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Projeto de Estudos Judaico-Helenísticos - PEJ

Coordenador: Prof. Vicente Dobroruka

Universidade de Brasília
IHD - Dpto. de História
Brasília -DF- 70910-900 www.pej-unb.org

“DANIEL, JERÔNIMO E A CRÍTICA DE PORFÍRIO:


DEBATES SOBRE A AUTENTICIDADE DAS REVELAÇÕES

DANIÉLICAS”
VII SEMINÁRIO DE ESTUDOS DE APOCALÍPTICA / I SEMINÁRIO
INTERNO DO PROJETO DE ESTUDOS JUDAICO-HELENÍSTICOS - PEJ -/
I SEMINÁRIO DO GEA, 28 DE NOVEMBRO - 01 DE DEZEMBRO 2006

Lilian Chaves Maluf

Bacharel em História / UnB

Prof. Vicente Dobroruka


PEJ - UnB 2006 - Lilian Chaves Maluf

Resumo / abstract

O livro de Daniel constitui um apocalipse histórico


pseudepigráfico cujas seções revelatórias foram escritas no
período macabaico. Embora essas constatações representem um
consenso recente na historiografia, foram antecipadas pelo
filósofo neoplatonista Porfírio há mais de um milênio. O
debate sobre a autenticidade das revelações daniélicas
conduz à questão de como Porfírio chegou a conclusões
semelhantes às da historiografia moderna sem os recursos
que esta utiliza. Este paper tem por objetivo confrontar a
crítica de Porfírio, a réplica de São Jerônimo e as
análises da historiografia moderna selecionadas para
analisar essa questão.

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Daniel, Jerônimo e a crítica de Porfírio: debates


sobre a autenticidade das revelações daniélicas

Há mais de um milênio, a crítica bíblica moderna fora


antecipada pelo filósofo neoplatonista Porfírio (232-310
d.C.) quanto à idéia de que as revelações dos cap. 7-12 do
livro de Daniel (Dn)1 são um pseudepígrafo2 macabaico3. Dn,
a primeira e a maior das obras apocalípticas judaicas, foi
criticado por Porfírio em Contra os Cristãos (CC), escrito
entre 298 e 303 d.C., de maneira que a autenticidade de
autor e obra foi negada sem o auxílio dos recursos que a

* A referência bíblica utilizada é a da Bíblia de Jerusalém. São


Paulo: Paulinas: 1993.
1
Os nomes das fontes mais freqüentemente citadas estão abreviadas da
seguinte forma: o livro de Daniel está abreviado como “Dn”, o
Comentário de São Jerônimo a Daniel como “CJr”, Contra os cristãos,
como “CC”, Antigüidades judaicas como “AJ” e Guerra dos judeus, “BJ”.
2
Segundo André Paul, “pseudepigrafia” ou “escrito sobre nome falso” é
um “processo que consiste em atribuir a um personagem célebre do
passado a obra que está sendo escrita”. Como exemplo, cita a Sabedoria
de Salomão, um apocalipse apócrifo escrito nos anos 50 a.C. mas
colocada sob a regência de Salomão, que viveu no séc.X a.C.. Cf. André
Paul. O que é o intertestamento. São Paulo: Paulinas, 1981. P.92. O
mesmo ocorre com Dn, no entanto, como explica André LaCocque, trata-
se, nesse caso, de um personagem mítico visto pela tradição bíblica
como uma referência que exprime o máximo em sabedoria, como o
exemplifica Ezequiel (Ez 28:3). Há um paralelo entre essa tradição
bíblica e a literatura ugarítica caananita, em que o mito de Danel, o
qual influenciou o ciclo de Enoc, oferece uma possível explicação para
a formação do mito daniélico da sabedoria mântica. Cf. André LaCocque.
Daniel in his time. Columbia: University of South Carolina, 1988.
Pp.5-6. Collins não vislumbra maiores proximidades entre o mito
ugarítico e a figura do Daniel bíblico, mas afirma que o nome foi
tirado de Ezequiel. Cf. John J. Collins. Daniel. A Critical and
Historical Commentary on the Book of Daniel. Minneapolis: Fortress
Press, 1993. Pp.1-2.
3
O período macabaico, a que Porfírio atribui o momento da composição
das revelações daniélicas, corresponde ao reinado de Antíoco IV
Epífanes da Síria e à helenização forçada da palestina em seu governo,
sobretudo no ano de 167 a.C.. Trata-se, do ponto de vista da
literatura apocalíptica, da primeira fase da produção de apocalipses
da história: surgiram em decorrência da perseguição de Antíoco IV
Epífanes os primeiros grandes apocalipses, dentre os quais destaca-se
Dn. As outras duas fases da produção apocalíptica da Antigüidade, a
título de esclarecimento, compreendem o momento da dominação romana em
63 a.C., com a tomada de Jerusalém, e a destruição do templo em 70
d.C., tempo das rebeliões dos judeus contra Roma (Paul, op.cit. pp.65-
66).

