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ÉTICA*

JOHN SKORUPSKI

1. O propósito da ética

A reflexão sobre a ética tem sido um componente vital de todas as tradições filosóficas conhecidas. China, Grécia, Índia e
Europa medieval e moderna, todas elas propuseram questões éticas básicas. O que é o bem? Em que consiste uma vida virtuosa?
Quais são as virtudes do ser humano? Existe um esquema bom ou um esquema unificado de virtudes? Que deveres temos uns em
relação aos outros ou conosco? Nos registros que possuímos de culturas não-literárias e de suas tradições orais, descobrimos as
mesmas questões.
Elas são questões filosóficas se examinam os hábitos e ensinamentos morais de maneira reflexiva. A GRÉCIA CLÁSSICA
(capítulo 15) também se deslocou para um segundo nível de reflexão filosófica ― ela questionou tais questões. Pode haver
respostas objetivas a elas? Se sim, que tipo de conhecimento dessas respostas podemos obter? Trata-se de razão ou de
sentimento? Essas questões de ordem superior são com freqüência denominadas metaéticas. Uma característica marcante da
tradição ocidental de filosofia é a urgência com que ela sempre se preocupou com elas desde suas origens gregas. E no século XX
elas foram investigadas com uma premência e uma perseverança jamais vistas. Teremos de dizer algo a respeito da metaética,
assim como sobre as próprias questões éticas.
Antes, porém, qual é o escopo da ética enquanto tal? Ela não abrange todo o domínio do valor. Se investigo a respeito do
belo ou do sublime é mais provável que eu esteja no campo da ESTÉTICA (capítulo 7) do que no da ética ― embora meu interesse
possa, com certeza, ser igualmente ético, de um modo ou de outro. A ética, pode-se afirmar, concerne à moralidade, mais do que à
arte. É verdade ― mas ela não está para a moralidade como a estética está para a arte. Ela possui um propósito mais amplo, dado
que as questões relativas à moralidade e à arte lhe pertencem, assim como as relações entre moralidade e prudência, ou entre
moralidade e razão. Assim, se pergunto o que faz uma peça musical ser bela, ou o que constitui uma boa técnica de jogar tênis, não
estou apresentando uma questão ética, nem mesmo no sentido mais amplo de "ética"; porém, se pergunto que lugar, em minha
vida, ou na vida de qualquer outra pessoa, a música ou o tênis, juntamente com as habilidades e competências que lhes são
próprias, devem ocupar, estou produzindo uma questão ética. Posso formular uma questão ética sobre a própria moralidade ― que
papel a moralidade deve ocupar na vida? As questões éticas apresentam um caráter distinto e uma abrangência que lhes conferem
um papel regulador na filosofia do valor. Questões de ÉTICA PROFISSIONAL (capítulo 31) nos negócios, na medicina ou no jornalismo
possuem igualmente um papel dominante, baseando-se na natureza da profissão, em seu lugar na vida social e na conseqüente
aplicação a ela de princípios éticos gerais.
As questões éticas possuem esse papel regulador porque a investigação ética se preocupa, de modo geral, com as
razões para a AÇÃO (p. 597). Nem todas as razões são razões para agir. Existem razões para crer e razões para sentir: na verdade,
lidamos com razões a todo momento. Estar vivo e acordado é estar atento às razões para crer, fazer, sentir. Você, por exemplo,
tem razão para acreditar que eu não troquei o óleo de seu carro; você tem razão para se sentir irritado; você tem razão para adotar
uma ação ― deduzir algo de minha conta. Nossas avaliações de uma pessoa normalmente se baseiam no modo como essa
pessoa responde ou deixa de responder às razões em um ou outro desses três domínios de crença, sentimento e ação. A
personalidade é o modo da sensibilidade de cada um às razões nos três domínios. Uma pessoa irritadiça se irrita com pouca razão
para fazê-lo. Uma pessoa crédula crê quando não há razão suficiente para crer. Uma pessoa precipitada age quando não há razão
para agir.
Mesmo em seu sentido mais amplo, todavia, a ética não lida com todo esse âmbito normativo de razões. Ela não discute
se uma conclusão foi correta ou erroneamente inferida das premissas, se os indícios são bons ou ruins, nem qual hipótese
devemos adotar. Tais questões são do domínio da LÓGICA (capítulo 4). Em seu sentido mais abrangente, a ética trata de questões
sobre aquilo que se tem razões para fazer, assim como a lógica, em seu sentido mais amplo, trata de questões sobre aquilo em que
se tem razões para crer. É a teoria normativa da conduta, assim como a lógica é a teoria normativa da crença. Devido a sua
preocupação com a ação e as razões para a ação, a ética também se ocupa do caráter, na medida em que se refere à ação e às
razões para agir. (A palavra "ética" deriva do grego ethos, que significa "caráter", ou, no plural, "maneiras".) E, por meio dessa
preocupação com o caráter, ela passa a se ocupar com questões sobre aquilo que se tem razão para sentir, e como as razões para
sentir se vinculam às razões para agir. No entanto, a melhor maneira de esclarecer isso é examinar diretamente alguns dos
sentimentos com os quais a ética se ocupa. Entre eles, pelo menos três são fundamentais - desaprovação, admiração e desejo.

