-
nada mais senão ficar observando como se arranjarão os habi- do, as teorias podem ser levadas a qualquer conclusão que se
tantes dessas casas, que ameaçam ruir sobre eles. Afasta-se en- queira. Usando este outro sistema, de total sinceridade, sem arti-
tão em silêncio, respeitosamente, como fez Teilhard de Chardin, fícios, aqueles que, acima de todos os outros, deveriam não só
permanecendo fiel a Deus como ele O sente, e ao seu ideal, ao pregar mas também viver os princípios, seriam os dirigentes.
qual não pode renunciar, sem atraiçoar-se a si mesmo. Tudo Logicamente, a defesa seria então automática, mas constituiria
acaba vindo à tona, e todos deverão resolver os seus problemas. defesa também da instituição, e não somente dos integrantes que
Já tinha falado claramente há trinta anos. Hoje se pode ver a representam, porque a estes importa, em primeiro lugar, sua
quão fundado era o meu temor de uma crise de religião e quão própria defesa, sendo que a defesa da instituição somente existe
grave e iminente era o perigo previsto. Um indivíduo isolado em função da defesa de seus componentes.
pode tratar somente de não errar para si, ficando responsável Como se vê, seria necessária uma outra forma mental, a
apenas por suas ações. Ele não pode impedir que o homem seja qual não se pode pretender do homem no seu atual nível de
o que é e assim permaneça de fato. Os representantes do clero evolução, que é obrigado, portanto, a funcionar com a forma
não podem ser constituídos por super-homens, nem podem ser mental construída pelo seu passado, proporcionada a um ambi-
transformados nisso através de uma consagração ou enquadra- ente de luta e suas respectivas exigências, onde, devido ao seu
mento disciplinar, sendo impossível fazer que eles, intimamen- estado involuído, ainda não reina a justiça do evoluído, sendo
te, não continuem sendo o que são, deixando de funcionar com necessário uma arma para viver. Explicar semelhantes concei-
a forma mental do homem do nível evolutivo atual. tos significa muitas vezes pretender que se compreenda aquilo
É verdade que, hoje, a Igreja trata de se renovar. Mas sobre que, num dado nível biológico, representa ainda uma coisa in-
ela pesa o seu passado, durante o qual muitas vezes ela se co- concebível. Trata-se de duas formas mentais e posições total-
locou nos antípodas do Evangelho, em contradição com Cristo, mente diferentes. O involuído, para sobreviver, problema fun-
aceitando o poder temporal, fazendo guerras, aliando-se com damental para todos, procura tanto a arma material quanto a
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 73
psicológica, porque ele está submerso em um nível evolutivo para subsistir, trata de desfrutar de tudo. Quando encontra quem
onde a lei da luta impera e a vida é concedida somente a quem cede por bondade, serve-se dele para tirar vantagem, e não para
sabe guerrear e vencer. E o evoluído, também para sobreviver, recompensá-lo com um sacrifício antivital de igual quantia de
adota a lei do “ama ao teu próximo”, porque ele pertence a um bondade, em proveito de outro, em vez de si próprio. Então a
outro plano de evolução, onde, sendo o estado orgânico que bondade serve para o abuso, porque alimenta a esperança de
prevalece sobre o caótico, o método da opressão é um absurdo que a justiça não se cumpra. Meras tentativas de evasão e de
contraproducente, valendo a justiça, que é o método do Evan- aproveitamento, que, apesar de absurdas e ilusórias, são fre-
gelho e do verdadeiro cristão. quentes, porque fazem parte do utilitarismo em que se apoia a
Assim, dado que este método, por imaturidade biológica, é economia da vida, o qual leva a procurar o atalho para chegar
inaplicável, eis que, para resolver o problema, vai-se em busca ao maior resultado com o mínimo esforço.
de outros expedientes. Então reveste-se Deus não mais de poder Hoje, as belas construções religiosas em que tranquilamen-
punitivo (antigamente eram os raios de Júpiter), mas de miseri- te dormiam os povos nos séculos passados, já não governam.
córdia e de bondade. Como o sistema de atemorização não tem Tem-se necessidade de honestidade, pois, sem ela, a confiança
mais aplicação, escolhe-se a arma do convite atrativo, esque- acaba e os clientes vão-se embora. Estamos em época de revi-
cendo-se porém de que estamos na Terra, onde continua a vigo- são de todos os valores, e as superestruturas inúteis estão sen-
rar a lei do mais forte e onde cada dependente sabe que, quando do varridas. Vai-se para o terreno firme. Descobrem-se as leis
o patrão se faz bom, é porque se tornou fraco e que esse é o que regulam a vida, a qual é assim enfrentada na sua substân-
momento para cair-lhe em cima. Se do plano do espírito se des- cia, em contato com a realidade biológica. Procura-se endirei-
ce ao do mundo, então é necessário aceitar os tristes métodos tar e, quando não se consegue, procura-se eliminar tudo o que,
deste. Quando se recebe astúcia, responde-se com a desconfi- mesmo sendo ótimo em si mesmo, tornou-se venenoso pelo
ança, porque a uma ação nossa de um determinado tipo não po- mau uso que se faz dele. O que sucedeu com as monarquias
demos pretender que corresponda uma reação de tipo diferente. procura-se fazer agora com o instituto da propriedade e tam-
Usa-se em defesa própria o princípio de autoridade, cuja ba- bém pode suceder com o cristianismo, através do próprio co-
se, da qual ela deriva, é a força, ordenada e apresentada depois munismo, ou com qualquer instituição que queira colocar-se
numa forma de legalização, que se chama justiça. Assim o em tais condições antivitais. A vida tende a destruir tudo o
princípio de autoridade leva consigo uma triste tradição, pois, que, por mau uso, tenha-se corrompido. Também no campo fi-
mais do que para educar e ajudar a evoluir, como deveria ser a siológico, um organismo viciado tende à morte.
função das classes dirigentes, muitas vezes serviu para desfrutar Por isto é perigosíssimo em religião o jogo duplo, onde se
e oprimir, deseducando e fazendo involuir. Em semelhante re- fica, por um lado, com Cristo e, por outro, com o mundo, pois
gime, como é interpretada uma ação de bondade? Procura-se nesta condição somam-se os perigos, e não as vantagens. Por
utilizá-la com desconfiança, interpretando-a como uma debili- isto, se a atitude evangélica da Igreja fosse só oportunismo para
dade, da qual se tentará rapidamente, sem comprometer-se, tirar sobreviver, o remédio seria pior que o mal, ou talvez até uma
proveitos. Abandonados assim os processos de atemorização tentativa de suicídio. De resto, a perda de um Deus como o que
com castigos no além-túmulo, uma vez que, agora, eles perde- foi apresentado até hoje, dedicado a comandar e exigir sacrifí-
ram o seu poder psicológico, poderão as armas do amor, usadas cios, pode despertar poucas lamentações em muitos. Para a vi-
somente com a finalidade de sobreviver na Terra, e não para re- da, livrar-se de quem se dedica mais a fazer temer e servir do
alizar conquistas espirituais, servir para este outro uso, que é que a ajudar, é mais vantagem do que dano. Então, para tirar
salvar as próprias posições terrenas? O exemplo de Cristo nos proveito deste conhecimento de uma outra face de Deus, é ne-
mostra que o amor, na Terra, quando não é em função do sexo, cessário que esta transformação do império em amor, da autori-
para levar à procriação, torna-se sacrifício que conduz à morte. dade em compreensão, seja real, tendo lugar nas almas, e que
A autoridade se desarma e cede. Então o momento é bom para esta nova face de Deus se faça ver através daqueles a quem cor-
afirmar, contra a autoridade, a liberdade, ideal que naturalmente responde expressá-lo com evidência. Tudo isto significa sim-
os subordinados interpretam em vantagem própria. Eles sabem plesmente regressar ao verdadeiro espírito cristão do Evangelho
que a autoridade não cede por amor, mas porque não tem outro e, como dizemos sempre, tomá-lo a sério. Trata-se de uma re-
modo para salvar a sua sobrevivência. Se tivesse sido por amor, forma de substância, e não de forma. Não se trata de uma ativi-
poderia ter-se manifestado muito antes, e não somente agora, dade exterior à procura de meios e de prosélitos, de número e
obrigado pela ameaça de um perigo. Terão estas tardias conver- de poder, mas sim de um novo modo de conceber a vida, atra-
sões ao amor evangélico o poder de persuadir as massas, quan- vés de um Evangelho ainda não visto, que passou em silêncio
do elas, à sua própria custa, aprenderam que as melhorias são até agora. Trata-se de fazer ver pelos fatos aquilo que o espírito
obtidas conquistando-as com as próprias forças, e não as espe- vale e pode perante e sobre o mundo. Se o bem-estar econômi-
rando da generosidade dos demais? Quando os ricos eram po- co constitui hoje o supremo ideal, é necessário fazer ver que ele
derosos, a Igreja, apesar do Evangelho condená-los, apoiava-se sozinho não basta, pois contém uma imensa lacuna, cujo preen-
neles. Mas hoje, que sobre eles paira o perigo do comunismo, chimento se faz necessário. Trata-se de um vazio que representa
eis a Igreja indo ao encontro das massas pobres, agora tornadas a falta de outra riqueza, a qual é preciso oferecer e da qual o
poderosas, adaptando-se a elas e apoiando a justiça social com mundo tem fome. Mas, para oferecê-la, é necessário possuí-la.
atitudes evangélicas. Quando Luís XVI, herdeiro de uma mo- Quando a religião realizar uma função útil à vida, que seja
narquia que havia atraiçoado a sua função, confiou, pela sua também dos valores do espírito, em vez de representar somente,
bondade, no povo e, para evitar derramamento de sangue, afas- para o próprio interesse, a sobreposição de uma casta sobre ou-
tou de Versalhes os destacamentos de defesa, esse mesmo povo tras, utilizadas apenas como pedestal, então, e somente assim, a
se aproveitou para fazer o rei prisioneiro e não se deteve até religião voltará a ser um valor biológico e, como tal, terá direito
havê-lo matado. Mas talvez fosse inútil resistir, porque era ne- à vida. Hoje, o homem é prático e concreto. As incontroláveis
cessário pagar os abusos daquela monarquia no passado, e to- autorizações divinas não convencem mais. Não basta se fazer
dos eles foram pagos. Ninguém pode impedir que às causas, representante de Deus, para justificar o próprio poder. É neces-
mesmo longínquas, sigam os respectivos efeitos. sário demonstrar a sua utilidade social. Na sociedade moderna,
Para que serve, então, apresentar hoje um Deus vestido de é exigido de todos um trabalho, uma produção, uma função útil
bondade e misericórdia, senão para oferecer uma escapatória à coletividade, uma contribuição para ela, para se ter em troca o
muito rebuscada à absoluta justiça da Lei? A vida é utilitária e, direito de viver nela. O resto é parasitismo, que já não se tolera
74 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
mais. E o trabalho espiritual é um dos mais preciosos, porque Vivemos numa hora apocalíptica, de desmoronamento dos
representa uma função necessária à vida, para fazê-la avançar valores espirituais, e é dolorido vermos a que desastrosas con-
ao longo da estrada da evolução. O bem-estar material repre- sequências pode levar a traição do ideal. Os tempos estão ma-
senta a satisfação das necessidades animais do involuído, que duros para chegarmos a uma prestação de contas. Os velhos
são viver e multiplicar-se, e ninguém nega a importância disto. andaimes ameaçam ruir, e de nada serve escorá-los. Não é
Porém o maior valor da vida é o que, ao longo da evolução, está mais hora de retoques, porque o edifício está caindo, sendo ne-
em cima, e não embaixo; é o espírito, que avança em direção ao cessário refazê-lo desde o princípio, tomando Cristo a sério,
Alto. Hoje se emborcam as posições, colocando-se o bem-estar como ninguém o fez até agora: nem o rico, com o seu egoísmo
material como um fim, e não como um meio para alcançar uma e hipocrisia religiosa, nem o pobre, com a sua avidez e fre-
finalidade mais elevada, que é ascender para formas de existên- quente espírito de violência. Temos, assim, dois tipos de
cia superiores, e não gozar animalescamente na Terra. A vida Evangelho: o capitalista e o comunista, cada um adaptado aos
somente pela vida é um círculo vicioso, constituindo um traba- seus próprios interesses. Há leis que regulam o funcionamento
lho que se anula, consumindo a si mesmo. Numa biologia com- de tudo o que existe. Quem as conhece vê que, agora, elas es-
pleta, há lugar – e que lugar! – também para as religiões, por- tão prontas para reagir contra erros e abusos milenários, os
que elas, com a técnica da descida dos ideais, cumprem uma quais tendem a torcer e desviar do seu caminho de regresso pa-
função fundamental, que é ser instrumento de realização da ra Deus a evolução, suprema razão da existência.
maior finalidade da vida: a evolução. O maior perigo atual não é o ateísmo positivo e retilíneo da
ciência, que, com as suas novas construções, força o cristianis-
XI. PSICANÁLISE DAS RELIGIÕES E mo a defender-se e atualizar-se, fortificando-o e rejuvenescen-
ASPECTOS DO CRISTIANISMO do-o indiretamente, mas sim os falsos crentes, que constituem
uma doença interna, um estado de decadência orgânica, de cor-
Ofereça um cavalo a quem disser a verdade, pois ele neces- rupção e de desfazimento da religião, tendendo à morte. O pe-
sitará para fugir e pôr-se a salvo. rigo não é tanto o ataque comunista que vem de fora, quanto a
Provérbio Oriental mentira que vem de dentro. Quando tudo isto contagia a massa,
a doença se expande por todo o organismo e o mata. Fazer calar
O cristianismo não nos interessa como organização terre- o médico porque o seu diagnóstico perturba, não salva da doen-
na, atividade política, fenômeno de grupo ou proselitismo pa- ça. Entendê-la exclusivamente como o ataque de um micróbio
ra reforçá-lo, nem como egoístico cálculo de salvação depois inimigo e crer que baste mobilizar-se para destruí-lo, não resol-
da morte. Este é o seu lado “mundo”, desgraçadamente neces- ve o caso, porque permanece a vulnerabilidade orgânica, debi-
sário para que qualquer coisa possa existir na Terra. O que lidade da qual qualquer outro micróbio inimigo estará pronto a
nos interessa no cristianismo é apenas a verdadeira ideia de aproveitar-se. Ao médico honesto não lhe resta senão cumprir
Cristo, e não as suas adaptações à involuída natureza humana; com o seu dever de expor o diagnóstico e depois se calar. Ele
interessa-nos aquilo que não é mundo, mas sim contra o mun- não pode colocar-se contra o doente, tanto mais que, neste caso,
do; interessa-nos nele o ideal de superação humana, o princí- ele não tem os meios, pois trata-se de grandes desvios, sobre os
pio de evolução, o meio de ascese espiritual, tal como deveria quais somente as leis da vida possuem a inteligência e o poder
ser e como Cristo queria que fosse. necessários para agir. Essas leis costumam eliminar tudo que
Recordemos que o fenômeno religioso não é apenas uma não cumpre a sua função vital. Assim, quando uma religião não
questão de fé para os crentes, mas tem importância biológica cumpre o dever que lhe corresponde naquele plano da evolu-
universal, porque ele faz parte do fenômeno da descida dos ide- ção, ela é eliminada. E o seu dever é fazer descer o ideal à Ter-
ais a Terra, constituindo um impulso para evoluir, objetivo para ra, função fundamental para os supremos fins da existência.
o qual vive a humanidade. É neste sentido que colocamos aqui Será que o cristianismo cumpriu e cumpre tais funções, ou
o fenômeno religioso. Se fizermos observações, será antes por os valores espirituais que ele possui ficaram sepultados e sufo-
amor ao ideal, e não por espírito de crítica demolidora, como se cados debaixo das superestruturas com as quais o mundo o co-
pensa todas as vezes em que se discute um problema, já que o briu? Na inevitável simbiose entre Cristo e o mundo, não terá
instinto do homem é a luta. Nada, pois, de polêmica agressiva, vencido o mundo, prevalecendo este sobre Cristo? O cristia-
mas somente um sincero desejo de ver claro, primeiro porque nismo é ainda cristão, ou com o tempo se transformou em outra
temos necessidade de compreender o que está sucedendo e on- coisa? De que serve reunir-se em concílios, se esta é realidade
de tudo vai terminar, depois porque o momento histórico gra- dominante? As maiorias podem exprimir as correntes dominan-
víssimo impõe que todos compreendam e cada um assuma as tes no mundo, e o fato de aderir a elas, para estabelecer verda-
suas responsabilidades. Estamos convencidos que erigir-se co- des baseadas no consentimento comum, pode constituir um
mo juízes para condenar seria orgulho inútil, que nada resolve. apoio e constituir um ato de prudência nas decisões, evitando
O que importa é explicar e compreender, porque não é julgando riscos de erros perante o mundo, mas isto significa deixar-se
e condenando que se descobrem e eliminam os erros, finalidade guiar pelo pensamento deste, ao invés de se colocar acima dele
de quem procura o bem. Não nos interessa a luta, pois ela não e ser guiado somente pelo espírito, que não segue as vias buro-
significa coisa alguma. Não temos posições para defender, por- cráticas humanas. Não se trata aqui de concordar, mas sim de
que não temos o desejo e muito menos o poder de destruir nada. renovar-se. Um preponderante consenso dos homens pode esta-
O médico não se põe a lutar contra o doente, pelo contrário belecer as verdades relativas do mundo, mas não as de Deus.
alia-se com ele, para eliminar o mal, indicando-lhe qual é este As renovações são saltos para frente, que somente indivíduos
mal, não sendo isto um motivo para que o doente se ofenda. isolados, excepcionalmente dotados, sabem elaborar, tendo a
Pode suceder que estas observações agradem a alguns, por- coragem e a força de lançá-las. Com efeito, estas reuniões são
que permitem notar defeitos alheios no campo religioso, po- prudentes, hesitantes e ligadas ao passado, enquanto, nas gran-
dendo assim, como meios de desacreditar e demolir, ser utiliza- des curvas históricas, o mundo explode, podendo ser necessá-
das para fins agressivos, o que está absolutamente fora de nos- rio, em vez de um retoque preguiçoso, uma renovação profun-
sas intenções. Quem, no entanto, quiser compreender e utilizar da. No mundo atual, pensa-se, procura-se e exige-se mais do
estes conceitos em tal sentido, seguindo deste modo as vias do que o velho estilo religioso pode oferecer. Hoje pretende-se sa-
mal, expõe-se ao perigo de sofrer a reação da Lei, que faz recair ber a sério e, por isso, duvida-se e controla-se, exige-se a lin-
em cima dele o mesmo mal lançado por ele contra o próximo. guagem positiva da ciência e deixa-se de lado o que não é raci-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 75
onalmente convincente. Não se fica mais persuadido por tradi- de na cooperação e na sinceridade, qualidades de planos de vida
ções, sugestões, imitações ou por princípio de autoridade. Dese- mais avançados. Mas se a luta é a lei do nível biológico humano,
ja-se compreender com a própria mente, e não com a dos diri- não resta ao ideal que desce ali senão adaptar-se a esta lei, trans-
gentes, a quem no passado se delegava a função de pensar, para formando-se num meio de luta, sob a forma de fingimento, para
que fornecessem as verdades já confeccionadas, prontas para se disfarçar melhor e alcançar deste modo o que na Terra é a fi-
uso. Hoje, os olhos do mundo não se dirigem mais às velhas nalidade suprema: vencer. A isto se reduz frequentemente o uso
formas fideísticas – que parecem ter esgotado a sua função cri- das religiões, prestando-se não para a realização terrena do ideal,
adora – mas sim à ciência, que conquista, produz e vive não pa- mas sim para a exploração deste em defesa de interesses huma-
ra conservar o passado, mas sim para construir o futuro, indo na nos. Pode acontecer que, por estes motivos, a difusão da prega-
direção da vida, que quer avançar, e não dormir. ção e a expansão propagandística de uma religião signifique, na
O impulso evolutivo faz pressão e prepara-se para deitar realidade, uma campanha em favor dos interesses do grupo. Isto
abaixo as resistências. Dado o seu nível biológico, o homem é pode parecer fingimento, mas, num regime de luta, é natural que
frequentemente movido não pelo desejo de procurar a verdade, justamente o que mais se faz seja aquilo que menos se quer di-
mas sim pelo instinto de defender seu próprio grupo, sobre o vulgar. Quanto mais um grupo religioso se torna grande e, com
qual se baseiam os seus interesses. Então quem sustenta o ideal isto, mais poderoso na Terra, tanto mais aumenta nele o número
para este fim entra em choque com quem sustenta o ideal pelo dos elementos falsos e aproveitadores que se aproximam, por-
ideal, e não pelos interesses que este possa encobrir. Ambos que, quanto mais aumenta a potência material, tanto mais há pa-
falam a mesma linguagem, usam as mesmas palavras e susten- ra aproveitar. Isto pode levar à infiltração de elementos negati-
tam as mesmas verdades, mas para fins opostos. Quem usa o vos, à corrupção e ao enfraquecimento do grupo, resultando na
ideal para outras finalidades sente-se perturbado e, por isso, sua liquidação. Cuidem-se as religiões, portanto, de sua grande-
condena, para eliminá-lo, aquele que busca proceder seriamen- za terrena. Esta corrói a verdadeira força, que não pode ser se-
te. O melhor amigo da religião, aquele que mais a toma a sério não espiritual, e prenuncia um fim próximo. Isto corresponde à
para salvá-la, incomoda com o seu zelo fora de hora – num justiça das leis da vida, segundo as quais quem não cumpre mais
mundo que tem outras coisas para fazer – acabando por ser a sua função não tem mais razão de existir.
considerado um inimigo e, portanto, combatido como tal. Pode Nada disso poderia ser diferente no nível biológico humano,
suceder também que os verdadeiros inimigos da religião caiam onde tudo é utilizado na luta pela sobrevivência. Vemos isto no
no mesmo erro, mas em sentido oposto, porque as aparências caso de Teilhard de Chardin. Enquanto ele morria só e incom-
os induzem a crer que encontraram em quem foi condenado preendido, ninguém se interessou por ele nem se importou com
pela religião – precisamente por isso – um inimigo dela e, por- as suas teorias ou com as suas desgraças. O interesse apareceu
tanto, amigo deles, quando na verdade acontece exatamente o quando, para os inimigos da Igreja, surgiu a possibilidade de
contrário, ou seja, trata-se na verdade de um amigo da religião utilizar Chardin em um ataque contra ela, a fim de mostrar os
e inimigo deles. Estes, então, julgam que tal indivíduo queira erros dela e acusá-la. Ele somente se tornou importante quando
confraternizar-se com o grupo, para ir contra aquela religião, pôde ser utilizado para estes outros fins. Surgiu então um gran-
quando, pelo contrário, ele quer salvá-la. de número de defensores seus, para reivindicar em nome da jus-
De tudo isso, devido às formas mentais opostas entre mundo tiça da vítima inocente, do mártir do ideal, chorando sobre o ca-
e ideal, nasce um mal-entendido e uma inversão de juízos. Des- so digno de piedade, porque isto servia para poder, com plena
pertam então os inimigos da religião, que tentam aliciar, con- autorização dos princípios superiores, agredir santa e impune-
vertendo para seu próprio grupo o maior amigo daquela, que foi mente a Igreja inimiga, considerada culpada e, portanto, passí-
tomada como inimigo. Tudo, no entanto, continua a se desen- vel de condenação. Assim, camuflados de justiceiros, honrando
volver em favor do bem, porque, para o triunfo da religião – a moral, fica-se do lado da razão e pode-se utilizar uma santa
contra a própria vontade dos seus representantes, que o conde- glorificação, para melhor assaltar e destruir o inimigo. Na luta,
nam – continua mesmo assim a contribuir a ação do seu maior agredir e liquidar em nome do bem oferece a grande vantagem
amigo, repelido por ela. Isto acontece porque, por incompreen- de poder fazê-lo com a aparência de máxima integridade, o que
são, ele foi considerado um inimigo, do qual parecia ser neces- permite extrair vantagem do apoio que dá a aprovação geral.
sário defender-se, por estar sustentado pelos inimigos da reli- Porém a luta desperta reações no lado oposto e, assim, ve-
gião. Isto é consequência do sistema de luta vigente, próprio do mos o campo eclesiástico se ocupar novamente de Teilhard,
plano biológico humano. Neste plano, uma condição evoluti- que antes passara desapercebido, mas que agora se tornava im-
vamente melhor é comumente alcançada mais por purificação portante, pois comprometia a própria defesa do grupo. Por esta
forçada – causada pelo assalto de inimigos, que, mostrando os razão, calando sobre o que, neste caso, pode ter sido o seu erro
defeitos, obriga a eliminá-los – do que por uma piedosa ajuda – justamente aquele mais colocado em evidência pela parte
de amigos, aconselhando tal trabalho. Esta obra de purificação, oposta – a Igreja trata de domesticar e adotar as teorias de Tei-
apesar de necessária, vem a ser confiada não ao amigo, mas sim lhard, primeiramente suspeitas de heresia, procurando enqua-
ao inimigo, que é despertado para confraternizar com quem, pa- drá-las no terreno ortodoxo e, assim, satisfazer a necessidade
ra melhorar a religião, fazia notar os seus pontos débeis. Assim, urgente de não ficar para trás, atualizando-se perante a ciência.
para os fins da evolução, também é indiretamente utilizado pela A intenção, assim, seria converter suas ideias numa contribui-
vida o verdadeiro amigo das religiões, que, por levar a sério o ção à teologia, o que até ontem foi totalmente condenado, so-
ideal, é repelido por elas como inimigo. Isto não tem nada a ver bretudo a teoria da evolução. Então o próprio inimigo que agri-
com as conversões oficiais. Quem é intimamente irreligioso de a Igreja é quem a obriga a realizar um passo em frente, para
permanece sempre assim, seja qual for a fé que professe exteri- admitir, já que não é possível negar, princípios novos, os quais,
ormente. Quem, no entanto, é verdadeiramente religioso possui de tão evidentemente demonstrados pela ciência, não é mais lí-
a substância de todas as religiões e permanece o mesmo em cito condenar. Quando aquilo que foi julgado erro não pode
qualquer delas, não necessitando, portanto, mudar de forma, mais deixar de ser considerado verdadeiro, porque se tornou
que é fato exterior, e muito menos fazer disso objeto de rumor evidente, então procura-se adotá-lo como tal, para fazer desapa-
público. Os íntimos fatos espirituais são tratados apenas com recer o próprio erro. Mas sem esse assalto, o progresso não se
Deus, e não mostrados ao mundo, para fins propagandísticos. teria realizado. É a própria agressão do inimigo, então, que nos
Tal funcionamento emborcado explica-se como lógica con- obriga a evoluir, melhorando-nos. Método bem humano e que
sequência de um regime baseado na luta e na mentira, ao invés nada tem de divino. Se o inimigo é débil, procura-se fazê-lo ca-
76 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
lar, mas se, por consentimento universal, ele é forte, conclui-se salto em frente, não tem outra escolha senão realizar-se na Ter-
que é melhor tornar-se amigo dele. Abre-se então um canal de ra, tal como ele é em seu atual nível evolutivo, e este é o caso
compreensão para a nova verdade e trata-se de aceitá-la, adap- da maioria. Para tal tipo, é positivo para a vida e contém a ver-
tando-a para uso próprio e colocando-a a serviço do próprio dade o mundo, que é o terreno das suas realizações, e é negati-
poder. A direção, portanto, é realizada pelo pensamento huma- vo o ideal, que pretende deslocar o centro da sua existência
no, que está em constante evolução, tendo as religiões de se mais para o alto, onde ele ainda não sabe viver. Por isto ele se
adaptarem a ele, para segui-lo e avançar com ele, se não quise- rebela contra o ideal. E é por isso também que este, para reali-
rem ser deixadas para trás pelo progresso da vida. zar-se na Terra, deve assumir a forma coativa, baseando-se so-
Quando, sob as aparências, esta é a realidade dominante, bre a psicologia utilitária do prêmio ou da pena, da vantagem
como impedir então, perante tal forma mental, que o ideal não ou do dano, das honras ou da prisão, do paraíso ou do inferno,
seja usado na Terra como um meio de luta, em função dos in- porque este é o único raciocínio que o primitivo compreende.
teresses materiais? O indivíduo é levado a conceber tudo, tan- No plano do ideal, a psicologia determinante não é esta, mas
to a Terra como o Céu, em função de si mesmo. Se um selva- sim a da lógica, da justiça e da convicção.
gem encontrasse na floresta um aparelho de rádio ou de tele- Constatamos assim uma luta entre dois tipos de existência,
visão, iria utilizá-lo do único modo que ele pode compreen- correspondentes a dois planos biológicos. Enquanto o ideal lu-
der, fazendo dele uma caixa de transporte, um recipiente para ta para dominar e transformar a seu modo a animalidade, esta
frutas, uma armadilha para caçar animais, ou então servindo- luta para aprisionar o ideal no plano físico, tratando de cristali-
se dos fios elétricos para fazer amarras e dos componentes zá-lo nas formas e, assim, paralisar e deter a sua ação. Enquan-
brilhantes para adornar-se. É assim que age também o homem to o S luta para levar tudo do AS para o S, o AS luta para levar
imaturo em relação aos ideais. tudo do S ao AS. Cada um deles quer destruir o outro, para
Para a maioria involuída, a moral consiste em obter o máxi- substituí-lo. Ao assalto do espírito contra a matéria, para fazê-
mo resultado útil com o mínimo esforço e desvantagem. E a la subir, responde o assalto da matéria contra o espírito, para
medida da utilidade é dada pelo bem-estar do corpo, uma vez fazê-lo descer. Enquanto o ideal realiza a sua obra de penetra-
que o indivíduo vive ainda no nível animal e os valores espiritu- ção no mundo, para salvá-lo, este, com as suas adaptações,
ais são escassamente compreendidos. Esta é a moral do seu pla- executa o trabalho de corromper o ideal, para rebaixá-lo. Por
no, e este é o nível em que é obrigada a descer a moral do ideal e isso as religiões envelhecem e, de tempos em tempos, surge
do evoluído. Mais do que isto o primitivo não pode compreen- um novo profeta, para reanimá-las e purificá-las com novas in-
der. Assim ele não toma conhecimento de problemas mais vas- jeções de ideal, que deve descer à Terra, o reino da matéria. É
tos, nem sequer os coloca. Estes, portanto, não existem para ele verdade que uma forma é necessária para dar às ideias um cor-
e, desta forma, estão todos implicitamente resolvidos. Nas zonas po, um recipiente para contê-las e conservá-las. Mas o homem,
superiores, inexistentes para ele, tal indivíduo é amoral e irres- em vez de se ligar ao conteúdo, acaba aderindo ao invólucro;
ponsável. No seu ponto de vista, é inconcebível que a moral em vez de se ater à substância, detém-se na forma, terminando
evangélica seja feita para ser vivida. Na sua opinião, é bom tudo por adorar a imagem em vez da ideia. Sucede que, assim,
o que serve para viver, inclusive a prepotência e a mentira, e é quanto mais aumentam as construções no plano físico, tanto
mau tudo o que limita a sua vida, mesmo a virtude, os deveres mais se enfraquece a espiritualidade que as anima e as justifi-
de honestidade, a sinceridade, a bondade, o altruísmo. A contra- ca. Então o ideal, perdido nos seus revestimentos, torna-se
dição entre palavras e fatos ofende o evoluído, mas não ofende o templo, riqueza de meios, organização hierárquica, administra-
primitivo, que não a percebe. Por que prejudicar o próximo deve ção burocrática, autoridade e poder terreno, enquanto desapa-
ser um mal, quando isto traz bem a quem o faz? Esse mal alheio recem sufocadas as construções interiores, aquelas que fazem
não é percebido, enquanto o próprio bem é sentido perfeitamen- o homem novo e possibilitam a realização do ideal.
te. Não há razão pela qual não se deva explorar o ideal e a reli- Quando se chega a este ponto, tudo se emborca. O que era
gião, quando isto traz uma vantagem tão positiva. De fato, não finalidade e realização do ideal transforma-se num meio para al-
há nenhuma dúvida sobre o assunto. “Se eu estivesse enganado, cançar as realizações terrenas, as quais se tornaram a finalidade.
isto deveria trazer-me um mal, mas se, pelo contrário, resulta- O centro operante se desloca da religião para o mundo, que ven-
me num bem, constitui prova evidente de que não me equivo- ceu, transformando-a em mundo. Assim o ideal, em vez de
quei, porque é com este bem que sou premiado. Quando, pelo cumprir a sua função, que é fazer o homem evoluir para fins su-
contrário, para seguir o ideal, imponho-me sacrifícios, o sofri- per-humanos, acaba transformado em objeto de exploração, para
mento trazido por eles me prova que agi errado”. Diante de se- fins humanos. Então a religião torna-se carreira, parasitismo,
melhante forma mental, não há por que não se reduzir a religião sectarismo, organização de interesses. Nesta fase, entre os dois
a uma forma de hipocrisia, quando isto traz benefício. inimigos, cada um dos quais quereria tudo para si, é o mundo
Este tipo de moral nos explica por que, tão logo tenha des- que vence. Por isso o período da maior pureza de uma religião é
cido à Terra, o ideal, ao invés de encontrar uma aceitação es- o inicial, depois do qual a mistura com o mundo começa a cor-
pontânea, choca-se com a resistência do involuído – que não rompê-la, de modo que as superestruturas humanas acabam por
quer sacrifícios – e, para realizar-se, deve então assumir a for- sufocá-la. Então ela desmorona, e, como há pouco dizíamos, tu-
ma coativa. Verifica-se assim uma espécie de aprisionamento, do se recomeça desde o princípio, com um novo profeta. Tudo é
em que se dá um encerramento progressivo da animalidade e transformismo e evolução na vida. Assim, conforme a fase em
da sua moral involuída, para limitá-la até eliminá-la, substi- que se observa uma religião no ciclo do seu desenvolvimento,
tuindo-a pela espiritualidade e pela respectiva moral evoluída. podemos encontrá-la em estado de maior ou menor pureza, por-
Lamentavelmente, para educar o involuído, não há meios me- que, na mistura, encontram-se diversamente dosados o ideal e o
lhores do que os do seu plano, adequados à sua imaturidade. mundo. A princípio, vence o primeiro, depois o segundo. Mas,
Tais recursos, porém, nada tem a haver com o ideal, cujos mé- quando este último toma a dianteira, o impulso evolutivo, com-
todos de vida são diversos. A moral superior do ideal, feita de primido pela resistência do AS, explode. Então a forma se des-
renúncia à animalidade e de esforço de superação – constituin- pedaça e a tempestade varre os resíduos, sendo lançado no terre-
do uma moral negativa no plano terreno de vida – pode ser vi- no purificado o impulso de um novo ideal, pertencente a planos
vida por quem, estando maduro para alcançar níveis biológicos biológicos mais avançados. Trata-se de um plano que, sendo
superiores, dirige-se para outro tipo de vida, situada além da mais evoluído do que o precedente e, portanto, capaz de levar o
atual. Mas quem ainda não está maduro para realizar um tal homem mais para frente, pode assim continuar a sua construção
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 77
num nível mais alto, utilizando também o trabalho de assimila- representar a comédia dos cetros, tronos, mitras, coroas e sím-
ção cumprido pela obra da religião precedente. bolos semelhantes, para, revestidos assim, fazer o duro jogo da
Esta é a história das religiões e a técnica da sua evolução, vida. O mundo quer que o divirtam e, por isso, impõe estas re-
que leva o homem cada vez mais em direção à sua meta espiri- presentações, fazendo-se servir sem piedade. As massas dão o
tual: Deus. Certamente, tal maturação de conceitos e formas seu beneplácito e permitem que os poderosos mandem, se eles
mentais não pode ser cumprida por uma religião, mas somente lhes satisfazem os seus gostos. O poder se baseia também sobre
pela evolução, que arrasta tudo, inclusive as religiões. A reali- um estado psicológico, que estabelece um consentimento tácito.
dade biológica representa, no fundo, as mais velhas e tenazes De outra maneira, ele é tirania. Os chefes necessitam gozar de
estratificações da vida, agarradas à matéria e resistentes a todo uma certa confiança e simpatia. Não basta cumprir com o seu
transformismo. São necessários os terremotos espirituais, atra- próprio dever perante Deus, é necessário também fazer aquilo
vés de golpes tremendos por parte do ideal, como foi a descida que as massas julgam, com a sua mente, ser o dever dele. Quem
de Cristo à Terra, para deslocar um pouco para diante a grande manda e quem obedece então? E qual é o nível mental das mas-
massa humana inerte, submersa no plano animal. É certo que a sas, do qual depende o seu juízo?
pressão do alto para penetrar as camadas biológicas inferiores é Não há posição social que nos coloque fora da lei da luta
grande, mas também é certo que estas resistem desesperada- pela vida. Ninguém pode sair do domínio das leis biológicas do
mente ao impulso evolutivo, opondo o seu impulso involutivo, planeta, nem sequer as religiões reveladas, quando nos seus re-
que, ao invés de subir para o S, pretende descer para o AS. O presentantes tomam forma humana. Aquelas leis continuam
mais avançado volta-se em direção ao que está mais atrasado, funcionando mesmo para quem se converte em ministro de
para arrastá-lo em direção ao alto, e quer por isso manifestar-se Deus, ainda que ele as ignore ou as negue. Pode livrar-se delas
embaixo, mas não pode fazê-lo senão na medida estabelecida somente quem tenha evoluído o suficiente para superar o plano
pelo grau de maturação e consequente receptividade do inferior. biológico do homem atual, estando assim maduro para ingres-
Deus não pode revelar-se na Terra senão nos limites do conce- sar em um nível superior. Mas, para fazê-lo, nem mesmo os
bível humano, ou seja, senão de acordo com a capacidade do mais altos cargos do mundo bastam. Estes são forma, e não
recipiente que O recebe. É o campo de visão dominado pelo substância; aparência, e não valor intrínseco. O homem perma-
nosso cérebro, dado pela amplitude de nossa mente – capacida- nece o mesmo biótipo, pertencendo ao nível evolutivo que lhe
de de compreensão – que estabelece a medida da manifestação corresponde, seja qual for a posição social ocupada por ele.
de Deus na Terra. As coisas espirituais mais maravilhosas, tais Hoje, devido a uma nova maturidade e penetração psicoló-
como aquelas alcançadas com as maiores descobertas científi- gica, é cada vez mais difícil camuflar-se estas realidades, que
cas, não existem para o ser, enquanto ele não construir para si terminam sendo mais visíveis. Antigamente se podia facilmente
mesmo olhos que lhe permitam vê-las. É assim que, no meio fazer passar por verdade coisas hoje inaceitáveis sob o controle
das luzes enceguecedoras de Deus, ele pode estar cambaleando da razão. A tendência atual é renovar as dimensões de tudo,
na escuridão. Nas religiões, as mentes estreitas não veem estes analisando as causas biológicas e psicológicas que produziram
conceitos mais vastos, este Deus muito maior, e ficam aferradas um consentimento a respeito de determinadas ideias. Hoje faz-
a Terra, negando-se ao progresso. se a psicanálise das concepções sobre as quais se baseiam tan-
Separadas das leis que regem a vida, não se pode compre- tos castelos religiosos, teológicos, políticos e sociais, para veri-
ender as religiões. É verdade que o ideal está por cima da reali- ficar o que fica delas, de sólido e verdadeiro, depois de tal
dade biológica, mas também é verdade que, para realizar-se na exame. Que pretende realizar a vida através destas suas formas?