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crítica moderna dispõe. A questão que esse fato suscita


hoje é: como Porfírio chegou a conclusões semelhantes às da
historiografia contemporânea sem os aparatos que esta
utiliza? Esse debate foi proposto anteriormente por Maurice
Casey4, segundo o qual Porfírio não elaborou sozinho sua
exegese, mas herdou de uma tradição exegética siríaca todo
o conhecimento necessário para desenvolver sua
argumentação. Há, entretanto, lacunas significativas na
tese de Casey que decorrem do fato de que não há evidências
da existência de uma tradição exegética siríaca anterior a
Porfírio. O objetivo desse paper é revisar a idéia de Casey
quanto à explicação da originalidade do pensamento
porfiriano, analisando a questão da autenticidade das
profecias daniélicas segundo a crítica de Porfírio e a
réplica de S. Jerônimo que a preservou. Para tanto, serão
primeiramente apresentados Dn, CC e CJr e posteriormente
tais fontes serão discutidas no contexto da argumentação de
Casey e à luz de uma revisão acadêmica.
Dn é um apocalipse histórico5 cujo conteúdo incorpora
uma coleção de histórias tradicionais que foram
originalmente compostas para contextos variados e serviram
de introdução, como ainda o fazem, para as revelações,
escritas em um momento posterior. No cânon hebraico, Dn é
encontrado entre as Escrituras, mas nas versões e nas
edições cristãs modernas está entre os Profetas. A extensão
do texto canônico de Dn é uma das muitas questões

4
Maurice Casey. “Porphyry and the origin of the Book of Daniel” in:
Journal of Theological Studies, 27.1, 1976. P.64.
5
John J. Collins. Daniel: with an Introduction to Apocalyptic
Literature. Grand Rapids: Eerdmans, 1984. P.109. No Glossário
fornecido por Collins nas últimas páginas do livro encontra-se um
verbete para “apocalipse histórico”, conceituado como um subgênero de
apocalipse que se caracteriza pela ausência de viagem ao além e pela
presença de profecias ex-eventu da história na forma de uma
periodização ordenada por predições escatológicas indicadas pelos
sinais do fim, do julgamento, da salvação e da ressurreição dos
mortos.

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controversas acerca do livro, disputas que têm dividido