2. Desaprovação, admiração e desejo

A desaprovação é uma categoria central da moralidade, de tal modo que se pode caracterizar a moralidade por referência
a ela. Isto porque temos diversas maneiras de desaprovar as ações - considerar uma ação errada é apenas uma. Uma ação pode
ser estúpida ou de mau gosto, mas não moralmente errada. Chamá-la de moralmente errada é uma questão mais séria. "Era pior
do que imoral, era de mau gosto" seria um gracejo, como o comentário de Boulay de la Meurthe (sobre a execução do duque
d'Enghiens) ― "Foi pior do que um crime, foi um equívoco". O gracejo poderia constituir um argumento à la Oscar Wilde, por
exemplo, mas seria pelo gosto do paradoxo.

* Fonte: BUNNIN, Nicholas; TSUI-JAMES, E. P. Compêndio de Filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2007, p. 213-240.
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O que então caracteriza a desaprovação ou a hostilidade implicadas no fato de chamar algo de moralmente errado?
Chamar uma ação de moralmente errada é desaprovar o agente. A desaprovação é um ato ou atitude cujo núcleo nocional é um
sentimento, como o sentir-se arrependido é o núcleo nocional do pedido de desculpas ― entendo por isso que, mesmo quando o
sentimento não está de fato presente, ele é não obstante invocado em cada ato de desculpa ou desaprovação. Chame-se a esse
núcleo emocional da desaprovação "o sentimento de desaprovação" ― ele induz à punição, assim como o sentir-se arrependido
induz à reparação. Além disso, assim como o pedido de desculpas já é fornecer, em algum grau, reparação, também a
desaprovação pública (e também a autodesaprovação na forma da culpa) já é um grau de punição. Isto, com freqüência, torna as
pessoas relutantes em "compartilhar a desaprovação". Deve notar-se que há um sentido mais abrangente da palavra
"desaprovação", no qual podemos, por exemplo, culpar os freios defeituosos pelo acidente automobilístico ou, em outros termos,
identificá-los como a causa pertinente. Contudo, não sentimos relutância similar em desaprovar nesse sentido.
A relação entre o sentido mais amplo e o mais restrito, moral, de desaprovação é uma questão ética fascinante e
profunda, mas precisamos ir além dela. Tendo caracterizado o moralmente errado como censurável no sentido restrito da palavra,
podemos dizer que o moralmente certo é o que seria moralmente errado não fazer. De modo similar, podemos dizer que "X é
moralmente obrigatório", ou "X, moralmente, tem de ser realizado", só se mantém se a não realização de X for merecedora de
censura. Com certeza, é verdadeiro e importante que admiremos as pessoas por ir além do moralmente obrigatório ― "além da voz
do dever" ― mesmo que não as censuremos por não o fazer. Pode-se dizer que a admiração por tais ações constitui admiração
moral, pois admiramos essa ação pela razões que a impulsionaram, e essas razões são razões morais. A desconsideração pelos
sentimentos dos outros, por exemplo, quando atinge certo ponto torna-se desatenção merecedora de censura. No entanto, existem
graus de atenção em relação aos sentimentos dos outros que vão bem além do que se esperaria, sob risco de desaprovação das
pessoas de modo geral, mas que ainda nos provocam admiração. (Há também, é evidente, excesso de solicitude.) As pessoas
excessivamente atenciosas e as normalmente atenciosas são impelidas pelas mesmas razões ― consideração pelos sentimentos
alheios. E podemos dizer que essas razões são morais contrapostas, por exemplo, às razões de prudência ou estéticas, dado que
sua ausência da mente de uma pessoa além de certo ponto a torna censurável.
Para passar a outro importante ponto, "censurável" significa "deve ser desaprovado": Esse "deve", por sua vez, é moral?
Não há nenhuma circularidade no raciocínio pois, conforme notamos, "deve" de modo geral pode ser definido em termos de razões
- neste caso, razões para adotar um sentimento, ou uma atitude baseada em sentimento. Dizer que uma ação é censurável é dizer
que há razão suficiente, levando tudo em consideração, para censurar o agente por efetuá-la.
Esse é um caso específico de um padrão geral, no qual avaliamos as razões para sentir uma emoção. O mesmo vale para muitos
outros termos que indicam apreciação ― "irritante", "desprezível", "assustador", "comovente", "de mau gosto" e assim por diante.
Duas coisas parecem estar envolvidas em tais apreciações: em primeiro lugar, quem as emite, em casos típicos, sente
espontaneamente a emoção e, em segundo lugar, espera que outros a sintam também. Entretanto, está embutida aí certa
normatividade: ele sente que a emoção é apropriada e acredita que os outros bons juízes vão compartilhá-la com ele. "Preciso dizer
que eu estava na verdade entediado - mas me sentia cansado e distraído, e provavelmente não compreendi o que estava em jogo."
Assim, nesse caso, eu não julgo que a situação estava realmente entediante, estou desqualificando a mim mesmo como bom juiz.
Os critérios internos de adequação de tais sentimentos podem ser debatidos com grande exatidão e sutileza, e a "busca comum do
juízo verdadeiro" em termos de apreciação estética ou moral depende de tais debates. Não que o compromisso com o pensamento
de que os outros juízes, sem defeitos ou limitações que os desqualifiquem, confirmariam meu juízo seja especial para a moral e a
estética: trata-se de uma característica lógica do juízo enquanto tal.
Juízos sobre o censurável ou o admirável, portanto, são juízos sobre quando é razoável responder com censura ou