Terra, ele deve submergir e fundir-se nesta. Se ele permanece É verdade que ela as aproveita para alcançar os seus fins e, nes-
puro na sua altura, permanece fora de nossa vida também. En- te sentido, leva o homem a agir através de impulsos, por meio
tão é o próprio exercício da sua função civilizadora que lhe im- dos quais ela o faz acreditar que ele obedece à sua própria von-
põe uma dose de degradação e corrupção. tade. Se o homem tivesse sido abandonado a si próprio, com
As religiões são um serviço para as massas e devem, por- plenos poderes, ter-se-ia destruído há muito tempo. Para dirigir,
tanto, adaptar-se às suas exigências, mesmo que ela esteja bem é necessário não só conhecimento mas também boa vontade, e a
longe de ser evoluída. Em todos os governos, as massas im- vida quer continuar, por isso ela se impõe com a sua sabedoria.
põem limites ao poder dos chefes. Estes têm a força da autori- A mente humana cria as lendas e os mitos que servem à
dade; aquelas, a força do número. Cada um dos dois termos vida. O estabelecimento de uma verdade baseia-se sobre um
comanda somente até onde o outro lhe permite. Assim os dois consentimento humano, e a formação de um consentimento
poderes, mesmo nos estados totalitários, limitam-se recipro- tem bases utilitárias, dando-se em função do fim supremo, que
camente, porque as massas incorporam as leis da vida, às quais é a sobrevivência. Esta é a realidade fundamental, mesmo que
todos estão submetidos, inclusive os tiranos. Nenhum dos dois ela esteja escondida debaixo das mais variadas superestrutu-
termos tem um poder absoluto. As massas têm o poder lento e ras. A massa humana, formada tanto por quem comanda como
maciço da matéria; os chefes têm o poder ágil e requintado da por quem obedece, com indivíduos e povos de diversas posi-
mente. Cada um deles desejaria sujeitar o outro a si. Há sem- ções, encontra-se toda encerrada dentro destas leis e ambiente
pre lutas entre povos e governos. O acordo é dado pela pre- biológico, mais ou menos no mesmo nível evolutivo, estando
ponderância de um sobre o outro, e isto é estabelecido por dominada pelas mesmas necessidades vitais, segundo as quais
aquele que, sendo biologicamente mais dotado e mais forte, são elaborados os conceitos e as atividades necessárias para
consegue se impor. Assim as nações evoluem em direção a um sobreviver e evoluir. O pensamento de Deus, que rege a vida,
estado aristocrático que se corrompe em seguida. Então a mas- encontra-se na profundidade do fenômeno, movendo tudo e
sa toma a dianteira, revoltando-se, para seguir a mesma corrida todos, sem que estes saibam. Assim funciona e avança a gran-
ascensional e, com o aburguesamento das revoluções, acabar de máquina. Dentro dela existe a necessidade de resolver to-
tal como as precedentes aristocracias. dos os problemas: ganhar o pão de cada dia, dar continuidade
Assim, nas religiões, as massas comandam a sua parte, en- à vida nos filhos, administrar os estados e as religiões, vencer
quanto o ideal deve adaptar-se para satisfazê-las. Encontram as guerras, adquirir conhecimento e, por fim, evoluir em dire-
campo então as representações do rito, as imagens, as conces- ção a Deus. A vida deve resolver todos estes problemas em
sões à superstição, o fanatismo e o materialismo religioso do função deste último, o maior.
primitivo. As religiões devem descer ao nível mental do povo Vivemos numa época em que a velha espiritualidade morreu
ignorante. Os chefes devem cobrir-se de mantos e decorações, e a nova, apoiada sobre bases científicas positivas, ainda não
78 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
surgiu. Cada século desenvolve um pensamento próprio, para o ideal serve para os seus verdadeiros fins, que são alcançados
realizar uma criação diferente. Este pensamento hoje é científi- com outros métodos. Então ele se revela como afirmação criado-
co, dirigido para realizações na matéria, e é este o tipo de im- ra, enquanto a vida resolve diversamente o problema da sobre-
pulso que hoje move a humanidade. As religiões, encerradas vivência. Mas, para compreender que o ideal pode ser utilizado
nos seus velhos castelos, permaneceram neles, atrasando-se, nesta outra forma, muito mais proveitosa, é necessário haver su-
enquanto o mundo caminhou sem elas, que agora se esforçam perado o plano animal-humano, para alcançar um superior, regi-
para alcançá-lo por meio de uma operação chamada “atualiza- do por outros princípios. Então a suposição de que o ideal possa
ção”. Porém estão imobilizadas pela sua própria inércia, en- servir somente como engano não tem mais valor, pois fica limi-
quanto o mundo se esvaziou de espiritualidade e o ideal se eva- tada ao ambiente terrestre e aos involuídos que nele permane-
porou nos céus. Na arte e na literatura, isto é evidente. Das reli- cem. Deste modo, para além desse ambiente e para aqueles que,
giões ficou a estrutura exterior, mas a casa está vazia, mesmo mesmo vivendo nele, não são involuídos, o ideal realiza a sua
estando bem conservada por fora. A espiritualidade tornou-se maravilhosa função de ser instrumento de evolução.
uma das tantas mentiras convencionais, com as quais muitos Dizer que a religião pode ser utilizada como uma forma de
concordam. Continua-se, assim, exaltando Cristo com palavras hipocrisia não é uma acusação, mas apenas a constatação de um
idealistas, mas, para o uso que se costuma fazer Dele, o argu- natural fato biológico, que, como tal, explica-se e justifica-se.
mento se tornou suspeito. A fé fica apenas para os ingênuos, Tais posições oblíquas são explicadas e justificadas pelo fato de
pois é mais fácil enganá-los. Domina a moral do interesse pró- serem transitórias e inevitáveis na luta de penetração que o ide-
prio. O ideal, nos fatos, é repelido também por quem o professa al deve cumprir, para poder enxertar-se no mundo, seu inimigo.
na palavra, e a estrada principal é a da mentira. Esta é a base O ideal não pode vencer a não ser gradualmente, e a hipocrisia,
das conversações hoje em moda, que por isto não se resolvem como arma de luta, representa um requinte perante a violência.
com a compensação e a colaboração. À força de falsificar o Com a astúcia entra em função o cérebro em vez dos músculos,
sentido das palavras, chegamos à confusão de idiomas da torre dando início ao desenvolvimento da inteligência, que um dia
de Babel. Então a comunicação se rompe, porque de nada serve chegará a superar também este seu atual método de luta. Hoje,
a palavra dita para esconder, e não para expressar. educação, religião e moral consistem em grande parte na arte de
Por que motivo as religiões tendem a se transformar em hi- dissimular. Amanhã, pelo contrário, elas consistirão na arte de
pocrisia? Analisemos o fenômeno. Elas representam o ideal na nos compreendermos e de nos ajudarmos, com uma conduta
Terra, realizando a descida dele de planos evolutivos mais evoluída, como nos é indicado pelo Evangelho. Ao longo da
avançados, como uma antecipação de estados que o homem vi- natural linha de evolução dos meios de defesa da vida, primeiro
verá no futuro, para os quais ele ainda não está maduro hoje. As está a violência por meio da força, depois o engano por meio da
religiões pregam a bondade, a não resistência, a renúncia e o al- astúcia e, finalmente, a colaboração como resultado de uma
truísmo, enquanto a vida real se baseia no interesse, na luta, na consciência coletiva na vida organizada. Como se vê, a evolu-
rivalidade e no egoísmo. Para a vida, no seu atual nível evoluti- ção conduz naturalmente ao Evangelho. As religiões, seja no
vo, aquele ideal representa um ato louco de autodestruição, ra- polo ideal ou seja no polo mundo, formam parte do fenômeno
zão pela qual ela é naturalmente levada a repeli-lo. Veremos biológico e são reguladas pelas leis do seu desenvolvimento.
agora que isto é válido em relação apenas à sua atual posição, Apesar de sua realização na Terra ser ainda um sonho longín-
mas que já não é verdade em outra posição evolutiva. Uma vez quo, observa-se que o Evangelho, embora apenas em forma de
que a descida do ideal é necessária para o progresso da evolu- palavra não vivida, de aparência exterior, de máscara para co-
ção, não se pode eliminar a sua presença na Terra. O resultado brir a feroz realidade da vida, já está penetrando no mundo. Es-
de tal necessidade é que, em vez de uma aceitação pacífica, ta semente, mesmo que o mundo procure dominá-la, já existe
ocorre um choque entre o ideal e a realidade da vida, originan- nele e, com seu impulso de crescimento tenaz, esforçando-se
do uma luta na qual ele é torcido para se adaptar a ela e, com para vencer, está destinada à vitória por lei da vida, porque re-
isso, reduzido a uma forma de mentira. Se a religião impõe ao presenta o futuro da evolução.
homem abandonar a arma da força, que lhe é necessária para se Assim como hoje, na sociedade civil, já não se tolera a vio-
defender, ele usa então, com sucedâneo para esta, o fingimento. lência, porque se formou um poder central capaz de impedi-la,
A vida pretende sobreviver com o mínimo esforço e, por isso, impondo a sua ordem, também brevemente não será mais tole-
resiste ao impulso evolutivo, que lhe impõe esforços e perigos, rado o engano, porque a inteligência terá se desenvolvido para
dos quais ela procura se esquivar, retorcendo-se em sentido eliminar essa intenção nos outros e em si mesmos, compreen-
descendente. É por isto que a descida dos ideais na Terra pode dendo o quanto é contraproducente usá-lo. A humanidade pro-
servir para desenvolver a técnica da dissimulação. curará libertar-se de tal obstáculo aos seus movimentos, fruto
Agora nos perguntamos: se o fenômeno está fatalmente co- da sua ignorância. O fato de, cada vez mais, as ciências psico-
locado desta maneira, na forma de um entrosamento forçoso lógicas estarem penetrando no reino do pensamento vai nos
entre opostos, será que a manifestação das religiões na Terra conduzindo forçosamente em direção a um regime de sinceri-
não pode tomar outra forma senão a de engano? Isto pode fa- dade. Com o tempo, os castelos da hipocrisia, até mesmo a reli-
zer-nos pensar que, em semelhante ambiente, esta tenha de ser giosa, serão desmantelados e, assim, a humanidade poderá li-
a sua natural interpretação. E estamos de fato no nível do invo- bertar-se do inútil esforço de ter de viver de fingimento, cami-
luído, que não sabe fazer outro uso do ideal, a não ser empregá- nhando sobre as areias movediças do engano. Este jogo será
lo na luta pela sobrevivência, pois o ideal se apresenta com leis desnudado pelo desenvolvimento da inteligência e, com isso,
e modos de viver próprios dos planos mais evoluídos, incom- irá tornar-se impraticável. Não dando mais proveito, ele será
preensíveis para o imaturo. Este abaixamento de nível é cha- abandonado. Entretanto a multidão dos ingênuos, que se dei-
mado então de hipocrisia, mas isso é uma natural adaptação às xam enganar, diminui cada vez mais, pois ou eles despertam ou
nossas próprias dimensões conceptuais, que são diferentes da- são eliminados. O engano pode dar fruto, enquanto existe quem
quelas exigidas de nós pelo ideal. caia nele, e a falsa verdade pode ter êxito, enquanto exista a fé
Existe, no entanto, outro fato. Que se deva fazer semelhante de quem creia. Mas o jogo desaba, quando, diante de uma ver-
uso do ideal pode ser verdade em forma relativa, para quem dade afirmada, estamos interessados principalmente em desco-
pensa com a psicologia do involuído e age com relação aos seus brir a mentira que ela esconde. Por isso, em matéria de religião,
respectivos pontos de referência. Porém, tão logo se saia de se- insiste-se tanto sobre a fé, condenando-se como perigoso quem
melhante ambiente, inerente a este plano evolutivo, tudo muda e busque sobretudo pensar e compreender.
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 79
O mundo atual procura, em todos os campos, um honesto e mos, por visões interiores, os princípios, para descer depois à
sincero esclarecimento de posições, para que nelas permaneça e realidade que deles deriva e por eles está regida.
brilhe ainda mais o que há de verdade e seja eliminado o que é Deus existe no absoluto, e o homem, como há pouco refe-
falso. Da verdade nada se tem a temer. Isto pode parecer tem- rimos, forma Dele a ideia que pode ser contida dentro das di-
pestade de destruição, mas é trabalho de saneamento. Erros e de- mensões da sua capacidade de compreensão. Portanto trata-se
feitos se curam à luz do sol, e não os ocultando. É preferível ver de uma ideia relativa e em evolução. Isto significa que o seu
a realidade do que escondê-la, compreender o erro e evitá-lo do ponto de partida, do qual evoluirá depois, é dado pela natureza
que persistir nele, melhorar do que condenar. O princípio de au- do ser humano, composta por dois termos opostos e comple-
toridade já não basta, é necessário convencer. E, para convencer, mentares, que estão divididos para se reunirem: macho e fêmea.
é preciso estar convencido, o que significa discorrer não só com Trata-se apenas de dois polos da mesma unidade, fenômeno
proposições lógicas mas também com fatos. Isto é o que a vida que, correspondendo ao dualismo universal, onde a unidade do
hoje exige para a salvação dos seus mais preciosos valores. todo se parte interiormente, não é senão um momento deste.
◘◘◘ Sobre Deus, a ideia que existe na Terra depende mais dos
Continuemos a observar o fenômeno religioso, mas sob ou- limites da forma mental do homem que a concebe do que da-
tros aspectos, a fim de compreendê-lo cada vez melhor na sua quilo que Deus é no absoluto, para nós inconcebível. Por este
substância biológica, observando-o em relação às leis da vida, motivo, encontramos dois tipos de divindade ou dois aspectos
dado que elas representam o ponto de referência mais sólido e da ideia de Deus: o aspecto masculino, ligado a Moisés, e o as-
positivo para nos apoiarmos. Estas leis não são uma artificial pecto feminino, ligado a Cristo. De fato, o de Moisés era o
construção da mente humana. Elas existem de fato e as vemos Deus senhor, egocêntrico, zeloso do seu poder, o Deus dos
funcionar em todos os fenômenos, inclusive no religioso. Como exércitos, dominador e chefe do seu povo eleito, contra os ou-
este também faz parte da vida, não pode ficar situado fora das tros povos. O de Cristo é o Deus justo e bom, que redime com o
suas leis. Penetrando-o psicanaliticamente, poderemos compre- seu sacrifício as culpas dos outros, o Deus amoroso, generoso e
ender o que está por detrás da cena, escondido na profundidade universal, conceito este mais vasto, que aperfeiçoa e completa a
de tantas manifestações humanas nesse setor, e descobrir a razão crua e limitada justiça do homem.
da forma que assumem. Este é o trabalho que estamos fazendo Deus, em si mesmo, é tudo e pode, portanto, ter muitos ou-
agora, deslocando gradualmente o nosso olhar, a fim de poder tros aspectos. Mas o homem, não podendo sair do concebível
observar o fenômeno no maior número possível de posições. do seu mundo biológico, do qual é filho, viu apenas os aspec-
O que a vida pretende realizar através das formas assumidas tos mais próximos de si. Na sua evolução, ele vai compreen-
pelas religiões? Que sabe a sua inteligência extrair desta mistu- dendo Deus por graus sucessivos, acrescentando às suas con-
ra entre ideal e mundo, entre o divino e o humano? Cremos que cepções precedentes outras cada vez mais avançadas, constru-
as religiões não podem ser compreendidas, se não forem anali- indo assim o seu edifício de conhecimento, fundindo-as nele,
sadas segundo a sua função biológica. Encontramo-nos perante para chegar à compreensão de um Deus cada vez mais rico de
dois fatos positivos: 1) O cristianismo existe; 2) Tudo que não aspectos, vasto e completo.
realiza uma função vital para os fins da vida é eliminado por É assim que este dualismo positivo-negativo do conceito
ela. Portanto, se o cristianismo existe – e tempo não faltou para homem-mulher, encontra-se também nas religiões. O primeiro a
que ele, se fosse inútil, tivesse sido eliminado – isso significa aparecer foi o Deus homem, que se baseia na força, o elemento
que está cumprindo uma função. O problema então é só desco- mais necessário para a afirmação da vida nos níveis mais bai-
brir qual é ela. Pelo fato de também sabermos que a principal xos da evolução. Sobre esse conceito base, proporcionado às
finalidade da vida é a evolução, somos levados a pensar que, exigências biológicas impostas pelas condições de desenvolvi-
mesmo referindo-nos apenas ao aspecto biológico, a função do mento, elevou-se depois, como um seu refinamento, o conceito
cristianismo é de caráter evolutivo. do Deus amor, assim como sobre as vitórias contra outros po-
Recordemos ainda que esta dissertação não é realizada com vos, por meio da força, elevam-se as aristocracias construtoras
fins polêmicos, para defender uma verdade já confeccionada, na de formas de vida mais requintadas e períodos de paz que per-
qual se baseiam certas posições e interesses, nem com objetivo mitem o florescimento das artes e da cultura, levando a civili-
agressivo, para destruir outras verdades, nas quais se baseiam zações cada vez mais avançadas.
posições e interesses alheios. A nossa finalidade é somente de Encontramo-nos, portanto, perante um fenômeno evoluti-
pura investigação. Queremos somente compreender dos fatos vo, fato este que nos oferece sólidas bases de apoio, por duas
que nos cercam o porquê da sua existência e da forma determi- razões: 1) A evolução é um fenômeno já positivamente pro-
nada de seu funcionamento. Não temos uma tese preconcebida vado; 2) Para o homem, como já demonstramos suficiente-
para demonstrar, não estamos ligados a conclusões preestabele- mente, a evolução já não se realiza no plano orgânico e fisio-
cidas para defender nossas posições. Só desejamos conhecer e, lógico, mas sim no mental e espiritual, consistindo sobretudo
assim, resolver os problemas. Portanto nada temos da habitual no desenvolvimento nervoso, cerebral e intelectual. Já vimos
posição dos contendores em luta, tão comum em tais casos. que o avanço nessa direção se realiza com a técnica da desci-
Não procuramos ter razão sobre um adversário, vencendo-o da dos ideais, cuja tendência é estabelecer novas formas de
com argumentações. O nosso inimigo é o desconhecido, e so- existência, alcançadas através do ingresso em planos biológi-
mente podemos vencê-lo com a luz do conhecimento. cos mais evoluídos. Ora, a função das religiões é concretizar o
Como sempre, seguimos o nosso método, que, se é analíti- fenômeno dessa descida. Elas representam, portanto, um canal
co, é assim apenas num segundo tempo, na fase de controle. através do qual se realiza a evolução. Eis que, assim, podemos
Iniciamos em forma sintética, com a visão dos princípios dire- compreender a posição e a função das religiões perante as leis
tores, que para outros é a conclusão. O caminho que seguimos da vida. Então, se hoje a realização da evolução significa espi-
não se eleva do particular, tomado como ponto de partida, ao ritualização, as religiões adquirem um significado positivo de
geral, o ponto de chegada, mas sim desce do geral, nosso ponto imenso alcance, pois constituem um instrumento cuja função
de partida, ao particular, onde procuramos a prova para conclu- assume uma posição central no seio do maior fenômeno da
ir. Enquanto a forma mental normal primeiramente observa, por vida: a evolução, no transformismo da qual são enquadradas
visão sensória, a realidade exterior e sobe depois aos princípios, em função de um supremo fim a alcançar.
que são olhados quase com desconfiança, como uma duvidosa Uma vez que a religião tem a tarefa de fazer o homem evo-
generalização, na qual falta positividade, nós primeiramente ve- luir, podemos então compreender por que, antigamente, ela
80 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
devia cumprir esta função no nível animal, assim como agora o mos trabalhar também o elemento feminino, que, se é negativo,
cumpre no nível humano e, amanhã, o fará no nível super- é assim somente em relação ao elemento masculino, porquanto,
humano. É assim que a forma das religiões muda com a sua em si mesmo, é igualmente construtivo, porém com qualidades
evolução, porque o nível biológico de onde desce o ideal é di- diferentes daquelas do homem. Assim esta feminização não é
ferente, segundo o grau de desenvolvimento alcançado. Assim apenas um efeminar-se no sentido de corromper-se nas quali-
esse ideal provém de um plano cada vez mais alto, porque de- dades inferiores da mulher, mas também um sublimar-se nas
ve acompanhar o movimento da vida, cujo deslocamento se re- suas qualidades superiores.
aliza em sentido ascensional. Deste modo, os dois seres opostos trabalham alternadamen-
Eis que as religiões tendem a se espiritualizar, porque estão te, cada um repousando e deixando-se arrastar, quando o outro
estreitamente conexas com o fenômeno evolutivo. Na sua pri- dirige e constrói, e, por sua vez, dirigindo e construindo, quan-
meira aparição, elas são vizinhas da animalidade, tanto mais do o outro descansa e se deixa arrastar. Eis que se trata apenas
quanto mais involuído é o homem. Com a evolução, porém, de uma divisão de trabalho entre dois seres inversos e comple-
elas, assim como toda a vida, elevam-se, espiritualizando-se, mentares, que são duas formas do mesmo ser, uma no seu as-
porquanto, como agora dizíamos, o fenômeno evolutivo, quanto pecto masculino e outra no seu aspecto feminino. Então o perí-
mais sobe, tanto mais se torna fenômeno de espiritualização. O odo de decadência das civilizações pelo processo de feminiza-
ponto de partida está embaixo. A base é dada pelos instintos do ção não é senão uma parada no exercício das qualidades mascu-
primitivo. Se as religiões são uma descida do Alto em direção linas, momento do qual a mulher se aproveita para ensiná-lo a
ao baixo, isto acontece porque o Alto quer ser também um pro- tornar-se algo que ela já é, mas que ele ainda não sabe ser. E
cesso de elevação do baixo em direção ao Alto, para realizar a não é fácil saber com a paciência vencer a violência, com o
sublimação dos instintos elementares do animal. amor suavizar as arestas do egoísmo, com a bondade travar os
Segue daí que o cristianismo é uma forma mais evoluída, excessos da força, disciplinando e plasmando assim a matéria
mais espiritualizada e, poder-se-ia mesmo dizer, mais civili- prima, dada pelo macho forte e feroz, para chegar a domesticá-
zada de hebraísmo, correspondendo, segundo os precedentes lo, transformando-o num ser civilizado.
conceitos, mais à concepção feminina da divindade do que à Assim o elemento mulher se aproveita do cansaço do ho-
masculina. Estas afirmações fazem surgir na mente problemas mem para inculcar nele as qualidades que lhe faltam, enrique-
mais vastos. No desenvolvimento deste fenômeno, vemos que cendo-o e completando-o. Trata-se de duas posições diferentes
estes conceitos se conectam, colocando-se em paralelo, o que da ação construtora realizada pela vida, que é sempre constru-
nos faz pensar na existência de uma relação entre evoluir, no tiva, mesmo quando utiliza valores diversos, cada um a seu
sentido de uma espiritualização, e civilizar-se, no sentido de turno, todos úteis para a existência. Com efeito, se a constru-
uma aristocratização de caráter antimasculino, tendente à fe- ção de impérios com o esforço bélico representa uma conquis-
minização. O que significam estas concomitâncias, que apro- ta da vida, não se pode negar que também é uma conquista,
ximam tais posições como numa parentela? Isto interessa às ainda que seja de outros valores, a formação das aristocracias,
religiões, porque o ciclo do seu nascimento, desenvolvimento feitas de elementos selecionados como requinte e sensibiliza-
e decadência é um ciclo biológico que faz parte do nascimen- ção, mais aperfeiçoados na ciência e nas relações sociais, cons-
to, desenvolvimento e decadência das civilizações, fenômeno tituindo uma elite biológica produtora dos valores mais precio-
este por sua vez compreendido dentro de outro mais vasto, sos, como a cultura, a arte e o pensamento em alto nível. Isto o
constituído pelos altos e baixos da onda progressiva da evolu- macho guerreiro, por si só, não saberia fazê-lo sem a ajuda de
ção, na qual os altos são cada vez mais altos e os baixos cada um mestre, que, por ser débil, tem necessidade, para poder
vez menos baixos (“Trajetória típica dos motos fenomênicos”, educá-lo, de ser defendido pelo aluno, mestre em outra maté-
Cap. XXVI de A Grande Síntese). ria. Este, porém, usa frequentemente a força para destruir, e
No ciclo das civilizações, vemos inicialmente a explosão de não para proteger estas construções superiores, desarmadas pa-
um povo jovem, guerreiro e conquistador, que, constituído ple- ra a guerra. Assim Cristo, portador dos mais altos valores mo-
namente de qualidades masculinas, expande-se espacial e eco- rais, foi morto por primitivos ferozes; assim a civilização de
nomicamente, tomando posse, dominando e enriquecendo, até Roma foi dominada pela invasão dos bárbaros; assim a Revo-
atingir um ponto máximo, no qual o fenômeno se cansa, tornan- lução Francesa, com a carnificina do terror, varreu com os re-
do-se mais lento, até se afogar no ócio e no bem-estar. Então as quintes da aristocracia e acabou com aquele período feminino
qualidades se invertem. A primeira fase, esfaimada e rude, é de da história, para lhe substituir um masculino, abandonando-se
esforço, a segunda, saciada e requintada, é de repouso; a primei- ao impulso oposto, de expansão guerreira. Neste momento, é o
ra é guerreira, destruidora, forte, masculina; a segunda é pacífi- homem que toma a dianteira e se faz valer como ele é, ou seja,
ca, fecunda, feminina. É assim que todas as revoluções acabam como quem somente sabe criar numa atmosfera de destruição,
por aburguesar-se, sentando-se sobre as conquistas realizadas. esperando que a mulher venha depois e, com infinita paciên-
Que significa isto? Será então que o processo civilizatório cia, recolha os restos quebrados, reordene-os, reúna-os e faça
consiste em feminizar o macho? Ou será que, num mais alto deles, com as suas qualidades coesivas e conservadoras, uma
sentido, o processo evolutivo é realizado por dois elementos casa, uma igreja, uma família, uma sociedade. O homem tam-
opostos em dois tempos e posições, de modo que o homem, bém sabe fazer tudo isto, mas somente impondo com a força
quando termina a sua parte, deve ceder o passo à mulher, para por fora, enquanto a mulher o faz trabalhando por dentro, com
ser substituído por ela e colocado em posição secundária, suce- amor. Quando o homem, por ser criança, doente ou velho, é
dendo o contrário, quando a mulher termina a sua tarefa? Mas, débil, ele depende e a mulher domina. Mas, quando o homem é
se o processo de civilização consiste em feminizar o macho, en- jovem e forte, então quem domina é ele, enquanto a mulher
tão semelhante feminização deve ter um conteúdo em sentido depende. Assim, quando dizíamos que o ciclo de uma civiliza-
evolutivo que a justifique. Isto significa que ela deve cumprir a ção é descendente na sua segunda fase, na qual ela se corrom-
função não somente de debilitar o macho no seu nível involuído pe e se extingue, levando à desagregação da grandeza por ela
de força, mas também de substituir este enfraquecimento, com- alcançada, pensamos com o nosso ponto de referência tomado
pensando-o com a conquista de algum outro valor, para preen- em função do homem, dando mais atenção à visível construção
cher o vazio e, assim, não deixar a vida ficar em perda, pois isto masculina do que à oculta e silenciosa construção de tipo fe-
não seria tolerado por ela, que quer sempre avançar. Esta femi- minino, a qual nos aparece, assim, como se fosse uma deca-
nização faz parte, portanto, do processo evolutivo, no qual ve- dência. Mas isto se dá somente em relação ao homem. A vida é
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 81
sempre construtiva, mesmo quando parece destrutiva, porque, mento da vida, e não uma mutilação. A salvação está na evolu-
nesta fase, ela realiza construções em sentido oposto àquele ção, que é uma mudança para avançar, não para retroceder.
que, com mente masculina, chamamos construtivo. O fenômeno se constitui dos seguintes momentos: 1) Evolu-
O resultado de todo este trabalho é uma substituição dos va- ção, e não enfraquecimento, das próprias qualidades, tanto da
lores mais baixos do primitivo pelos mais requintados valores parte do homem quanto da mulher, sem que nenhum dos dois
do civilizado, processo pelo qual se realiza o processo evoluti- perca nada, desenvolvendo essas qualidades até um mais alto
vo, que consiste numa renovação, realizada através de uma des- nível biológico; 2) Enriquecimento de cada um dos dois ele-
truição embaixo, compensada por uma reconstrução mais no al- mentos pela absorção das qualidades da outra metade, comple-
to. Em substância, trata-se de uma função criadora, operada mentares às suas próprias, de modo a se tornar um ser cada vez
através do transformismo, cujo verdadeiro significado podemos menos “metade” e cada vez mais completo; 3) Fusão de todas
agora compreender. As fases de decadência, que corrompem, as qualidades num único biótipo, que, possuindo-as integral-
servem para eliminar aquilo que é inferior e, assim, libertar-nos mente, atinge assim, com a superação do atual estado de cisão,
dele e substituí-lo pelo que é superior. A civilização destrói o a unificação das duas metades.
homem como animal para que ele se reconstrua no nível moral, Estes três momentos – 1) Evolução, 2) Absorção, 3) Unifi-
dado pela inteligência e a organicidade social, fazendo desapa- cação – estão conectados, pois a aquisição das qualidades da
recer nele a besta. É com esta substituição que a vida se salva metade complementar e o processo de unificação entre as duas
da decadência, porque ela, lançando fora os valores mais invo- partes são mais facilmente realizadas num nível evolutivo supe-
luídos e conquistando outros mais evoluídos, renova-se, ao in- rior. Isto significa que, quanto mais o macho se torna homem e
vés de mutilar-se; enriquece, ao invés de empobrecer. Os dois a fêmea se torna mulher e quanto mais, em um nível mais alto,
movimentos, destruição e reconstrução, morte e renascimento, o homem se torna super-homem e a mulher se torna supermu-
existem para conduzir a uma renovação. Encontramos os dois lher, tanto mais fácil é para cada um dos dois entender e assimi-
compensados também no plano físico, onde o homem mata lar as qualidades do outro, coisa impossível de levar a cabo no
com as guerras e a mulher, amando o homem, cria novos seres, plano animal humano, de natureza somente sexual, sem cair em
ambos colaborando assim para essa renovação, com uma divi- desvios e inversões com relação às funções exclusiva e previa-
são de trabalho, um para destruir e outro para reconstruir. mente aí colocadas para fins de procriação. Aqui não se trata de
Chegando a este ponto, é necessário compreender um fato mudar de sexo, mas sim de ampliar a própria personalidade. As
fundamental. Tudo isto acontece em função da evolução e faz qualidades fundamentais do elemento positivo e ativo, o ho-
parte da sua técnica construtiva. Para este objetivo existe o me- mem, são força e agressividade; as do elemento negativo e pas-
tabolismo da vida, feito de morte e renascimento. No plano fí- sivo, a mulher, são debilidade e amor. No nível animal humano,
sico, se os nascimentos não compensassem as perdas da morte, estas qualidades tomam, no homem, a forma de egoísmo e pre-
tudo acabaria num cemitério. No plano espiritual, se as recons- potência, enquanto, na mulher, assumem o aspecto de escravi-
truções em alto nível evolutivo não compensassem as destrui- dão e sexo. Num plano mais alto, estas qualidades tornam-se,
ções embaixo nível – ou seja, se apenas se matasse o involuído, do lado do homem, inteligência e ação, enquanto, do lado da
sem fazer renascer no seu lugar o evoluído – então negaríamos mulher, transformam-se em intuição e bondade. É somente nes-
a evolução e iríamos contra a vida. Se não se faz da morte um te nível que pode ter lugar a absorção das qualidades opostas,
meio de renovação e superação, ela se torna o fim de tudo. A através da qual o homem pode sensibilizar-se e adquirir da mu-
salvação está apenas na evolução, ou seja, na capacidade de nos lher as qualidades do coração, e a mulher pode fortificar-se e
reconstruirmos mais no alto. adquirir do homem as qualidades racionais da mente, bem co-
A salvação é o problema fundamental, e agora vemos co- mo a sua energia e potência realizadora.
mo ela representa o termo conclusivo de uma concatenação de O fato de tal processo de unificação se realizar mais facil-
elementos. A salvação para a humanidade consiste em civili- mente num nível evolutivo superior também faz parte do plano
zar-se. Mas as civilizações, chegando ao seu apogeu, corrom- geral da evolução. Sabemos, com efeito, que o separatismo é
pem-se, feminizando-se, e, assim, decaem. Isto tem aconteci- tanto maior quanto mais baixo evolutivamente se encontra o
do porque esta feminização, ao invés de constituir um acrés- ser, ou seja, mais próximo do ponto máximo de revolta e cisão,
cimo de novas qualidades às da masculinidade, constituem que é o Anti-Sistema, e é tanto menor quanto mais alto evoluti-
uma substituição delas, tornando-se assim uma parada no ca- vamente o ser estiver, ou seja, mais próximo ao ponto máximo
minho da evolução, e não uma conquista para avançar. Em de obediência e unificação, que é o Sistema. Portanto, quanto
outros termos, para ser vital, a civilização deve ser alcançada mais se é evoluído, tanto mais fácil é unificar-se, uma vez que o
por um acréscimo, e não por uma substituição, ou seja, ela caminho da evolução vai do Anti-Sistema ao Sistema, levando
deve ser constituída de uma feminilidade que, ao invés de do estado de separação ao estado de unidade.
substituir – como sucede no declínio das civilizações – some- Este fenômeno se verifica também no plano das civiliza-
se à masculinidade. Já fizemos notar este perigo também no ções. No desenvolvimento do seu ciclo, parte em ascese e parte
momento histórico atual, no qual o tecnicismo nos prepara o em descida, vemos que, num primeiro tempo, o elemento mas-
luxo de muito tempo livre, que pode se transformar no ócio. culino começa e lança o movimento. Depois que este chegou ao
As civilizações decaem porque representam uma feminiza- seu ápice, a ação do elemento positivo cessa e a dianteira é to-
ção que, ao invés de se acrescentar à masculinidade, substituiu- mada pelo elemento negativo, no qual tudo termina por afogar-
se a ela, corrompendo-a. Ora, a civilização deve representar se. Isto acontece porque cada elemento é apenas “metade”, mas
uma evolução, um requinte e um aperfeiçoamento, constituindo não aconteceria se cada um contivesse também as qualidades
uma continuação no sentido ascensional da masculinidade, e do termo oposto. É assim que as civilizações vão-se tornando
não uma degeneração na inércia e na debilidade. Engordar com cada vez mais estáveis, pois o elemento negativo vai continua-
o sacrifício dos próprios ossos, em detrimento da sólida estrutu- mente se enriquecendo com as qualidades positivas necessárias
ra orgânica de base – mesmo que isto signifique enriquecer em para substituir, no período de cansaço e decadência do outro
reservas alimentícias – não é saúde, mas sim doença, e pode termo, aprendendo a reger-se por si só com funções positivas.
conduzir à morte. A civilização deve ser constituída pelo aper- Eis que, no futuro, a unificação entre as duas metades torna-
feiçoamento das qualidades fundamentais da força, sobre as rá as civilizações cada vez mais resistentes à decadência. Para-
quais se baseia a vida, e não por uma supressão delas a favor lelamente, poderão surgir outras mais avançadas ainda, porque
das qualidades opostas. A civilização deve ser um enriqueci- o princípio masculino pode iniciar cada novo ciclo de civiliza-
82 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
ção de um ponto de partida situado num nível mais alto do que ensível a todos e, com o exemplo, sugestiona e arrasta. A ver-
aquele em que foi iniciada a civilização anterior. Este nível é dade disto é comprovada pelo fato de que um partido, quando
dado pelo caminho ascensional percorrido por ela e representa quer fazer-se forte, atraindo seguidores, apressa-se em fabricar
o fruto do seu trabalho, fruto que a nova civilização pode co- os seus próprios mártires. Usa-se semelhante indústria também
lher, porque o encontra pronto como resultado do ciclo percor- em política. Eis que a inocência da vítima pode conquistar mais
rido pela antiga. Partindo deste ponto mais avançado, o princí- do que a espada do guerreiro. As perseguições difundem e fa-
pio masculino pode ascender mais do que da vez anterior e pro- zem triunfar a ideia dos perseguidos. A força moral vence mais
porcionalmente, na fase de descida da civilização, decair me- do que a material. O princípio feminino do sacrifício supera em
nos. Isto significa cada vez mais aproximar-se do Sistema e potência o princípio masculino do domínio.
afastar-se do Anti-Sistema. Como já dissemos anteriormente, a Aquele princípio feminino pode ter assim uma importantís-
onda da civilização se desenvolve por progressivas oscilações, sima função, que é educar o homem. A tarefa do cristianismo é
deslocando o seu vértice cada vez mais em direção ao alto. inculcar-lhe as qualidades superiores do princípio oposto. Eis a
Assim as civilizações tornam-se cada vez menos unilate- obra civilizadora do cristianismo, dirigida a domesticar no mun-
rais. Quanto mais alto está o seu nível evolutivo, tanto mais do o desencadeamento da prepotência do homem, ensinando-lhe
fácil é a complementação recíproca entre os dois termos, mas- a virtude de saber trabalhar em colaboração, num regime de paz,
culino e feminino, significando isto que o positivo se suaviza onde tem valor o desinteresse, a retidão, o espírito fraterno, a
cada vez mais com as qualidades do negativo, e o negativo se não-resistência. A tendência da religião é domesticar o homem
reforça cada vez mais com as qualidades do positivo. Este forte, enquadrando-o numa disciplina, e defender a mulher débil.
processo sucede em um nível evolutivo cada mais alto, em Os três votos franciscanos: pobreza, castidade e obediência, ar-
forma de enriquecimento recíproco, ao invés de corrupção e rancam a prepotência pela raiz. Os primeiros a aceitar Cristo fo-
decadência nas qualidades de baixo nível do termo oposto. ram os humildes, pertencentes às classes mais pobres, porque
Foi neste alto nível que o Cristo-amor completou o Moisés- Nele encontravam defesa contra os prepotentes. Perante o co-
força. Assim o Novo Testamento não destruiu, mas sim de- mando, a mulher obedece e o homem se rebela. Perante Deus, a
senvolveu o Velho. Cristo pôde construir mais no alto, por- mulher reza e o homem blasfema. A mulher adere naturalmente
que, devido ao esforço realizado pelo hebraísmo, o ponto de à religião, porque esta, representando o princípio que pretende
partida do cristianismo era mais avançado. domesticar o homem, oferece-lhe defesa. Vemos isto no institu-
Assim nasceu a Igreja. O seu sinal é a cruz; a sua força é o to do matrimônio. A mulher não tem necessidade de ser forçada
martírio. Ela foi de fato fundada por Cristo, primeiro mártir, e a esses três votos, porque frequentemente já se encontra na de-
pelos mártires dos primeiros séculos. O sinal masculino é a es- pendência econômica do homem, estando obrigada ao dever de
pada. Na passagem de um termo ao outro, constatamos um em- castidade fora do matrimônio (adultério condenado somente pa-
borcamento de valores. Poderia chamar-se também de sadismo ra a mulher) e ligada ao marido em posição de obediência.