religiosos e acadêmicos durante séculos. A “Oração de
Azarias”, o “Cântico dos três jovens” e as histórias de
“Susana” e de “Bel e o Dragão” são adições da tradução
grega de Dn que não fazem parte do cânon hebraico e são,
portanto, apócrifas para os protestantes, não obstante
sejam canônicas para a Igreja Católica Romana e estejam
incluídas em suas versões de Dn nos capítulos 3 (a “Oração”
e o “Cântico”) e em capítulos adicionais, 13 e 14 (as
histórias de “Susana” e de “Bel e o Dragão”,
respectivamente). As discussões acerca do contexto do
apocalipse devem distinguir entre o contexto literário e o
contexto real em que foi produzido, uma vez que, por ser um
pseudepígrafo, apresenta uma ambientação ostensiva, que não
corresponde ao contexto vivido pelo autor ocultado pela
pseudonímia6. O que se pretende debater, nesse sentido, não
é a autenticidade dos contos (Dn 1-6), que de qualquer
forma refletem histórias tradicionais ligadas a antigos
mitos babilônicos e à história do Exílio (597-538 a.C.),
mas a das visões (Dn 7-12).
O contexto das visões, segundo Collins, claramente se
define pelas diversas indicações de proveniência histórica
das revelações7. Porfírio notou que as profecias de Dn 11
estão corretas até a morte de Antíoco IV Epífanes8 mas que,
daí em diante, são incorretas ou estão incompletas9. A
composição das revelações é datada entre a profanação do

6
Idem, p.34. Cf. também John J. Collins e Peter W. Flint (orgs.). The
Book of Daniel: Composition and Reception. 2 vols. Leiden / Boston:
Brill, 2002. P.38.
7
Collins, Daniel, pp.36-38.
8
Antíoco IV Epífanes (215-164 a.C.), terceiro filho de Antíoco III,
tornou-se rei em 175 do império selêucida. Sua intervenção em
Jerusalém com vistas à sua helenização resultou em uma imagem negativa
do rei, do ponto de vista da historiografia selêucida, como
apresentado em Macabeus 1-3. Cf. Old Greek Dictionary.
9
Gleason L. Archer Jr. St. Jerome’s Commentary on Daniel. Grand
Rapids: Baker, 1958. P.491.

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templo em 167 a.C. e o fim de 164 a.C. e provavelmente foi


feita simultaneamente por judeus instruídos, versados no
conhecimento do período helenístico e familiarizados com as
representações da mitologia antiga, dando continuidade à
tradição dos contos e alinhados em especial à tradição
profética. As intenções das revelações de Dn notavelmente
associam-se ao momento em que foram produzidas, a fim de
consolar e exortar os judeus esperançosos em face à
perseguição selêucida. Dn exorta os judeus à fidelidade,
mesmo diante da morte, no entanto o contexto de fidelidade
é diferente em ambas as partes do livro: nos contos, o
contexto é o do serviço prestado pelos judeus aos reis
gentios, no Exílio; nas visões, trava-se uma confrontação
com o poder pagão sem que haja possibilidade de conciliação
do reino de Antíoco IV Epífanes com o reino de Deus. A
esperança de libertação miraculosa que está presente nos
contos, como em Dn 3, em que os companheiros de Daniel não
são consumidos pela fornalha ardente, não se verifica nas
revelações, que tratam de um período de guerra e
perseguição em que as esperanças são depositadas no mundo
sobrenatural, na ressurreição, como em Dn 12. O controle
divino da história e a aplicabilidade universal das
revelações são traços notórios em Dn10.
No imaginário da apocalíptica judaica antiga, Daniel é
um sábio que viveu na corte babilônica e que foi dotado da
faculdade de interpretar sonhos e escrituras misteriosas.
Nas revelações, a visão noturna é a forma pela qual Daniel
é dado a conhecer as profecias escatológicas. Daniel era
tido como profeta na Antigüidade, como o demonstra Josefo:

Durante toda a sua vida, [Daniel] foi honrado e


estimado pelos reis e pelo povo; depois de sua morte,

10
Collins, Daniel, p.39.

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goza de uma fama imortal porque seus livros são lidos


por nós até hoje e haurimos deles a convicção de que
Daniel conversava com Deus. Ele não se limitava a
anunciar os acontecimentos futuros, mas determinava
também a época em que iam acontecer11.