admiração. Se o núcleo emocional da moralidade é o sentimento de desaprovação, a admiração é o sentimento fundamental para
sistemas de ideais. Penso nos ideais de caráter e excelência que ocupam um lugar tão importante na configuração da maneira
como vivemos nossa vida. Não é difícil que a ética os desconsidere, efetuando, por exemplo, um contraste excessivamente simples
entre a moralidade e a prudência. A admiração por, e a discussão sobre, coragem física, estilo, "compostura", imaginação,
presença de espírito, habilidade, inteligência, versatilidade, sensibilidade, aptidão, boa aparência e muitas outras coisas
semelhantes orientam uma boa parte da vida ― e da crítica das maneiras de viver. Não se trata de avaliações morais, embora em
alguns casos toquem nelas. Qualquer que seja o sentimento em relação à obtusidade, à falta de estilo ou de elegância das pessoas
― quem sabe desprezo, derrisão, embaraço ou piedade ―, não precisa ser o sentimento de desaprovação.
Não se trata tampouco de avaliações da ordem da prudência. Valorações ditadas pela prudência baseiam-se na noção de
bem-estar, do que se deve ter como objetivo quando o que está em questão é, de modo exclusivo, seu INTERESSE (p. 627). Nesse
caso, o núcleo afetivo pertinente não é nem a admiração, nem o sentimento de desaprovação, mas o desejo. O bem-estar de um
individuo compreende tudo que seja considerável como desejável por esse individuo. E "desejável" é o mesmo que ter razão para
desejar, assim como "admirável" e "censurável" estão para o que há razão de admirar e censurar.
Questões sobre o que é desejável, para as pessoas em geral, ou para uma pessoa particular, são questões sobre as
finalidades da vida. São tanto objeto de deliberação e debate como questões sobre o que é admirável e censurável. Quando John
Stuart MILL (capítulo 25) afirmou que a felicidade é desejável por ser o que as pessoas têm como fim "na teoria e na prática", ele
não estava perdendo seu tempo. É ainda menos trivial dizer que a felicidade, como ele tentou mostrar, é a única coisa desejável.
Estivesse ele certo ou errado sobre isso, seu método era correto. Para chegar a uma conclusão sobre quais fins são
intrinsecamente desejáveis, preciso tentar refletir, sem auto-ilusão, sobre o que eu desejo e por que ― e se descobrir que difiro dos
outros em minhas conclusões preciso perguntar se meus desejos podem resultar em maior experiência ou conhecimento, e se, com
efeito, minhas idéias sobre o que são realmente esses desejos não podem ser distorcidas por ideais pessoais, conversões ou
racionalização de desejo.
Também aqui, portanto, há "busca comum do juízo verdadeiro" ― um exame reflexivo dos sentimentos espontâneos da
própria pessoa, efetuado no diálogo com outros que, de modo similar, examinam os seus. Há uma diferença, porém. Embora a
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busca possa ser comum, a conclusão não precisa ser, e não é provável que seja, que o que é desejável para mim é exatamente o
mesmo que é desejável para você. Não só diferentes pessoas diferirão em relação ao que as torna felizes; é bastante provável que
elas difiram também, a despeito da sugestão de Mill em contrário, sobre o quão desejável é para elas a felicidade, em
contraposição, por exemplo, ao conhecimento, à liberdade ou a conquistas. Por contraste, suponha-se que eu descubra que muitas
pessoas ficam comovidas por uma música que considero cacofônica ou insípida, e a discussão sobre isso e maior tempo de
audição não me levam a julgar nada de comovente nela. Não me inclino (preconceitos filosóficos à parte) a concluir que ele seja
"comovente para eles", mas "não comovente para mim". Posso concluir, silenciosamente, sem dúvida, que a apreciação deles é
superficial ― ou, com maior humildade, que a minha própria o é. O que é desejável para mim pode não ser desejável para você ―
mas as apreciações estética não são tão relativas; as avaliações morais ainda menos.
A diferença sem dúvida merece um exame mais apurado. (São necessárias distinções: por exemplo, entre objetos
particulares que desejamos ― uma jóia, um fim de semana em Viena ― e os fins categoriais em virtude dos quais os desejamos;
ou, ainda, entre querer uma coisa e gostar dela quando a temos.) De modo geral, contudo, continua a ser verdadeiro que o exame
das próprias respostas espontâneas, juntamente com a discussão com outros, é o critério para toda valoração ― incluindo a
estética e a moral, como também a prudencial. Isto não significa que se possa definir um predicado apreciativo ― "tedioso", "de
mau gosto", "desejável", "encantador", "gentil" - nos termos das respostas dos bons juízes. Por informados e sensíveis que possam
ser esses juízes, é logicamente possível que estejam errados ― o que os choca como sendo de mau gosto não é de mau gosto,
mas inovador, e assim por diante. É claro, se "bons juízes" são definidos simplesmente como "juízes que têm uma apreciação
correta", então será uma verdade lógica que uma coisa é tediosa somente se bons juízes assim a considerarem. Mas teremos um
argumento circular definindo o tedioso como aquilo que os bons juízes consideram tedioso. O consenso reflexivo, sem dúvida, é
definitivo, no sentido de que a única maneira de apelar contra ele é forjando um novo consenso reflexivo - mas não há jamais uma
garantia de que este seja incorrigível. Tampouco, quando julgo que algo é de mau gosto, estou julgando que outros vão ou
poderiam considerá-lo de mau gosto. Meu olhar repousa sobre o objeto, não sobre o que as outras pessoas podem pensar a
respeito do objeto.