e masoquismo. O valor da mulher está em saber sofrer; o do O cristianismo se enxerta plenamente no processo evoluti-
homem, em saber fazer sofrer. A primeira está feita para supor- vo, na medida em que ele trabalha pela superação da lei bio-
tar a dor; o segundo, para infligi-la. A estratégia da mulher é a lógica da luta pela seleção a favor do mais forte, imperante
fuga; a do homem, perseguir e matar. Cristo não é guerreiro, nos planos mais baixos, para levar à pratica, pelo contrário, do
pelo contrário, escolhe a posição de vítima. É o cordeiro ino- tipo de vida social orgânico, próprio do homem civilizado, no
cente que se sacrifica. O homem, pelo contrário, é lobo à procu- qual ao estado de luta do separatismo individualista se substi-
ra de cordeiros, para devorar como vítimas. tui um estado de paz na ordem coletiva. Para alcançar esta
Mas nem por isto faltam ao princípio feminino meios de unificação, é necessário colocar em evidência as virtudes fe-
defesa que lhe garantam a sobrevivência. No plano animal, mininas de compreensão e coesão, as mais adequadas para
tem o poder da fascinação do sexo, com o qual subjuga o ho- aproximar e coordenar em cooperação os ferozes egocentris-
mem. No plano espiritual, tem o poder do ideal desarmado, mos masculinos, que tratam de se destruir reciprocamente. A
que aparece também na Terra, proveniente do mistério do função da mulher é tratar de apaziguar os homens, para que
além, aonde também terá de chegar por fim o homem. Este, eles, em vez de se matarem, trabalhem para produzir, a fim de
então, não sabe se a espada ainda lhe servirá ou se, pelo con- que alimentem a vida, ao invés de destruí-la.
trário, a vida, que é a sua maior preocupação, irá defender-se Podemos compreender agora o significado do cristianismo
com a retidão e a inocência desarmada, em vez de fazê-lo por perante as formas de atividade dos dois termos biológicos fun-
meio de armas. Surge assim a dúvida de saber se a outra vida é damentais, em relação ao desenvolvimento do ciclo de uma ci-
ou não regida por outros princípios, pelos quais a vítima ino- vilização e ao processo evolutivo. Explica-se assim também o
cente, num regime de justiça onde se tem de prestar contas, se- tipo de paixão escolhida por Cristo e a forma pacífica de holo-
ja, pelo contrário, o mais forte. Vacila então a fé do homem na causto escolhida pelos seus seguidores nos primeiros séculos de
força, que torna tudo lícito na Terra. O cristianismo é debilida- fundação do cristianismo. Perante as leis da vida, como se justi-
de, renúncia e pranto frente à força e vitalidade eufórica do fica este fato? Teria Cristo, então, estabelecido que sua ação se-
mundo. Mas eis que Cristo, a vítima vilipendiada na Terra, ria de tipo feminino? Na realidade, a sua bondade tinha se re-
ressurge fulgurante de poder para julgar. Invertem-se assim os solvido num convite ao uso da maldade por parte dos outros.
papéis. O mais desprezado dos vencidos torna-se o senhor su- As culpas de Judas, de Pilatos, do Sinédrio e dos hebreus foram
premo. Então o triunfo da espada é efêmero. E, depois, que su- provocadas pela atitude de vítima, desejada por Cristo. Poder-
cede na eternidade? Também na Terra, nas curvas da história, se-ia dizer que Ele quis assim. A não-resistência atrai o agres-
está escondido o imponderável, pronto a castigar inclusive os sor. A ingenuidade atrai o engano, porque a impunidade é o
mais fortes, em nome de um princípio que não é a força. grande sonho de quem faz o mal. Na Terra, é necessário impor-
Muitos são os recursos do princípio feminino, que transfor- se o bem com a disciplina e protegê-lo pela força. Em seme-
mam em poder a sua debilidade. Será o martírio, mesmo na lhante ambiente, a bondade torna-se culpa, porque, deixando o
Terra, verdadeiramente uma derrota? O sangue dos mártires fe- mal impune, termina-se por encorajá-lo. Cristo, primeiramente,
cunda a terra onde cai, e a ideia pela qual eles morreram germi- declarou guerra ao mundo, desafiando seus inimigos, para de-
na gigantescamente. O martírio cria seguidores, porque é prova pois se oferecer a eles, desarmado. Que tática é esta? É evidente
da verdade daquilo pelo que se dá a vida. Então o ideal se torna que não lhe restava senão o martírio. Segundo as leis do mun-
epidêmico. Levado ao plano da dor e do sangue, ele é compre- do, isto é perfeitamente lógico. Mas será possível que Cristo
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 83
não as conhecesse? Segundo a lógica terrena da força, Ele era remediada, este é o atual estado do cristianismo. Assim ele,
uma vítima, um vencido, um falido. O mais forte tinha o direito ainda que seja vitorioso como organização terrena, está em po-
de eliminá-lo, ato com o qual a luta se encerrava. sição inferior como função espiritual. A febre de ascese em di-
Uma vez que Cristo conhecia tudo muito bem, não teria si- reção ao alto, chamada religião, não só se apaga no conservado-
do a sua intenção, ao contrário, vencer, manifestando-se como rismo, agarrada à evolução para detê-la, mas também se torna
princípio feminino de civilização, para dar ao mundo um im- paixão masculina, atraída pelo domínio econômico ou político,
pulso neste sentido, como depois de fato sucedeu? Não se pode ainda que formalmente velada de amor cristão. Assim a religião
dizer que Cristo fosse um vencido, pois Ele soube vencer, em- se transforma num aproveitamento utilitário em favor de ele-
bora numa forma muito estranha para o mundo, fora do seu ter- mentos socialmente improdutivos, uma escola de preguiçosos e
reno e manifestada depois da morte, intento mais difícil de se comodistas, ou então, caso prevaleça pelo contrário a atitude
alcançar do que durante a vida. Ele venceu, então, mas não fi- masculina de luta, tudo se falsifica e não pode dar por fruto se-
cando no âmbito das leis da Terra, e sim as superando; não uti- não a mentira. Agora que compreendemos qual deveria ser a
lizando-se do princípio masculino, mas sim vencendo-o por ou- verdadeira função civilizadora do cristianismo, perguntamo-nos
tras vias. Venceu em altíssimo nível, no plano do ideal. Mas de se ele até hoje a cumpriu? Se ele ainda não a cumpre, as conse-
tudo isto o elemento humano viu e compreendeu muito pouco, quências podem ser graves, porque sabemos que tudo aquilo
interessando-se, no seu baixo nível, somente em vencer aquilo que não realiza a função a si confiada é liquidado pela vida,
que aos seus olhos apareceu apenas como uma expressão do pois não serve aos seus fins.
princípio feminino e que, como tal, existia para ser naturalmen- Quem acaba atraiçoado neste caso é a vida, sendo impos-
te dominado pelo masculino. Representantes disto não faltam sível que ela não reaja. É seu objetivo fundamental que está
na vida, aparecendo imediatamente para se aproveitar de quem comprometido neste caso, ou seja, a evolução, porque, em
se apresenta desarmado. Do ideal de Cristo eles viram sobretu- vez de à besta substituir-se o anjo, é a baixa animalidade hu-
do o que lhes poderia servir na Terra. Transformando-o, assim, mana que, envernizando-se, pretende parecer anjo. Então tu-
em interesse humano, puseram-no a serviço do mundo, fazendo do se reduz a uma mudança de estilo no antigo método de lu-
do poder espiritual um poder temporal. Agora nos pergunta- ta, pelo qual a arma da astúcia substitui a da força. É verdade
mos: isto foi traição ou complementação? que, na economia da vida, até isto serve, porque em vez dos
Tratemos de compreender a lógica pela qual se desenvolveu músculos tende a desenvolver a mente, que já é coisa mais
o fenômeno. Já nos fizemos esta pergunta em outro lugar, mas a evoluída. Mas é desenvolvimento na forma oblíqua de enga-
consideramos sob outros pontos de vista. O emborcamento teve no, e a isto fica reduzida a ação evolutiva da religião. Então
lugar com a doação de Constantino. Naquele momento, ao esta ação não consiste em eliminar a luta entre egoísmos, mas
princípio feminino, que ensina o Evangelho, substituiu-se o em continuá-la sob outra forma, enganando-se reciprocamen-
princípio masculino de domínio, realizado por uma casta ecle- te, em vez de se matarem. Com semelhante mudança não se
siástica, com base na própria autoridade. A religião então, pas- moraliza a vida, mas sim se desmoraliza.
sada para as mãos de homens que atuavam com psicologia O conteúdo da religião não é então a luta pela superação
masculina, assumiu outro tipo de trabalho. Mudou de sinal, de evolutiva, mas um enquadramento terreno para radicar-se no
modo que, em vez de cruz, tornou-se espada; em vez do amor, mundo, como um organismo burocrático composto de cargos,
praticou a luta pelo poder temporal; em vez do céu, apontou na posições sociais e carreiras sobre bases econômicas. O meio
direção e tornou-se instrumento de domínio do terreno. acaba se tornando o fim. Então, ainda que seja talvez mais por
Não discutimos aqui se isto foi mal, culpa ou necessidade. inconsciência, e nesse caso sinceramente, as vocações surgem
O nosso objetivo é compreender, e não criticar. Se a vida per- em função dessas vantagens positivas. Para uma mente positi-
mitiu isto, ela deve ter tido as suas razões para fazê-lo. O fato va, que não sabe entender para além do ofício, isto pode ser to-
do emborcamento permanece. Se ele se verificou e ainda conti- talmente moral. Na sua simplicidade, um involuído, mesmo que
nua assim, isto significa que tinha uma função a cumprir. O que seja ministro de Deus, pode crer em plena consciência ser cris-
significa tudo isto então? Salta-nos primeiramente à vista que tão, apenas porque cumpre os atos de uma disciplina exterior,
nos encontramos perante um cristianismo cuja posição foi in- inerente ao seu ministério, recebendo honestamente, como
vertida em relação ao seu fundador, mediante uma religião que compensação deste seu trabalho, os meios para viver. Para
se tornou mundo e, com isto, passou para o lado do inimigo, quem não vê mais além do justo intercâmbio, isto também cor-
mudando de sinal e assumindo o princípio masculino. Esta é a responde à retidão. Mas o cristianismo é outra coisa, estando si-
vitória não de Cristo, mas sim do mundo sobre Cristo. Disto re- tuado em outro nível de evolução. Ele não é somente um servi-
sultou uma religião que, em vez de assumir a tarefa de superar ço, como pode parecer às pequenas almas. Ele é uma paixão de
o separatismo egocêntrico – pelo qual se é levado à luta – e le- espírito com funções criadoras, para transportar a vida a planos
var a um estado orgânico de ordem coletiva, deu continuidade a mais altos, revelados pelo ideal, mesmo sendo entendido de ou-
esse separatismo e estado de luta, limitando-se, em substância, tro modo por quem, ainda não estando biologicamente maduro,
somente a disfarçá-lo sob a aparência de amor cristão, trans- procure baixá-lo ao seu nível como um ofício, crendo em boa fé
formando-se assim numa forma de hipocrisia. ser um cristão chamado por Deus.
Teria sido assim por necessidade? Se é verdade que isto, pe- A lógica humana se explica em função do nível evolutivo,
la imaturidade dos tempos, é tudo o que se podia exigir num do qual é produto. Deixemos, porém, de raciocinar com os ho-
primeiro momento, podendo-se assim justificar o que sucedeu, mens, para raciocinarmos com Cristo e com a lógica da vida.
não se altera contudo o fato positivo da existência de tal embor- Então nos perguntamos: terá Cristo feito um trabalho inútil?
camento. Pode ser que esta hipocrisia constitua somente um Por que razão Ele sofreu a sua paixão, se estes são os resulta-
primeiro passo no esforço de domesticar o homem, ação que se dos? Pode-se admitir que o homem se engane, mas não Cristo!
realiza do exterior em direção ao interior e que se conforma ao Será que Ele desconhecia o biótipo ao qual se dirigia? Não sa-
princípio apenas exteriormente, mas que permanece mentira pe- bia Ele que na Terra a vida obedece a outras leis e que, portan-
rante os impulsos íntimos, os quais ficam intactos, sem serem to, da sua doutrina se faria um uso emborcado? Então também a
atingidos pela religião. Todavia permanece o fato da contradi- vida errou, porque deixou a evolução ser detida, permitindo a
ção e do contraste entre as palavras e os fatos, entre o que se falência do ideal e, assim, desperdiçando os seus melhores va-
professa e o que se faz. Mesmo que se trate apenas de uma fase lores, bem como os esforços que custa produzi-los. Mas se tal
necessária de transição, justificável porque no futuro deverá ser hipótese não é admissível, então qual o significado disso tudo,
84 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
que parece um erro? E, se de fato o é, como é possível salvar e gir na luta uma atividade cerebral, como é o uso da astúcia.
utilizar isto para o bem, que é o maior fim da vida? Mas sucede que, ao mesmo tempo, isto obriga o indivíduo a
Como sempre, quando nos parece que ela se engana, isto viver em contato com os superiores princípios do ideal, que o
acontece somente em razão da nossa perspectiva distorcida do fazem transformar a astúcia em retidão, levando as qualidades
problema. Observando bem, veremos que cada coisa está no mentais ao nível daquelas morais e espirituais. Eis que o traba-
seu justo lugar e cumpre logicamente a sua função. Não será lho se realiza plenamente em sentido evolutivo, de modo que,
talvez a finalidade das religiões espiritualizar sobretudo o indi- assim, a vida não se engana de maneira alguma, porque alcan-
víduo que, por ser imaturo, é mais necessitado? E de fato, nas ça o seu fim, que é evoluir.
religiões, está envolvido principalmente o ser imaturo, que, por O jogo da vida se desenvolve logicamente, seguindo suas
isso, acredita ser mais proveitoso o método de utilizar o ideal leis e objetivos. Homem e mulher funcionam como os dois po-
para desfrutá-lo com fins terrenos. Este é precisamente o tipo los do mesmo circuito. O positivo é feito para se enxertar no
que mais necessita ser submetido a um estreito contato com as negativo, e o negativo, para se ligar ao positivo. Então que ou-
zonas do ideal, a fim de assimilá-lo. Justamente por este motivo tra alternativa restaria ao princípio feminino, a não ser cair em
ele é submetido à dura disciplina religiosa e, com isso, recebe a poder do princípio masculino? É natural, portanto, que o ele-
lição mais enérgica, aquela que mais dói a tal tipo e que, por- mento masculino, tão logo encontre o elemento feminino, tome
tanto, será mais bem sentida. De fato, ela lhe é imposta na for- posse dele e utilize suas qualidades de bondade e sacrifício em
ma mais adequada, seja por coação, de modo tanto mais força- proveito do próprio egoísmo. Este princípio funcionou também
do quanto mais imaturo for indivíduo, seja por aceitação, de para o cristianismo, que foi heroísmo e martírio até à doação de
modo tanto mais fácil e espontânea quanto mais maduro for o Constantino. O princípio feminino triunfava, enquanto o mas-
indivíduo. Já explicamos que o meio mais adequado para do- culino estava à espera. E foi para o terreno deste que aquela do-
mar o involuído é a coação. Assim, proporcionando os meios à ação levou o fenômeno. Nesse momento, o princípio masculino
realidade e ao objetivo, o bem é alcançado na forma devida. despertou e iniciou, dentro do cristianismo, o seu oposto tipo de
Se alguém não é educador, mas quer fazer-se como tal ape- atividade, tomando posse do feminino, que ele amou a seu mo-
nas para usufruir as vantagens do mestre, é um bem para ele, do, adorou e levou consigo, para torná-lo grande no seu mundo.
pois lhe permite progredir, que fique preso, como numa armadi- Fez-lhe uma casa, milhões de casas, belíssimas catedrais. Ves-
lha, na disciplina de educar. Eis então que a religião se torna tiu-o de imagens, de arte e de rito. Cobriu-o de riquezas e o dei-
uma prisão na qual, automaticamente, são confinados aqueles ficou, mas, pelo fato de ser homem egoísta e senhor, fez tudo
que mais têm necessidade de injeções de ideal para amadurecer isso naturalmente a seu serviço, tomando posse dele, tal como
num tipo de vida superior. Cumpre-se assim a função civiliza- faz o homem com a esposa. Mas será que o atraiçoou com isto?
dora da religião, começando por obrigar os aspirantes a educa- Sente-se a esposa atraiçoada, se o homem a domina para subor-
dores a se educarem a si mesmos. diná-la a si? Não, porque isto corresponde à sua natureza e fun-
É inegável que, na organização religiosa, as posições materi- ção, que é estar nesta posição – junto ao homem dominador, a
ais se baseiam sobre princípios espirituais. Come-se e vive-se única possível para ela – e assim induzi-lo a evoluir.
em função destes valores, o que torna obrigatório defendê-los, Foi o que sucedeu com a Igreja. Assim, com este matrimô-
porque são um meio para sobreviver. Estes são, portanto, trans- nio, o princípio masculino do mundo tomou posse do princípio
portados ao terreno real da luta pela vida, pois fica-se obrigado a feminino de Cristo, a fim de utilizá-lo para si, e o princípio de
tê-los em conta, para salvar as posições materiais, que se basei- Cristo ligou-se ao do mundo, para fazê-lo evoluir. Entendido as-
am sobre eles, mesmo quando tais valores, em si mesmos como sim, o que pode parecer um composto híbrido e uma contradi-
amor ao ideal, não interessem. É assim que os princípios espiri- ção, é pelo contrário uma colaboração de opostos. No final, o
tuais se tornam sagrados, preciosos, intangíveis. É assim que se homem dominador fica dominado pelo seu termo complementar
forma a mistura entre mundo e ideal. É assim que surge a neces- e, assim, desenvolve-se no terreno oposto, adquirindo as quali-
sidade de conhecer a espiritualidade e de tê-la presente, de sentir dades que mais lhe faltam para ser completo. Por outro lado, o
o seu peso e de fazê-lo ser sentido. De outra maneira, a espiri- elemento feminino recebe em compensação a vantagem de po-
tualidade passaria despercebida. Este é o processo pelo qual, der penetrar no mundo, tendo assim a sua função educadora va-
misturando-se com a Terra, o ideal consegue valorizar-se na lorizada, e o espírito pode enxertar-se na realidade de nossa vi-
Terra. Então a vida não errou, pois encontrou a forma que, em da, trabalhando para civilizar o homem. Sem esta servidão ao
nosso mundo, torna possível Cristo ser tomado em consideração. homem – que, mesmo utilizando-a para si, dá a ela eficiência – a
E Cristo também não errou, porque a religião cumpre a sua mulher ficaria estéril, sua presença seria inútil e sua existência
função civilizadora, ainda que em posição emborcada de hipo- estaria falida. Todos vivemos em função de uma obra a realizar,
crisia. Assim os mais astutos, que fazem a melhor carreira e de um fim a atingir. Se abdicamos disto, a vida é inútil.
mais sobem nos cargos, são aqueles que se encontram mais li- A Igreja, ao se tornar poder terreno como organização hu-
gados à figura de Cristo, mais colocados em evidência, mais mana, transformou o ideal de Cristo em mundo e, biologicamen-
obrigados ao exemplo, mais coagidos a imitar o Mestre, o que te, não traiu sua função, mas sim a cumpriu. Dado o grau de
significa, no fim, alcançar um bem. Efetivamente, quanto mais evolução humana, era um mal inevitável, no entanto justificado
o indivíduo trata de enganar, vestindo-se de hipocrisia, tanto como fase transitória do seu ciclo evolutivo. Tudo está feito para
mais, em tais posições, é constrangido pelo ideal, recebendo de- ascender. No final do ciclo, a missão dos dois esposos terminou.
le as saudáveis lições. A massa popular, mais simples e irres- A mulher, carregada de anos e joias, está velha. O homem tor-
ponsável, está menos comprometida com o ideal e pode permi- nou-se um repetidor cansado de antigas fórmulas e não sabe vi-
tir-se mais evasões. Os mais aperfeiçoados na arte sutil de en- ver senão de recordações. A vida os superou. O espírito deve re-
ganar o ideal, são aqueles que mais ficam atados a ele por toda nascer mais evoluído, enriquecido com as experiências anterio-
a vida. Esta, assim, não se engana quando faz ministros de res, a fim de iniciar um novo trecho do caminho, partindo de um
Deus aqueles que mais necessitam Dele. ponto mais avançado, feito mais de espírito e menos de mundo,
Deste modo se realiza o jogo da vida, que sabe aquilo que para tornar-se ainda mais espírito e menos mundo. Um pouco
faz. Apesar de tudo, o cristianismo cumpre a sua função civili- mais adiante, o mesmo jogo continua. O que fica é a evolução,
zadora. De fato, quando ele é usado como hipocrisia, serve pa- caminhando cada vez mais para o alto, em direção a Deus.
ra transformar, como já indicamos, a brutalidade animal e a Tudo se explica e se encontra no seu devido lugar. Sem
força física em trabalho e qualidades mentais, passando a exi- aquilo que parece traição ao ideal, este ficaria incorrompido nos
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 85
céus e o mundo permaneceria estacionário no seu estado invo- no fato de permitir este progresso que reside a utilidade deste
luído na Terra. Se, para o progresso, é necessário tal descida, mal. É assim que tudo está no lugar que lhe corresponde e se
esta só pode realizar-se sob a forma de conspurcação do ideal e move em direção à sua finalidade. A descida dos ideais, apesar
traição por parte do mundo. A mentira é devido à necessidade de tudo, funciona para a salvação do mundo.
de se emborcar o ideal, a fim de introduzi-lo no mundo, seu Procuremos agora enfocar o problema do cristianismo, ob-
oposto, que não pode mudar de um momento para o outro. E é servando-o particularmente sob vários de seus aspectos, tanto
precisamente para mudá-lo que o ideal deve descer a Terra. positivos como negativos, numa espécie de psicanálise. Isto
Este é o caminho pelo qual se chega à construção do ho- nos permitirá compreender como surgiram e funcionam suas
mem espiritual, que aprendeu a não abusar mais da sua força, várias formas, bem como em relação a que finalidades biológi-
usando-a em forma de bondade para benefício do próximo – li- cas elas existem, sejam como produto consciente ou subcons-
ção aprendida com o princípio feminino – ao invés de usá-la ciente da necessidade de alcançar o objetivo mais urgente, que
sob a forma de egoísmo para prejuízo alheio, de acordo com o é a conservação do grupo. Veremos que, se elas, perante a ló-
princípio masculino. Paralelamente, a potência do princípio gica do ideal pregado oficialmente, são contradição absurda,
masculino conduz à construção da mulher forte no plano da in- não o são, contudo, perante a lógica das leis da vida, que im-
teligência e do trabalho, não mais escrava, e sim aliada do ho- põem a luta pela sobrevivência a qualquer custo. Veremos as-
mem, para colaborar com ele na obra da construção da civiliza- sim, melhor ainda, como a sua simbiose com o mundo macu-
ção. Este ponto final é dado pela conjunção do que há de me- lou o ideal, submetendo-o às suas exigências materiais. Vere-
lhor nos dois opostos, resultando no super-homem enriquecido mos como funcionam as leis da vida e da descida dos ideais no
pelas qualidades da supermulher e ao contrário. Assim a evolu- caso do cristianismo. Nosso procedimento permanece sempre
ção cura a cisão, levando cada vez mais o ser em direção ao orientado por um sistema científico-filosófico completo, que
máximo termo unitário e centro da unificação: Deus. nos dá a razão de tantos fenômenos biológicos e psicológicos
◘◘◘ inerentes ao funcionamento da vida.
Neste e nos precedentes capítulos sobre o cristianismo, dis- Dissemos que a função das religiões é fazer descer os ideais
semos que ele, além de representar a realização da ideia de Cris- à Terra, introduzindo e antecipando assim, num plano evolutivo
to na Terra, é também uma adaptação que o mundo, inimigo De- inferior, as leis de um nível superior, para fazer a humanidade
le, fez para si de Cristo. Para compreender bem, observamos o ascender até ele. Daí deriva a importância biológica das religi-
caso sob vários aspectos, mudando os pontos de vista e de refe- ões, dada por esta sua fundamental função evolutiva. Então o
rência. Como sucede nas administrações deste mundo, os minis- trabalho que as espera não é somente elevar a animalidade hu-
tros tomam posse da propriedade alheia e, como se ela lhes per- mana ao nível do ideal, mas também adaptar o ideal à animali-
tencesse, utilizam-na para os seus próprios fins. Não seria possí- dade humana. Estas adaptações são o preço a ser pago pelo Sis-
vel que o homem neste caso, como ministro de Deus, mudasse tema ao Anti-Sistema, para que este lhe permita entrar e perma-
inopinadamente de natureza e atuasse de forma diferente. Con- necer no seu terreno: o mundo. Isto pode representar, em relação
cluímos, por fim, que nem por isto o cristianismo faliu, pois, ao plano superior, um processo de degradação por retrocesso in-
apesar de tudo, ele cumpre a sua função. As conclusões são, por- volutivo, mas, em relação ao plano inferior, significa um avan-
tanto, otimistas e justificadas pelas seguintes razões: ço. Assim a superação da animalidade não se pode obter senão
1) O cristianismo é um fenômeno em evolução, portanto o por meio deste contato entre os dois termos. Mas eles são anta-
concebemos como um ideal de realização progressiva. Isto gônicos e, portanto, lutam entre si, cada um procurando destruir
significa que ele poderá fazer amanhã o que não fez até hoje, e eliminar o outro. É assim que o primeiro ato do Anti-Sistema,
superando o atual estado de hipocrisia e tornando-se verdadei- quando entra em contato com o Sistema, é tratar de emborcá-lo,
ramente cristão. Não se trata, portanto, de falência, como pode para submetê-lo aos seus fins terrenos. O ideal desce do Siste-
fazer pensar o passado, mas sim de uma futura realização da ma, para levantar em direção a ele o Anti-Sistema, e este res-
ideia de Cristo. ponde, tratando de rebaixar o Sistema ao seu nível.
2) A função do comunismo é levar o cristianismo de volta à Assim nós explicamos o comportamento das religiões. Cris-
sua verdadeira posição, estabelecida por Cristo, fazendo-o reto- to não aceitou adaptações, recusando-se a pactuar com o mun-
mar o signo da cruz, que foi no passado substituído pela espada do. Então este matou e expulsou Cristo, que foi viver em outro
e é hoje substituído pela luta política e pelo poder econômico. lugar. Mas os seus ministros e seguidores, uma vez que deviam
Com isso, poderá surgir uma diferente organização eclesiástica continuar a viver na Terra, desceram para pactuar com o Anti-
para o lugar da atual, ou então ocorrer uma substituição na atual, Sistema. Desde que o inimigo deixasse, de alguma forma, o
trazendo homens diferentes, que viverão o cristianismo como ideal sobreviver no mundo, eles se adaptariam a conviver com
Cristo o concebeu, e não como uma adaptação distorcida. ele, pagando, com estas adaptações, o direito de habitar em casa
3) Conforme sustentamos nas páginas precedentes, o cris- alheia. Assim o ideal, tratando de santificar o mundo, e o mun-
tianismo – enfocado por nós no catolicismo – cumpriu e cum- do, tratando de corromper o ideal, coabitam. A posição das re-
pre, apesar de tudo, a sua função civilizadora, pelo fato de ligiões perante as leis da vida terrena é, portanto, clara. Explica-
acabar obrigando os mais astutos, que gostariam de se apro- se assim o fenômeno do não cumprimento dos princípios de
veitar da ideia de Cristo, a ficarem ligados a ela, condição esta Cristo por parte dos seus representantes e seguidores.
que não pode deixar de educá-los à força, prendendo-os numa Nem mesmo o cristianismo podia colocar-se fora das leis
férrea disciplina moral. biológicas vigentes. Se os anjos querem viver no inferno, de-
Assim se cumprem as leis da vida, que querem a evolução. vem adaptar-se ao tipo de vida dos demônios. De outra manei-
Portanto a paixão de Cristo não foi inútil, e o fenômeno da des- ra, eles têm de ir embora. Eis o Evangelho reduzido a doses
cida dos ideais não deixa de se realizar. A falsificação alcança homeopáticas. O que, na vida, encontramos do princípio do
somente quem a pratica, e não quem obedece a vontade de desinteresse, da não resistência, do ama a teu próximo, etc.?
Deus, que impulsiona o progresso. Os erros humanos podem re- Eis um Evangelho diluído nos opostos métodos do mundo. Sob
tardar o caminho de quem os comete, mas não podem deter a aparências contrárias, domina o instinto gregário, o espírito de
marcha da evolução. Assim nem Cristo nem a vida se engana- grupo, a organização de interesses de casta. Esta é a realidade
ram. No fundo, a corrupção do ideal é um mal inevitável, uma subentendida que se presume e com a qual tacitamente se con-
vez que a sua descida ao nível humano é necessária, para tornar corda. Se surge quem quer atuar a sério, então tem lugar o
possível o progresso dos menos evoluídos, sendo precisamente choque, porque se expõe o mal-entendido, dado que os fatos
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não correspondem às teorias pregadas. Na realidade, o ideal de maioria, composta de imaturos, tudo se reduz a uma limitação,
Cristo está longínquo e a classe social que o representa consti- e não a uma criação e expansão. Assim, imposta à força por
tui, pelo contrário, um exército cuja luta se faz em primeiro lu- outras razões, a castidade, em vez de levar à sublimação, leva
gar pela própria sobrevivência. Estamos na Terra e, aqui, este é pelo contrário à hipocrisia ou, o que é pior ainda, às substitui-
o problema fundamental. ções e desvios patológicos. Tal virtude se baseia em necessi-
Se não quisermos nos perder no irreal, a posição na Terra dades práticas, e a ideia da catarse evolutiva, como fato excep-
não pode ser colocada diversamente. Somos constrangidos a cional, não basta para justificá-la.
isto pelas próprias leis da vida, que eliminam quem não as De tudo isto nasceu o espírito de sexofobia dominante do
obedece. Disto nasce uma série de consequências. Em primeiro catolicismo. Daí, compreende-se como, de um Evangelho nada
lugar vem a necessidade de possuir, ainda que o Evangelho sexófobo, insistiu-se tanto na castidade, enquanto passa-se indi-
proponha o contrário. Esta contradição poderia autorizar al- ferente por cima do assunto riqueza, para o qual o Evangelho
guém a criticar as religiões pelas ditas adaptações, utilizadas reserva as mais acerbas condenações. A razão disto reside no
por elas para não cumprirem o que pregam. Aqui fazemos tão- fato de que o verdadeiro objetivo, ocultado no fundo, é a con-
só e imparcialmente uma observação. Esta acusação valeria se servação do grupo, porquanto, para esta finalidade, a renúncia
fosse feita por amor à virtude por parte de quem a apresenta. ao sexo representa uma ajuda, enquanto a renúncia à posse é
Mas que valor pode ter ela, quando é feita por quem a prega e um obstáculo. É por isto que tanto se insistiu em fazer da casti-
dela se serve somente para apanhar em falta os outros, ainda dade uma virtude, apresentando-a como uma sublimação.
que seja com razão, voltando contra estes a pregação por eles Os dois impulsos, fome e sexo, são tão fundamentais, que
mesmos realizada? Serão estas acusações feitas com uma fina- deles derivaram dois biótipos, cada um especializado em uma
lidade positiva, ou têm como objetivo apenas demolir um ri- destas duas funções. O primeiro dos dois é produtor de bens e,
val? Eis que se recai no terreno da luta, e ninguém está isento. na luta pela sobrevivência, está encarregado de defender a vi-
Então o Evangelho é transformado por ambas as partes numa da. Por isso é egoísta, apegado à posse, interessado, calcula-
arma de destruição, a ser empregada no duelo, exigindo do ou- dor, mas é também trabalhador e criador, se bem que sobretu-
tro, em nome de princípios, aquilo que mais importa para am- do para si, com egoísmo e avareza. Adora o deus dinheiro,
bos, ou seja, uma renúncia que, empobrecendo o seu antago- mas, em compensação, é casto, porque é frio. Em se tratando
nista, elimine-o da vida. Então, se a acusação de mentira se ba- de sexo, é virtuoso e puro.
seia na mentira, que valor tem esta acusação? Isto pode nos O segundo tipo é consumidor de bens e, na luta pela sobre-
mostrar para que serve o ideal na Terra. vivência, está encarregado de continuar a vida. Por isso é altru-
Não nos iludamos. Mesmo para o triunfo de uma ideia na ísta, desprendido da posse, desinteressado, generoso, mas tam-
Terra, é necessário vencer no plano humano, porque, em nos- bém anda em busca do apoio material que o sustente, para que
so mundo, só o vencedor tem o direito de estabelecer a verda- ele possa cumprir o seu diferente trabalho. De fato, não sabe
de. O vencido é considerado culpável. Então o ideal deve produzir, mas sabe amar e proteger. No sexo, ele é um pecador,
submeter-se às leis da Terra. Depois da necessidade de possu- mas, em relação à riqueza, é desapegado e virtuoso.
ir, indispensável meio de domínio, há a necessidade de con- Temos assim uma divisão de trabalho, de aspectos e de juí-
servar esta posse. A eternidade dos princípios tende a se con- zos. No fundo, o primeiro é do tipo masculino, dominador, en-
cretizar numa eternidade de meios materiais, necessários para quanto o segundo é do tipo feminino, obediente. Ambos empe-
sustentá-los na Terra. Disto nasceu em várias religiões o insti- nhados, em duas formas diferentes, no mesmo trabalho da luta
tuto da castidade do clero. Tendo em vista tais fins positivos, pela sobrevivência. Vemos prevalecer o primeiro nos países
fez-se dele uma virtude. No entanto sua verdadeira função é frios, onde essa luta é mais dura. Assim, ao Norte da Europa, o
eliminar as consequências econômicas da procriação. Evita- cristianismo se tornou rígido protestantismo, que ao Evangelho
se, assim, a perda da posse para o grupo familiar em detrimen- preferiu a Bíblia, código de um povo guerreiro. O segundo tipo
to do grupo eclesiástico, eliminando a obrigação de se deixar prevalece nos países cálidos, onde aquela luta é menos dura.
herança para os familiares, herdeiros legais, mantendo o pa- Assim, nas zonas meridionais, o cristianismo transformou-se no
trimônio na coletividade religiosa. Sem filhos, tudo fica den- catolicismo, que, de caráter mais complacente, à Bíblia preferiu
tro da organização eclesiástica. Assim fecham-se as portas de o Evangelho, baseado no amor.
saída, enquanto ficam abertas as da entrada. Tudo isto constitui uma psicanálise das religiões, mostran-
Na Terra, os grupos de qualquer gênero são rivais e estão do-nos uma realidade diversa, escondida sob as aparências.
em posições de guerra. Daí a necessidade de viverem coesos Quem olha em profundidade não se deixa enganar pela vesti-
como soldados, sem ter entre os pés o travão de pesos mortos menta exterior. O que conta perante a vida é a realidade interi-
para arrastar, como são mulheres e filhos. Então o sexo torna-se or, aquilo que realmente se sente e se faz, aquilo em que de fato
pecado, porque tem como resultado a procriação de rivais pre- se crê, e não aquilo em que se diz crer. O mundo gosta de se
tendentes à posse. E isto principalmente no passado, quando, cobrir de ficções, no entanto elas nada mudam nem salvam.
sendo desconhecidos os métodos de controle da natalidade, não Somente se soubermos ver aquilo que se oculta por trás destas
havia outro meio senão a castidade para evitar a procriação. aparências, a verdadeira vida, poderemos compreender o que
Formou-se assim uma moral em função das leis da Terra, está sucedendo no mundo.
onde a posse representa a base da vida. No passado, a conquis- ◘◘◘
ta dos bens, mais do que com o trabalho, era feita com a vio- Um outro importante aspecto do cristianismo é representado
lência, cuja utilização era proibida aos eclesiásticos. Portanto, pelo fenômeno do materialismo religioso. Isto se deve ao fato
para lutar, não restava outro meio senão estas medidas. Por is- de que o homem, quanto mais primitivo é, tanto mais concebe
so, devido a razões econômicas na luta para a conservação do as coisas de modo materialista, em função do ambiente terres-
grupo, nasceu a exaltação da castidade. Esta é a razão pela tre, segundo o qual construiu a sua forma mental. Este modo
qual ela se tornou uma virtude, mesmo que biologicamente não tão comum de entender as coisas do espírito é devido ao grau
o seja. Poderia sê-lo, se tal renúncia fosse útil à vida, na medi- de involução em que se encontra a humanidade, situada mais do
da em que se realizasse em função de uma correspondente lado do AS do que do lado do S, condição na qual o primeiro
conquista espiritual. Na realidade, porém, não é comum acon- ainda prevalece sobre o segundo. Então o ideal, para poder
tecer que esta negação num nível baixo seja compensada por existir no mundo, é abaixado ao nível deste, sendo submetido a
uma afirmação em um nível mais alto. Sucede então que para a um retrocesso involutivo. Então a forma vence a substância, que
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 87
fica sufocada dentro dela. O homem, por comodidade, adapta rias à concentração do pensamento, para facilitar assim a sin-
tudo a si próprio, trazendo tudo ao seu nível. Por isso, na Terra, tonização espiritual.
encontramos os atributos do S torcidos na forma de AS, de mo- Interpretar este fato como uma transformação do pão e do
do que, nas religiões, ao invés da espiritualização da matéria, vinho em carne e sangue, pode gerar mal-entendidos. Dizemos
vemos um processo de materialização do espírito, ao invés de isto devido à forma mental materialista, que chegou a procurar
uma elevação do homem ao nível do ideal, vemos um rebaixa- em laboratório a prova desta transformação. Tratando-se de fe-
mento do ideal ao nível do homem. nômeno espiritual, tal intento foi um verdadeiro absurdo, en-
O cristianismo, também ele, seguiu em alguns casos esta contrando, portanto, um resultado negativo.
tendência bem humana, pela qual as coisas do espírito são con- É necessário, no entanto, reconhecer que a ideia tem de
cebidas em forma materialista. Foi assim que a vitória de Cristo servir à maioria, da qual não se pode exigir além de um certo
sobre a morte, com continuação da sua vida, foi entendida prin- limite. A espiritualização é progressiva, tal como a evolução,
cipalmente no plano físico, como ressurreição do corpo. Mas da qual ela faz parte. Se a religião quer cumprir a sua missão,
Cristo não era o corpo, e sim o espírito, que não estava morto e deve adaptar-se às necessidades da maioria. Ora, não se pode
que, tendo permanecido vivo, não tinha necessidade de ressus- negar que, para os milênios passados, algum progresso foi rea-
citar para continuar a viver. Como se vê, o problema da ressur- lizado. As relações entre homem e Deus eram antigamente
reição de Cristo foi apresentado em forma totalmente materia- concebidas apenas antropomorficamente, refletindo a relação
lista, identificando Cristo com o seu corpo, como se fosse ne- entre servo e amo, com o primeiro procurando conquistar favo-
cessária a sobrevivência deste para que ele pudesse ficar vivo, res do segundo através de ofertas e sacrifícios. No princípio,
quando na verdade a vida do espírito, na qual consiste verdadei- estas ofertas eram vítimas humanas, escolhidas provavelmente
ramente o ser, é independente da morte do corpo. Assim foi en- com a intenção de saciar a fome de um deus antropófago. De-
tendido o fenômeno da sobrevivência de Cristo, esquecendo-se pois sacrificaram-se animais, que eram consumidos pelos mi-
que o seu verdadeiro ser é espiritual, e não físico. nistros de Deus. Com o cristianismo, o sacrifício tornou-se
O que desejamos ressaltar aqui não é a negação da ressur- simbólico, sem derramamento de sangue, mas ainda ligado à
reição de Cristo, mas sim a afirmação de que não havia nenhu- matéria. Com a evolução, este processo de purificação conti-
ma necessidade da sua ressurreição corpórea para que Ele pu- nuará, espiritualizando-se ainda mais.
desse permanecer vivo, como era necessário para ser vitorioso. Mas eis que, por isso, o valor da eucaristia não cessa. Basta
Mas esta sobrevivência material era uma necessidade psicoló- mantê-la no seu terreno, que é espiritual, e não pretender fixá-la
gica na mente dos seus seguidores, para que eles pudessem ter a em formas materiais. Então a existência de uma vestimenta ex-
certeza, indispensável para eles, de que Cristo não estava mor- terior na dimensão espaço, perceptível aos sentidos como ins-
to, mas ainda permanecia vivo; de que Ele não tinha desapare- trumentos do espírito, continua sendo uma coisa necessária,
cido, mas estava presente para sustentá-los. Para quem vive no mas somente como meio para cumprir uma função espiritual.
espírito, esta ressurreição física passa para um segundo plano, Não estamos dizendo heresias. Nesta nossa época de atuali-
porque se refere a um acessório transitório da verdadeira perso- zação, já há teólogos admitindo que, quando se fala da misteri-
nalidade, que é eterna. Mas a lógica de uma mente materialista osa mudança do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo
é diferente. O homem quer primeiramente satisfazer as suas ne- durante a missa (“Mysterium Fidei”), a transformação essenci-
cessidades psicológicas. Nós mesmos não choramos um defun- al, mais do que na substância dos elementos, reside no signifi-
to como morto? Assim, para os discípulos, Cristo era, antes de cado. Então a função da hóstia não é tornar-se carne, mas sim
tudo, o homem que tinham visto morrer. Para que continuasse constituir um ponto de convergência psicológica, no qual o
vivo, era necessário, portanto, fazê-Lo ressuscitar como corpo. crente focaliza e concentra sua fé. E é imenso o poder criador
Os próprios hebreus, matando o Seu corpo, haviam desejado e da fé. A forma mental humana, instintivamente materialista,
acreditado poder assim matar Cristo, mas não fizeram outra tem necessidade destes apoios no sensível e concreto, e é isto
coisa senão libertá-Lo de uma pesadíssima vestidura. Porém, que lhe é concedido dessa maneira. Mas é necessário dar a eles
destruída Sua veste, a qual se acreditava ser o próprio Cristo, o seu verdadeiro valor, que é ser um meio para fins espirituais,
era necessário Ele ressuscitar vestido com ela, para que essa e não transformá-los naquilo que não são nem podem ser. Es-
gente pudesse acreditar que Ele estava vivo ainda e voltava para tamos no terreno somente espiritual, que é de substância men-
o Céu com o seu próprio corpo. tal. Neste plano existem as coisas em que cremos. É uma exis-
Com a mesma forma mental materialista foi concebida tam- tência feita de pensamento, que acaba depois por tornar-se ma-
bém a Eucaristia, interpretando-se em sentido concreto as pala- terial, porque a semente da realidade exterior está no interior.
vras de Cristo e, com isto, querendo dar-lhe um corpo, como se Nada disto exige qualquer deslocamento na forma exterior.