O status profético das revelações daniélicas é o


principal alvo das críticas de Porfírio. Discípulo de
Plotino12 e neoplatônico13, Porfírio, natural de Tiro, foi o
primeiro a expor a pseudonímia de Dn e a argumentar que o
livro foi escrito após a perseguição dos judeus por Antíoco
IV Epífanes14. CC foi produzido em Bizâncio, entre o
reinado de Diocleciano e o de Galerius e Maximiano, num
momento em que a perseguição aos cristãos se renovara e
atingira grandes proporções – CC era ensinado nas escolas,
juntamente com o CC de Hiérocles e os Atos de Pilatos
romano. Pouco depois, passado o governo desses imperadores,
o cristianismo tornara-se uma “ideologia dominante no
Império Romano tardio” e, portanto, CC passou a constituir

11
AJ 10.266-267.
12
Plotino (205–269/70 d.C.), um dos maiores expoentes da filosofia
neoplatonista, era natural do Egito, não obstante seu nome fosse
romano, e provavelmente tinha o grego por língua materna. Em Roma
tornou-se uma figura central em meio a um influente círculo de
intelectuais, do qual Porfírio fazia parte. Para os historiadores
contemporâneos, o trabalho de Plotino representa o desenvolvimento
lógico de um pensamento grego anterior, cujos elementos organizou em
uma nova síntese destinada a satisfazer as necessidades de seu momento
histórico. Anastos explica que os historiadores divergem em opinião
acerca da postura de Plotino diante do conflito entre pagãos e
cristãos; não se pode afirmar que o filósofo, por sua orientação
neoplatônica ou outra razão, contendeu com os cristãos, diferentemente
do que ocorre com seu discípulo Porfírio. Cf. Milton Anastos.
“Porphyry’s Attach on the Bible” in: Luitpold Wallach (ed.). The
Classical Tradition: Literary and Historical Studies in Honor of Harry
Caplan. Ithaca: Cornell University Press, 1966. P.423.
13
Neoplatonismo é um termo moderno para a renovação da filosofia
platônica por Plotino no séc.III a.C. e tornou-se a filosofia
dominante do mundo antigo até o séc.VI d.C.. Plotino desenvolveu uma
interpretação peculiar de Platão, que apresenta idéias profundamente
metafísicas e psicológicas que ofereceram a seus sucessores uma base
frutífera de reflexão.
14
Collins, Daniel. A Critical and Historical Commentary on the Book of
Daniel, p.114.

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um “crime acadêmico”15 contra as práticas religiosas


romanas: os editos do Imperador Constantino (325 d.C.) e
dos imperadores Valentiniano III e Teodósio II (448 d.C.)
determinaram a destruição de CC, preservado aos fragmentos
em críticas hostis. As considerações de CC sobre Dn não
foram apreciadas até o Iluminismo16.
A idéia central da crítica de Porfírio a Daniel é a de
que “o livro de Daniel não foi escrito por aquele que lhe
dá nome, mas por alguém que viveu na Judéia no tempo de
Antíoco IV Epífanes” e que “ao invés de predizer o futuro,
esse autor descreve o que já aconteceu”17. Alguns
questionamentos a esse respeito devem ser levantados: O
que a discussão da autenticidade de Dn realmente envolve?
Em que medida a crítica porfiriana de fato antecipa as
linhas gerais da historiografia moderna? O que explica que
a autenticidade de Dn tenha permanecido cerca de 1400 anos
depois de Porfírio sem ser desafiada? Não cabe ao
propósito desse paper discutir todas essas questões, mas
em algum momento elas estarão relacionadas ao problema
central aqui proposto, que discute a autenticidade das
visões em Dn e a originalidade da crítica de Porfírio na
Antigüidade.
O Comentário de S. Jerônimo a Daniel (CJr), em que CC
foi preservado, foi composto em 407 d.C.18 não com o
propósito de “responder às falsas acusações de um

15
Anastos, op.cit. p.424.
16
Collins, Daniel. A Critical and Historical Commentary on the Book of
Daniel, p.114.
17
Archer Jr., op.cit. p.491.
18
Nem mesmo Jerônimo teve acesso direto ao tratado completo de
Porfírio, o que vale para todos os comentadores clássicos posteriores
a 325 a.C. (Anastos, op.cit. p.424). Isso evidencia que o CJr não
aborda a totalidade das idéias desenvolvidas por Porfírio acerca da
doutrina cristã e de sua exegese bíblica. Essa conclusão constitui um
argumento a favor de Casey, ao afirmar que “[...] Jerônimo era um
experiente polemista da mais extrema hostilidade, logo não seria
surpreendente descobrir que algumas de suas análises são enganosas”
in: Casey, op.cit. p.15.

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adversário, uma tarefa que requer extensa discussão, mas


antes tratar do conteúdo real da mensagem do profeta em
benefício de nós, cristãos”19, oferecendo, ocasionalmente,
tentativas de resposta aos ataques de Porfírio:

Eu tentarei brevemente responder às suas acusações


maliciosas e contestar, por simples explicação, a
habilidade filosófica, ou ainda a malícia mundana, pela
qual ele se esforça em subverter a verdade e, por
trapaça especiosa, remover aquilo que é tão evidente
aos nossos olhos20.

Jerônimo defende a existência do personagem bíblico


Daniel e a atribuição da autoria do livro ao mesmo, tido
como um profeta que viveu sob os auspícios das cortes
babilônica, média e persa e que anunciou a vinda de Cristo
como nenhum outro21. Nesse sentido, a crítica de Porfírio
se aproxima mais da historiografia moderna do que a de
Jerônimo: para Porfírio, como para a crítica contemporânea,
Daniel é um personagem lendário, o livro que recebe esse
pseudônimo por autor foi composto cerca de quatro séculos
depois do período em que pretende ambientar-se
literariamente e as profecias apocalípticas dos capítulos
7-12 são vaticinia ex eventu, ou seja, não refletem uma
predição real do futuro, mas eventos já ocorridos22.
No contexto da análise de Casey, três aspectos mais
importantes da crítica de Porfírio a Dn são selecionados e
comparados a representações da mesma natureza em fontes do
primeiro milênio que, segundo o historiador, dariam
evidências da existência de uma tradição exegética siríaca

19
Archer Jr., op.cit. p.491.
20
Idem, p.491-492.
21
Idem, p.491.
22
Acerca do relativo consenso que passou a existir na historiografia
quanto ao caráter pseudepigráfico de Daniel, sua datação e seu
contexto geral, cf. Collins e Flint, The Book of Daniel, vol.1, pp.1-
2.

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anterior a Porfírio, da qual este teria se servido23. Em


primeiro lugar, Casey analisa a interpretação de Dn 7:8; em
segundo lugar, Dn 7:13; por último, é analisada a exegese
porfiriana de Dn 12.
Dn 7:8 refere-se ao pequeno chifre da quarta besta que
emerge do mar, na visão noturna de Daniel. Para Jerônimo, o
pequeno chifre representa o Anticristo. Porfírio, por sua
vez, identifica corretamente o pequeno chifre com o rei
selêucida Antíoco IV Epífanes, no entanto não tem o mesmo
sucessso na interpretação dos outros dez chifres. Casey
comenta que, não obstante Porfírio tenha falhado na
identificação dos dez chifres, as indicações relativas aos
três últimos, os quais são arrancados pelo pequeno chifre,
são interessantes pela reação que despertam em Jerônimo24.
Porfírio os interpreta como Ptolomeu VI Filométor, Ptolomeu
VII Evergetes e Artaxias da Armênia. Embora incorreta, a
dedução parte de uma lógica, como observa Casey: o critério
de Porfírio é que a passagem trata de reis que foram
derrotados por Antíoco IV Epífanes, no entanto Porfírio
ignorou o fato de que Ptolomeu VII Evergetes não era rei no
tempo em que fora derrotado. Jerônimo, não tendo
compreendido a interpretação de Porfírio nesse ponto,
enceta um comentário confuso, segundo o qual a
identificação dos Ptolomeus mencionados com dois dos três
chifres que foram arrancados da quarta besta não poderia
ser feita, pois ambos teriam morrido antes do nascimento de
Antíoco IV Epífanes25. Jerônimo data anacronicamente a
morte de Antíoco IV Epífanes, situando-a entre o verão de
164 a.C. e o de 163 a.C., quando provavelmente ocorreu no
outono de 164 a.C.26, como também se engana quanto à