Ele, sem esta forma material, não pudesse existir entre nós. Eis Ela pode ficar tal como é, com o valor de forma, sem assumir
a matéria trazida de novo a primeiro plano. É evidente que exclusivamente o de substância. A função criadora do ato mate-
Cristo não necessita dela para estar presente entre nós. Quem rial da comunhão se baseia então, mais do que na transubstan-
tem necessidade dela é o homem, que não sabe conceber a exis- ciação, na formação interior da imagem de Cristo, que pode as-
tência sem uma forma material. Claro que toda forma mental sim, localizando-se na hóstia, tomar forma mental e chegar a
quer estar atendida nas suas exigências, no entanto correspon- existir no plano do espírito. Apoiando-se neste centro de focali-
deria bem mais à verdade libertar-se desta ideia materialista de zação psicológica, canaliza-se e, com a repetição, estabiliza-se
que, para Cristo poder estar presente, seja indispensável uma uma corrente de pensamento orientada em direção a Cristo, cu-
forma material; de que Ele possa estar presente somente na hós- ja figura, assim, é construída como uma realidade interior da
tia, sendo-lhe proibido estar fora dela. Com isto, não queremos alma do fiel. Tudo isto faz parte da técnica construtiva da per-
dizer que Ele não esteja na hóstia, porquanto isto é necessário sonalidade por meio da aquisição de novas qualidades, confor-
para satisfazer a necessidade da mente humana de localizar o me o método dos automatismos. Assim o fenômeno é visível
espírito, reduzindo-o na dimensão espaço. Dizemos, isto sim, em toda a sua estrutura e funcionamento, sendo possível desse
que o espírito está livre destas materializações e que Cristo está modo, de uma forma racional e aceitável para todos, observar-
também presente em qualquer lugar onde haja uma alma capaz se como ele alcança os seus fins.
de compreendê-Lo e amá-Lo. Deste modo, então, o fenômeno espiritual da união com
Cristo, tendo entendido tal necessidade psicológica do Cristo pode assumir o significado positivo da identificação com
homem, ofereceu pão e vinho como formas materiais necessá- um modelo de vida superior, fato que não tem mais o aspecto,
88 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
como pode ter para alguns, de fantasia e de místico, mas que soas e não há outro modo de se libertar delas, então, junto com
representa o fenômeno biológico da maturação evolutiva, de ca- elas, liquidam-se também essas pessoas. O que garante a conti-
ráter positivo, inegável pela ciência. Pode-se chegar assim, com nuação de uma posição é o cumprimento de uma função pela
esta técnica psicológica, a assumir formas de vida mais eleva- qual ela existe, e não a sua inamobilidade. A vida sabe varrer
das, fazendo delas um meio para realizar a evolução, anteci- bem tudo o que vai contra os seus fins. Isto sucedeu com a mo-
pando-a com a descida dos ideais. Trata-se então não só de uma narquia e a aristocracia, por meio da Revolução Francesa e de-
prática religiosa, mas também de um trabalho ascensional, que pois com a Russa, podendo suceder também com qualquer ins-
se cumpre apoiando-se numa posição biológica mais avançada, tituição que resista à vida, cuja inabalável vontade é avançar.
representada pelo modelo ideal. Trata-se de um problema que Dada a técnica da evolução, o grupo eclesiástico não pode
não somente diz respeito às religiões, mas também é fundamen- deixar de se encontrar suspenso entre o divino e o humano, es-
tal para o progresso da vida. Na sua vastidão, esta questão tando inserido dentro do dualismo ideal-mundo e envolvido na
exorbita os limites de uma regulamentação humana em função luta entre estes dois termos opostos, na qual deve empenhar-se
dos fins de uma determinada religião ou de uma certa casta para vencer e progredir. Para sobreviver na Terra, o grupo tem,
eclesiástica. Para as almas prontas, a imensidão de Cristo não no entanto, de defender a sua autoridade e posições terrenas,
resiste mais dentro do cerco das formas, então explode e as mesmo que, assim, contradiga e se oponha ao ideal. A luta do
transborda, rompendo os diques postos para as massas pela me- anjo é para transformar a besta em anjo. A luta da besta é para
cânica das religiões. Assim, por cima de todos os poderes hu- transformar o anjo em besta. A lei do amor deve conseguir im-
manos e das limitações estabelecidas pelos seus representantes, plantar-se no seio da lei do egoísmo, para ser praticada por
é o puro poder do espírito que triunfa com Cristo. quem pertence a esta segunda lei. Em semelhante ambiente –
Pode parecer que estas observações se propõem a destruir uma vez que os ministros de Deus são frutos desse ambiente –
os velhos castelos da fé, no entanto elas tem uma finalidade não se podia construir uma religião diferente. Era necessário uti-
construtiva, tendendo a substituí-los por algo sólido, baseado na lizar o material humano existente, pois não se podia importá-lo
realidade biológica, num momento no qual esses castelos estão do Céu. De resto, com uma super-raça, o ideal já estaria realiza-
caindo por si só. A época da fé cega e da religião por sugestão do. Então ele não teria mais uma função civilizadora a cumprir,
terminou. Hoje, o que não é claro e comprovado é deixado de ao contrário do que sucede quando desce a um nível inferior. Tal
parte. Estes escritos, além disso, não estão dirigidos às classes é a engrenagem das leis biológicas e da sua técnica funcional.
sociais que só pensam por sugestão. Eles não são perigosos, Uma vez que se queria a permanência da ideia de Cristo na Ter-
porque se dirigem, pelo contrário, às camadas sociais superio- ra, tinha-se de degradá-la, para adaptá-la a tal ambiente, porque,
res, que pensa, avalia e tem o dever de compreender, para as- sem um retrocesso involutivo, o ideal não é aplicável em nosso
sumir as próprias responsabilidades. mundo. Eis o que significa tomar corpo na forma concreta de
Do seu lado, a classe sacerdotal, apesar de tudo, soube uma religião. Degradação do ideal, mas sublimação da animali-
cumprir a sua função, que era fazer descer e fixar na Terra o dade humana, para se encontrarem no meio do caminho, que é
ideal de Cristo, embora apenas na proporção em que a vida po- de ideal degradado e de animalidade sublimada, uma posição
dia absorvê-lo nessa sua fase de evolução. Portanto o objetivo híbrida, que parece contradição e mentira, mas que também é
que, durante aquele período de tempo, devia-se alcançar, foi aproximação de extremos opostos e trabalho de transformação
atingido. Não há, pois, razão para se escandalizar, porque o re- do mais baixo, a fim de que ele alcance um nível mais alto.
sultado, devendo manter-se proporcional ao próprio grau de Assim, em vez da elevação do humano até ao divino, fre-
evolução, não podia ser diferente. Uma vez que a consciência quentemente chegou-se só ao abaixamento do divino até ao
estava em formação, não importava que o indivíduo fosse usa- humano. Na Terra, o ideal não podia tornar-se senão um ins-
do como instrumento através do inconsciente, pois, indepen- trumento de luta. Aqui, isto é quase uma necessidade. Deus es-
dente da forma como se tivesse de resolver o problema, o obje- tá no alto, longínquo e invisível. O mundo está próximo e tan-
tivo era resolvê-lo. Assim se deixou funcionar o espírito de gível, com as suas exigências terrenas materiais. A lei da vida
grupo, quando isto servia para mantê-lo de pé, atendendo assim é utilizar tudo para a própria conservação. Para ela, no nível
a necessidade de garantir a presença do ideal na Terra. Deste humano, é lógico que o ideal deva ser usado primeiramente
modo, a vida permitiu que o grupo ficasse envolvido em su- como artifício para viver na Terra, e não como esforço para
perstição, fanatismo, dogmatismo e sectarismo, pois, de qual- subir aos céus. No plano animal-humano, o ideal – sendo uma
quer modo, ele se libertaria no futuro destas escórias. Apesar de exigência para se viver segundo as leis de outros mundos, de-
tudo, foi sendo realizado um trabalho de evolução, ainda que masiado diferentes do nosso – torna-se um absurdo e uma lou-
num baixo nível biológico. Um ideal cristão íntegro, aplicado cura. Aqui, a existência é luta para viver e a sublimação é uto-
de repente, haveria queimado tudo e, sendo desproporcional à pia perigosa. É mais fácil defender-se do que subir. Não há
receptividade humana de então, teria sido destrutivo ao invés de margem para superações evolutivas.
construtivo. Ele devia colocar-se a serviço do homem, a fim de Se quisermos fazer uma ideia da estrutura do biótipo situado
que o homem se pusesse a seu serviço. Para que este possa su- no polo oposto, o do espírito, observemos a figura de Cristo.
bir, o ideal deve descer, porque, embaixo, o mundo também Nela, encontramos qualidades de doçura feminina, mas não ao
tem as suas leis e exigências, assim como existem no alto. nível sexual, e sim no da bondade e do amor espiritual. Encon-
Assim o homem faz na Terra construções a serviço do ideal, tramos também qualidades de energia masculina, mas não ao
mas as utiliza também a seu serviço, habitando dentro delas e nível de força, para submeter egoisticamente, e sim no da po-
fazendo ali o que quer. Tais posições se fixam e se codificam tência de espírito, para ajudar, qualidades que estão no plano do
em leis, instituições e hierarquia, com prerrogativas por toda a super-homem, e não do homem. As reações de Cristo foram de
vida, inseparáveis de lugares e pessoas. A vida tolera tudo isto, fato coerentes com essa Sua natureza. Daí o mal-entendido com
enquanto lhe sobra uma margem útil para os seus fins evoluti- seus contemporâneos. Judas atraiçoou Cristo porque estava
vos. Mas, quando a matéria substitui o espírito e o mundo che- provavelmente revoltado, pelo fato de ver que o seu chefe, ao
ga inclusive a sufocar o ideal, porque o hedonismo do grupo invés de rico e poderoso, como ele exigia que fosse, era somen-
prevalece sobre o cumprimento da sua função, então a vida, na te bom, o que, para ele, significava ser inepto. Também os cru-
sua marcha progressiva, destrói aqueles que de instrumentos se cificadores de Cristo lhe diziam: “Se é verdade que és podero-
tornaram obstáculos, irrompendo e arrastando-os. Se as posi- so, salva-te. Se és o filho de Deus, desce da cruz!”. O mal-
ções, para perdurarem, foram indissoluvelmente ligadas às pes- entendido é o mesmo. Para todos eles, o valor e o poder que
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 89
Cristo se atribuía devia consistir numa prova de força no nível suas exigências atuais; e para que possam induzi-lo ao esforço
humano terreno. Para eles, a potência espiritual não tinha senti- de criar um futuro maior, devem ajudá-lo a viver no seu presen-
do, porque não servia para nada; era loucura de sonhadores. te. Em resumo, Cristo devia adaptar-se e oferecer também uma
Eles pensavam: de que te serve seres Deus, se agora te deixas utilidade imediata, que satisfizesse um pouco ao mundo. Para
matar? Eles não podiam compreender esse outro tipo de poder que seja possível a redenção, o evoluído deve descer ao nível
super-humano, que do vencido de uma hora e de um pequeno do involuído. Assim Cristo desceu verdadeiramente, avizinhan-
grupo de homens fez o vencedor nos milênios e o chefe espiri- do-se do homem e permitindo que este o utilizasse para si a seu
tual da parte mais civilizada da humanidade. modo. Isto é intoxicação do ideal, mas é também uma forma de
Somente o que serve para viver vale no mundo, o qual, por casamento com ele. Então tudo que é evoluído e, por isso, posi-
isso, transforma tudo, para sujeitar tudo às suas necessidades. tivo, poderoso e fecundo vai para diante e arrasta consigo tudo
Também por isso Cristo foi entendido sob duas formas diversas que é involuído e, portanto, negativo, débil e infértil, para fe-
pelas duas raças que o aceitaram. Temos com efeito o tipo de cundá-lo e levá-lo mais para frente. Temos assim o iniciador e
cristianismo latino, dado pelo catolicismo, e o tipo de cristia- os seus seguidores, menos evoluídos.
nismo anglo-saxônico, dado pelo protestantismo. Assim Cristo Neste jogo de adaptações pode-se ver como o homem se sa-
foi entendido em forma diferente pelos dois grupos, segundo a tisfez, tratando de utilizar a Cristo:
natureza de cada um. O mesmo sucedeu com o comunismo, que 1) A primeira satisfação que o homem procurou em relação
se dividiu em dois, o russo e o chinês, cada um dos dois povos a Cristo foi matá-Lo, mas não sem antes torturá-Lo. Para elimi-
entendendo-o e usando-o a seu modo, para os seus próprios fins. nar um inimigo, basta matá-lo. Mas aqui há um desabafo de sa-
A contradição entre ideal e realidade desaparece quando se dismo, próprio da natureza humana. Isto, até tempos mais re-
entende o ideal como uma meta ainda a alcançar, e não como centes, foi feito em nome da justiça. A sociedade tem direito à
um estado já realizado, que deveria existir. Então a religião já legítima defesa e, por isso, à eliminação ou isolamento dos cri-
não é contradição, mas sim um processo evolutivo em ação, minosos, mas não tem o direito de se tornar cruel, o que é ape-
aproximando-se continuamente de Cristo. A quem está mais nas prova de ferocidade. No passado se fazia das execuções um
avançado parece não cristão quem se encontra mais atrasado, ou espetáculo público, com o pretexto de que, assim, adquiririam
seja, mais longe de Cristo. Mas pode também crer-se bom cris- uma função educativa exemplar.
tão quem segue apenas algumas práticas exteriores, sem suspei- 2) Cumprido o primeiro disparate, a humanidade, durante
tar o que significa ser cristão. Cada um entende Cristo segundo a mil anos, gozou com a sádica recordação. Que pode haver de
própria natureza e amplitude de visão, aproximando-se da reli- espiritual e de elevação para a alma na reconstrução mental de
gião conforme as suas capacidades e utilizando-a a seu modo, tal tortura física? Não se pode compreender! Não obstante, a li-
alguns para santificar-se, outros para mentir e desfrutá-la, uns teratura religiosa aperfeiçoou em todos os detalhes tais descri-
para salvar-se e outros para perder-se. Cristo pode ser usado ções. Isto mostra em que forma negativa o homem vê o triunfo
também em sentido contrário, para descer, ao invés de para su- do espírito, apresentando-o mais como perseguição ao corpo do
bir. Há fervorosos praticantes e crentes ortodoxos que, substan- que como elevação da alma. Estamos nos planos inferiores da
cialmente, são piores que muitos ateus honestos e sinceros. evolução, nos quais o subconsciente se manifesta, afirmando
Para compreender o cristianismo, é necessário entendê-lo que “a tua morte é a minha vida” e, com isso, demonstrando
como um edifício não já feito, mas sim em via de construção, que o triunfo vital está precisamente na morte alheia.
como uma perfeição a alcançar, um ideal em marcha, um plano 3) A paixão de Cristo foi utilizada para alcançar outra fina-
de trabalho ainda a cumprir, cuja realização está situada no fu- lidade por parte dos cristãos, que, proclamando-se inocentes,
turo. Esse ideal enxerta-se gradualmente na vida. Se, atualmen- desabafaram então seu instinto de agressividade, lançando so-
te, ainda triunfa a imperfeição humana, caminha-se no entanto bre os outros a culpa do delito de terem crucificado Cristo –
para a perfeição evangélica. Se ainda predomina o animal hu- sejam eles romanos pagãos ou hebreus deicidas – pois tratava-
mano, o anjo o espera no futuro. O valor do cristianismo é dado se de inimigos do próprio grupo, uma vez que seguiam outra
pelo grau de concretização do ideal alcançado na Terra. Ele de- religião. Mas não pertencem acaso todos à mesma humanida-
ve ser julgado em função do trabalho evolutivo que ele já cum- de? Culpar os outros não tira a própria responsabilidade, tanto
priu e do trabalho evolutivo que ele se demonstre capaz de mais que, na Idade Média, todos, mais ou menos, fizeram ain-
cumprir no futuro. Assim, contradições, adaptações e enganos da pior. É sempre o mesmo homem que, com os mesmos ins-
se explicam e se justificam perante as leis da vida. tintos, faz as mesmas coisas.
Pode-se então dizer que o cristianismo, mais do que uma re- 4) A paixão de Cristo foi utilizada ainda de outra maneira,
alidade, é uma esperança. No estado atual, as massas aceitam o servindo para explorar o esforço alheio, a fim de gozar de vanta-
ideal, porque o colocam a serviço das suas necessidades. De gens não merecidas, porque não ganhas com o próprio esforço. É
Cristo a vida tomou o quanto lhe servia para satisfazer a sua certo que, biologicamente, isto pode ser justo, mas somente no
necessidade de evoluir, que constitui precisamente a sua função nível do involuído, como meio para obter, em benefício próprio,
fundamental. Deste modo, o mundo adaptou Cristo a si como a maior utilidade com o mínimo esforço. Mas dado que Cristo, a
melhor lhe convinha. Mas, com isso, Cristo, por sua vez, entrou parte ofendida, cala-se, não existindo da Sua parte reação para
e instalou-se no mundo, para adaptá-lo a si e transformá-lo a temer, não há qualquer razão para deixar de se aproveitar. Assim
seu modo. Sucedeu então que o mundo, enquanto tratou de formou-se e permanece o mito da redenção obtida gratuitamente,
adaptar Cristo para seu próprio uso, teve, no entanto, de trans- segundo o qual Cristo, com a sua paixão, pagou nossos pecados,
formar-se um pouco, para avizinhar-se Dele, figura junto à qual de modo que o homem, salvando-se sem esforço, ficou comoda-
achou que tinha de viver. Esta coabitação na Terra obrigou a se mente redimido pelas dores dos outros, em vez de o ser pelas su-
avizinharem os dois termos, permitindo deste modo que se as próprias. Além de conveniente, é prova de habilidade saber
cumprisse a função do ideal, que é realizar a evolução. utilizar, com esta finalidade também, a infinita bondade de Deus,
Não há dúvida que a vida alcança este objetivo. A semente que se prestou amavelmente ao jogo, enviando o Seu único filho,
se adapta ao terreno, mas o utiliza também para se desenvolver. para colocá-Lo a serviço do homem, que certamente merecia is-
Entre ideal e mundo há luta, um para vencer o outro, mas há to, por representar o mais alto produto e objetivo da criação. Que
também colaboração com uma finalidade comum, que é evolu- importa se, pelo contrário, a justiça exige que os erros de cada
ir. Para que possam exigir do homem o esforço de ascender pa- um sejam pagos com as dores de cada um, e não com as dos ou-
ra formas superiores de vida, os ideais devem satisfazê-lo em tros, quando este segundo sistema é muito mais cômodo?
90 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
Eis que o homem colocou Deus a seu serviço, encarregan- executada por outro, aquela função permanece, porque ninguém
do-O do trabalho de pagar seus próprios débitos, para polir a pode deter a evolução. A salvação da ideia de Cristo está, pois,
sua a alma. Daí se depreende o tamanho do egoísmo, do orgu- garantida. As próprias leis da vida o exigem. É necessário ape-
lho e do espírito de domínio que está aninhado dentro do sub- nas ver a qual grupo ela será confiada. Aos conservadores de
consciente humano. Lamentavelmente, para o homem, as coi- posições isto poderá parecer um cataclismo destrutivo, mas sig-
sas não são como ele acredita que elas sejam. Deus deixa tudo nifica, pelo contrário, a salvação espiritual. É neste sentido que
andar. Mas isto não evita que, na realidade, quem erra pague, as forças do inferno não podem prevalecer. Não importa o que o
porque isto é necessário para aprender, não havendo escapató- homem venha a fazer, a vitória é de Cristo. A maior arma da
rias. Cristo não sofreu para pagar em nosso lugar, mas sim pa- Igreja para a sua própria defesa é realizar a sua função espiritual,
ra nos mostrar, com o seu exemplo, como cada um de nós – conforme o comando de Cristo e as leis da vida.
cada um com a parte que lhe diz respeito – deve pagar com a Se a Igreja se decidiu hoje a formar uma frente única reli-
sua própria paixão. Cristo nos fez ver qual o caminho que de- giosa, reaproximando-se dos seus velhos inimigos, chamando-
vemos percorrer para nos redimirmos. Por isso devemos imitá- os agora de irmãos separados, isto se deve ao fato de que, pe-
lo, fazendo nós aquilo que ele fez, e não só contando Sua vida rante um inimigo comum, que é hoje o comunismo, as inimi-
ou tratando de explorá-Lo. zades particulares desaparecem. Isto não significa que a luta
◘◘◘ se transforme em amor, mas sim que ela se transfere na dire-
A ideia de Cristo é uma semente viva, enxertada no sangue ção de outro objetivo, sendo lançada contra um inimigo co-
da humanidade, querendo crescer e, dentro desta, tornar-se mum maior, em vez de contra os rivais. É por isso que, hoje,
grande, para ser assimilada. Tratemos agora de ver o lado posi- procura-se a unificação. Mas trata-se apenas de uma estratégia
tivo do problema, observando quais são os elementos construti- de guerra. Os inimigos aceitam-se como amigos somente para
vos a favor da realização do ideal cristão na Terra. O homem, fazer força contra outro inimigo maior. Isto são apenas pre-
encontrando-se embaixo, oferece as resistências; o ideal, estan- cauções humanas para defender as próprias posições. Porém o
do no alto, oferece os impulsos para o progresso. Enquanto o programa da vida é a evolução, que, na fase atual, significa
homem se preocupa em explorar o ideal, este, pelo contrário, espiritualização, fenômeno realizado pela descida dos ideais,
tende a se apossar do mundo, para civilizá-lo. sendo dever das religiões executá-lo.
A casta sacerdotal está situada entre as duas tendências, É muito provável que o catolicismo deva dar um grande
numa posição intermediária entre o ideal e o mundo. Nos perí- passo em frente, na direção de sua espiritualização, porque so-
odos ascensionais, com predominância do espírito, esta casta mente nisto pode consistir a sua salvação. Trata-se de um pro-
cumpre a sua função no sentido da ascensão; nos de retrocesso cesso contínuo e gradual de desarticulação das superestruturas,
involutivo, com predominância da matéria, ela decai e se cor- para reencontrar viva, no fundo das formas, a substância. Tal-
rompe. Quando a percentagem de conspurcação do ideal supe- vez um esclarecimento de posições possa levar a uma distinção,
ra os limites que se podem suportar, aquele organismo se des- mais além das aparências, entre os seguidores de Cristo e os
faz e acaba. Então, como já mencionamos, a liquidação é au- administradores da sua propriedade terrena; entre quem é ver-
tomática. Quando uma instituição não serve mais aos fins da dadeiramente crente, mesmo não sendo ortodoxo ou praticante,
vida, é por esta abandonada, como estando à margem da lei, e quem, por ser exteriormente devoto, amigo do clero e do par-
para que morra. Quando, no grupo religioso, o ideal fica só tido eclesiástico, passa por religioso. Ser cristão é outra coisa,
como um pretexto para finalidades terrenas, desaparecendo as- que não depende necessariamente do indivíduo ser católico no
sim a sua função evolutiva, então esse grupo, biologicamente, sentido ortodoxo. Uma coisa é pregar, outra é praticar; uma
já não tem mais razão de existir, devendo, portanto, ser liqui- coisa é ser, outra é aparentar. Perante Deus, fazer os outros cre-
dado. Tem direito de viver só quem satisfaz as exigências da rem que sejamos santos não serve para nada. O valor não está
vida, entre as quais a fundamental é evoluir. no reconhecimento exterior, mas sim nas qualidades individuais
Ora, o cristianismo quis fixar-se em verdades absolutas, interiores. As glorificações oficiais servem perante o mundo,
procurando assim apoiar-se em soluções alcançadas de um mo- mas bem pouco perante Deus. Pode-se formalmente ser ótimo
do definitivo, a respeito das quais as possíveis objeções já ti- católico ou crente de qualquer religião, mas substancialmente,
nham sido todas previstas. Depois, para evitar surpresas, a reve- péssimo cristão. O grupo necessita de seguidores para se fazer
lação foi definitivamente encerrada, de modo que, como resul- forte, mas isto é coisa do mundo. Pode estar mais perto de Deus
tado, já não se podiam destruir as posições terrenas. No entanto um condenado do que a autoridade pela qual, em nome de
o tempo continuou caminhando e o pensamento avançou, de Deus, ele é condenado. A consciência é tremendamente respon-
maneira que a imobilidade do cristianismo serviu somente para sável, mas é livre, estando acima de qualquer coação humana.
torná-lo superado. O castelo fechado, que devia ser uma defesa, O mais importante numa religião não é o poder econômico,
tornou-se assim uma prisão. Deste modo, a Igreja ficou prati- político e social do grupo, mas sim e sobretudo as experiências
camente paralisada dentro daquelas suas soluções, que, apesar que se tem de Deus. Se aparece um santo, ele é acolhido com
de serem aceitáveis em sua época, por estarem proporcionadas desconfiança, em razão da chamada prudência. Ao não se com-
aos tempos, já não o são mais hoje, devido ao desenvolvimento prometer com juízos, a autoridade pensa, antes de tudo, em sal-
mental moderno, perante o qual, tratando-se de verdades eter- var-se a si própria. Às vezes condena, depois parece que apro-
nas, elas deviam permanecer verdadeiras. Assim, a Igreja ficou va, mas não se decide a reconhecer o santo, senão quando che-
petrificada, sem elasticidade para avançar, pois não podia torcer ga o consentimento unânime, que a liberta de qualquer risco de
a realidade dos fenômenos, para fazê-la coincidir com o modelo errar. Uma vez tendo-se posto assim em segurança, santifica-o,
fixado, nem transformar o modelo, para fazê-lo coincidir com para a glória do próprio grupo, mas apenas quando o santo está
essa realidade. A verdade é progressiva, move-se e caminha. O bem morto e não podem mais surgir surpresas, com fatos no-
dogma é sólido e garante as posições de longa duração, sonho vos. Tudo está inteligentemente regulado.
dos acomodados, mas é estático e não caminha, o que, num Mas isto não impede que, particularmente, o indivíduo pos-
universo em marcha, significa ficar abandonado para trás. sa ter experiência de Deus e tornar-se santo por sua conta, se
Mas quem conhece as leis da vida sabe que o ideal não pode ele desejar. É um problema de foro íntimo. No entanto é lógico
morrer, pois ele realiza uma função evolutiva. Se o instrumento que ele não pode pretender da autoridade um reconhecimento
humano ao qual estava confiado esse dever se torna inadequado, oficial, que a implica em responsabilidade. Então é natural, por
então acaba sendo liquidado e substituído. Assim, mesmo sendo parte da autoridade, uma legítima defesa contra quem desejaria
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 91
que ela se comprometesse para vantagem dele, deixando à auto- mente no seu interesse, ele sente que já cumpriu o seu dever. Se
ridade o risco do erro. Ora, apenas o fato de basear a própria cai o mundo, isto não lhe diz respeito, porque ele já assegurou a
santidade sobre reconhecimentos humanos significa que não se própria salvação. Se as consequências da sua ação, executadas
é santo nem se tem verdadeiras experiências de Deus. Muito segundo as regras, são desastrosas para os outros, isto o deixa
pelo contrário, significa que se procura a glória do mundo, pe- indiferente. A sua moral se limita ao fato individual do sacrifí-
dindo a proclamação da Igreja, porque só ela dispõe dos meios cio realizado por ele e da recompensa a receber, enquanto, por
materiais para referendá-la. Portanto, se queremos verdadeira- outro lado, quem sente a moral do ideal ocupa-se de fazer o
mente nos fazer santos, devemos fazê-lo em silêncio e a sós, bem ao próximo para proveito deste, e não só em função da
perante Deus, sem dar conhecimento disto a ninguém e sem ex- própria salvação. Uma vez calculado e, assim, cumprido o de-
citar o vespeiro dos juízos humanos. ver imposto, assegurando com isto o futuro, o indivíduo fica li-
A salvação da Igreja está na sua purificação. E este é um vre, libertando-se de outras ataduras, para fazer aquilo que quer.
processo progressivo, exigido pelas próprias leis da vida. Na Temos assim a moral do fariseu, exatíssima nas formas, mas
Idade Média, a Igreja estava no nível terreno do império. De- egoísta e calculista. Pode-se dessa maneira, pensando só para
pois foi libertada do poder temporal. E a evolução irá libertá- si, seguir a mais irreligiosa das morais, permanecendo perfei-
la do poder econômico e político. Assim, ela se avizinhará tamente ortodoxo e praticante, como perfeito cristão.
continuamente da sua forma mais pura, que está no poder ex- Qual é a atual psicologia do crente? Com que ânimo se põe
clusivamente espiritual. A imprensa anuncia uma diminuição ele perante Deus? Quais são, atrás das aparências, as verdadei-
do número das vocações religiosas, de 152.000 sacerdotes, em ras convicções que estão no fundo da alma humana? Os indi-
1871, para 50.000 em 1965, enquanto, no mesmo período de víduos condenados pela moral oficial, que não toca quem for
tempo, a população duplicou. Este fato coincide com a perda bastante astuto para não se deixar apanhar em falta, são de fato
do poder temporal, que, antigamente, representava uma atra- malvados ou fazem a guerra normal, necessária na luta pela
ção para o sacerdócio, o qual, reduzindo-se a uma carreira as- vida, imposta pelo ambiente terrestre? O crente sabe muito
sociada à correlativa posição econômica, era frequentemente a bem, por experiência atávica, nele radicada em forma de ins-
base do surgimento de muitas vocações. tinto, que a necessidade mais urgente não é ser bom, mas sim
Para o espírito, porém, este fato é um progresso. A perda em ser hábil no próprio interesse; sabe que a justiça, a providência
quantidade, como número, pode estar a favor da qualidade, sig- de Deus e a honestidade do próximo são coisas com as quais
nificando menos elementos, porém mais selecionados. O resul- não é bom contar demasiadamente, porque a realidade é dife-
tado pode ser uma religião mais perfeita. As dificuldades afas- rente. E os ministros de Deus também sabem disso. Não é cul-
tam os exploradores do ideal, e o espírito não poderá senão ex- pa de ninguém, se esta é a realidade da vida. É assim que as
trair benefício disso. Talvez uma perseguição comunista execu- pessoas de bem, mesmo as mais crentes, pensam antes de tudo
te essa operação, para purificar e salvar a Igreja espiritual. O em fazer os seus negócios terrenos, deixando para o espírito
cristão será cristão de verdade, e muitos, que hoje se classifi- apenas o que sobra de espaço vital. Isto não significa que a
cam de católicos, irão afastar-se. Não servirá mais então o jogo ajuda de Deus desagrade, pelo contrário até sonha-se com isso,
da hipocrisia, nem se tratará mais de recorrer a ele. A religião invocando-se por ela. Mas sabe-se que é mais positivo defen-
será um fato íntimo, mas sentido de fato, não sendo classificá- der-se por si próprio, com os métodos terrenos, mais positivos.
vel através do que se possa ver pelo culto externo, nem realizá- Trata-se de jogos incertos de esperança, propondo vencer na
vel com exibicionismos. Quando enganar não trouxer mais van- loteria, adequados aos débeis, que não têm nem força nem in-
tagens, ninguém mais será levado a fazê-lo. Então a alma, colo- teligência para saber atuar por si mesmo. Quem possui estes
cada perante a dor, saberá sacudir o fácil ceticismo moderno e, meios usa-os para si e, se não os usa, é porque não os possui.
na profundidade, deverá reencontrar Deus. Então a religião serve, sobretudo, para recolher, à guisa de
Para compreender de fato o presente estado, é necessário hospital espiritual, os ineptos para a vida. Os tipos biologica-
dar-se conta de qual é a forma mental do homem atual. E a re- mente fortes não gostam de se recolher nos recintos da virtude
ligião é obrigada a respeitá-la. O motivo, tanto na virtude co- e vivem ao ar livre, segundo as leis da Terra, como as feras da
mo no arrependimento, é o egoísmo. A moral se baseia na san- selva. Eles aceitam a luta para vencê-la, sem religião entre os
ção final do paraíso ou do inferno, resumindo-se no cálculo da pés. É assim que, sob aparências enganadoras, a realidade da
utilidade ou dano, em termos de alegria ou de dor. O cálculo é vida social é feita de um desencadeamento de egoísmos.
fácil. O pecado é agradável, porque satisfaz a própria natureza À religião resta então a função lenitiva, constituindo um re-
inferior, razão pela qual é praticado. A renúncia para subir é fúgio para velhos, um hospital para doentes e feridos, uma con-
penosa, razão pela qual se foge dela. Então não se aceita prati- solação para aflitos, como uma enfermaria da vida. Estas são as
cá-la senão em vista de uma satisfação que compense o sofri- retaguardas, protegidas, enquanto os mais fortes se arriscam na
mento enfrentado e a satisfação perdida para seguir a virtude. linha de frente, no meio da luta. Enquanto tudo vai bem, vive-
É preciso que a alegria a ser conquistada seja maior do que se lutando descarada e abertamente. Quando as coisas vão mal
aquela que se perde. Dizia São Francisco: “Tanto é o bem que e chega a dor, então nos retraímos da luta, feridos, e vamos à
espero, que cada pena me deleita”. Não se renuncia ao menos, igreja, para orar. Quando se perde na luta, procura-se sobrevi-
a não ser para conquistar o mais. Fugir da dor, buscar o prazer, ver, criando outra força com a esperança. Então crê-se em
ganhar cada vez mais, esta é a psicologia humana e também a Deus, invocando-O para que nos salve. Esta é uma outra forma
lógica da vida. Nas religiões, o jogo é mais vasto, chegando em que a religião é utilizada, servindo como proteção e salva-
mais longe, transportando-se a prazeres espirituais superiores ção para os vencidos. Assim eles podem não só curar as feridas
na outra vida. No entanto o cálculo é o mesmo, baseando-se e recuperar as forças, para retomar a luta, mas também encon-
sempre na presunção de um lucro. trar um tipo de trabalho útil, que não seja fazer a guerra. A reli-
Isto implica uma consequência. Este motivo totalmente hu- gião pode ter também uma função no plano animal humano. O
mano, tão profundamente egoísta, leva, perante o ideal, a uma homem, conforme as suas qualidades e condições, sempre a uti-
moral imoral, segundo a qual o indivíduo se preocupa em res- liza de algum modo. Se ele é forte, liberta-se dela, para lutar
peitar as normas impostas, mas somente em função do seu dano sem obstáculos; se é astuto, explora-a com o engano; se é débil
ou vantagem. O fundo desta sua moral é que, com semelhante ou vencido, refugia-se nela, em busca de proteção. Deixa-se a
código na mão, ele se preocupa apenas em salvar a si próprio. religião pregar à vontade, mas, uma vez que ela nos quereria
Isto significa que, uma vez realizada a sua obrigação, estrita- sinceros e desarmados, não se lhe dá ouvidos, pois cada um,
92 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
conhecendo o mundo no qual vive, sabe muito bem que há nele o respeito, seguir a corrente, pois afinal a virtude está na obedi-
outras coisas para fazer. E, se existe alguém ainda com tão boa ência. Aceitamos a lei da Terra, porque esta é a lei que manda
fé, que queira viver aqueles ditames, a dura realidade rapida- aqui, e não a do céu. Inclinemo-nos e desfrutemos da situação.