23
Casey, op.cit. p.23.
24
Idem, p.19.
25
Archer Jr., op.cit. p.531.
26
Casey, op.cit. p.17.

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datação da morte de Ptolomeu IV Filométor, que ocorreu em


145 a.C., e da de Ptolomeu VII Evergetes, que não morreu
antes de 116 a.C.27. A identificação de Artaxias da Armênia
também é rejeitada por Jerônimo, pois tendo o rei lutado
contra Antíoco IV Epífanes, permaneceu, como antes, na
posse do seu reino. É necessário ter-se em vista, todavia,
que, não obstante a imprecisão factual, Jerônimo compôs um
comentário rico do ponto de vista histórico, não apenas
pela preservação da crítica porfiriana, mas por seu
alinhamento à tradição rabínica, que dá preferência ao
sentido literal da interpretação, em detrimento do sentido
alegórico. “Jerônimo prefere racionalizar a alegorizar”28
e, com efeito, oferece uma réplica à altura da crítica
porfiriana quanto à utilização de um método interpretativo
semelhante ao utilizado por seu adversário; Jerônimo se
afasta da tradição Alexandrina de exegese bíblica e
interpreta as Escrituras em seu sentido estrito,
aproximando-se da tradição exegética de Antioquia.
A passagem de Dn 7:13 apresenta a figura do “Filho do
Homem”, que na interpretação de Porfírio faz paralelo com a
simbologia da “pedra que se destacou da montanha”, em Dn
2:34,45, e com os “santos do Altíssimo”, em Dn 7:18: nas
três citações, Porfírio admite uma “interpretação
materialista”29, segundo Casey, em que o “Filho do Homem”
simboliza os “santos do Altíssimo”, os judeus vitoriosos da
revolta macabaica. A crítica de Jerônimo a Porfírio nesse
ponto representa, na opinião de Casey, “sua pior polêmica”.
O viés crítico parcial do comentário cristão de Jerônimo,
no entanto, é menos criticado por Casey do que a sua
intenção de “diminuir a significância do argumento de

27
Idem, p.19.
28
Collins, Daniel. A Critical and Historical Commentary on the Book of
Daniel, p.116.
29
Idem, p.21.

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Porfírio, mesmo quando este pudesse estar certo”30. Para


Jerônimo, parece óbvio que Dn 2:34 e Dn 7:13 tratam de
Jesus31. Casey explica que, partindo do pressuposto de que
o “Filho do Homem” é um indivíduo, Jerônimo deturpa o
argumento de Porfírio de que os “santos do Altíssimo”, em
Dn 7, e a “pedra extraída da montanha”, em Dn 2,
representam os judeus triunfantes da revolta macabaica:
Jerônimo erroneamente infere que, para Porfírio, o “Filho
do Homem” simboliza Judas Macabeu, herói da revolução,
embora Porfírio não o tenha afirmado32. Collins refuta o
entendimento de Casey de que Porfírio sustenta uma
“interpretação materialista” acerca do “Filho do Homem”,
argumentando que se Porfírio o tivesse feito, Jerônimo não
o teria desafiado a fornecer uma explicação para o
significado da passagem. Como Collins argumenta, na verdade
Porfírio associa a figura do “Filho do Homem” à vitória dos
Macabeus, mas não lhe atribui nenhuma interpretação
específica33.
A exegese porfiriana de Dn 12 trata em especial da
interpretação de Dn 12:2, referente à ressurreição. Na
visão de Porfírio, a ressurreição é uma metáfora que
simboliza a “libertação” dos Macabeus, que “fugiram para o
deserto com Matatias e Judas Macabeu como seus líderes.
Eles se esconderam em cavernas e no oco dos rochedos,
emergindo novamente após a vitória judaica”, como explica
Jerônimo34. Dessa forma, Porfírio entende a passagem como
um símbolo usado para introduzir a profecia de libertação
dos judeus que resistiram à perseguição selêucida e