mente o dissuade, porque ele, na verdade, irá encontrar-se em Este é o natural raciocínio humano.
dissonância com aquilo que os pregadores de virtude exigem É inevitável que a posição, sendo estabelecida na forma de
dele, mas não praticam, num contínuo mal-entendido, ficando relação entre patrão e dependente, traga consigo os defeitos a
fora da bitola dos trilhos sobre os quais caminha a sociedade ela inerentes. De tal premissa não pode derivar outro tipo de
humana e terminando esmagado pelos mais fortes e astutos. consequências. O servo é o débil, a quem corresponde obede-
Vejamos agora como o biótipo humano, cuja natureza é fei- cer. Ao patrão, que é o mais forte, todos os direitos; ao outro,
ta para viver em semelhante ambiente, acerca-se de Deus na apenas os deveres. Uma vez que as relações entre homem e
oração e de que modo estabelece as suas relações com Ele. É Deus têm como base a luta entre egocentrismos opostos – con-
claro que o homem não pode fazê-lo senão com a sua forma cepção devida certamente à involução humana, mas nem por
mental. Então ele fará primeiro os seus negócios no mundo e, isto menos real – não resta ao súdito senão aplicar a Deus os
depois, se as coisas andarem mal, entrará na igreja à procura de métodos que ele usa na Terra para com os seus semelhantes.
conforto, encontrando ali quem deveria ser o médico da alma, Afinal, é isto que o instinto lhe ensina. Então, tratando-se de
mas que, vivendo deste trabalho, deve lutar para manter o do- um patrão mais forte, não resta senão inclinar-se para cativá-lo
mínio espiritual, do qual depende a sua vida. O médico, então, e obter favores. É necessário dizer-lhe que somos bons como
procede à lavagem da alma do doente, fazendo-se juiz dele, ele quer, mas tendo o cuidado de não o ser a sério, pois sabe-
transformando-o em pecador arrependido e receitando-lhe o mos bem que, neste caso, seremos devorados. De resto, o
remédio que deveria curá-lo, na forma de penitência, com a exemplo dos pregadores nos ensina que estas coisas são para
qual ele, sob ameaça de penas na outra vida, paga o débito con- serem ditas, e não para serem feitas.
traído com Deus. Assim o pobre coitado, fugindo de uma dor Aqui tratamos de explicar como as religiões tendem a se
presente, vê surgir perante ele a ameaça de uma outra dor futu- transformar em hipocrisia. Essa é a consequência deste modo
ra, de modo que, saindo da luta para defender a sua vida neste de conceber as relações com Deus segundo a forma mental
mundo, tem de entrar em luta para defender a sua vida no outro humana, que também é frequentemente a do clero. Daí buscar-
mundo. Uma vez que, em ambos os casos, permanece a mesma se colaborar com Deus não de forma clara, mas sim com a face
forma mental, então a luta continua com os mesmos métodos, encoberta e procurando escapatórias; daí tentar-se adulá-Lo,
sendo conduzida até perante Deus. De resto, o homem não pode para obter graças devidas não ao mérito próprio, que num re-
possuir senão a sua mentalidade, sendo natural que a utilize pa- gime de justiça é direito, mas sim ao capricho de um patrão,
ra todos os usos da sua vida, tanto materiais como espirituais. porque este é o mais forte e, por isso, oferece o que bem en-
A religião satisfaz o desejo do indivíduo de continuar viven- tende e a quem Ele quiser. O servo aspira tornar-se um favori-
do depois da morte, no entanto também lhe deixa na outra vida o to, fazendo-se de bom, para se tornar agradável e, assim, obter
risco de cair na dor. O motivo é o mesmo: não há vida sem pos- vantagens. Nasce daí um obséquio que tende a se transformar
sibilidade de dor. O subconsciente, por dura experiência, sabe em tentativa de corrupção do poder. Quando o ideal desce à
bem disso e não esquece. Eis então que o crente, na oração, Terra, esta forma mental o envolve e trata de corrompê-lo, para
aproxima-se de Deus, para salvar a sua vida no além, assim co- adaptá-lo a si própria. É natural que, automaticamente, o ho-
mo luta no mundo, para salvá-la no presente. Então como ele mem se coloque na posição de servo, porque é nesta forma de
concebe Deus? A ideia de pecado e inferno é certamente útil pa- relações que ele se habituou a viver na Terra. E o que pode no
ra a sobrevivência da casta sacerdotal, mas faz de Deus um se- plano humano fazer um servo, se a arte de enganar o patrão é o
nhor armado de sanções penais, que pode aplicá-las porque é o que sua posição lhe ensinou, sendo esta a arma com a qual ele
mais forte. Tal ideia é fácil de conceber, pois reproduz a figura pode e sabe melhor defender-se?
do soberano terreno. Perante ele somos súditos, dependentes do Exigir um comportamento diferente seria pretender que o
seu beneplácito, que é mistério indecifrável, e, ao invés de direi- homem não fosse o resultado da longa história vivida por ele, a
tos, temos apenas o dever da obediência. Ele outorga dons e gra- qual ficou estampada no seu subconsciente. É verdade que, com
ças a seu bel-prazer, segundo critérios ignorados. Aos vassalos tal psicologia, conexa com o espírito de domínio, a classe sa-
não resta nada, senão inclinar-se e aceitar, ficando na obscurida- cerdotal salvou a sua sobrevivência, mas teve de pagar por isso
de. Fala-se de justiça, mas ela, nos fatos, é pouco vista ou apli- com as consequências espirituais. Daí provém uma oração com
cada na Terra, razão pela qual se torna difícil imaginar que ela a qual se trata de cativar a simpatia do Senhor, subindo pela es-
possa suceder em outro lugar. Talvez venha a ocorrer no Céu, cala hierárquica dos santos, interpostos para uma intervenção
mas trata-se de coisa bem longínqua, e ninguém sabe onde e amistosa, pela qual se pode ser perdoado não só por um mal
quando, não sendo, portanto, controlável nem persuasiva. que se continua a fazer, pois se está convencido de que ele é in-
Observemos a realidade. Se roubo e faço isso de maneira dispensável para a própria sobrevivência, mas também por um
que não me descubram, sem tropeçar com a justiça, então me bem que não se realiza, porque não se é ingênuo para arruinar-
torno rico, e o resultado é que vivo bem e sou respeitado. Se se, praticando-o num semelhante mundo. Não se raciocina com
Deus está presente e este é o resultado que obtenho, isto signi- os poderosos, que, por serem fortes, têm o direito de estabelecer
fica que eu, pelo fato de saber fazer isso, sou recompensado por a verdade e de impô-la aos outros.
Deus deste modo. Este prêmio me prova, com os fatos, que agi Tudo isto é certo no ambiente e nível humano. O que
segundo a Sua Vontade. Depois de me ter premiado deste mo- existe por cima dele ou nas profundidades já foi por nós ex-
do, que me pede Deus ainda? Que eu me arrependa e o venere. plicado nos volumes O Sistema e Queda e Salvação. O fato é
Isto também é fácil, bastando algumas confissões e práticas re- que existe uma lei estabelecida por Deus, escrita nos fenô-
ligiosas, depois do que fico em paz. Por que não resolver assim menos, funcionando sempre e em toda a parte, lei que é pri-
o problema, se os resultados são tão bons? Não representa isto meiramente respeitada por Ele, que assim obedece apenas a
o melhor rendimento, e não é instintivo no subconsciente pro- si mesmo. Esta lei, justa e incorruptível, é o pensamento de
curar o caminho mais fácil para proteger a vida? Se Deus, nos Deus, fixado de modo impessoal, sem egocentrismos. Trata-
fatos, deixa que o mal vença na Terra e se Ele é o dono, não ca- se de uma lei de harmonia, cuja presença se pode sentir,
be ao servo indicar e exigir retidão, pois seria um ato de orgu- quando nos deslocamos evolutivamente em direção ao alto,
lho, que, portanto, mereceria castigo. É melhor então, com todo superando a atual forma mental humana.
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 93
Numa humanidade mais evoluída, as relações entre o ho- alizar-se. O ideal é uma realidade futura, ainda a ser realizada.
mem e Deus serão concebidas em forma totalmente diversa. O Trata-se de antecipar a existência de mais evoluídas formas de
erro atual está em crer que não se raciocina com Deus. O de- vida, que ainda não estão em ação na realidade. Elas, então, são
feito está em não sentir o Seu pensamento, que se expressa, no criadas em primeiro lugar no pensamento, com um ato que se
entanto, em todo lugar e momento. Não se trata de egocentris- chama “fé”. No processo criador, o primeiro momento se verifica
mos rivais, mas sim de colaboração no interesse do próprio na mente, de onde desce depois, até tomar forma concreta na rea-
operário; não se trata de luta, mas sim de unificação, que é útil lidade exterior. Para este objetivo deifica-se um modelo humano,
à vida; não se trata de comando e obediência, mas sim de ami- que, assim sublimado, é colocado no mais elevado dos altares,
zade inteligente. Nos planos mais altos da vida, a psicologia expressando com isto que ele deve estar acima dos nossos pen-
animal-humana da luta torna-se um absurdo contraproducente. samentos, porque está à frente de nossa vida, como uma meta a
Então a relação entre os dois termos, homem e Deus, muda alcançar no caminho da evolução. À força de superações, deve-
completamente de natureza. Nasce daí outro tipo de religião e mos nos tornar iguais a esse modelo. Por isso ele é revestido de
outro estilo de oração. Mas, para chegar a isto, o homem deve símbolos esplendorosos e colocado num campo de luz e beleza,
superar a animalidade na qual ainda está submerso. Os que po- sendo apresentado com o ornamento de todas as virtudes, para
dem compreender tudo isto são raras exceções. Assim o ideal que atraia pela sua perfeição. Através desta representação forma-
continuará sendo reduzido às dimensões que se adaptam à se na mente uma imagem do modelo, na qual ele se concretiza.
maioria, segundo a sua forma mental. Efetua-se assim o primeiro passo da realização do ideal, porque
Trata-se de alcançar um modo mais evoluído de conceber a ele, desse modo, já começou a existir como realidade mental.
vida, no qual o instinto de luta e o espírito de domínio serão su- Uma vez fixada a meta, já não resta outra coisa senão pro-
perados; a ideia de egoísmo e arbítrio de um patrão não terá curar alcançá-la. O caminho está traçado, e basta segui-lo. Po-
mais sentido; a imposição forçada não será mais praticada. En- de-se então pôr em ação a afinidade emotiva, que favorece a
tão a vida será dirigida por uma justiça super-humana, estabele- atuação de novos estados de ânimo. Coração, sentimento e pai-
cida por uma lei e funcionando conforme os equilíbrios de uma xão podem dar um salto à frente. O que ainda não existe na rea-
ordem soberana, na qual tudo se coordenará e colaborará cons- lidade material pode ser assim encontrado como realidade espi-
cientemente. No passado, a ordem não podia existir a não ser ritual, da qual derivará depois a material. Vemos manifestar-se
imposta por coação, porque o mundo era caos e os homens, re- aí o poder criador da fé. Agarrando-se ao ideal colocado no alto
beldes. Então Deus não podia ser concebido como centro de e tratando de elevar-se até ele, pensando-o e perseguindo-o, a
uma ordem, mas somente como patrão absoluto no caos. Este é realidade da vida se transforma, evolui e se eleva. Uma vez cri-
o ponto de partida da evolução do conceito de Deus e aquele é ada a nova realidade psicológica, esta modelará também a rea-
o ponto de chegada. Moisés o concebeu naquela fase inicial. lidade material exterior, construindo-a segundo o tipo que se
Pôde-se assim, com meios coativos, começar a construir uma pensou e se quis. Desta forma, o ideal submete a vida a um con-
ordem, a qual, porém, não foi compreendida nem convenceu. tínuo processo de sublimação, lançando-a cada vez mais para o
No entanto ela cumpriu a sua função e ainda serve, porque, alto, em direção ao S. É assim que surgiu e se vai fixando a
evoluindo de semelhante estado inicial, permite alcançar uma ideia de Deus, de bem, de bondade e de justiça, num mundo
ordem cada vez menos coativa, sempre mais compreendida e animal, feito de força bruta, mal, ferocidade e injustiça.
convincente, até atingir a fase orgânica da vida, formada pela Com esta técnica começa-se a acender o desejo de um mun-
cooperação inteligente e espontânea. Mas, para chegar a isto, o do melhor, impulso que é de grande valor, porque desejar signi-
homem tem de superar a sua atual forma mental. fica tender à realização, mesmo que represente uma realidade
Então a velha psicologia religiosa, com a qual ainda hoje a ainda não existente de fato. Eis como a utopia de hoje está des-
alma se coloca perante Deus, cairá. O crente compreenderá que tinada a se tornar a realidade de amanhã. Trata-se de uma técni-
não se encontra perante um Deus a quem se possa enganar an- ca evolutiva, na qual são chamadas a funcionar as forças espiri-
tropomorficamente e já não pensará em enganá-Lo. Tal modo tuais, para chegar ao resultado positivo de criar o homem novo.
de pensar será substituído pela adesão espontânea a uma lei jus- Tudo isto está implícito nas leis da vida, que quer ascender. É
ta, que é útil respeitar. A mentira e a desordem não terão mais sua insuprimível necessidade evoluir para um futuro mais alto.
razão de ser, porque se compreenderá que tais métodos fazem Por isso a fé é também uma necessidade e fator biológico, por-
mal a si próprio e não convém. A vantagem residirá em estar que, com os seus poderes criadores, é elemento determinante do
unidos, e o dano estará na luta entre rivais. Entender-se-á, en- fenômeno da evolução. E de fato mudam as religiões, mas a re-
tão, que o amor ao próximo como a si mesmo é o negócio que ligiosidade permanece; mudam as crenças, mas fica a fé; mu-
dá mais lucro. O egoísmo será deixado aos involuídos, incapa- dam os grupos sacerdotais, mas fica o sacerdócio. Com o tem-
zes de compreender mais. Deus não será entendido como uma po, os meios de expressão, sobrepondo-se à ideia, acabam por
ameaça a ser temida ou um patrão a ser enganado, mas sim co- substituí-la, sufocando assim o primeiro impulso da vida, que,
mo a primeira fonte de todo o nosso bem. A deslocação de po- por sua vez, também destrói esses meios, porquanto, vazios da
sições é fundamental. Não se gravitará mais, como hoje, em di- ideia (seu princípio vital), já se tornaram inúteis. Novos instru-
reção ao AS, mas sim em direção ao S. Deus não será um pa- mentos são então chamados a cumprir a função de fazer descer
trão que se sobrepõe para dominar, mas representará o mesmo o ideal à Terra, porque os velhos não são mais um veículo, e
que o cérebro e o coração em nosso corpo, dos quais depende a sim um obstáculo. Não obstante a função permanece, mas sen-
nossa vida. Então desaparecerá a ideia de domínio e de sujei- do confiada sucessivamente a órgãos que devem ser cada vez
ção, consequência de interesses opostos, ficando a da coopera- mais evoluídos, para poder cumprir um trabalho também cada
ção em função de um único e mesmo interesse para todos. A vez mais evoluído. Assim avança a grande marcha da evolução,
posição do crente perante Deus se tornará então uma espontâ- com a descida dos ideais através do canal das religiões. A téc-
nea obediência, por livre e convicta adesão, numa atitude de in- nica é de tipo espiritual, interessando, portanto, à psicologia.
teligente compreensão, confiança e unificação. Dela constituem parte importante as imagens, o simbolismo, a
Antes de encerrar este tema, observemos outros aspectos da sugestão, a projeção do pensamento e toda a encenação do rito.
técnica usada pelas religiões para realizar a descida dos ideais. Esta tarefa exterior serve para realizar outra, interior, que é
Sabemos que se trata de uma importante função biológica a tare- formar a imagem mental na qual a ideia é personificada e leva-
fa que elas executam em sentido evolutivo. É dever da classe sa- da do plano espiritual, onde para o imaturo ela é irreal, ao plano
cerdotal proporcionar os meios para que este fenômeno possa re- sensório, onde para este ela se torna real.
94 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
A ideia em si é abstrata e foge à compreensão das massas. mental, que é fazer evoluir. O movimento está canalizado se-
Torna-se necessário levá-la com representações concretas ao ní- gundo a Lei e aponta em direção à grande meta: Deus. Tudo se
vel mental delas. É preciso construir, então, formas materiais encontra no seu devido lugar, estando adequado às condições
capazes de servir como instrumento de expressão da ideia, de do ambiente, à natureza humana, ao seu grau de desenvolvi-
modo que ela possa ser percebida pelos sentidos. Com seme- mento e à finalidade a alcançar. Eis que, dada a involução hu-
lhantes meios vai-se construindo o edifício mental estabelecido mana, o catolicismo usa a técnica mais adequada para realizar a
pelo ideal, que neles constitui o seu ponto de partida. A repre- descida dos ideais à Terra. Estamos ainda nos primeiros graus
sentação exterior outorga a imagem que concretiza a ideia, sen- da espiritualidade, nos passos iniciais de um caminho imenso.
do esta fixada pelas práticas exteriores, através da repetição, en- Mais não se pode pedir ao homem atual. As realizações espiri-
quanto a fé abre as portas da alma, permitindo que a ideia entre tuais, para serem de fato possuídas conscientemente, ainda têm
e ali fique. Por isso existe o rito, insistindo que se pratique e se de ser alcançadas, entretanto a fé as antecipa em forma de espe-
creia. Estes são os momentos de uma sábia técnica psicológica, rança e de sonho. A atuação do ideal está ainda longínqua. Cris-
que os representantes terrenos do ideal usam para se afirmarem to observa do alto, esperando, e o homem caminha na Terra,
no mundo, com o objetivo de criar novas formas de vida. para chegar a realizar o reino de Deus.
Aqueles que raciocinam, analisam e compreendem são pou- Concluamos este escrito. Percorremos um longo caminho,
cos. Trata-se, portanto, de educar as massas. Elas recebem pas- observando o trabalho que executam as religiões, sobretudo o
sivamente no subconsciente, aceitando por sugestão, sem com- cristianismo, para realizar o fenômeno da descida dos ideais à
preender, tal como sucede na domesticação de animais. Apren- Terra. Olhamos imparcialmente, para compreender sobretudo o
dem por repetição, sem pensar, tratando de se esforçar o menos significado do que vemos suceder no mundo, e não para julgar
possível. Sua tendência é continuar a se mover por inércia, me- com base em teses preconcebidas ou interesses de grupo. Se, de
canicamente, ao longo do caminho dos velhos instintos, traçado qualquer maneira, devia ser feito um diagnóstico, não se podia
pelo passado. O fenômeno é psíquico, mas nem por isso é cons- deixar de ver também o mal. Mas, onde o encontramos, também
ciente, o que não impede que ele funcione e alcance a sua meta. vimos o bem, para nos agarrarmos a ele e salvar o que se podia
Por isso notamos anteriormente que a religião insiste nessa po- salvar. Apesar de tudo, nossa visão é otimista, pois temos fé na
sição mental chamada fé, dando grande importância à questão vida e na sua sabedoria, porquanto esta é a sabedoria de Deus,
da prática, que serve para fixar o novo através de uma repetição que a dirige. Por dentro desta nova perspectiva, trabalhamos em
forçosa. Estes são dois momentos da técnica psicológica dedi- sentido positivo, construtivo, e não em sentido negativo, destru-
cada a realizar, por assimilação automática, a descida dos ide- tivo. Falamos claro porque o mundo tem necessidade de clareza,
ais. Se, na fé, elimina-se o controle racional, isto não significa além disso não se pode resolver os problemas escondendo-os ou
que ela seja destituída de uma função construtiva. Além disso, esquivando-se deles, mas somente enfrentando-os.
se o consciente, sem aquele controle, é usado, pelo contrário, É necessário salvar a substância das religiões, porque os
em uma atitude passiva, isto se faz precisamente para facilitar a seus edifícios terrenos ameaçam cair. É necessário compreender
receptividade do espírito, permitindo assim a admissão de no- que elas não podem ser liquidadas, como hoje se desejaria,
vas ideias. Para este objetivo, a discussão com análise crítica pois, realizando a descida dos ideais, as religiões cumprem uma
pode ser contraproducente. A finalidade é cumprir uma função função biológica fundamental para a evolução. A ciência, o ma-
educadora, e não desenvolver a mente para conquistar conhe- terialismo e o comunismo assaltam as velhas construções da fé,
cimento. Para quem não sabe pensar, colocar-se no terreno das que se desfazem na mente das massas, enquanto o mundo não
análises só pode gerar confusão e cisões. Por isso o catolicismo tem ainda nada capaz de substituí-las no campo espiritual. O
afirma uma verdade revelada, sobre a qual não admite discus- conservadorismo prudente, que procura proteção dentro da ca-
são, preferindo a inércia mental do fiel que crê e não pensa, ce- sa, pode, quando esta cai em cima de todos, significar a morte.
go mas obediente, do que o desejo de conhecer a verdade por Não é honesto alimentar a hipocrisia da moda, colocando-se na
parte da mente aberta, mas independente. A massa é feita de sua corrente, porque vivemos numa hora decisiva e a via dos
primitivos, que não sabem conduzir-se, sendo este tipo corrente enganos pode ser catastrófica. Os velhos métodos para manter
conveniente para o catolicismo, cujas formas pedagógicas são de pé as religiões e o seu poder não servem mais. A vida deixa
adequadas a tal tipo, servindo para levá-lo mais adiante. No en- sobreviver somente aquilo que lhe é útil para evoluir, sendo bi-
tanto é natural que, para quem, por maturação própria, encon- ologicamente importantíssimo para isso o campo espiritual. Ho-
tra-se mais adiantado, semelhantes métodos tragam atraso, em je, as aparências já não bastam e as astúcias não persuadem.
vez de avanço. É assim que os mais evoluídos não podem mar- Desejam-se verdades positivas, sólidas e convincentes, para be-
char nas filas sem ficar espiritualmente sufocados. Por isso eles nefício das massas, e não só de uma classe dominante.
permanecem religiosos, mas sem intermediários, que – mesmo O catolicismo procura atualizar-se. Mas não bastam os reto-
sendo preciosos e indispensáveis para educar os menos evoluí- ques. É necessário renovar a forma mental, para reencontrar a
dos – abaixam tudo ao seu nível, quando não são evoluídos. substância sepultada sob as formas e recomeçar desde o princí-
É assim que, através da sugestão obtida com a pregação, re- pio. É preciso regressar às fontes, ao Evangelho esquecido, to-
alizada através da longa repetição de pensamentos e de atos co- mando Cristo a sério e retirando tudo aquilo que, em tantos sé-
nexos a determinados estados de ânimo – técnica que vai do ex- culos, foi sobreposto à Sua ideia pelo homem, interpondo-se
terior ao interior – algo se imprime e se fixa no inconsciente. entre Ele e nós. É necessário exumá-Lo do túmulo que Lhe foi
Em virtude de uma tendência à repetição rítmica, até mesmo a erigido pela mecânica da burocracia eclesiástica. A tarefa de
nível celular, estabelecem-se mecanicamente automatismos salvar a ideia de Cristo corresponde ao cristianismo.
que, depois, tornam-se hábitos e, por fim, instintos. Isto signifi- Hoje, saltam aos olhos as contradições que antigamente
ca a criação de novas qualidades na personalidade, que deste passavam inobservadas, tais como pregar o amor evangélico e
modo, enriquecendo-se, evolui. Esta é a técnica com a qual a abençoar as armas, exaltar a pobreza e possuir riquezas, difun-
vida conserva e armazena as suas experiências, técnica ainda dir o ideal com os métodos da luta política. Vê-se também a ci-
hoje utilizada, estando proporcionada ao biótipo dominante, ência, por um lado, defendendo a vida com a medicina e, por
que funciona em estado de inércia mental, por sugestão e imita- outro, construindo bombas atômicas para destruí-la, sem que as
ção. Trata-se de uma técnica sábia, porque ela se adequa ao ter- religiões tenham nenhum poder para impedir isto. Vivemos
reno no qual trabalha, sabendo utilizar os seus escassos recur- numa época de desagregação moral. Mas será que o mundo está
sos – tarefa nada fácil – para satisfazer a necessidade funda- imoral porque se corrompeu, ou porque hoje se deseja ver tudo
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 95
claramente, por uma sã necessidade de sinceridade, como rea- Este é o fenômeno ao qual estamos assistindo hoje. É a hora
ção à hipocrisia do passado, que deixava tudo bem encoberto? do exame e do juízo. A vida está efetuando uma seleção para
Não será mais honesto falar abertamente, para que, sem fugas e eliminar os indivíduos ainda imaturos nervosa, mental e espiri-
ficções, tudo seja conhecido e enfrentado, podendo ser mais tualmente, incapazes de saber viver num plano evolutivo mais
bem resolvido? Não será isto uma necessidade de destruir, avançado. Hoje é a hora do salto. Quem preparou para si pró-
mesmo à custa do bom, o que está velho, desde que se limpe a prio as pernas dá um salto à frente; quem não as preparou fica
sujeira, onde estava tudo misturado? para trás. Tem lugar então a separação. À frente vão os evoluí-
Nota-se de fato, em cada campo, uma tendência à supera- dos, para formar uma humanidade nova, verdadeiramente civi-
ção, que é revolta destrucionista contra o passado e, ao mesmo lizada; atrás, porque não souberam superar o obstáculo, ficam
tempo, ânsia de encontrar qualquer coisa de novo e melhor. os involuídos, qual lastro e camada baixa da humanidade, à
Mas, se não se conseguir criar algo melhor para substituir o que procura de outros níveis inferiores. Conhecemos os métodos da
se destrói, esta ânsia de renovação nos deixará cair no vazio. vida, que sabe colocar cada coisa em seu lugar, com o seu ver-
Compreende-se e justifica-se esta revolta. Mas ela constitui dadeiro valor. No passado, tal seleção se realizou no plano da
só o lado negativo do fenômeno, que, dada a ação lógica da vi- matéria e da força bruta. O biótipo que a vida queria construir
da, deve ter também o seu lado positivo. Não nos podemos de- então era o homem fisicamente forte, o guerreiro feroz e vence-
ter, portanto, no seu aspecto destrutivo. Se não quisermos ser dor, o domador de um mundo inimigo. Hoje, a seleção se reali-
unilaterais, temos de ver também o seu aspecto complementar, za no plano nervoso e cerebral, da inteligência e do espírito. O
construtivo. Portanto nada de pessimismos ou de filosofia de de- homem está adquirindo novas qualidades, mais requintadas,
sespero, hoje em moda. Tudo isto é para os espíritos decadentes. com as quais potencializa-se e sensibiliza-se, aprendendo a tra-
Nós cremos na vida, no ideal, no futuro. Precisamente porque balhar em novos campos, com novos meios, dominando novas
nos encontramos no meio da negatividade destrucionista, deve- forças. Isto exige outra consciência e novo conhecimento, com
mos ser positivos e construtivos. Neste escrito, a nossa crítica poderes superiores de controle para dirigir as novas capacida-
tem valor somente como meio de renovação e melhoramento. des. Não mais cavaleiros da espada, mas sim da mente, do pen-
Exatamente porque o mundo está em descida, é necessário exe- samento e da alta tensão psíquica, como é a vida moderna.
cutar o esforço da reascensão. Pode-se sentir o atual desespero O homem novo não pode mais se aninhar nas posições ofe-
destrutivo e até tomar parte nele, mas só como uma fase que tem recidas pelos valores tradicionais, baseadas no consentimento
de ser atravessada, para se sair dela melhor, curando-se, e não convencional que se construiu em torno delas, necessário anti-
para morrer. Estamos de acordo que os velhos ideais, esplêndi- gamente para dar uma certa estabilidade à sociedade humana
dos e altissonantes, foram reduzidos a hipocrisia, com o mau em períodos de longa incubação. A tempestade atual destrói os
cheiro da mentira, mas precisamente por isso devemos purificá- ângulos mortos nos quais podiam entrincheirar-se os comodis-
los e criar outros novos, com os quais se possa avançar. tas de antes. Os ideais do passado representam um produto can-
Se o mundo está corrompido, é preciso reagir, para salvá- sado, já demasiadamente explorado. O homem novo se encon-
lo. Se a reação é em descida, em vez de o ser em subida, então tra perante problemas imensos e deve resolvê-los. Terminou o
é o fim. É necessário empreender o esforço da reascensão. Os período da inércia espiritual conservadora, no qual a animalida-
débeis acabam no ateísmo, na inércia, nas drogas, no vício, no de, satisfeita pela vida vegetativa, não se propunha problemas.
desespero, no suicídio. A esta tendência opomos a esperança, Hoje, o comunismo assoma para acabar com todas as religiões.
a fé criadora, a superação no espírito, a potência do ideal. O Antigamente, a propriedade era garantida e ficava numa família
caminho da evolução está traçado em subida, não em descida. por séculos; hoje nos perguntamos quanto ela durará. Antes, só
É necessário emergir em direção à vida, que está cada vez alguns iam à guerra, enquanto os políticos que a declaravam fi-
mais no alto, e não se deixar tragar pelo pântano, o que signi- cavam em casa; agora, a bomba atômica destrói tudo, estando
fica morte. Nestes escritos, traçamos no alto um ideal e a ele suspensa sobre as cabeças de todos. No passado, poucas ideias
nos agarramos, para ascender, porque queremos a vida, sem- bastavam para viver e se transmitiam de pais para filhos; atu-
pre mais vida. Rebelamo-nos ao retrocesso involutivo, a gran- almente, a ciência, com as descobertas e a técnica, desloca cada
de ameaça atual em direção à qual tantos se lançam inconsci- dia mais os limites do conhecimento e as condições de vida.
entes. Aos ataques do Anti-Sistema respondemos com um gri- Antigamente dormia-se sobre o leito da tradição; hoje se estre-
to de guerra em nome do Sistema. mece no caminho das revoluções.
Se os velhos ideais foram reduzidos a instrumentos de poder Ai de quem se lança por atalhos para fugir ao esforço da as-
do subconsciente instintivo, sendo rebaixados por este ao nível censão no momento decisivo da curva, quando a evolução se
animal, temos de retomá-los e revivê-los, sustentando-os pelo dirige para uma solução. O período atual não é de espera e re-
controle do pensamento, para levantá-los até ao plano racional pouso. Quem não enfrenta o caminho que sobe pela encosta ín-
e científico. É preciso compreender que, se os ideais decaíram, greme do monte, fica atrás, superado. Somente a quem for em
não é porque eram falsos, mas sim pelo abuso que se fez deles. frente pertencerá um melhor futuro. Esta nova forma de seleção
Corrigido o abuso, eles valem e servem à vida. Ficar no nível biológica não é senão o último momento de uma maturação mi-
de uma ciência materialista, espiritualmente agnóstica, significa lenária. Nesta transformação evolutiva aflora e irrompe aquela
que não se compreendeu a vida, querendo paralisar a evolução. longa preparação, exigindo a sua conclusão.
O futuro pertence a quem luta para avançar. Está escrito nas leis da vida que ela caminhe neste sentido.
Para piorar as coisas, num mundo que se afunda, a reação Semelhante escolha de caminho põe em jogo o problema da sal-
de muitos consiste em se deixar afundar cada vez mais, tor- vação. Deve-se avançar porque a vida não é um fim em si mes-
nando-se piores e acelerando a descida para a perdição, ao in- ma, mas está feita, isto sim, para evoluir, subindo cada vez mais
vés de subir para a salvação. Mas o tipo de reação é justamente em direção a Deus, a meta suprema na qual se conclui a grande
o fator que revela o valor biológico do indivíduo, estabelecen- marcha ascensional. Conquista-se a salvação grau por grau, ele-
do o seu nível evolutivo e o seu futuro destino. Sabemos que a vando-se a um nível biológico cada vez mais alto. A humanidade
vida não deixa subir os que não merecem. Hoje é a hora em está saindo da menoridade e se prepara para tomar as diretivas da
que se fazem as contas. Há um obstáculo a superar. Ele está in- evolução no seu planeta. A vida é vida somente enquanto é uma
terposto entre dois planos de evolução. Quem não for capaz de superação contínua. Vai-se do AS ao S. Na curva atual tem lugar
superá-lo não passará ao nível superior, tendo de permanecer a passagem da esfera de atração do AS para a de atração do S, le-
embaixo, no seu nível biológico inferior. vando do estado de caos ao de ordem orgânica. A humanidade se
96 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
encaminha para a harmonização, a colaboração e a unificação, Para o cientista, o filósofo não é positivo. A filosofia não
condições em que será superado e deixado para trás o tradicional merece atenção, porque se ocupa de coisas afastadas da realida-
estado de luta, com todos os erros e dores a eles conexos. Trata- de. Para o filósofo, o cientista é um ignorante dos problemas
se de um tipo de vida mais alto e feliz, mas ele não pode ser al- universais. Se o filósofo se torna cientista, é julgado um incom-
cançado sem um equivalente esforço, que traz consigo, no entan- petente. Se o cientista se torna filósofo, não é reconhecido, por-
to, a sua justa recompensa. Ela consiste em poder sair das cama- que não usa a linguagem e a técnica conceptual da investigação
das baixas da animalidade, para nos transformarmos em verda- filosófica. Não obstante, sem a cooperação de todos os investi-
deiros homens e, amanhã, em super-homens. gadores e sem a confluência de todos os rios da sabedoria, não
se conseguirá ver qual é o lugar que corresponde ao homem no
XII. CIÊNCIA E RELIGIÃO universo da matéria, da vida e do espírito, tornando-se impossí-
vel captar a completa dimensão biológica do homem. Uma vi-
A humanidade necessita não somente chegar a uma religião são limitada ao particular é uma visão incompleta.
científica, mas também construir uma ciência que entenda, ex- Deste modo, a ciência deixa de lado fenômenos de imenso
plique e sustente o conteúdo das religiões, para poder assim, uti- valor humano, como as indemonstráveis intuições das religi-
lizando todos os valores biológicos, orientar-se melhor, utilizan- ões, que, no entanto, levaram a consequências históricas, soci-
do todo o conhecimento, energias e ideias que possam ser úteis à ais e políticas de suma importância perante o fenômeno evolu-
vida. Hoje, pelo contrário, encontramo-nos ainda numa fase de tivo da humanidade. Entre tais afirmações, sobretudo a judai-
inimizade entre ciência e fé. No entanto elas são apenas duas di- co-cristã soube inserir o conceito de Deus na vida do homem,
ferentes maneiras de ver e apresentar a verdade, que é uma só. como princípio unitário, síntese máxima e ideal orientador da
Cada uma, partindo exclusivamente do seu ponto de vista, julga vida, numa visão de conjunto que permite uma compreensão
possuí-la toda e, assim, contrapõe a própria visão de um aspecto mais ampla e profunda da história e do fenômeno social, na
da verdade às outras visões e aspectos, condenando-os como er- medida em que este não é senão um momento do fenômeno
ro. Daqui derivam atritos, exclusivismos e sectarismos, nos vida e a história não é senão um momento do fenômeno evolu-
quais se expressa, também neste campo, a lei da luta pela vida. ção. Só assim o homem pode estabelecer a sua posição no
É necessário unificar o pensamento humano com uma sínte- tempo em relação a momentos muito longínquos, o que dá à
se que possa fundir as especializações analíticas da ciência com sua existência um significado muito mais amplo e completo.
as verdades intuitivas universais das religiões, que, apesar de Para o homem, será um progresso imenso ampliar as dimen-
não serem demonstradas, são complementares das científicas, sões de tempo e espaço em função das quais ele vive. Tal con-
racionalmente comprovadas. Hoje, o conhecimento está dividi- quista lhe possibilitará existir em função de um universo mais
do, sendo unilateral e incompleto. Torna-se necessário uni-lo, vasto e mais conhecido do que aquele em relação ao qual ele
fundindo-o numa verdade única que abarque o todo, tanto o viveu até agora, permitindo-o orientar-se cada vez melhor e
particular como o universal. O atual espírito de análise deve ser obter, assim, maior segurança e potência.
integrado com um paralelo espírito de síntese, se não quisermos Uma visão de conjunto, oferecendo uma síntese universal,
que a ciência se perca em detalhes práticos e utilitários, deixan- pode dar-nos a concepção unitária do todo, na qual é inevitável
do de alcançar o essencial e o universal. Hoje, a ciência tende a o desaparecimento da atual cisão do pensamento entre o aspec-
um tecnicismo dirigido a fins concretos. Escapam-lhe assim, to materialista e o espiritualista da mesma verdade, superando
cada vez mais, os valores morais e espirituais, que, no entanto, assim aquela fase mais primitiva do conhecimento, dada pela
são indispensáveis para orientação e direção da vida. Se não se concepção separatista. Hoje, como dizíamos, o cientista filóso-
obtiver uma visão de conjunto, que, além da técnica do funcio- fo é condenado tanto pelos cientistas, que o consideram defici-
namento dos fenômenos, também nos diga o porquê e a finali- ente no aspecto técnico e positivo, como pelos filósofos, que o
dade de tal funcionamento, ficaremos sem um princípio para julgam inábil para usar a linguagem e os conceitos filosóficos.
nos guiar em nossa conduta, inclusive com relação a uma sábia No entanto a função dele não é ficar encerrado em nenhum dos
utilização dos produtos da ciência. O cientista desdenha ser fi- dois campos, mas sim estender-se em ambos, dando às especu-
lósofo, e o filósofo não é cientista. Uns e outros prescindem das lações da filosofia as bases positivas da ciência e elevando as
religiões. Tanto progresso intelectual, sem uma tal orientação, constatações positivas da ciência até às abstratas generalizações
acabará numa torre de Babel, onde será impossível se compre- da filosofia. Trata-se de alcançar uma fusão na qual cada uma
ender uns aos outros para se coordenar os próprios esforços, das duas partes dê a sua contribuição completa, e não de fazer
impedindo a fusão do conhecimento numa única sabedoria. Não uma união à força, na qual, em vez de cooperarem, cada uma
basta ver os fatos isolados, é necessário compreender também procure prevalecer sobre a outra, adaptando-a aos seus próprios
as suas relações e o significado do seu conjunto. objetivos. Não se trata de um aproveitamento ou deformação da
Que faremos de tantos especialistas isolados, que tendem ciência, com a finalidade de fazê-la concordar com a filosofia e
cada vez mais a se separar e a quase se eliminar como rivais, a religião, torcendo o materialismo para adaptá-lo ao espiritua-
dedicando-se a cavar no terreno da investigação um buraco es- lismo, nem de uma contorção ou mutilação da filosofia e da re-
treito e profundo, sem saber fazer surgir uma visão geral de to- ligião, com a finalidade de fazê-las concordar com a ciência,
do o terreno sobre o qual trabalham? É necessário possuir tam- deformando o espiritualismo para fazê-lo aderir ao materialis-
bém este conhecimento maior, para se saber qual a conexão da- mo. O objetivo não está em contorcionismos ou acomodações
quele ponto que se está aprofundando com o que há em sua vol- oportunistas, mas sim na convergência, através da qual as duas
ta. Isto é necessário num universo orgânico, onde tudo, através visões, ao invés de opostas, tornam-se complementares, acer-
de proximidade, causalidade e afinidade, está ligado num con- cando-se uma da outra para se compreenderem e colaborarem, e
junto, repercutindo tanto mais em todo o resto, quanto mais lhe não para lutarem e se eliminarem. Trata-se de somar e fundir
está próximo no espaço e no tempo. No entanto faz-se ao con- ambas as afirmações, superando as negações mútuas. A ciência
trário, isolando-se o fenômeno particular do todo universal. A pode oferecer a parte experimentalmente provada e positiva-
ciência clássica distingue e enquadra, mas assim, em vez de mente segura. As religiões podem oferecer a outra parte do co-
unir, separa os elementos do todo. Para ela, o resto é metafísica. nhecimento, que a ciência não pode dar, porquanto esta não
Assim, separando as coisas nos seus elementos constitutivos e possui os meios utilizados por aquelas para alcançá-lo. Quem
os fenômenos nos momentos do seu desenvolvimento, ela não decidiu que a intuição, a inspiração e a revelação não podem
obtém o conhecimento, mas apenas uma sua parte ou aspecto. representar um meio de investigação para oferecer uma contri-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 97
buição ao conhecimento? Este isolamento numa dada visão da Esta nova perspectiva amplia e aumenta de tal forma a vi-
verdade, de modo exclusivista e separatista, fechando os olhos são, que tudo se transforma. Já não se trata de um simples fato
para não ver o que possa existir mais além, corresponde às qua- exterior, porque agora ele contém um psiquismo interior, que
lidades do primitivo egocêntrico e involuído, significando mio- veio animá-lo. Psiquismo que, antes desse fato, não existia e do
pia, psicologia limitada, estreiteza de horizontes conceituais, qual agora se tornou expressão. Então ele se nos revela sob uma
aprisionamento mental apriorístico. A evolução do pensamento luz diferente, porque já não o vemos esgotar-se em si mesmo,
deverá abandonar esta sua fase atrasada e chegar assim a perce- completo apenas nessa sua forma, mas sim existir em função de
ber a realidade numa dimensão mais completa. A priori, nada outros valores interiores, até então desconhecidos de nós. So-
nos autoriza afirmar que o método de investigação usado pela mente olhando mais acima vemos crescer algo mais nos fenô-
ciência deva ser o único e definitivo, não podendo ser, por evo- menos, percebendo um enriquecimento de qualidade e signifi-
lução do instrumento psíquico humano, superado no futuro. cado, como se eles, vistos em função da evolução e movendo-
◘◘◘ se nesta nova dimensão, aumentassem e se tornassem gigantes.