30
Casey, op.cit. p.20.
31
Archer Jr., op.cit. p.533.
32
Casey apresenta um estudo, em seu artigo, acerca do caráter
falacioso de algumas interpretações de Jerônimo sobre a crítica de
Porfírio. Cf. Casey. op.cit. p.22.
33
Collins. Daniel. A Critical and Historical Commentary on the Book of
Daniel, p.114.
34
Archer Jr. op.cit. p.576.

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enfatiza que Dn 12 trata do triunfo dos Macabeus e da


reconstrução do Templo – isso evidencia a datação que
Porfírio atribui à composição de Dn 12: após o reinado de
Antíoco IV Epífanes e a vitória dos Macabeus, representada
pela figura de Judas Macabeu. Jerônimo critica Porfírio em
ambos os aspectos, argumentando que Dn 12:2 se refere à
ressurreição dos mortos e que em Dn 12:7-12 não há alusões
a Antíoco IV Epífanes ou à vitória dos Macabeus, mas ao
Anticristo e ao momento de sua morte, o que se explica pela
idéia de que os 3,5 anos e os 1335 dias não correspondem à
história macabaica. Casey chama a atenção para o fato de
que este último argumento de Jerônimo demonstra sua
incompreensão da idéia de Porfírio acerca da datação das
revelações35.
As interpretações de Porfírio acerca do pequeno chifre,
em Dn 7:8, do “Filho do Homem”, em Dn 7:13, e de Dn 12,
referente à ressurreição e ao tempo do fim, são comparadas,
no estudo realizado por Casey, com outras fontes do
primeiro milênio, a fim de corroborar a idéia de que é
impossível compreender como Porfírio desenvolveu sua
crítica a Dn sem considerar que ele utilizou uma antiga
tradição exegética siríaca, a qual lhe ofereceu subsídios
para classificar Dn como uma pseudepigrafia do período
macabaico. As fontes utilizadas por Casey com tal propósito
são: Aphrahat (séc. IV), Ephraim Syrus (séc IV), Teodoreto
de Ciro (séc. IV-V), Cosmas Indicopleustes (séc. VI),
Policrônio (séc. V), as glosas da versão Peshitta, Teodoro
bar Koni (séc. VII), Isho bar Nun (séc. IX), Isho’dad de
Merw (séc. IX) e Hayyim Galipapa (séc. XIV)36.

35
Casey, op.cit. pp.16-17. Jerônimo trata o argumento de Porfírio como
se este se referisse a uma datação das revelações contemporânea ao
reinado de Antíoco IV Epífanes, quando na verdade Porfírio propõe uma
datação posterior ao governo do rei selêucida.
36
Idem, p.23.

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As fontes selecionadas por Casey são examinadas em três