A nova realidade que a ciência deverá positivamente alcan- Como se explica que, na semente, o mais se desenvolve do
çar amanhã não poderá limitar-se à dimensão matéria. O pro- menos? Tal crescimento parece um aumento apenas para quem
blema do espírito existe e não pode ser resolvido negando-se a vê somente a forma física, que é o instrumento material da exis-
sua existência, como até agora fez a ciência materialista. É justo tência. A ciência positiva se limitou a observar o ser apenas sob
que se deva ser positivo, para evitar assim perder-se em lucu- este aspecto, que, apesar de não constituir toda a realidade, é
brações filosóficas fora da realidade. Mas, só porque alguns as- uma parte importante dela. Para compreendê-la toda, no entanto,
pectos da vida não podem ser alcançados pelos caminhos da ci- é necessário ver também a outra parte, interna e oculta, que foge
ência nem explicados em forma positiva pela metafísica, não se à investigação sensória, mas é a verdadeira causa daquele
tem por isso o direito de suprimi-los, desdenhando considerá- “mais”, representado pelas formas nas quais o vemos aparecer
los, desinteressando-se e não tomando conhecimento deles. Por depois, no exterior, em nosso plano sensório. Compreende-se
que ao cientista – quando este já recolheu e tem diante de si então que este florescimento exterior, mesmo constituindo pro-
uma série de fatos garantidos como verdadeiros, pois experi- gresso através da evolução, não é uma criação, mas sim uma res-
mental e racionalmente controlados, inclusive nas suas conse- tituição, constituindo uma reconstrução daquilo que pertenceu
quências – deve ser proibido meditar sobre eles, negando-se-lhe ao S e que agora, por involução, encontra-se decaído no AS. A
a possibilidade de transformar-se em filósofo pensador, que de- ciência atual vê somente o lado exterior do fenômeno do ser,
seja conhecer não só aquela realidade mas também o seu íntimo atendo-se apenas a uma parte dele. Isto não está errado, mas tra-
significado? Por que lhe deve ser proibido penetrá-la também ta-se de uma visão incompleta, porque ignora o lado oposto e
neste seu nível mais profundo? Por que deve ser anticientífico complementar, que é o princípio interior animador das coisas.
interessar-se também por estas outras possíveis faces da verda- A progressiva complexidade das formas que expressam o
de? Com que direito pode-se negar a priori uma possibilidade psiquismo não é a causa do seu progressivo aperfeiçoamento,
de ampliação do conhecimento positivo inclusive neste sentido? mas sim efeito deste. O sistema nervoso e cerebral, mais com-
Assim, corre-se o risco de ficar isolado na visão de apenas al- plexo no homem do que nos animais – os quais, sendo hoje infe-
guns aspectos limitados dos fenômenos, permanecendo na ig- riores a ele, precederam-no evolutivamente – não é a causa da
norância a respeito dos outros. sua maior inteligência, mas sim consequência da necessidade
Não podemos dizer que realmente compreendemos o homem que esta tem de um mais complexo instrumento para poder ex-
todo, quando nos limitamos a observar apenas a sua estrutura or- pressar-se e interagir no plano sensório. Mais exatamente, as du-
gânica, que expressa a sua personalidade no nível físico, químico as partes se integram num dualismo de duas complementarida-
e biológico, através de um mecanismo nervoso cerebral. Não o des opostas, que constituem a mesma unidade. O homem poderá
teremos assim mutilado, fazendo dele uma imagem incompleta, construir cérebros eletrônicos, mas com isto somente reproduzi-
que por isso não corresponde à realidade? Por que não querer ver rá o instrumento exterior do pensamento, a mecânica de que este
todo o fenômeno, inclusive nos seus níveis mais altos? se serve para a sua manifestação. Estes dispositivos serão sem-
Temos motivos para crer numa dúplice estrutura do univer- pre máquinas inanimadas, geradas por uma ação exterior, e não
so, dada por um aspecto bifrontal já intuído pelos pensadores, por uma autoconstrução interior. Falta-lhes a parte interior do
da qual a ciência suspeita. Esta dualidade nos indica que, além fenômeno, aquela que encontramos na vida. Estas máquinas po-
da realidade fenomênica exterior, deve existir uma outra, inte- derão ser mais um instrumento para ser acrescentado e utilizado
rior, a qual constitui a verdadeira substância do universo e dele junto com aqueles que o pensamento já construiu para si mesmo
pode nos revelar o verdadeiro significado. Nós já defendemos no plano orgânico, mas, como instrumento, continuam sendo
isto, afirmando o dualismo S e AS. Então um panpsiquismo, subordinadas e, portanto, permanecem sempre a serviço deste
que anima todas as coisas, iluminando-as por dentro, dá um pensamento, que só o homem possui. A ciência materialista, pa-
profundo significado à sua existência, conceito ainda não al- ra permanecer positiva, desinteressou-se, como se ele não exis-
cançado pela ciência. Também a própria matéria se anima. Por tisse, deste outro lado do fenômeno, que lhe escapava. Mas a
que tal concepção deveria estar fora da realidade? Isto não está existência também desta contrapartida imaterial na vida é pro-
em oposição à ciência positiva, mas é um seu complemento, re- vada pelo fato de seu instrumento de manifestação ser uma es-
presentando um edifício mais alto que se pode construir sobre trutura que se apoia num processo de renovação contínua. Trata-
as suas bases sólidas. Nestes níveis mais altos, a matéria conti- se de uma arquitetura dinâmica, e não estática, funcionando or-
nua existindo com as suas leis e propriedades, no entanto, ganicamente, através de uma constante destruição e reconstru-
mesmo continuando a segui-las, é utilizada para outros objeti- ção, como sucederia num edifício cujos elementos componentes
vos, de tipo mais evoluído e complexo. Então o simples fenô- fossem continuamente substituídos por outros, colocando-se os
meno físico-químico se aproxima e é levado a concordar com novos exatamente no lugar dos velhos, de maneira que, apesar
outros fenômenos afins mais adiantados. Ele aparece então de mudar a matéria-prima, o edifício permanece o mesmo. As-
existindo numa nova dimensão, sendo coordenado em função sim, apesar de estar em permanente transformação, o indivíduo
de uma finalidade superior, para a qual é dirigido e em função continua, no entanto, a ser o mesmo indivíduo. Isto permite que
da qual o fenômeno passa a existir com outro valor e significa- o ser, apesar de continuar sendo o mesmo, transforme-se por
do, visto que já não está isolado e fechado em si mesmo, mas meio de imperceptíveis e sucessivos deslocamentos, processo
sim aberto, movimentando-se em direção àquela finalidade. através do qual se realiza a evolução. Obtém-se assim um ins-
98 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
trumento maleável, adaptado às exigências do psiquismo, que dir, tanto mais deverá aprofundar a sua investigação, penetran-
dele se serve segundo as suas necessidades, proporcionalmente do no terreno da metafísica. Esta, por sua vez, quanto mais qui-
ao seu diverso grau de evolução. Este transformismo é um fato ser ser completa, tanto menos poderá prescindir de conhecer o
positivo inegável. Aquilo que permanece estável no meio desta instrumento da manifestação do espírito.
corrente de matéria flutuante é o tipo de organização que guia e ◘◘◘
disciplina os seus movimentos, sendo este o princípio diretivo Este dualismo, dado pela união de dois opostos no seio da
constante que dirige todo o fenômeno. Eis a sua outra parte, que mesma unidade, é encontrado em medida muito maior no fe-
é interior e o completa. Sem esta faltaria nele o elemento cons- nômeno máximo de toda a criação, porque não se pode separar
tante, que permanece onde tudo muda, unindo os momentos su- Deus e universo, o transcendente e o imanente, o espírito ani-
cessivos do transformismo, impedindo que ele se disperse, cana- mador e todas as formas nas quais ele se manifesta. O princípio
lizando-o ao longo de um caminho marcado e fazendo-o con- que rege o fenômeno é sempre o mesmo. Conforme o exame
vergir em direção a um objetivo pré-estabelecido. que fizemos, nos volumes A Grande Síntese, Deus e Universo,
A unidade individual de cada ser, que o distingue de todos os O Sistema e Queda e Salvação, sobre todo o ciclo involução-
outros, é este eu interior, estando nele a alma do fenômeno vida. evolução, o qual sai do Sistema e regressa para ele, sabemos
Deste fenômeno a ciência deverá chegar a ver, além do aspecto que esta conjunção de opostos não é eterna, porque o dualismo
físico exterior, também o espiritual, e isto inclusive nos graus no qual se cindiu a unidade, devido à revolta e queda, é fenô-
mais involuídos da existência, como na matéria. Ela é conside- meno transitório, sanável com o retorno do termo emborcado, o
rada inanimada, mas já se descobriu que está saturada de um AS, à sua origem, no seio do outro termo, o S, ou seja, Deus.
complexo pensamento, pelo qual o seu funcionamento é dirigi- Eis que a forma – o instrumento constituído pela matéria para
do. Psiquismo então de diversos graus, mas sempre onipresente, expressão do espírito – é só um meio destinado a desaparecer
em forma de pensamento, de princípio, de lei diretiva. Em qual- no fim, reabsorvido no psiquismo animador. Assim a matéria
quer nível, o sistema é o mesmo. Seja inferior ou superior, mais voltará ao seu estado de origem: o espírito; o AS regressará ao
ou menos desenvolvido, o psiquismo está sempre em evolução, S; o Deus imanente, projetado na forma do universo físico –
estando o germe daquele mais avançado, que aparecerá depois, seu corpo e instrumento de expressão na fase evolutiva atual –
contido dentro do menos avançado. É uma espiritualidade uni- retornará ao seu aspecto de Deus transcendente. Saneada, atra-
versalmente imanente nas formas, que lhe fornecem consistência vés da evolução, a queda por involução na matéria, tudo volta
física e constituem o seu instrumento de expressão. É assim que ao estado original de pensamento. Esta atual necessidade pela
não se pode separar um do outro, o aspecto material e o aspecto qual o espírito, conforme acabamos de ver, não pode manifes-
espiritual do fenômeno, seu lado transcendente e seu lado ima- tar-se senão utilizando como instrumento a matéria, sendo obri-
nente. A matéria, por si só, não é completa nem autossuficiente, gado a descer e fundir-se nela, para encontrar ali a sua expres-
sendo insuficiente, sem o suporte de um psiquismo animador e são, é como uma corrupção por involução, necessidade da qual,
regulador, para explicar e governar a vida. no entanto, o próprio espírito, por evolução, vai-se libertando
A contraposição entre matéria e espírito deriva, como um progressivamente, constituindo formas cada vez menos materi-
momento seu, do principio universal do dualismo, que abarca ais e sempre mais refinadas e sutis, aptas a expressá-lo à medi-
tudo e tudo envolve, em razão do qual devia surgir uma cisão da que, evoluindo, ele se aperfeiçoa. Assim, ao longo do cami-
também entre estas duas posições da existência. E isto corres- nho da evolução, a estrutura do instrumento se transforma, mo-
ponde à realidade. Mas o erro consiste em querer entender tudo dificando suas características, de modo a ficar proporcionada ao
isto como um antagonismo de opostos, quando se trata apenas grau de evolução da sua respectiva unidade espiritual, que deve
de unilateralidade de termos complementares, formando os dois servir-se dela para a sua manifestação. É assim que, através da
polos de uma mesma unidade, os quais, em vez de parti-la em evolução, o meio de expressão e instrumento de trabalho do es-
dois, fazem dela um elemento compacto, que se mantém sem- pírito, para acompanhar em posição paralela o desenvolvimento
pre como tal, não obstante ser constituído por dois momentos. psíquico, vai-se completando, complicando, sutilizando e, po-
Apesar de ter duplo aspecto, a realidade é uma só. A divisão se de-se mesmo dizer, desmaterializando, de modo a se tornar um
deve ao fato de ser possível observá-la sob dois pontos de vista órgão sempre mais inteligente e mais afim do pensamento, que
diferentes. O Céu e a Terra, o alto e o baixo, espírito e matéria, deve funcionar através de tal meio.
estão incluídos no mesmo universo. A realidade material e a Esta é a história da evolução. Ela vai desde o polo matéria
espiritual são posições diferentes da mesma realidade, que pode até ao polo espírito. Hoje, no atual nível, encontramos estas du-
ser vista tanto no seu aspecto científico como no metafísico. A as posições do ser coexistindo fundidas, porque a matéria ainda
unidade que de fato existe é um composto, formado pela fusão não foi superada para se chegar plenamente ao espírito. Mas, no
de dois momentos: o princípio espiritual, que anima a forma fim, o dualismo deverá cessar, porque o aspecto matéria da
material, e a forma material, que veste e expressa o princípio substância será reabsorvido no seu aspecto espírito. Se o ins-
espiritual. Na realidade, não existe de um lado o espírito e, de trumento no qual hoje vemos submergido este último é um pro-
outro, a matéria, mas sim um espírito encarnado e uma matéria duto da involução, é lógico que, por evolução, ele deva perder
inteligentemente organizada. A organização se torna sempre cada vez mais as qualidades da matéria, até desaparecer como
mais complexa, quanto mais alto e espiritual é o grau de cons- tal, e adquirir sempre mais as qualidades do espírito, até que,
ciência que encontra naquela forma o instrumento da sua mani- reconstruindo-se nesse estado em toda a sua potência e pureza,
festação. A interpenetração entre os dois termos é profunda, não tenha mais necessidade de se enxertar em tais densos mei-
não sendo possível, na posição em que eles se apresentam na os, para funcionar e encontrar a sua expressão. Neste processo,
Terra, durante a vida, separá-los, porque formam uma só reali- vemos a matéria sofrer uma profunda transformação, que a ela-
dade, mesmo sendo lógico que, depois da morte da parte física, bora e a organiza, dispondo os seus elementos constitutivos em
o indivíduo se retraia no outro polo do ser, pois o dualismo, formas sempre mais complexas. Notamos isto através da dife-
constituindo a unidade, significa oscilação de um extremo dela rença existente entre as células do sistema ósseo-muscular e as
ao outro. Desta unidade, que é o homem vivo na realidade, a ci- células do sistema nervoso-cerebral. Na construção dos orga-
ência olha o lado material, e a metafísica vê o lado espiritual. nismos, a tendência da evolução é superar e fazer desaparecer
Medicina e biologia se dedicam ao corpo, e as religiões, à alma. as qualidades físicas, para dar lugar às psíquicas. Esta é a razão
Mas, em vez de colaborarem, somando os seus esforços, estes pela qual, sobre a matéria, termina por prevalecer cada vez mais
dois ramos do saber se eliminam. Quanto mais a ciência progre- o que é pensamento e espírito; sobre a quantidade, a qualidade;
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 99
sobre a massa dos elementos, a complexidade da sua organiza- do terreno positivo da realidade sensória), o espírito não possa
ção. Este contínua fusão entre espírito e matéria num único existir isoladamente, por si mesmo, livre da necessidade de,
composto transforma em profundidade a estrutura desta, levan- para se manifestar, utilizar tal instrumento, sem o qual hoje, na
do-a deste seu estado físico a um estado mais evoluído, no qual Terra, não se perceberia a sua presença.
ela perde as suas qualidades de matéria e, por uma espécie de Estas considerações nos obrigam a admitir a sobrevivência
redenção por evolução, adquire as do termo situado no polo do indivíduo no estado de espírito. Isto significa aceitar que seja
oposto, o espírito, para o qual tudo tende. possível o homem viver também sem corpo, de modo indepen-
Vivemos num mundo de verdades relativas, que podem pa- dente deste seu meio de expressão no plano físico, meio do qual
recer contraditórias, mas são complementares. Assim espírito e ele se separa com a morte, deixando-o como matéria insensível
matéria são aspectos diferentes do mesmo princípio, olhado de em decomposição, porque dele fugiu a vida, que está no espírito.
pontos de vista distintos. Trata-se de visões parciais, em que a Portanto, mesmo durante sua existência no plano físico, é possí-
contradição desaparece, tão logo elas sejam reunidas numa vi- vel ao espírito funcionar de modo independente e acima das
são global mais vasta. Não se resolve o problema do espírito possibilidades materiais de tal instrumento, transcendendo os
negando a sua existência, mas somente enfrentando a dificulda- limites deste. Esta possibilidade, por parte do espírito, de superar
de de compreender o fenômeno. Eliminar “a priori” os aspectos o seu meio físico de expressão corresponde à sua progressiva
da realidade que nos incomodam, porque não sabemos como potencialização por evolução, ideia perfeitamente admissível pa-
explicá-los e não temos um lugar para colocá-los em nosso sis- ra quem compreendeu que a função desta é libertar o espírito,
tema, significa simplesmente renunciar ao conhecimento. com o objetivo de, no fim, devolvê-lo ao seu estado de origem.
A vida é, portanto, um processo de espiritualização. A evo- Eis como surge a possibilidade de se pensar não só cerebralmen-
lução assume assim um sentido totalmente diferente da concep- te, por lógica e raciocínio, mas também espiritualmente, por in-
ção materialista darwiniana, tornando-se um movimento ascen- tuição. Compreende-se então como isto possa suceder nos indi-
sional, no qual se realiza a obra de construção dos valores espi- víduos mais evoluídos, que se acostumaram na vida a praticar
rituais. Então aquele princípio evolucionista, que, na sua pri- especialmente esta segunda forma de pensamento. Isto fornece-
meira aparição, afigurava-se contrário às religiões, por ser ateu ria uma prova de que é possível estabelecer uma separação entre
e negador do espírito, tendo sido combatido por elas, pode hoje o funcionamento no plano do espírito e o funcionamento no pla-
ser entendido como uma confirmação cientifica das ideias reli- no cerebral, ou seja, entre a verdadeira mente e a mente do seu
giosas, porque sustenta a ascensão espiritual dirigida para Deus, instrumento, de maneira que ela possa manifestar-se de forma
ponto conclusivo que explica e justifica o desenvolvimento de autônoma, condição tanto mais estabelecida, quanto mais esse
todo o processo evolutivo. espírito, por evolução, potencializou-se e tornou-se independen-
Assim matéria e espírito, de dois opostos inconciliáveis, fi- te. De fato, a evolução é um processo para libertar o espírito da
cam reduzidos a duas posições da existência. A tarefa da evolu- necessidade que ele tem, para poder alcançar a sua manifesta-
ção é mudar o valor dos dois termos, transformando o primeiro ção, de possuir um instrumento físico.
no segundo, de modo que, no fim, o dualismo seja sanado, fa- ◘◘◘
zendo cessar a oscilação da existência entre os dois polos. No A evolução é um regresso a Deus. Dizemos “regresso” por-
final, depois de ter sido percorrido todo o ciclo involutivo- que é absurdo ir em direção a Deus, movendo-se de um primeiro
evolutivo – quando então toda a matéria terá sido reabsorvida ponto de partida que não seja Deus. E Deus não é pessoa na
no estado de espírito, a forma mutável ter-se-á transformado na acepção humana, no sentido de pensamento que, para se mani-
eterna substância e o universo físico (AS) terá sido substituído festar, necessita de um instrumento físico. Se quiséssemos ver
pelo universo da consciência (S) – deve chegar o momento em Deus nesta posição do ser, nós o encontraríamos assim, no Seu
que também o Deus imanente se retrairá deste seu aspecto de aspecto imanente, em nosso universo, que seria então o instru-
manifestação exterior e voltará ao seu aspecto verdadeiro, eter- mento da Sua manifestação, como um Seu corpo, através do
no e imutável, de Deus transcendente, como centro de sua ver- qual se estabelece a forma que permite a Sua expressão no plano
dadeira criação, que é o universo espiritual. físico. Mas Deus, em sua verdadeira essência, é transcendente,
Observemos vários fatos e significado deles. Temos esta sendo constituído de puro pensamento, assim como o homem é,
estrutura substancialmente unitária, cindida somente transitori- antes de tudo, espírito, sendo a sua verdadeira essência dada pe-
amente num dualismo que, por sua natureza, está destinado a lo seu ser espiritual, que, no entanto, une-se ao corpo como a um
ser sanado. Vemos que a cisão nos dois polos é só um inciden- seu instrumento. Esta identificação a encontramos também entre
te dentro do princípio de unidade, que permanece intacto e so- Deus e a Sua manifestação, que é o nosso universo. Isto signifi-
berano. No processo completo de involução-evolução, tanto o ca que, dentro deste, tal como o espírito no homem, encontra-
ponto de partida como o ponto de chegada é o espírito, que só mos Deus, seu princípio animador, sem o qual o universo seria
transitoriamente desmoronou na matéria, para se reconstruir coisa morta, sem alma, um cadáver, como é o nosso corpo,
mais tarde, no seu estado de origem. O eterno centro de tudo é quando o espírito o abandona. Assim a presença do espírito em
Deus transcendente no espírito, situado acima do seu aspecto nosso organismo físico não seria senão um caso menor daquele
secundário e transitório como Deus imanente, submergido no máximo, que é a imanência de Deus em nosso universo.
ciclo involutivo-evolutivo, onde a transcendência não se anula, Ora, regresso a Deus por evolução significa regresso do ser
pois, apesar de interior, é sempre presente e ativa. Tudo isto ao estado transcendente (S), de puro pensamento, porque Deus
nos mostra que a base da existência é o espírito e que, na sua em Si mesmo, acima desta sua transitória projeção em nosso
atual posição dentro do ciclo involutivo-evolutivo, o instru- universo (AS), é puro pensamento, existindo sem necessidade
mento do qual ele se serve, para satisfazer a sua necessidade de da forma, que agora o expressa nas dimensões inferiores do
se manifestar em nosso baixo plano de existência, é somente plano da matéria.
um acessório temporário. Se o ser hoje encontra-se em fase de Isto, que parece separação entre transcendente e imanente,
oscilação entre o polo espírito e o polo matéria e se, no estado não é cisão. Pelo contrário, é uma ponte que mantém ligados e
de vida física, não podemos ver o espírito existir, a não ser comunicantes os dois polos ou aspectos do ser, unificando-os,
amalgamado na forma, sem a qual ele não encontra expressão ao invés de dividi-los. É assim que encontramos o pensamento
no plano físico, isto não significa que, em outras fases e posi- de Deus transcendente animando as formas de existência, co-
ções da existência (ainda que estas não possam ser tomadas mo seu princípio vital, sempre criador, superando a morte com
hoje em consideração pela ciência, porque estão situadas fora a regeneração contínua. Trata-se do princípio diretivo do fun-
100 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
cionamento orgânico do universo, fruto da inteligência que hipótese, indispensável para poder explicar os inúmeros fatos
concebe a Lei e da vontade que a realiza. É deste modo que o que vemos harmonicamente coordenados, num funcionamento
Céu tem o seu eco na Terra, onde podemos voltar a encontrar orgânico, ligados por uma rede comum, segundo um plano de
os seus traços e a sua expressão. É este fato que mantém com- trabalho subordinado a um determinado fim, fatos que não po-
pactos Céu e Terra, espírito e matéria, substância e forma, dem ser explicados a não ser em função de uma íntima sabedoria
transcendência e imanência, Deus e universo. Desta maneira, orientadora. Com o progresso da ciência, não se poderá deixar
Ele está presente como numa Sua manifestação, que O expres- de descobrir que Deus é o ponto final da evolução, em função do
sa e O revela. Nas entranhas da matéria, a afinidade e atração qual ela existe, sendo esta a explicação e, portanto, a justificava
entre átomos e moléculas, por mais distantes que tais manifes- para o imenso trabalho de se ter de percorrer um tão longo ca-
tações estejam do amor, oferecem-nos dele um apelo e uma minho. Será inevitável descobrir que, naquele supremo ponto de
semelhança. Assim o que acontece na coordenação das partes e convergência, o incessante transformismo fenomênico deverá
dos movimentos no seio de um organismo, repete-se nas leis encontrar a sua solução, porque ele terá esgotado a sua tarefa,
que regulam os contatos e combinações mútuas entre os ele- que é reconduzir a substância desde a sua fase de matéria (AS)
mentos componentes, indicando-nos a presença de uma mesma até à sua fase de espírito (S).
inteligência diretriz. É questão apenas do grau de manifestação Será um conceito novo para a ciência atual – afirmado e de-
de um mesmo princípio fundamental, que, como um motivo monstrado por nós – este de uma evolução que é espiritualiza-
base, aparece pouco a pouco e vai-se desenvolvendo sempre ção, o qual atribui a esta um sentido e um valor superior, já intu-
mais, até encontrar a sua plenitude no S. Vemos existir, já nas ído e pregado pelas religiões. Este é o nosso físio-dínamo-
formas mais elementares, como se estivesse encerrado numa psiquismo, que é dado, como diria Teilhard de Chardin, pelo flo-
semente, a essência daquilo que, depois, chegará a ser amor- rescer de uma biosfera a partir da geosfera e de uma noosfera a
sexo no nível vida, para tornar-se a seguir consciência nos pla- partir da biosfera. Então ciência e religião se darão conta que
nos superiores desta, até alcançar o amor e a onisciência de contrapuseram, como inimigos, aqueles que não eram senão dois
Deus. Esta é a continuidade universal, pela qual não existe aspectos da mesma verdade. Uma vez entendido isso, não mais
qualquer momento que se possa isolar do todo ou que com ele se condenará como panteísta quem, não podendo conceber Deus
não tenha relações e nele não se repercuta. O todo-Deus é um só no seu aspecto transcendente, isolado do universo, sente-O
conjunto orgânico absolutamente incindível. Compreende-se, também no seu aspecto imanente, presente no universo, como
desse modo, como o instrumento esteja ligado ao espírito, que pensamento diretivo e vontade animadora do transformismo fe-
dispõe dele como de uma máquina, da qual ele, movendo-a e nomênico, identificado com as leis da existência, que são ex-
controlando-a, serve-se para poder viver no plano físico. Dada pressão do Seu pensamento, constituindo um Deus independente
esta interpenetração e colaboração, é natural que o instrumento e, ao mesmo tempo, intimamente ligado a todas as formas do
tenha de acompanhar, com o seu aperfeiçoamento, a evolução ser, que são simplesmente as formas do Seu ser. Assim o natural
do espírito, tornando-se assim cada vez mais complexo organi- e o sobrenatural não são duas posições contrapostas, mas apenas
camente, de modo a poder responder às crescentes exigências dois graus do mesmo processo de evolução, ou seja, de reapro-
da personalidade que se serve dele. E quando dizemos que este ximação a Deus. Eles não se excluem nem se contrapõem, mas
instrumento é matéria, devemos recordar que matéria significa se completam, porque o grau superior é a continuação do inferi-
uma organização de cargas dinâmicas, cujos impulsos, combi- or, no qual está contido como germe e do qual se desenvolve.
nações e movimentos obedecem a uma lei reguladora, pela Um conceito completo de Deus não pode ser dado senão pe-
qual todo o conjunto fica fundido no mesmo funcionamento, la fusão dos seus dois aspectos: o central, ponto de convergên-
resultando tudo isto em algo muito mais conceptual e dinâmico cia do todo, Deus pessoal e transcendente; e o periférico, diver-
do que material. Então, para além de tantas distinções, não en- gente na multiplicidade das formas de sua manifestação, Deus
contramos no fundo senão uma única realidade, dada por uma impessoal e imanente. Trata-se de uma natureza que é não ape-
mesma substância, à qual todas as coisas são redutíveis. nas sustentada pela presença de Deus, mas também ajudada por
Somos nós que a dividimos, isolamos e contrapomos nos esta a se elevar até junto Dele, através do sobrenatural. É certo
seus diversos aspectos, porque estamos imersos no relativo. que a matéria encontra-se nos antípodas do espírito, represen-
Mas, no fundo, ciência e misticismo, racionalidade positiva e in- tando a posição mais afastada de Deus. Mas isso não significa
tuição, são somente diferentes modos de ver a mesma, única e que ela se encontre fora do alcance Dele, que, por meio de Sua
universal realidade, que é Deus. Dele, suprema verdade, o pen- presença, mantém viva nela sua complexa organização. Não é
samento humano se acerca gradualmente. No nível mais concre- panteísmo dizer que a unidade permaneceu íntegra acima do
to e positivo, dado pela matéria, temos a análise científica com dualismo e que o amor de Deus reúne e mantém tudo unido. A
os meios sensórios e experimentais. Temos depois as concep- ideia de Cristo nada perde em valor, se a concebermos como
ções refletidas da filosofia, que se elevam mais acima do concre- incorporação do princípio evolutivo, cuja finalidade é levar o
to, penetrando no universal e atuando por abstrações. Finalmen- homem até Deus, e atribuirmos assim à redenção um significa-
te, temos a teologia, que se projeta no cimo das causas primei- do aceitável para a ciência, como salvação por evolução, reali-
ras. Cada uma explora a sua zona e, por espírito de domínio, de- zada pela ascensão da matéria até ao espírito. Até mesmo à
sejaria dar-lhe valor universal, eliminando as outras, que lhe são, ideia de Satanás no cristianismo pode-se, desse modo, dar um
não obstante, complementares. Desta maneira, portanto, o aspec- significado aceitável, porquanto, em contraste com o princípio
to espiritual das coisas também é inseparável do seu aspecto ma- de evolução e salvação (S), representado por Cristo, podemos
terial. Quem se detém em apenas um deles, negando o outro, dá concebê-lo no extremo contrário, como personificação do prin-
prova com isto de falta de conhecimento. Quando não se sabe cípio de involução e perdição (AS), situado no polo oposto do
solucionar um problema, elimina-se a existência dos fatos, ne- dualismo, contido na mesma unidade do todo-Deus.
gando-os, em vez de se admitir a própria ignorância. Para nos li- ◘◘◘
bertarmos do peso do desconhecido, suprimimos o que escapa à Muitos conceitos do cristianismo não são mais aceitáveis
nossa compreensão. A ciência não chegou ainda a comprovar hoje, pelo fato de serem não só expressos em forma anticientí-
positivamente a existência de Deus, mas, à medida que progride fica, antiquada e dependente de sistemas filosóficos supera-
em profundidade, ela não poderá deixar de ver este princípio dos, mas também apresentados em forma fideística irracional,
universal, inteligente e regulador de todos os fenômenos. Num agora já demasiadamente afastada da psicologia moderna po-
primeiro momento, ele deverá ser admitido pelo menos como sitiva, de modo que não se enquadram num sistema científico-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 101
filosófico que os explique e justifique, pois trata-se de concei- para inertes, em tempos demasiado diversos para que se possa
tos nascidos por inspiração ou intuição, sem um controle obje- hoje habitar ali. Se não se pretende que a casa fique deserta, é
tivo. Isto não significa que os conceitos estejam errados, mas necessário refazê-la sobre os mesmos fundamentos de Cristo,
sim que, colocados desse modo, ficam suspensos no ar, à mas refazê-la desde os alicerces. Hoje, as afirmações metafísi-
mercê do mistério, abandonados ao subconsciente, o que, na cas gratuitas e não provadas, baseadas sobre a tradição e o prin-
prática, permite adaptações e evasões, provocando às vezes cípio de autoridade, tomando como apoio pontos de referência
choques com a realidade biológica ou, até mesmo, resolven- arbitrários, não resistem ao contato com a realidade positiva
do-se num absurdo. As religiões futuras, se quiserem sobrevi- dos fatos e não são mais levadas em consideração. Isto não sig-
ver, deverão voltar a tomar, desde o início, este imenso mate- nifica que as afirmações das religiões não sejam verdadeiras,
rial acumulado nos séculos, para elaborá-lo, sistematizá-lo, mas sim que demasiadas incrustações e superestruturas medie-
completá-lo e atualizá-lo, não como se ensaia agora, com re- vais as cobriram e as sufocaram. É necessário regressar à fonte
toques de superfície, mas sim com uma revisão e reorganiza- original, eliminando o supérfluo e dando-lhes a sua verdadeira
ção profunda, que incorpore e assimile o pensamento laico ci- dimensão, para completá-las e desenvolvê-las à luz do progres-
entífico, outro material imenso e ainda mais gigantesco. so mental moderno. Seria necessário ter a força de realizar este
Portanto, como acabamos de dizer, o conceito do sobrenatu- passo à frente e, assim, alcançar a ciência. Mas o risco de sair
ral pode subsistir, se for entendido como nível evolutivo mais das velhas estradas assusta. Falta a fé e a coragem para se aven-
avançado, e não como uma supernatureza, que se contrapõe à turar no novo; falta a visão clara de uma verdade mais evoluída
própria natureza, como se pudessem existir duas naturezas dife- e mais completa, pelo menos de uma sua apresentação em tal
rentes, dirigidas por duas leis diferentes, o que é absurdo. Na forma; faltam os homens com sabedoria para produzi-la, os no-
verdade, não temos senão diferentes graus de evolução da vos gênios da verdade, capazes de tomar o lugar dos sonolentos
mesma natureza, dentro da única lei de Deus. A evolução é o repetidores das velhas fórmulas, dos burocratas da fé, que, por
único conceito que pode dar sentido a esta concepção. A natu- encontrarem nas coisas velhas a base das suas posições terre-
reza é o nosso nível biológico, com as suas respectivas formas nas, são arraigados defensores delas.
de vida, no lado AS. A supernatureza pode significar níveis A ciência se move diretamente na direção de conhecer o
biológicos mais avançados na direção do S, que são, hoje, ante- funcionamento dos fenômenos e o porquê das coisas, sem se
cipados pelos ideais e serão, amanhã, alcançáveis por evolução. deixar obstar pela preocupação de fazer concordar os fatos com
Assim a contradição entre dois opostos, dentro da mesma obra as lendas bíblicas e a tradição, para lhes salvar o valor. Isso in-
realizada por Deus, desaparece, porque se torna um encadea- teressa somente àqueles que, sobre tais bases, apoiam a existên-
mento lógico de momentos consecutivos, ambos necessários cia do próprio grupo, pois elas os protegem, mas não interessa
dentro do mesmo processo evolutivo. aos investigadores da verdade, aqueles que querem saber como
Da mesma forma, poderia ser dado ao conceito de “graça” de fato tudo se desenvolveu no passado. Perante o pensamento
um significado positivo, racionalmente aceitável. Poderia cha- moderno, muito mais maduro, que valor positivo podem ter
mar-se “graça” à resposta de elementos mais avançados, per- afirmações provavelmente simbólicas, apresentadas de uma
tencentes aos graus superiores de evolução, em relação à tenta- forma antropomórfica, única linguagem possível de ser com-
tiva do ser para alcançá-los; à extensão do S em direção ao AS, preendida pelos homens naquele tempo? Como tomar ao pé da
para fazê-lo subir até ele; à manifestação, no mundo, da presen- letra uma narração que devia esconder conceitos mais comple-
ça do Deus imanente, que dirige e ajuda a evolução. Então, às xos, impossíveis de se expor a quem não os podia entender?
várias intuições das religiões, apresentadas como verdades, po- Como pode uma era de pensamento mais evoluído aceitar o
deria ser dado um significado que as tornasse aceitáveis, evi- pensamento mais primitivos das épocas anteriores? O investi-
tando que elas sejam lançadas ao esquecimento. Assim, a “gra- gador não pode trabalhar amarrado a tudo isso, paralisado pelo
ça” poderia expressar o fenômeno da inspiração, conectado fardo de tantas soluções pré-estabelecidas, que desejariam fixar
com a realização da descida dos ideais. o seu pensamento, detendo-o num grau de evolução mental já
É certo que, se estes conceitos permaneceram de pé até ho- superado. As teorias do passado podem interessar à história da
je, então deve haver algo de verdadeiro neles. Mas é necessário filosofia, ao professor que as estuda, mas estorvam o caminho
encontrar este conteúdo e mostrá-lo, se quisermos que a mente para quem quer, pelo contrário, construir e progredir.
moderna os tome em consideração. Eles são o produto de ou- É claro que as religiões continuarão tratando de conservar o
tros processos mentais, já superados hoje, tendo sido conduzi- seu patrimônio tal qual ele é. Com isso, a função assumida por
dos em função de outros pontos de referência, de modo que, elas volta-se no sentido de conservar valores, e não certamente
apresentados desta mesma forma, a qual era a mais adaptada e no de fazer progredir o pensamento. Este, no entanto, continua
mais conveniente no passado, resultam hoje inaceitáveis para avançando por sua conta, sem as religiões, que não têm o poder
mente moderna, que não encontra sentido neles. É necessário de detê-lo. A evolução é uma lei divina e fundamental da vida,
levar em conta que, hoje, a maneira de conceber as coisas é di- não sendo permitido a ninguém paralisá-la. Mas eis que, assim,
ferente. Portanto é difícil fazer concordar uma religião filha do nasce a luta entre o velho, que não quer morrer, e o novo, que
passado com o pensamento científico moderno. O grande dra- deve desenvolver-se. O primeiro resiste, mas, por lei da vida,
ma espiritual do mundo atual consiste no fato de ter sido o de- acaba sendo vencido pelo segundo. A renovação se realiza atra-
senvolvimento do pensamento diretivo transferido da religião, vés desta luta, na qual triunfa o mais forte, que é o novo. É a
cuja estagnação a deixou para trás, para a ciência, que, pelo própria lei de Deus que quer assim. Vive-se para avançar. Hoje,
contrário, progredindo, já tomou agora a iniciativa, avançando as religiões representam o velho, ao passo que a ciência repre-
por sua conta, independente da fé, para a qual restou um papel senta o novo. A função desta não é destruir as verdades daque-
secundário no pensamento. Hoje, quem deve se atualizar é a re- las, mas sim esclarecê-las, demonstrá-las, atualizá-las e desen-
ligião, que se transformou em serva da ciência, atrás de quem volvê-las, eliminando o que já não é mais aceitável. Na verda-
ela tem de correr, para não ficar atrasada. Inverteram-se os pa- de, com esta luta, o novo se coloca a serviço do velho, ajudan-
péis, e a sabedoria de Deus, havendo passado para a retaguarda, do-o a sobreviver naquilo que este tem de bom, porquanto, sem
tem de ser arrastada pela sabedoria do homem. A religião trata esta renovação, apenas lhe restaria morrer definitivamente. Se
de se salvar, adaptando-se, mas a revolução do pensamento é soubermos pôr cada coisa no seu devido lugar, veremos que tu-
demasiado grande para se poder remediar com as habituais do cumpre a sua função e, por isso, é útil à vida, tendo, portan-
acomodações. Remendar a casa não resolve. Ela foi construída to, a sua razão de existir, que lhe justifica a presença.