pontos, quanto à interpretação das passagens discutidas
anteriormente: a identificação do pequeno chifre, a do
“Filho do Homem” e a das exegeses de Dn 12. Sobre a
interpretação do pequeno chifre, foram consultados
Aphrahat, Ephraim, Policrônio, a versão Peshitta e
Galipapa; todos identificaram-no como Antíoco IV Epífanes.
Com relação à identificação da figura do “Filho do Homem”,
são consultados Aphrahat, Ephraim, Teodoro bar Koni,
Isho’dad de Merw e Galipapa; apenas o primeiro não adere à
tradição siríaca materialista que relaciona a passagem aos
Macabeus. Por último, quanto à exegese de Dn 12, são
consultados Ephraim, Policrônio, Galipapa e Teodoreto; com
exceção do último, que critica a tradição siríaca, os
demais identificam a referência com o triunfo dos Macabeus
sobre a perseguição selêucida. Com isso, Casey procura
demonstrar que Porfírio pertenceu à tradição exegética
desses autores, que interpretam os elementos presentes nas
visões daniélicas de maneira semelhante à que faz o
filósofo.
A argumentação de Casey acerca da originalidade da
exegese porfiriana sobre Dn é problemática. Casey observa
que o que diferencia Porfírio dos autores da tradição
exegética siríaca listados é que aquele utilizou a tradição
para estimar a datação e a natureza pseudepigráfica de Dn,
enquanto estes acreditavam que Dn foi um profeta do séc.VI
a.C. a quem Deus concedia visões e que escreveu um livro
sagrado, profetizando com precisão o surgimento, a
37
malevolência e o destino de Antíoco IV Epífanes . Ora, se
apenas para Porfírio Dn é pseudepigráfico, pode-se
argumentar que a tese de Casey não explica a construção do
argumento de Porfírio, já que as evidências analisadas por
37
Idem, pp.24-25.

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Casey referem-se a fontes tardias cujos autores tomavam


Daniel por profeta – a originalidade do argumento
porfiriano, nesse sentido, se mantém. O fato de que
Porfírio era pagão não torna dedutível a negação da
autenticidade de Dn; não existe automatismo entre o
paganismo de Porfírio e a elaboração de sua crítica
original a Dn, apenas torna-se evidente uma predisposição
de Porfírio de duvidar das interpretações cristãs das
revelações. O argumento de Casey de que Porfírio não é
fonte da exegese siríaca tradicional, mas sim o contrário,
não é demonstrado pela análise documental apresentada, uma
vez que as fontes consultadas por Casey são todas
posteriores a Porfírio e que mesmo a correspondência entre
Porfírio e as fontes analisadas por Casey é imprecisa38. A
pesquisa de Casey demonstra, ao contrário, que diversos
autores do primeiro milênio, que certamente conheceram o
trabalho de Porfírio, alinharam-se à tradição exegética
cristã ocidental e não a rejeitaram em favor da postura de
Porfírio.
A chave para o entendimento de como Porfírio
desenvolveu sua argumentação não está na existência de uma
tradição exegética siríaca, como argumenta Casey, mas em
dois elementos: no contexto histórico em que Porfírio se
ambienta, em que floresciam diversas produções
pseudepigráficas paralelas a Dn e, como observa Collins, na
identificação do pequeno chifre com Antíoco IV Epífanes, o

38
Em acréscimo ao fato de que entre a composição de Dn e a de CC não
há traços da existência de uma tradição exegética siríaca, é
importante destacar a observação de Collins de que Aphrahat não é uma
testemunha satisfatória da suposta tradição, pelas interpretações
confusas que faz acerca da simbologia daniélica; que a identificação
que faz Ephraim do “Filho do Homem” identifica-o com os Macabeus,
porém encontra sua plenitude em Cristo; e que Policrônio identifica os
“santos do Altíssimo” como aqueles que acreditam em Cristo. Assim,
torna-se evidente que a correspondência de Porfírio com esses autores
está longe de se completar. Cf. Collins, Daniel. A Critical and
Historical Commentary on the Book of Daniel, pp.114-117.

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PEJ - UnB 2006 - Lilian Chaves Maluf

que já havia sido feito antes de Porfírio, em Josefo e em


Hipólito, relativamente a Dn 839. Tratava-se apenas de
aplicar o mesmo entendimento a Dn 7 e de historicizar a
interpretação de Dn 11, já que Porfírio duvidava da
possibilidade de Dn predizer o futuro. O mais próximo que
Porfírio chega de um alinhamento a qualquer tradição é da
interpretação ocidental de Dn 7, quanto ao mito dos
impérios mundiais.

39
Idem, p.116.

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