102 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
Não se pode suprimir a religião. Mas podemos imaginar XIII. TRABALHO E PROPRIEDADE
quão mais inteligente e convincente deverá ser a religião do fu-
turo, que, em vez de cego produto do subconsciente instintivo, I – As três fases da evolução do trabalho e da propriedade.
será o resultado de uma compreensão mais racional das leis da
vida, constituindo uma religião mais forte e mais pura, mais O homem se encontra vivendo num mundo onde cada ser
clara e mais honesta, porque caminhará em paralelo com a ci- tem de abastecer-se a si mesmo. Desse modo, quem busca ob-
ência, sua aliada. Assim, iluminada não só pelo relâmpago da ter o que lhe é necessário para a sua vida deve ganhá-lo lutan-
intuição reveladora, mas também pela trabalhosa construção do contra todos. Nada lhe cai gratuitamente do céu, devendo
mental, fruto do esforço humano, teremos então uma religião tudo ser o resultado de um esforço seu. Esta é a origem daquilo
com uma norma de conduta moral demonstrada, mais sólida, que se chama trabalho. Também as feras na selva estão sujeitas
mais sincera e mais justa em relação à atual, que é resultado da ao trabalho, porque devem prover a sua comida, agredindo e
luta pela vida, e não de uma compreensão dos problemas. Não matando os outros animais. Eis que a lei do trabalho é uma lei
se pode parar a criatividade religiosa somente porque já se fez biológica fundamental.
muito neste terreno no passado. O caminho dos profetas, dos O princípio de propriedade corresponde a outra lei biológica
grandes inovadores, dos gênios, dos santos e dos pensadores fundamental. Cada ser, inclusive o animal, considera como sua
não pode ser detido. Onde tudo evolui sem pausa, nem mesmo propriedade tudo que ele – trabalhando e vencendo todos os
as religiões podem parar. O trabalho do passado deve continuar obstáculos, impostos pela natureza ou pelos seus rivais – con-
em outras mãos e em outras formas, prosseguindo com a vida, quistou com o próprio esforço, na luta pela vida. Assim as abe-
que avança. Renovar não é destruir, é prosseguir. Como acon- lhas sabem que a colmeia repleta de mel é produto do seu es-
teceu no caso de Cristo, um novo testamento está sempre em forço e lhes pertence, razão pela qual elas, por direito de pro-
ação, para desenvolver o antigo. É o pensamento de Deus que priedade e de legítima defesa do fruto do seu trabalho, não dei-
avança na Terra, revelando-se sempre mais. E esta revelação xam que lhe roubem o mel. Da mesma forma, o cão, dando em
não pode parar, de modo que ela tomará outras formas, seja de troca do pão que recebe do seu dono a defesa da casa onde este
descobrimento científico, de síntese filosófica, de revolução so- habita, sabe que deve compensar com o seu trabalho de defesa
cial ou de nova ordem política. A evolução deve levar a uma o soldo recebido em forma de alimento, o qual depois, com
purificação das religiões, porque conduz a um esclarecimento pleno direito, ele defende como sua legítima propriedade. E o
de posições, a uma superação da luta entre antagonismos, a cão também compreende quais são os limites da sua proprieda-
uma racionalização das relações entre os homens e Deus. Para o de, uma vez que não morde quem passa pela estrada, mas so-
homem civilizado, este método será mais produtivo, inclusive mente quem entra no terreno ou na casa do seu dono.
espiritualmente, porque se apoiará sempre menos sobre a coa- Nosso objetivo, com estes exemplos, é demonstrar que,
ção psicológica do terror, instrumento do qual se abusou dema- desde as suas primeiras origens e raízes biológicas, os princí-
siadamente até agora, e cada vez mais sobre a livre persuasão, pios do trabalho e da propriedade são conexos, legitimados pe-
advinda da convicção espontânea. las próprias leis da vida e nela profundamente radicados. Eles
Antigamente o céu era aquele espaço desconhecido que es- são princípios centrais, pois fazem parte da lei fundamental de
tava por sobre os cimos dos montes e dos pináculos das torres luta pela vida, para a seleção do mais forte e mais capaz, e da
das igrejas, constituindo a morada de Deus. Hoje, este mesmo lei de equilíbrio e justiça, pela qual tudo, para chegar depois a
céu está sendo explorado pelos astronautas, que não encontra- ser nosso, deve ser ganho com o nosso esforço, somente per-
ram nele anjos ou santos. Hoje, as religiões necessitam do cien- manecendo como nossa propriedade, para nossa vantagem, en-
tista cujo conhecimento possa dizer-lhes algo além do que elas quanto e na medida em que soubermos defendê-lo. Trabalho e
já sabem. É necessário definir com critérios mais positivos os propriedade são também princípios conexos, porque, desde as
conceitos nebulosos que são hoje objetos de fé, esclarecendo o suas formas de origem, é por meio do primeiro que se chega ao
que se entende por espiritualidade, explicando o que se busca segundo. Ora, tudo nos diz que trabalho e propriedade não são
fazer com ela e demonstrando para que ela serve, para provar a princípios teóricos e artificiais, como uma superestrutura fora
sua utilidade e justificar a sua aceitação. Tudo isto é necessário, da realidade da vida, mas sim fenômenos biológicos, sobre os
caso se queira que as pessoas se interessem por tais coisas, por- quais se baseiam as correspondentes instituições jurídicas e so-
que a tendência atual é, com todo o respeito, simplesmente ciais. Estas têm, portanto, pleno direito de existir, uma vez que
abandoná-las em um canto, como inúteis, e assim, sem sequer derivam não de abstrações, mas sim das próprias leis da vida,
dar-se ao trabalho de destruí-las, deixá-las morrerem por si só. que se encontram acima de toda vontade humana e não podem
A crise mais profunda dos tempos modernos é o antagonis- ser por ela construídas nem de destruídas. O melhor método pa-
mo entre ciência e fé. A primeira já avança agora por si própria, ra encontrar um apoio seguro para as próprias afirmações é ba-
não se interessando mais pela segunda, da qual, dado que não seá-las sobre as indestrutíveis leis da vida. Se, apesar disto, ve-
serve, prescinde. Certas ideias, que foram fundamentais antiga- mos depois aparecerem ataques contra o instituto da proprieda-
mente, parecem não dizer mais nada à mente moderna. As reli- de, constataremos que isto é devido ao mau uso que se faz dela,
giões dormem, e a vida caminha. Elas pretenderiam deter a vida, pois sua justa obtenção não garante sua manutenção.
e a vida as deixa para trás. A ciência produziu coisas extraordi- Para entender o fenômeno trabalho e propriedade, é necessá-
nárias, entusiasmando, porque avança. As religiões permanecem rio observá-lo na sua evolução. Estabelecido o conceito funda-
ruminando as suas verdades eternas e já não interessam, porque mental da sua base biológica, veremos que, evoluindo com a ci-
não produzem nada. Deter-se num mundo em marcha é morrer. vilização, tal fenômeno se transforma no núcleo da moderna or-
Justamente por quererem conservar-se, as religiões correm risco ganização social. Observamos primeiramente a evolução do tra-
de acabarem. Se algo é intentado para avançar, a reação é a con- balho. Aquilo que era, na sua primitiva forma individual, a luta
denação. Ai de quem incomoda os que dormem! Quem o faz é de um ser isolado contra todos, transforma-se e, porque isto é
um herético. Então, por que perder tempo numa luta inútil, para vantajoso, passa a se realizar, pelo contrário, através de um sis-
fazê-las caminhar à força, quando isto é tão reprovável? Não é tema de colaboração. Alcança-se assim uma posição mais con-
melhor avançar sem elas, deixando-as dormir? É precisamente o veniente, porque, em vez de ser obrigado a suportar um duro re-
que o mundo está fazendo hoje, porque a ciência construiu as gime de luta contínua contra todos, cada um oferece aos outros
suas próprias pernas e já sabe andar sozinha. Mas por que esta- aquilo que ele produz com o seu trabalho, recebendo deles em
mos obrigados a chegar a tais conclusões? troca aquilo que, por sua vez, eles produzem também com o seu
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 103
esforço. Por evolução, a vida chega até esta forma, na qual se Eis as transformações evolutivas a que está submetido o fe-
obtém uma posição de menor atrito e de um correspondente me- nômeno do trabalho e da propriedade. O resultado é que o pri-
nor gasto de força, atingindo assim a vantagem de uma maior meiro ganha como poder produtivo e, assim, leva a um maior
produção, o que significa maior bem-estar para todos. Assim, o bem-estar, progredindo em sentido positivo, enquanto, ao
pesado sistema do egoísmo separatista e agressivo transforma-se mesmo tempo, a propriedade se liberta do peso da luta entre ri-
neste outro, de maior rendimento, dado pela convivência pacífi- validades, superando as negatividades dos níveis biológicos
ca e cooperação. É assim que se passa do mundo desorganizado mais baixos, submetidos às incertezas de uma contínua instabi-
da luta feroz dos animais ao tipo de vida coletivamente organi- lidade. Tudo isto representa uma vantagem que a vida, pelo fato
zada da sociedade humana civilizada. Tudo isto concorda ple- de ser utilitária, está sempre pronta a aceitar. Além do mais, a
namente com o princípio geral que tínhamos demonstrado ante- finalidade maior da evolução, que representa a lei fundamental
riormente, segundo o qual está implícito nas leis da existência da vida, é precisamente alcançar uma contínua melhoria das
que esta seja tanto mais dura e difícil, quanto mais baixo se en- condições da existência. Há na vida uma irresistível vontade de
contra o ser na escala evolutiva, e vice-versa. progresso, que, em termos mais vastos, pode-se chamar de ten-
O mesmo fenômeno se verifica no caso da evolução da pro- dência a avizinhar-se cada vez mais do ponto final do caminho
priedade. Acontece então que, nos planos biológicos mais bai- da existência, o qual é Deus. O fenômeno da evolução do traba-
xos, ela se sustém somente enquanto o indivíduo tem a força lho e da propriedade faz parte deste programa, que é de ascen-
necessária para defendê-la com os seus braços e armas. Já nos são, de aperfeiçoamento, de conquista do bem e de libertação
níveis mais elevados, dentro de um organismo social, ela se en- do mal. Assim, se nada pode ser destruído, tudo pode, no entan-
contra garantida e defendida pelas leis e pelo respeito que cada to, ser transformado por evolução. Isto quer dizer que, perante
indivíduo tem pela propriedade dos outros. Assim, cada um de- as leis da vida, a verdadeira função do princípio coletivista é ser
ve submeter-se a esta disciplina, mas ao mesmo tempo recebe, um processo não de destruição da propriedade, mas sim apenas
por reciprocidade, como compensação pelo seu dever de respei- de valorização dela como função coletiva, que, no novo estado
tar a propriedade dos outros, a vantagem de também ter a sua orgânico da sociedade, torna-se cada vez mais importante, com
propriedade respeitada. Só assim o indivíduo poderá possuir em vantagem para todos, às custas da paralela desvalorização das
paz o fruto protegido do seu trabalho, sem ter de lutar com as funções de vantagem individual e de interesse particular, hoje
armas, a cada momento, para defendê-lo. Eis que, como dizía- preponderantes. A atual tendência da evolução é transformar
mos, a evolução conduz a um melhoramento nas condições de uma propriedade que no passado era só em favor do seu dono,
vida. A forma de propriedade encontrada nos países primitivos, numa propriedade concebida preponderantemente como função
regidos por uma economia de furto, é tremendamente fatigante social de utilidade coletiva. Esta é – independente do comunis-
e incerta, porque, sendo totalmente instável, somente pode ser mo, que não é senão um aspecto e consequência do fenômeno –
sustentada a custo de uma guerra contínua, que absorve todas as a tendência atual do movimento evolutivo, devida ao novo tipo
energias e não pode produzir senão miséria para todos. Aconte- de vida organizada alcançada pela humanidade.
ce, então, que em nenhum país é tão usado o regime de propri- Focalizando melhor a nossa observação sobre o fenômeno
edade em comum como naqueles regidos por uma economia de da propriedade, constatamos que existem três fases na sua
furto, onde, na competição entre ladrões, ninguém mais sabe evolução:
nem sequer o que possui, podendo amanhã possuir tudo ou ficar 1a) A fase da conquista, na qual a propriedade é mantida por
sem nada, pois não há nenhuma estabilidade que garanta qual- qualquer meio, sendo necessário a defesa armada contínua para
quer posição econômica. Assim a liberdade do primitivo, goza- protegê-la.
da em maior medida em relação ao homem civilizado, resolve- 2a) A fase da legitimação legislativa, na qual o grupo ven-
se em última análise a uma escravidão às consequências do seu cedor, que já conquistou a propriedade, torna estável a sua po-
método, que são a guerra e a contínua falta de segurança. Então sição de dono e, defendendo-a com um sistema de leis, organi-
o que parece ser um sistema de vida mais fácil e vantajoso, za-se como classe dirigente, no seio de uma ordem feita para
acaba sendo o sistema mais difícil e prejudicial. Tais são e as- ele, a seu favor. Assim nasceu o direito romano, que, definindo
sim funcionam as leis de vida, e ninguém pode impedir o seu com normas e, deste modo, regulando a conduta, tornou-se es-
funcionamento nem fugir-lhe às consequências. tável, sendo seguido depois pelo regime feudal medieval, do
Nos países civilizados do mundo moderno, encontramos tra- qual derivou o capitalismo burguês.
balho e propriedade em fase mais avançada, mais evoluída, dis- 3a) A fase da socialização, na qual a posse dos bens está re-
tante de sua origem, que tivemos de levar em conta para provar servada a favor não somente de uma classe dominante, mas
a existência das sólidas bases biológicas destas duas instituições. sim de toda a coletividade, que é admitida nesta posição sem
Veremos que, quanto mais civilizada é uma sociedade humana, exclusão de nenhuma parte. Prevalece, assim, uma outra forma
tanto mais o conceito de propriedade se transforma em sentido de propriedade, acessível a todos que trabalham, e não mais re-
antisseparatista, assumindo uma função de utilidade coletiva. E servada apenas a um grupo limitado e privilegiado. Se bem
veremos também que, com a evolução, o conceito de trabalho se que semelhante transformação possa parecer um sacrifício para
transforma em sentido antiegoísta, assumindo uma função orgâ- quem possui, ela representa para este uma grande vantagem.
nica, realizada em forma colaboracionista. Não se trata de uma Somente nesta forma de livre socialização, através de uma
destruição dos referidos princípios biológicos fundamentais, mas mais equilibrada distribuição capitalista – condição pela qual é
sim de uma sua transformação e aperfeiçoamento. Nisto consiste eliminada a classe inimiga e perigosa dos esfaimados, sempre
a sua necessária evolução. Quando tivermos compreendido que prontos a assaltar o paraíso dos ricos – será possível, eliminan-
se tratam de fenômenos biológicos, os quais não podem ser eli- do as suas causas, libertar-se das revoluções, que são sempre
minados, mas apenas transformados por evolução, compreende- movidas pelos que não possuem contra os que possuem, estan-
remos também que o princípio de propriedade pode ser somente do estes hoje submetidos a uma contínua ameaça, com a qual
aperfeiçoado, e não suprimido. É por isso que não há comunis- se torna incerta a sua propriedade. É verdade que seria vanta-
mo capaz de mudar as leis da vida. Nenhum programa ideológi- joso eliminar este defeito das posições atuais, mas isto não é
co, seja ele qual for, jamais poderá chegar à destruição da pro- possível, a não ser suprimindo a causa dos impulsos agressivos
priedade, mas apenas a uma sua diferente distribuição. Ela se contra elas. O fato de que o instinto de todos é melhorar, leva
tornará mais justa e mais equilibrada, mas isto é problema de pouco a pouco a esta outra forma de propriedade, mais garan-
aperfeiçoamento evolutivo, e não de destruição. tida e estável em favor de quem possui.
104 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
Agora que examinamos o fenômeno do trabalho e da propri- gurança e estabilidade. Trata-se de uma lei universal que vemos
edade no seu aspecto dinâmico, e não na sua posição estática, funcionar também no plano físico, segundo a qual uma constru-
observando seu transformismo através dos diferentes níveis de ção, quanto mais equilibrada estiver, tanto mais estável será.
evolução, vejamos como, segundo o seu diverso grau de desen- No plano social, a esta lei corresponde uma outra, pela qual
volvimento, os povos concebem e enfrentam semelhantes pro- uma posição, quanto mais corresponde à justiça, tanto mais ga-
blemas nas três formas já descritas. Existem povos ainda primi- rantida está. É por isto que uma justa distribuição dos bens é
tivos, subdesenvolvidos, que concebem trabalho e propriedade condição fundamental e premissa indispensável para obter a se-
na primeira daquelas três formas. E há povos mais civilizados, gurança da posse. Isto não é programa político, mas sim lei bio-
que concebem tudo isto na segunda forma, mais avançada. lógica universal, à qual não se foge. Se queremos segurança e
1o) Segundo o primeiro tipo de mentalidade, constitui legí- estabilidade, não há outro caminho, senão basear-se sobre um
tima propriedade tudo aquilo que o indivíduo consegue agarrar princípio de justiça. Quanto mais vastos forem os fundamentos
com suas próprias mãos, objetos dos quais ele se considera do- do instituto da propriedade, tanto mais ela será garantida, e vi-
no, julgando justo possuí-los, enquanto tiver força para defen- ce-versa. Quanto mais vivermos num regime de ordem, tanto
dê-los do assalto dos outros. Neste nível, a propriedade é so- mais a luta e a incerteza serão eliminadas, e ao contrário.
mente posse, uma conquista livre, sem qualquer outra lei ou li- Vemos, portanto, que esta segunda fase intermediária, de
mite, a não ser a própria força para consegui-la e defendê-la. uma ordem que se limita a um grupo social, não é perfeita. No
Tudo é livre então, mas é também inseguro e instável ao máxi- entanto ela é necessária para passar da primeira fase, de luta e
mo, pelo fato de estar continuamente assediado pela equivalen- caos, à terceira, de disciplina e ordem para todos, a qual repre-
te liberdade alheia, de igualmente empossar-se de tudo. Neste senta a posição orgânica completa da humanidade civilizada
nível, a propriedade é um estado de luta contínua, na qual o do futuro. Neste nível biológico mais avançado, as forças da
maior trabalho não é produzir, mas sim roubar, processo que coletividade, em vez de se chocarem umas contra as outras, o
nada produz, a não ser guerra e miséria para todos. Temos as- que torna mais difícil a vida, coordenam-se entre si, somando-
sim uma sociedade feita de ladrões, roubando-se continuamente se em sentido positivo, o que facilita a vida. A esta condição a
uns aos outros, mas todos pobres, porque o furto não produz, se humanidade não poderá deixar de chegar, impulsionada pelo
bem que reclame grande dispêndio de energia. Se tal energia seu instinto de melhoramento, no qual se manifesta o impulso
fosse, pelo contrário, toda utilizada para produzir, eles poderi- ascensional da evolução. Não se chegou a tudo isto hoje por-
am ser ricos. No entanto são condenados por sua própria igno- que ainda não são conhecidas as leis do fenômeno, de modo
rância a fazer um duríssimo e infernal trabalho, para, no fim, que não se compreende quanto mais útil seja para todos o novo
não produzir nada e acabar na miséria. Ainda há países que vi- método de vida. O que impede semelhante progresso é a resis-
vem desta economia de furto, e este é o resultado. De que me tência exercida pelo indivíduo em relação ao sacrifício da pró-
serve a permissão para roubar o próximo, quando ele pode fazer pria liberdade, que, em tal regime, é forçada a permanecer den-
o mesmo comigo e, por lei de reciprocidade, qualquer um pode tro de normas disciplinares. O primitivo não compreende as
roubar, se todos acabamos sendo roubados? Assim, pela dema- imensas vantagens pelas quais semelhante sacrifício é com-
siada liberdade e pela voracidade de possuir tudo cada um para pensado. Incapaz de ver além da sua utilidade imediata, não vê
si, chega-se à posição oposta, dada por um coletivismo em que o benefício de viver dentro de uma ordem que, se sufoca a sua
não existe mais propriedade particular garantida e tudo é de to- liberdade, garante a ele em compensação a defesa e a seguran-
dos, porque, a todo o momento, cada um pode ganhar tudo, ça das suas posições, o que não é possível no mundo livre do
roubando, e perder tudo, sendo roubado. primitivo. A sua liberdade lhe custa caro. O homem na floresta
2o) No segundo caso, a propriedade é garantida, porque o não está sujeito a nenhuma obrigação social, porque ali não há
furto não é admitido. Não se alcançou ainda um regime de jus- leis nem polícias, mas ele deve estar sempre armado para se
tiça para todos, mas já existe uma disciplina e uma ordem. Es- defender de tudo e de todos, o que não é necessário na cidade,
ta, no entanto, tem o defeito de não ser completa, por estar li- onde se encontra ligado a determinadas normas de vida. Isto
mitada a um grupo ou classe social dominante, de modo que poderá parecer uma restrição, mas o primeiro vive em contínuo
existe sempre o perigo da revolução, resultante da rebelião por perigo, enquanto o segundo vive muito mais seguro.
parte dos deserdados, excluídos do banquete servido aos que 3o) O terceiro caso pertence ao futuro e será vivido pelas ge-
possuem. Ora, semelhante perigo poderá ser eliminado em fa- rações mais evoluídas.
vor da segurança da propriedade somente quando a posição Resumindo, temos três fases na evolução da propriedade:
privilegiada dos componentes dessa classe não seja mais ex- Na primeira não há senão guerra e caos. A propriedade per-
clusiva para eles, mas sim estendida a todos. Contudo, mesmo tence a quem, por qualquer meio, consegue apossar-se dela e
não tendo chegado a esse ponto, ao menos um primeiro núcleo mantê-la, enquanto esta não lhe seja tirada por outro. Assim, po-
de ordem, dado por um modelo do novo tipo de vida coletiva, dendo ser de qualquer um, é como se ela não fosse de ninguém.
já se formou no meio do caos da liberdade absoluta do caso Na segunda fase há disciplina e ordem. A propriedade se es-
precedente e, dentro do terreno fechado daquele recinto, a luta tabiliza e é protegida, mas pertence apenas a um grupo limita-
se deteve, eliminando a incerteza, porque já existem leis que do, que constitui o primeiro núcleo da organização social. No
disciplinam a aquisição da propriedade e lhe garantem a posse. entanto a amplitude deste grupo vai sempre aumentando, até
Neste sistema, a propriedade é alcançada não por meio do fur- que, na fase sucessiva, abarcará a todos. Antigamente, tal gru-
to, como no caso anterior, mas sim pelo trabalho; não por meio po era apenas uma aristocracia feudal (propriedade adquirida
da força, mas sim pelo direito, através do qual o indivíduo, por como conquista de guerra), ampliando-se depois, como bur-
um princípio de justiça, e não por arbitrariedade, passa a rece- guesia capitalista (propriedade adquirida com o trabalho pro-
bê-la da coletividade, em troca e em proporção ao que ele lhe dutivo). E acabará por se tornar uma sociedade capitalista (na
dá como produto do seu trabalho. qual todos trabalham, produzem e possuem). Neste terceiro
Sucede assim, e nisto consiste a evolução, que, no sistema regime, de capitalismo universal e de propriedade para todos
de aquisição, cada vez mais desaparece a força e aparece a jus- aqueles que trabalham e produzem, não existirá mais o perigo
tiça. Esta transformação de método é fundamental, segundo o das revoluções econômicas.
ponto de vista utilitário em favor do indivíduo e de todos, por- Na terceira fase, a propriedade não é mais exclusiva de uma
que, quanto mais se evolui em direção à justiça, tanto mais tudo classe. Ela será mais bem distribuída, no sentido de que, com a
tende a se ordenar num regime de equilíbrio, o que significa se- vida, todo indivíduo receberá o direito de possuir o mínimo in-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 105
dispensável para viver, junto com o correspondente dever do nando. Funcionar implica uma ordem, através de uma lei que
trabalho. A evolução consiste em transformar o furto em traba- dirige e regula esse funcionamento. Uma lei presume uma inte-
lho, para torná-lo então em propriedade e bem-estar para todos. ligência que a formulou e uma vontade e poder que impõe a re-
A estas três fases de evolução da propriedade correspondem alização desta lei nos fatos. É evidente que tudo isto não pode
três fases de evolução da forma de trabalho: estar sendo realizado pelo homem, que conhece muito pouco ou
1a) Trabalho-guerra, no qual não há senão luta material quase nada dos fenômenos. Ele existe dentro destas leis e não
agressiva, para se apossar de tudo com a força, sem nenhuma pode fazer outra coisa senão obedecê-las, enquanto trata, atra-
ordem ou limite. vés da ciência, de compreender o que está acontecendo.
2a) Trabalho-serviço obrigatório, que é regulado e protegido Um dos aspectos destas leis é o econômico, aquele que es-
para produzir, e não para se apossar de tudo. No entanto tal tra- tamos observando agora. Então, também neste terreno, reafir-
balho é imposto como obrigação, ficando a cargo somente de ma-se o princípio geral: quem não obedece tais leis deve depois
uma parte da coletividade, a qual permanece submetida ao man- pagar as consequências. Nos meus livros, calculei o valor des-
do de uma classe dominante que, com as leis e a força, mantém tas consequências em proporção ao erro cometido. Aqui, no en-
uma ordem, para dominar a classe dos seus dependentes. tanto, estudamos o caso particular do mundo econômico. Ora,
3a) Trabalho-produção, livre e universal, que é igualmente da maneira pela qual vemos enquadrado o problema, conclui-se
regulado e protegido para produzir, mas que, em vez de ficar a que a nossa posição não é do tipo moralista, cuja característica
cargo de somente alguns em favor de uma classe limitada, é, pe- é exigir ou pelo menos aconselhar uma determinada conduta.
lo contrário, realizado por todos, a favor do organismo social in- Estas nossas palavras não são para ordenar, já que não temos
teiro, constituindo um trabalho livre, realizado organicamente, poder para isso, nem para aconselhar, pois nos falta autoridade,
para o bem-estar de todos, e não só de um grupo privilegiado. nem para exigir, visto que respeitamos a liberdade de todos. As
nossas palavras são para demonstrar quais as consequências
II – Propriedade-abuso, economia de furto e cálculo das que nascem, não por vontade nossa, pois elas são fatais, mas
consequências. pela automática reação por parte destas leis, conforme nós as
excitamos com a nossa conduta, cada um permanecendo livre
Observamos o trabalho e a propriedade no seu movimento para fazer aquilo que quer. Podemos somente mostrar o que
evolutivo e vimos que este consiste em substituir a liberdade de- inevitavelmente sucede depois, como resposta àquilo que qui-
sordenada pela disciplina, o caos pela ordem, o estado de guerra semos fazer. Pertence à Lei, e não ao homem, corrigir quem er-
pelo estado de paz, o método do tudo lícito pelo método dos di- rou. Ela sabe, pode fazê-lo e o faz. Nada podemos acrescentar,
reitos e deveres recíprocos. No primeiro caso, se tudo é permiti- tirar ou modificar na sua justiça. Não tem sentido intrometer-se.
do para mim, também o é para os outros, enquanto, no outro ca- O que é necessário é entender como o fenômeno funciona au-
so, o próprio fato de reconhecer os meus deveres a favor dos di- tomaticamente. Quando fazemos movimentos errados, contra a
reitos dos outros me dá o direito de exigir, a meu favor, os deve- Lei, não se pode fugir à sua reação. Esta se manifesta por meio
res dos outros. A evolução produz vantagens. Se não as produ- da dor, cuja função é avisar o indivíduo que ele errou, fazendo
zisse, a vida não aceitaria um esforço inútil e não evoluiria. assim desaparecer nele o desejo de continuar errando. Para que
Um selvagem dizia: “porque devo fazer o trabalho de criar a acrescentar palavras com as quais estamos acostumados a não
minha vaca, quando, roubando-a ao vizinho, posso encontrá-la prestar ouvidos, quando a dor é uma linguagem de tal forma
já pronta?”. Limitado ao interesse pessoal, por uma mente que clara e convincente, que todos a compreendem? É por isso que
não sabe ver além dos limites do momento e da esfera individu- estamos aqui apenas explicando, porquanto todo o resto, de-
al, este raciocínio pode parecer justo. Mas ele não pensa que, pois, acontece automaticamente. Expomos, portanto, só uma
depois, um outro vizinho, porque faz o mesmo raciocínio, vai constatação de fatos, apresentando uma fotografia objetiva do
também roubar-lhe a vaca. Então a segurança de possuir a pró- automático funcionamento do fenômeno, para que, assim, quem
pria vaca deve ser paga com o dever de respeitar a vaca dos ou- ainda não sabe mover-se dentro da Lei, em cujo seio todos vi-
tros. Não há outro meio! Muitos gostariam de viver num mundo vemos, conheça as dolorosas consequências que lhe sucederão
onde fosse possível roubar o próximo, sem que eles próprios ao provocá-las, chocando-se contra ela. Quando um indivíduo
pudessem, por sua vez, ser roubados, para que pudessem gozar se põe contra as normas da lei da gravidade, violando-as, a pre-
de uma propriedade garantida somente para si mesmos. Mas, valência é desta lei, e não do indivíduo, que acaba por cair e se
por reciprocidade, que é a lei vigorante em todas as coletivida- matar. Será possível que ele, com a sua força e astúcia, possa
des, isto não é possível. Aos desonestos agradaria viver num paralisar esta lei, impedindo-a de funcionar?
mundo de honestos generosos e desinteressados, para tirar deles Para o indivíduo, a presença da Lei significa seguir uma
melhor proveito. Mas não compreendem que, com semelhante disciplina dentro de uma ordem, que exige ser respeitada. Ora,
método, de ir à pesca dos bons, trabalham a favor da seleção se a Lei tende a levar tudo para a posição de equilíbrio e justiça,
dos piores. Assim, acabam ficando num mundo onde há somen- é evidente que os métodos humanos, buscando utilizar a força e
te parasitas, cujo destino é morrer, pois não é possível viver ex- a astúcia para dobrar a Lei ou procurar fugir dela, não podem
plorando uns aos outros, sem nada produzir. A vida está regida alcançar mais do que um êxito de primeiro momento, fictício, o
por leis, e delas ninguém pode fugir. A imbecilidade do igno- qual, na realidade, constitui somente um débito para com a jus-
rante consiste em crer que, com a astúcia, ele possa atuar em tiça, dívida cujo pagamento depois é inevitável. Assim, quem
plena liberdade, sem se importar em nada com essas leis. Acon- quer vencer é vencido e quem quer enganar é enganado. Então
tece então que ele cai na sua própria armadilha, porque tem de a própria Lei se encarrega de restabelecer o equilíbrio que o ser
pagar depois as consequências. rebelde desejaria violar. Daí verifica-se o princípio pelo qual
Observemos agora como funciona este fenômeno, que fre- quem faz mau uso de alguma coisa, seja ela poder, riqueza ou
quentemente indivíduos e povos estão vivendo, devido à sua saúde, acaba por perdê-la. É pelo mau uso que tudo se gasta e
incapacidade de entender a estrutura de tais leis. Poderemos as- morre. Assim uma propriedade maculada por desonestidade,
sim compreender como e por que desmoronam as nações que se furto ou exploração do próximo – constituindo uma riqueza
baseiam numa economia de furto, em vez de numa economia de contra a justiça – é um fenômeno desequilibrado, que não pode
trabalho. Observemos os princípios gerais dos quais também manter-se de pé e, portanto, cedo ou tarde acaba por se resolver,
este fato deriva. Não há dúvida que o universo – e dentro dele desfazendo-se. As forças negativas pelas quais tal propriedade é
o nosso mundo, em todos os seus aspectos – é um todo funcio- constituída a corroem por dentro e não se detêm, enquanto não
106 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
a tiverem destruído. O abuso dá frutos imediatos, mas traiçoei- se fazem manter pelo trabalho dos outros, julgando-os como
ros. O único jogo seguro de longo prazo é a honestidade. servos. Trata-se de duas formas mentais opostas. Perante o pro-
Essa é a razão pela qual a classe dirigente, quando – apesar blema fundamental, constituído pela produção dos bens, eis
de possuir os meios e com isto o dever de dirigir o país – não que, no primeiro caso, o capital representa um valor ativo, posi-
cumpre a sua função, acaba sendo eliminada pela vida. Assim tivo e útil, a favor da sociedade e do seu melhoramento. No se-
nasceram a Revolução Francesa e a Russa. O comunismo foi gundo caso, ele representa um valor passivo e negativo, defi-
primeiramente gerado pelos ricos, que fizeram mau uso da sua nindo uma economia de exploração, prejudicial para a socieda-
riqueza, e o mesmo fenômeno está pronto para se repetir em to- de, que, assim, piora as suas condições e se dirige para sua au-
dos os países onde se verifique o mesmo fato, cuja ocorrência se todestruição, porque tudo isto, em vez de produzir, esgota.
dá não por vontade deste ou daquele grupo político, mas sim por Num país, quando se estabelece uma economia baseada no
uma lei universal, histórica e biológica. Ora, quem compreendeu furto, em vez de no trabalho e na produção, e quando prevalece
como funciona este fenômeno sabe qual é o sistema para evitar uma estrutura social de exploração, onde o valor, ao invés de na
tal desastre. Semelhante assalto à propriedade não pode verifi- capacidade produtiva, está na organização parasitária, então,
car-se, quando não é violada a lei de equilíbrio, que é lei de jus- neste país, o terreno está pronto para que as leis da vida lancem
tiça. É necessário equilíbrio entre direitos e deveres, pois, quan- fatalmente aquela reação que se chama revolução, cujo nome
do se estabelecem apenas os direitos, esquecendo-se os deveres, hoje é comunismo. Isto é uma constatação de fatos, constituin-
a posição se torna desequilibrada e, por isto, perigosa. O equilí- do o diagnóstico do desenvolvimento normal da doença.
brio da justiça exige que o nosso direito possa nascer somente Procuremos agora, seguindo as leis da vida, estabelecer a
quando tenhamos primeiro cumprido o nosso dever em favor do medida para calcular o peso deste perigo. Observemos assim,
direito dos outros, e que o direito dos outros possa nascer so- neste caso, como essas leis funcionam nos planos físico, bioló-
mente quando eles tenham cumprido o seu dever a favor de nos- gico e econômico.
so direito. Se a nossa propriedade e riqueza for um privilégio de No plano físico, vemos que uma torre, se estiver inclinada
classe, defendida com a força, sendo este o princípio sobre o para um lado, não cairá, enquanto o seu centro de gravidade,
qual se baseia a nossa posição, ninguém poderá impedir que dado pela perpendicular baixada do seu centro de circunferên-
aqueles expulsos deste grupo, tão logo consigam assenhorear-se cia superior, não tocar a região fora da circunferência de sua
daquela força, utilizem-na para sua vantagem, tal como a classe base. Há equilíbrios estabelecidos, e tudo se desmorona, quan-
dirigente, com o seu exemplo, ensinou-lhes que devia ser feito. do os limites fixados por eles são transpostos.
A força é uma coação para sustentar posições desequilibradas, No plano biológico, um organismo doente não morre, en-
que só podem se manter de pé, enquanto aquela força as sustive- quanto a sua resistência orgânica, estabelecida pelo poder das
rem, pois a Lei as submete a um contínuo estado de sítio, cir- suas células sãs, for maior que o ataque microbiano e o poder
cundando-as constantemente e minando-as, para destruí-las. A tóxico das suas células doentes. Quando o primeiro é menor e o
história nos ensina que o sistema da força não resolve, porque segundo é maior, então o organismo morre. Também neste caso,
leva a um regime de continuas reações revolucionárias. Se já constatamos a presença de equilíbrios e limites, ultrapassados os
existisse justiça econômica e se o Evangelho fosse praticado, ao quais, o fenômeno fatalmente se resolve com a morte do doente.
invés de ser apenas pregado, as revoluções nada teriam para fa- No plano econômico vigora a mesma lei de equilíbrio. Um
zer, não havendo causa para provocá-las. Quando não existe organismo econômico pode suportar até 50% de furto, explora-
abuso, não há lugar para a correção. Existe, portanto, um méto- ção, corrupção, falsidade etc. Mas, quando este limite é ultra-
do para evitar as revoluções. O problema é que o homem não es- passado, a doença se torna mortal e aquele organismo se desa-
tá ainda bastante evoluído para saber usá-lo. grega. Tudo o que existe é constituído por um edifício construí-
É da Lei, então, que propriedade e riqueza só podem sub- do com vários elementos, segundo um plano básico no qual tu-
sistir de uma forma estável, quando quem as possui cumpre os do está estabelecido em função de determinadas proporções. O
deveres relativos a elas. Estas são as únicas condições nas edifício se mantém de pé porque são respeitadas determinadas
quais a vida respeita o direito de quem as possui. Fora deste leis de equilíbrio entre forças positivas e negativas. Quando
equilíbrio, somente pode existir um contínuo estado de guerra, prevalecem as primeiras, o organismo resiste. Mas, quando
gerada pela diferença do que se possui. Há povos que ainda prevalecem as segundas, então ele não pode deixar de desmo-
vivem nesta dura fase involuída de primitivos. A posição das ronar. Neste último caso, ele está demasiadamente deteriorado
nações mais civilizadas tende a um equilíbrio cada vez maior para que possa salvar-se, pois o limite estabelecido foi supera-
entre direitos e deveres, o único fato que pode garantir a segu- do. Uma vez alcançado aquele ponto, a torre cai automatica-
rança do que se possui. mente. Não se ganha nada em alimentar o doente com transfu-
Um dos maiores abusos que se faz da propriedade e da ri- sões de sangue sadio, porque este também acaba por se deterio-
queza é aproveitar-se delas como meio de luxo e ócio, em vez rar, misturando-se com o sangue corrompido. Assim, num re-
de se cumprir o dever de utilizá-las como meio para realizar um gime econômico baseado sobre a corrupção e sobre o furto, de
trabalho maior, direcionado à produção em proveito da socie- nada servem as transfusões de ajuda econômica do exterior,
dade. Eis então que luxo e ócio, ao contrário de trabalho e pro- pois, misturando-se e fundindo-se, elas acabam sendo absorvi-
dução, representam uma posição invertida, contra a Lei, que re- das neste tipo de economia cancerosa, tornando-se assim um
agirá, destruindo-a. A posição duradoura não é de exploração alimento para a doença, e não para o doente.
dos outros para vantagem própria, mas sim aquela na qual Eis o que nos dizem as leis da vida, que são as mesmas em
quem possui trabalha a favor da utilidade coletiva. todos os níveis. Mas elas nos dizem também qual é o remédio.
Não falamos aqui de destruir o instituto da propriedade. Ao Se há um limite estabelecido por elas, o remédio está em não
contrário, nós o defendemos, sendo esta a razão pela qual esta- ultrapassá-lo, porque sabemos agora que, além deste limite, a
mos descrevendo os fatos que conduzem à sua destruição. Con- salvação não será mais possível, de modo que a lei resolverá o
forme o uso que se faz da propriedade e da riqueza, os países caso, destruindo a construção mal feita, cuja estrutura não é su-
do mundo podem dividir-se em duas categorias: de um lado, os ficientemente forte para ter direito à vida. Destruir uma tal
povos trabalhadores, que, num regime de livre iniciativa, usam construção pode significar, no plano econômico, desagregar os
o capital como instrumento de produção, fazendo-o frutificar elementos constituintes desta ordem social, para reuni-los no-
com a sua atividade; de outro lado, os povos ociosos e escrava- vamente em outra forma, segundo outros princípios, o que pode
gistas, que usam o capital apenas como instrumento de ócio e levar à destruição do instituto da propriedade, porque dela foi
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 107
feito mau uso. Assim, observando o tipo de economia de uma miséria. A aristocracia era filha da espada, ou seja, da violência
nação e o nível da referida percentagem, pode-se, com antece- e do abuso, sendo tudo depois legalizado e transformado em di-
dência, fazer o diagnóstico do mal e prever o desenvolvimento reito hereditário, constituindo castas munidas com suas próprias
da doença. Assim como se pode calcular o momento em que a ordenações jurídicas defensivas.
torre cairá ou em que o doente morrerá, também se pode calcu- É desta forma mental e tipo de economia que hoje, não im-
lar o momento em que pode estalar num país a reação da Lei, porta se em forma capitalista ou comunista, o mundo está-se li-
fazendo o edifício desmoronar, por falta de equilíbrio, para que bertando. Tal transformação é hoje facilitada, devido ao maior
outra forma de vida tome o seu lugar. Tal como o micróbio que rendimento obtido do trabalho com a técnica científica. Os
mata o doente, esta reação da Lei é uma força encarregada pela grandes valores daquele tempo, como a coragem agressiva, o
vida de cumprir a função, para ela importante, de liquidar os instinto guerreiro, a honra de soldado, o amor à pátria etc., estão
ineptos e destruir tudo o que está corrompido. Aqui, assim co- ficando fora de moda, porque estas qualidades não servem mais
mo faz o médico, falamos isto não para matar o doente, mas para a sobrevivência do grupo, que, portanto, não tem mais ra-
sim para salvá-lo. Porém não se pode com isso impedir que al- zão para exaltá-las. Com a nova técnica da guerra atômica, têm
guém, fazendo mau uso da saúde, assim como da propriedade mais valia o cientista e o organizador industrial que produzem
ou da riqueza, acabe por perdê-la, porque é lei da vida que seja novos meios bélicos, do que o feroz líder de exércitos. Para a
destruído tudo quanto, por mau uso, tenha sido arruinado. vida, hoje, são mais úteis a inteligência e o trabalho do que o
Tudo isto pode acontecer em alguns países que se encon- primitivo instinto do guerreiro. Exalta-se assim, mais do que o
tram em tais condições. Mas o mundo, no seu conjunto, vai pe- domador de homens, o dominador das forças da natureza.
lo caminho oposto, no sentido do trabalho produtivo. O novo Esta transformação de método de vida tem a sua profunda
impulso do mundo moderno é trabalhar. Nisto concordam capi- razão biológica. No passado, a vida tinha necessidade de pro-
talismo e comunismo, que não são senão dois métodos para fa- duzir um biótipo capaz de vencer para sobreviver num ambien-
zer a mesma coisa: trabalhar para produzir e, assim, elevar o te hostil. Hoje, pelo contrário, semelhante tipo de lutador é um
nível de vida. Se a forma é diversa, a substância é a mesma. gerador de atritos, que se torna cada vez mais contraproducente
Neste ponto fundamental, Estados Unidos, Europa, Rússia, numa sociedade coletivamente organizada. Pelas novas condi-
China etc., encontram-se de acordo, porque estão realizando o ções de vida, que apresentam utilitarismos de outro tipo, tende-
mesmo programa de trabalho. Nem poderia ser de outra manei- se a relegar assim, ao terreno dos não civilizados ou delinquen-
ra, porque ninguém tem o poder de modificar as leis da vida. Se tes, o tipo guerreiro, antigamente triunfador nos campos de ba-
queremos o bem-estar, meta universal do homem civilizado, é talha. Na atual passagem de grau de evolução, a vida quer sele-
necessário conquistá-lo. Não há ideologia ou programa político cionar um outro biótipo, mais adequado às suas novas condi-
que possa modificar este estado de fato. Nenhum homem pode ções. No seu desenvolvimento, a humanidade não pode deixar
sair das leis que regulam a vida. Assim, hoje, o trabalho não é de seguir a lei das unidades coletivas, segundo a qual a evolu-
mais, como na Idade Média, reservado somente aos dependen- ção dá origem a unificações cada vez mais vastas dos elemen-
tes, considerados servos num mundo em que, para o senhor, o tos componentes. Ora, em tal processo, os individualismos se-
fazer nada era considerado uma honra, e não uma vergonha. paratistas, resultantes do excessivo egocentrismo, antigamente
Hoje, o trabalho é de todos, se bem que em forma diferente, precioso para a sobrevivência, tornam-se um perigo social, que
tanto de quem está no alto, para dirigir, como de quem está em- a coletividade procurará afastar do seu seio. Não há dúvida que
baixo, para executar. Somente nesta forma de trabalho produti- a vida da humanidade em nosso planeta está tomando agora es-
vo para todos, o organismo econômico poderá ficar de pé, resis- ta nova direção orgânica, da qual as formas socialistas, comu-
tindo a qualquer agressão. Então ele será são e forte, não po- nistas, coletivistas etc., representam as primeiras tentativas de
dendo ser vencido por ninguém. realização. Chegar-se-á assim a eliminar completamente o dis-
pendioso atrito e a pesada manutenção do guerreiro, isolando-o
III – O valor do trabalho. como um indivíduo à margem da lei, que não sabe enquadrar-se
nesta nova ordem, finalmente alcançada hoje, depois de um tra-
A nova palavra de ordem do mundo moderno é “trabalhar”. balho tão fatigante de milênios. Assim, à medida que se vai
Um dos principais fatores da atual transição evolutiva da hu- formando uma maioria do novo tipo de homem, o antigo tipo,
manidade consiste nesta sua nova atividade que está sendo rea- no qual persistem os instintos atávicos do involuído, será cada
lizada, na qual assume-se um novo conceito do trabalho, bem vez mais empurrado para a margem da sociedade, até ser expul-
diferente daquele estabelecido na Idade Média. Tal superação so como elemento antissocial, enquanto, pelo contrário, será
de forma mental implica imensas consequências no terreno da afirmado o tipo evoluído, que soube adequar-se às novas condi-
produção, da riqueza e da elevação do nível de vida. ções de vida, tornando-se um indivíduo pacífico, inteligente e
Na Idade Média, o valor consistia não em trabalhar e produ- ativo, apto a produzir com o seu trabalho o bem-estar no seio de
zir, mas sim em guerrear e dominar, para fazer do próximo um uma sociedade que, de um amontoado caótico, tornou-se por
servo, explorando o seu trabalho. A nobreza se baseava sobre evolução num organismo coletivo.
este princípio. Era respeitável quem, como cavaleiro valoroso, É assim que, hoje, nas novas condições de ambiente, com as
sabia conquistar tudo com a espada, roubando e matando. quais a sua forma mental se transforma e atinge um novo modo
Quem trabalhava e produzia era apenas um servo, sujeito ao seu de conceber a vida, o homem reage por sua vez sobre o ambien-
senhor. O valor e a honra consistiam em submeter e mandar, te, transformando-o mais rapidamente, entrando e, assim, fixan-
sem trabalhar. Ser ativo na produção, que constitui de fato a ba- do-se, cada vez mais com maior estabilidade, numa nova fase de
se da vida e do bem-estar, era considerado vergonha de servos. evolução, formando um novo tipo biológico. A vida se encami-
O mundo vivia ainda numa fase caótica, na qual valia apenas nha deste modo para a superação das suas formas passadas, ba-
quem sabia vencer na luta. A pirâmide do regime feudal apoia- seadas na lei da luta pela seleção do mais forte, do individualista
va-se sobre a opressão do povo, a favor dos poucos que emer- egocêntrico antissocial, preparando-se para a construção de um
giam por façanhas guerreiras pessoais, num regime de ócio e novo homem social, adequado para viver como um elemento
pirataria, para vantagem própria, e não da coletividade. O guer- componente de uma coletividade orgânica, e não mais como um
reiro não trabalha nem produz, vivendo somente de rapina. guerreiro em meio ao caos. Passar do estado caótico ao estado
Quando se tem um tal conceito de trabalho, não se valorizando orgânico representa um imenso salto para frente, implicando
a primeira fonte de toda a criação, nada se pode recolher senão uma mudança radical de método de vida. De resto, é natural que,
108 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
passando de um nível evolutivo a um superior, variem também uma colaboradora e uma companheira de luta, que se coloca a
as leis às quais o ser está sujeito e que, neste caso, portanto, a lei seu lado no mesmo trabalho produtivo, constituindo uma aliada
animal da luta pela seleção individualista do mais forte seja ativa, e não uma coisa inerte possuída.
abandonada, para favorecer, pelo contrário, a seleção do indiví- A superação evolutiva reside então no fato de que a união
duo mais adequado a viver unificado com os seus semelhantes não se faz mais segundo o princípio da imposição forçada, con-
em forma orgânica, em vez de isolado no caos. A biologia não forme a lei biológica do animal, mas se realiza segundo o prin-
deve ser concebida como fenômeno estático, mas sim dinâmico; cípio orgânico-colaboracionista, que, por evolução, vai-se afir-
não deve ser entendida em função somente de um dado tipo de mando em um novo nível biológico, que a humanidade se prepa-
lei, mas sim de uma série de tipos de leis, em contínua evolução, ra para conquistar. Neste plano de vida vigora de fato uma outra
constituindo outros tantos degraus do caminho ascensional do lei, que estabelece a coordenação entre direitos e deveres, tra-
ser. É natural então que agora, quando o homem está para sair zendo a cooperação entre os elementos componentes, e não a lu-
da sua fase animal, ele se afaste também da lei correspondente a ta. A união então se realiza entre dois seres que – cada um de
este nível, da luta pela seleção desse determinado tipo. uma forma diferente mas de mesmo valor – compõem um par,
De cada fenômeno existem sempre as razões profundas, e, somando no casal as suas capacidades produtivas. Nesta sua ca-
procurando-as, pode-se chegar às primeiras origens dele. O mé- pacidade residem o valor e a honra que defendem aquela união.
todo preponderantemente animal com que a vida humana funci- Assim avança o fenômeno evolutivo atualmente em ação, pelo
onou até agora é de tipo involuído, atrasado, mais próximo da qual o biótipo humano passa do nível animal, dominado por
extremidade negativa da existência, que chamamos Anti- ventre, sexo, luta e trabalho físico, ao nível em que, pelo contrá-
Sistema, do que da extremidade positiva, que chamamos Siste- rio, prevalecem as funções nervosas e cerebrais, com a mente e a
ma. Segundo o nosso conceito de evolução biológica, a cada inteligência. O fenômeno evolutivo avança em todos os seus as-
plano de existência corresponde uma lei proporcionada a ele. pectos. Desta forma, também a procriação será realizada com
Ora, o método ainda vigente no atual nível animal-humano, fa- sentido de responsabilidade, porque ela implica o dever da edu-
zendo uso da força, da imposição e da coação, para a prevalên- cação, base para a civilização. Antigamente, o homem gerava de
cia de um dominador que busca reduzir tudo em função do seu modo semelhante ao animal. Uma vez nascido o filho, depois de
próprio egocentrismo, é o método do ser anárquico e rebelde do rápidos cuidados maternos, ele era abandonado a si mesmo. Ho-
Anti-Sistema. Dentro deste, no entanto, permaneceu o Deus je, fazer isto significa lançar na rua indivíduos que, amanhã, se-
imanente, funcionando contínua e interiormente contra essa ten- rão um perigo social, jogando nas costas da coletividade o peso
dência de desordem, com uma ação corretiva no sentido oposto, morto de muitos seres inadaptados à vida civil, para serem man-
que tende a repor tudo na posição original de ordem, equilíbrio e tidos com o trabalho dos outros. A natureza admite a abundante
justiça do Sistema. O significado profundo do fenômeno da e indiscriminada procriação nos primitivos, para depois selecio-
transição evolutiva que a humanidade está cumprindo hoje, con- ná-los, matando uma boa parte deles. Nos países civilizados, pa-
siste justamente em deslocar-se um passo a mais no sentido de ra manter o nível alcançado e não retroceder à barbárie medie-
afastar-se do Anti-Sistema e avizinhar-se do Sistema. val, é necessário, mais do que produzir a quantidade, selecionar
Vemos esta transformação atuar nos mais diversos campos, a qualidade; mais do que gerar uma prole abandonada, para ser
que representam casos particulares dos referidos princípios ge- dizimada pela natureza, criar uma prole protegida, para sobrevi-
rais. Um destes casos hoje em ação é o processo de emancipa- ver e, depois ser educada, ter condições de produzir, servindo de
ção da mulher. Referimo-nos a ele porque está conectado com o ajuda ao progresso, e não de obstáculo. Como se pode ver em
fenômeno da propriedade e do direito do mais forte. Efetiva- relação ao passado, as leis do novo plano biológico são diferen-
mente, a posição da mulher no passado estava por princípio de- tes. E, para evoluir, não se pode deixar de utilizá-las.
terminada como uma propriedade do homem, que sobre ela ti- Eis que os mais diversos problemas da existência, nos tem-
nha direito somente em virtude da sua força. Se ela encontrava pos modernos, são vistos e resolvidos de uma forma diferente do
nele o dono que a possuía, encontrava também o proprietário passado. Aos nossos antepassados isto pareceria uma desapieda-
que a defendia como coisa sua. Este conceito de mulher- da exposição de verdades recônditas, que era conveniente não
propriedade prevaleceu durante milênios, porque convinha deixar ver. Mas, hoje, querer banir estas verdades acomodadas
também a ela, resolvendo-lhe o problema, para ela grave, da de- ao uso do mais forte vencedor é um ato de sinceridade, que con-
fesa. Então ela devia, consequentemente, possuir uma persona- duz à clareza e, com isto, à mais exata compreensão e justa so-
lidade adequada a tais condições de vida, procurando primei- lução dos problemas da vida. É mais honesto basear-se e procu-
ramente obedecer, servir e pensar com a cabeça do homem, rar diretivas sobre leis biológicas positivas, racionalmente con-
como um seu apêndice, tendo os mesmos gostos dele, porque troladas, do que sobre proclamados direitos divinos ou artificiais
ele, pelo direito divino conquistado com a sua força, era o do- legalizações de interesses do grupo dominante. Começa-se a
no. Mas ser dono significava também saber fazer a guerra, de- pensar hoje, querendo-se ver o que há por trás do cenário das
fendendo o grupo familiar dos inimigos, e levar como alimento aparências, feita de verdades gratuitamente afirmadas, e saber o
para casa a presa obtida na caçada, o que é equivalente, nos porquê do lícito e do ilícito. Às mentes simples dos nossos pais
tempos modernos, a ganhar o salário para viver. bastavam as poucas regras da vida civil, ditadas pela religião e
Enquanto nos países mais atrasados a mulher continua na pela lei, para que tudo se resolvesse, observando-as. Isto era su-
posição de coisa possuída, condição que lhe permite viver no ficiente para fazer o bom cristão e cidadão, a pessoa de bem,
ócio, o novo conceito do dinamismo dos tempos modernos cor- ainda que tais regras deixassem uma larga margem de escapató-
responde à mulher trabalhadora e produtiva. Vemos também rias, permitindo uma elasticidade de atuação que o conhecimen-
aparecer neste campo a função e o valor do trabalho, que se in- to das leis biológicas e uma ética positiva, baseada sobre elas,
sere em nosso tema. Este fato dá à mulher a independência não permitem. Esta é uma moral mais profunda, que não somen-
econômica, o que implica importantes consequências para ela, te penetra na estrutura psicológica do indivíduo – fenômeno ig-
deslocando de fato a sua posição. Então quem leva os meios de norado antigamente – analisando-o com a psicanálise, mas tam-
vida para casa não é mais somente o homem, fato que coloca a bém o compreende e o ajuda, reconhecendo-lhe os direitos e cla-
mulher no mesmo nível dele, e não mais como sua serva. Para- reando aquela névoa de mentiras que, por legítima defesa, ele
lelamente, o homem não tem mais uma simples dependente pa- era constrangido a utilizar. Antigamente, cumpridas as regras
ra manter, cujo papel é funcionar como um espelho no qual ele formais vigentes – sancionadas pelo consentimento em que a
pode ver refletida a potência da sua força, mas tem junto a si maioria, na defesa dos seus interesses, achava conveniente con-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 109
cordar – era fácil fugir delas, continuando a satisfazer os pró- abuso, gastou o seu organismo, oferecendo com isso um convi-
prios desejos, desde que se soubesse camuflá-los debaixo das te ao assalto do mal. Assim a natureza põe à prova o indivíduo,
belas aparências. Mas, quando a ética se baseia sobre as leis da que ou sabe se defender, vencendo e se curando, ou, pelo con-
vida e penetra no subconsciente até à raiz dos nossos pensamen- trário, morre e é substituído. Tudo isto também forma parte da
tos e atos, então a ficção e as velhas armadilhas não servem nem moral biológica, que trabalha com fatos, e não com palavras.
funcionam mais. Ao invés de simular e procurar fazer os outros Então os povos trabalhadores invadirão a terra daqueles que o
acreditarem que se é crente, para poder assim fazer melhor os ócio tornou ineptos, porque hoje não é mais lícito manter im-
próprios negócios, é mais honesto dizer que não se crê em mui- produtivo o capital de um país rico de recursos naturais, sem
tas coisas. O ateísmo é um erro, mas é melhor a sinceridade do explorá-los. Dado que tal inaptidão pesa sobre a economia
ateu do que a religião da hipocrisia. Como um grande vento, a mundial, a sociedade humana, cedo ou tarde, por razões de uti-
ciência, com a sua forma mental positiva, encarrega-se de des- lidade pública, acabará por realizar essa expropriação forçosa.
mantelar as superestruturas seculares, que são também compro- Mas como se explica esta tendência para a preguiça e o pa-
misso e contorção de verdades, servindo para adaptações cômo- rasitismo, que vemos aparecer tão logo um indivíduo ou uma
das, quando não constituem diretamente artifícios para esconder classe social alcança o bem-estar? Trata-se de um repouso me-
injustiças. O problema terreno está assim reduzido aos seus ele- recido pelo esforço da conquista, concedido pela vida aos que
mentos essenciais, tornando-se claro que somente quem trabalha acabaram de triunfar. O mal, porém, é que eles desejariam
e produz, dando à sociedade o equivalente daquilo que dela re- acomodar-se definitivamente na bela posição de descanso. En-
cebe, tem direito de ser cidadão. Conceito simples, posição cla- tão a vida os expulsa. Eles tratam de estabilizar definitivamente
ra, balanço exato de direitos e deveres, sem possibilidade de pre- o nível alcançado, fixando-o e protegendo-o com leis e institui-
textos que permitam o ócio. Sã e saudável lei de trabalho, psico- ções, em formas hereditárias, de modo a poder conservar tudo
logia retilínea, filosofia dura mas honesta, aderente à realidade para sempre. Mas é precisamente neste momento, quando cre-
da vida. Valorização, com bom pagamento, do trabalho bem fei- em ter resolvido o problema da sua situação, que a vida começa
to, mas liquidação de quem não o faz ou faz mal. a trabalhar contra eles. A existência fácil os torna ineptos. A vi-
Com esta nova forma mental, o indivíduo vale pelo que sa- da deixa aqueles que perdem o exercício da luta se debilitarem,
be fazer, pela sua capacidade produtiva, pela sua atividade de para eliminá-los. Entretanto os derrotados, excluídos do ban-
trabalhador. A divisão mundial entre capitalismo e comunismo quete, conservam-se despertos pela fome e, continuamente se
torna-se problema secundário perante o problema fundamental exercitando para o assalto, empurram de baixo para chegar à
no plano econômico: a produção. Só depois, quando se produ- superfície. Assim, enquanto os que gozam no bem-estar se de-
ziu, pode surgir o problema de como distribuir. Mas, quando bilitam, eles se exercitam e se fortificam. Os dois fenômenos,
não há senão miséria, mesmo que se queira distribuí-la, perma- seguindo caminhos opostos, tendem para o mesmo ponto, aque-
nece-se na miséria. Insiste-se na distribuição antes da produção le no qual, perante uma aristocracia debilitada, incapaz de se
porque o homem atua ainda com a psicologia do primitivo, defender, levanta-se o assalto dos rebeldes, que, tendo-se torna-
aquela com a qual, como vimos anteriormente, ele resolvia tu- do fortes pela vida dura, estão dispostos a tudo, devido ao de-
do, roubando a vaca do vizinho, sem compreender que seme- sespero. Eles têm consigo as leis da vida, que quer o esforço e a
lhante sistema é o caminho aberto não para o bem-estar, mas vitória e está pronta a premiá-la na medida do merecimento. Ao
sim para as revoluções, levando à destruição e à pobreza, em mesmo tempo, a vida também quer utilizar estes rebeldes como
vez de à produção e à abundância. Outro fator determinante de elementos de destruição desse não-valor biológico, representa-
semelhante psicologia está no fato de que, frequentemente, so- do por aqueles ineptos, pois é da Lei que não tenha direito à vi-
bre o conceito de propriedade-trabalho-produtivo prevalece o da quem nada vale. Então, enquanto se encerra o ciclo dos anti-
de propriedade-ócio-exploração. gos triunfadores, agora já em descida e liquidação, inicia-se ou-
É verdade que o capitalismo se torna um mal, quando o ri- tro com os novos vitoriosos, que o percorrerão por completo,
co é apenas um parasita, economicamente negativo, que vive terminando-o em descida, como fizeram aqueles que eles eli-
sem trabalhar, à custa de quem trabalha, fazendo-se assim minaram. Estas são as ondas segundo as quais se efetua a evo-
manter pela sociedade. Quando o capital não serve para produ- lução humana no plano econômico, que é a sua parte mais ma-
zir, mas sim para viver no ócio e gozar, quando a riqueza é ad- terial. Este processo depende de uma lei geral que vemos reali-
quirida pelo furto e mantida com o trabalho dos outros, em vez zar-se tanto em pequena escala, para os indivíduos e famílias,
do próprio, é lógico então que, tendo-se ela tornado um mal, a como em grande escala, para as nações e povos.
vida procure eliminá-la. Este é um princípio daquela ética bio- Seria possível evitar estes desmoronamentos, se os triunfa-
lógica de que falávamos agora, da qual era possível fugir no dores usassem sua posição privilegiada para o benefício da co-
passado, porém não mais hoje. Em qualquer campo, seja polí- letividade, e não somente de si mesmos; como função social, e
tico, religioso, econômico ou social, quando há insurgência não como exploração egoísta individual; procurando cumprir,
contra uma instituição, não é esta em si que é combatida, mas no seio do organismo em que vivem, a parte que lhes corres-
sobretudo o mau uso que dela se faz. Então, a fim de eliminar ponde como dever, e não somente aquela que eles proclamam
o abuso, procura-se destruir a instituição, para substituí-la por como seu direito. Quando, por evolução, a sociedade humana
uma diferente, frequentemente sem compreender que, enquan- chegar ao estado orgânico, a classe dirigente, em cujas mãos se
to o homem continuar a ser o mesmo, ele será levado a reali- encontram os meios de subsistência e as alavancas de comando,
zar, à custa da nova instituição, os mesmos abusos de antes, não poderá mais ser constituída pela massa amorfa dos vence-
com as mesmas consequências já observadas. dores da vida, que, para se banquetearem, sentam-se sobre as
A história nos mostra quais são as causas destas reações que costas dos vencidos, mas deverá ser constituída por um grupo
a vida desencadeia precisamente para libertar-se de um mal e de elementos seletos, escolhidos entre as células situadas mais
reconquistar a saúde. Tal como na medicina se conhecem as no alto, exatamente para, assim como faz o cérebro, cumprir as
condições que preparam o terreno onde pode atacar uma doen- funções diretivas do organismo social, e não as inferiores do es-
ça, também sabemos as causas do ateísmo e, portanto, qual a tômago, só para engordar. Numa sociedade que evoluiu até ao
conduta que, sendo adotada por um país, abre as portas ao co- estado orgânico, a atividade de cada elemento se coordena com
munismo. Assim como há indivíduos predestinados pela sua es- a de seus afins, em função da utilidade coletiva. Assim, assu-
trutura orgânica a uma determinada doença, também há países mindo uma posição nova e cada vez mais unificada, vai sendo
predestinados ao comunismo. A culpa é do doente que, com o reabsorvido gradualmente o desagregante e egocêntrico separa-
110 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi
tismo individualista da precedente fase caótica. Então a posição central próprio, não lhes sendo possível alcançar semelhante
de dirigente não é mais conquista para benefício próprio, mas grau de unificação. Devido a esta sua incapacidade, não sabem
sim função social com o objetivo de utilidade coletiva. Muda viver senão parasitariamente, apoiando-se num outro organismo
completamente o modo de entender o significado da própria e reproduzindo-se desordenadamente, num regime de caos, que
posição privilegiada. Hoje, com frequência, especialmente nos revela quão longe se encontram de um sistema com base na es-
países mais atrasados, as células dos tecidos musculares se co- pecialização, coordenação e colaboração de funções, cuja fina-
locam no lugar das nervosas e cerebrais, com a finalidade não lidade é constituir um organismo coletivo. Isto mostra como
de produzir energia volitiva e pensamento, mas sim de extrair tais células estão atrasadas na sua capacidade de constituir uma
para si a produção alheia e as vantagens da coletividade. Esta é unidade, propriedade que revela o grau de evolução.
política cancerosa que mata o país. Numa humanidade civiliza- Trouxemos este exemplo das células do câncer para explicar
da, as células de tipo menos evoluído permanecerão no lugar a forma e o porquê da conduta de cada elemento de uma socie-
que lhes corresponde, para cumprir a função de que são capa- dade humana primitiva. Eles não sabem funcionar todos em con-
zes, porque corresponde à sua natureza, permanecendo ali para junto, organicamente, mas somente como rivais entre si, anar-
obedecer e executar. Por outro lado, as células nervosas e cere- quicamente. É a sua involução que os leva ao separatismo, pelo
brais não abusarão da sua superioridade como dirigentes, mas qual, em vez de se coordenarem, rebelam-se a qualquer discipli-
exercitarão o seu domínio para a vantagem de todos, inclusive na, pondo-se a lutar para dominar, refratários a qualquer função
daqueles que estão em grau evolutivo subordinado, assumindo unitária. Os indivíduos que aplicam a economia do furto, corres-
a responsabilidade e os deveres inerentes à sua posição de co- pondem, assim como as células do cancro no organismo doente,
mando, que exercitarão somente em função da finalidade su- aos elementos perniciosos de uma sociedade primitiva. Assim
prema de todos, que é o bem coletivo. Deste exemplo se vê como elas se enxertam na ordem do organismo que as hospeda,
quão distante estamos ainda de uma sociedade civilizada, que não para cooperar com ele, mas sim para explorá-lo egoistica-
verdadeiramente mereça tal nome. mente, tornando-se suas inimigas, aqueles indivíduos também se
Pode-se assim, mesmo hoje, compreender a razão pela qual inserem na coletividade, não para se unirem a ela e cooperar na
quem se encontra no alto da escala social, mas entende esta sua produção, mas sim para se oporem a ela, roubando-a e explo-
posição não como função coletiva, e sim apenas como utilidade rando-a. A sua natureza de involuídos não lhes permite compre-
pessoal, deixando de cumprir todo o trabalho que lhe correspon- ender além disso e agir melhor. Como elementos inconscientes,
de, atraiçoa a sociedade da qual faz parte, pois deste modo ele eles atacam e devoram o organismo em que vivem, acabando
abusa e, com o seu exemplo, semeia em todo o país o costume assim por matá-lo e morrer dentro dele.
do abuso, educando para o mal e, assim, não só formando, com A grande revolução moderna é a revolução do trabalho. Ela
suas próprias mãos, uma raça de revoltados, prontos a saltar-lhe foi possível graças aos novos meios produtivos da técnica in-
em cima, mas também cercando-se de servos traidores, dos dustrial. A humanidade se prepara para dirigir a sua atividade
quais não obterá senão mentira e engano. É inútil iludir-se, pen- de conquista cada vez menos para a guerra e cada vez mais para
sando que basta cobrir tudo com belas aparências. Quem está o trabalho. Hoje o mundo se pôs a trabalhar, não importa se em
embaixo olha a substância, e esta, quando queima, fica gravada forma capitalista ou comunista. Se o comunismo tentou destruir
no subconsciente, que um dia tomará a sua vingança. O exemplo a propriedade, isto sucedeu porque ela se havia transformado
que desce do alto é uma tremenda autorização à imitação, sobre- numa base de parasitismos e abusos antissociais. As revoluções
tudo quando convém, mesmo sabendo-se que é mau. Assim a aparecem apenas quando se tem de pagar essas culpas e sanear
corrupção rapidamente se estende, invade e infesta tudo. Os as- essas doenças. Nos Estados Unidos, onde o possuir serve para
tutos, que creem saber enganar, acabam por receber de volta a trabalhar e produzir mais, não há nenhuma necessidade de des-
mesma mercadoria que eles põem em circulação. Numa socie- truir a propriedade, para se fazer a revolução do trabalho, por-
dade, tudo funciona por reciprocidade, de modo que o mal não que ela já está feita. Esta é necessária onde os ricos não traba-
pode deixar de regressar à sua fonte. Quando no tão declamado lham e extraem o seu bem-estar do trabalho dos outros. Mas,
sistema da liberdade há excesso, cai-se na desordem, sendo este onde o capitalismo é um meio para trabalhar e produzir, não há
o estado que preludia as mais graves doenças sociais. Como po- nenhuma razão para que ela deva realizar-se.
deria não se desagregar um organismo no qual as funções cere- Este perigo, por mais absurdo que pareça, pode subsistir
brais fossem executadas por células selecionadas de tecidos me- no seio do próprio comunismo, e veremos como. Ele não des-
nos evoluídos ou, pior ainda, por células de tecido canceroso? truiu a propriedade, o que é impossível, mas apenas a distribu-
A economia de furto é uma economia negativa, de destrui- iu diversamente, fazendo-a subsistir em forma de capitalismo
ção, e não positiva, de produção; é uma atividade parasitária, de estado. É neste ponto, justamente, que subsiste o perigo an-
em favor da doença, e não da saúde; é a economia do cancro, teriormente mostrado por nós, pois pode acontecer que os no-
que prospera matando. O câncer é um pseudo-organismo, com vos triunfadores, para gozar o fruto dos seus esforços, assu-
base na anarquia, na desordem e no egocentrismo separatista, o mam os mesmos defeitos daqueles que eles substituíram, en-
que significa um estado primitivo, uma posição involuída, caminhando-se assim para o mesmo fim. Uma revolução eco-
atrasada, situada mais perto do caos do Anti-Sistema do que da nômica e uma ideologia não têm o poder de transformar a na-
ordem do Sistema. Esta posição involuída é resultado da igno- tureza humana. Existe então o perigo de que a classe política
rância, da qual deriva a incapacidade de compreender as van- dirigente, que tomou o lugar da antiga aristocracia, acabe por
tagens de viver, pelo contrário, num estado orgânico, de disci- imitar a atuação e repetir os seus erros, chegando às mesmas
plina e ordem. Pela lei das unidades coletivas, a evolução se consequências, o que é tanto mais fácil, quanto mais a revolu-
realiza por unificações sempre mais vastas. Assim, quanto ção envelhece e, assim, afasta-se das condições que determi-
mais involuído é o indivíduo, tanto mais ele fica egoisticamen- naram o impulso de origem.
te isolado em guerra contra os seus próprios semelhantes (es- O despertar da humanidade baseia-se na produção de meios
tado caótico, no qual domina a lei da luta pela vida), ao passo que lhe assegurem a sobrevivência. Isto é o que interessa à vida.
que, quanto mais evoluído ele for, tanto mais será induzido a Este despertar da atividade trabalhadora e produtora, combinado
unificar-se com os seus próprios semelhantes (estado orgânico, com o imenso rendimento que lhe pode dar a moderna organiza-
no qual domina a lei da colaboração). ção científica e a tendência a um coletivismo unitário, represen-
As células do câncer são involuídas e, portanto, incapazes tam um novo modo de compreender a vida e, devido aos seus
de coordenar-se num organismo autônomo, com um governo efeitos, assinalam a passagem de uma época para outra. Algu-
Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 111
mas nações já entraram nesta nova fase, libertando-se do passa- direção ao trabalho produtivo. Assim vão se desvalorizando os
do e renovando-se plenamente. Mas há povos que, preguiçosos e velhos sistemas, e cada vez mais se aprecia este novo, que dá
pobres, permanecem ainda apegados a uma forma mental con- mais rendimento. Chegar a compreender uma nova verdade é o
traproducente, ligada a uma moral de honra e desonra, de patrão trabalho mais difícil, porém o mais importante biologicamente;
e servo, que corrói toda a colaboração, produzindo só luta, ran- possuí-la é o resultado de fatigantes experiências, mas represen-
cores, caos e, por fim, destruição para todos. Os mais progressis- ta a capacidade de assumir novas direções na evolução da vida.
tas começam a compreender que é mais conveniente, pelo con- Adquirir uma nova verdade significa enriquecer o próprio pa-
trário, pôr-se a trabalhar e produzir com o trabalho organizado trimônio com conhecimento e potência, ter ascendido evoluti-
do que pôr-se a roubar e explorar com a força ou a astúcia. A vamente, com todas as consequências que tal fato implica; signi-
própria psicologia de guerra, com a balança do terror, levantan- fica ter dado um novo passo em direção ao alto, entrando num
do a perspectiva de acabarem todos destruídos num mundo em mais elevado nível de vida. Neste caso, a nova verdade consiste
alarme, está sujeita em parte a ser refreada. Eis que toda a psico- em ter compreendido o valor do trabalho.
logia medieval representa um modo de viver do qual o mundo
procura afastar-se, indo em direção a uma sua nova maturidade e
superação evolutiva. Começa-se a compreender que, em vez de FIM
gastar as energias em atritos, é mais conveniente canalizá-las em
O MISSIONÁRIO
Vida e Obra de Na primeira semana de setembro de 1931, depois da grande decisão fran-
ciscana, Cristo novamente lhe apareceu e, desta vez, acompanhado de São

Pietro Ubaldi Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-
tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de
Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.
Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-
(Sinopse) gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua
missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a
mesma linguagem e conteúdo divino.
O HOMEM No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-
nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem
Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-
18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do
onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi- mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros
ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-
as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:
grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais 01) Grandes Mensagens
e os prazeres deste mundo. 02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito
Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo
03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento
franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia
sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci- 04) Ascese Mística
onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei- 05) História de Um Homem
ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As- 06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão
sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana. 07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio
Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen- 08) Problemas do Futuro
te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual. 09) Ascensões Humanas
A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien- 10) Deus e Universo
tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos
Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além
praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no
de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-
interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à
se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra
família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas
ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos
lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade
na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.
se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e
O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-
aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-
ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-
ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-
dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um
ência a palavra “evolução”. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a
ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-
leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-
são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-
carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-
pletar sua tarefa missionária.
piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-
Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de
nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.
conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-
Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-
guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-
mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se
posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um
poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-
convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno
tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e
lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para
religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX.
com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-
Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-
sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.
mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A
Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-
Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-
cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em
ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano
São Vicente, no edifício “Iguaçu”, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.
Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como
Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício “Nova Era” (coin-
prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.
cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça
Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-
22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-
colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina
tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada
educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para
brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:
o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-
11) Profecias
fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-
va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino. 12) Comentários
Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos. 13) Problemas Atuais
Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: 14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo
Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em 15) A Grande Batalha
1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975). 16) Evolução e Evangelho
Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con- 17) A Lei de Deus
ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma- 18) A Técnica Funcional da Lei de Deus
trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de
19) Queda e Salvação
pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando
aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a 20) Princípios de Uma Nova Ética
maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi 21) A Descida dos Ideais
assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran- 22) Um Destino Seguindo Cristo
ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava 23) Pensamentos
todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente. 24) Cristo
Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-
Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa
– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande
transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-
Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,
durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-
humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São
– Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha. José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-
A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – “Gêne- do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de
se da II Obra”): dos 5 aos 25 anos  formação; 25 aos 45 anos  maturação in- poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.
terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos  Obra Italiana (produção concep- A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma
tual); dos 65 aos 85 anos  Obra Brasileira (realização concreta da missão). nova concepção de vida.

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