3. Caráter, virtudes e liberdade

Como as virtudes e os vícios se encaixam na descrição que efetuamos? Como, especificamente, eles se vinculam à
desaprovação, que afirmamos ser central à noção de moralidade? Vinculam-se da seguinte maneira: são traços de caráter pelos
quais poderíamos ser censurados por não tentarmos atingir ou perder. Vinculam-se também da seguinte forma: eles induzem
diretamente a ações moralmente certas ou erradas. As diversas virtudes envolvem sensibilidade espontânea a vários tipos de
razões para agir, e os diversos vícios, de modo similar, envolvem falta de sensibilidade a vários tipos de razões para agir.
Isso não significa que somos censurados por nossos vícios enquanto tais, mas por nosso fracasso, evitável, em resistir a
eles ou em tentar corrigi-los. É um princípio básico que “deve implica pode” ― que o que eu tenho de fazer eu posso fazer. E
também é verdade que a desaprovação só faz sentido em relação ao que não deveríamos ter feito. Desse modo, se sou
efetivamente incapaz de corrigir meu caráter, não posso ser censurado por deixar de fazê-lo ― embora possa ser censurado por
não me esforçar o suficiente para resistir a seus impulsos característicos em ocasiões específicas.
Essa distinção, entre modificar meu caráter e tentar resistir a meus impulsos, é vital para o pensamento moral comum.
Posso ser cruel, e posso não ser capaz de fazer muito a fim de me tornar menos cruel; ou seja, a fim de me afastar dos impulsos
característicos para atos cruéis. Porém, posso ainda assim tentar me abster de ser cruel quando estou tentado a sê-lo. Uma pessoa
que não possui controle sobre suas ações cruéis é apenas cruel, é patologicamente cruel. Ela não tem, pelo menos a esse respeito,
o importante gênero de liberdade moral que atribuímos a qualquer um que consideremos um agente moral, e que pressupomos
quando censuramos alguém. Assim, se eu o censuro por um gracejo cruel, por exemplo, julgo que você poderia ter resistido ao
impulso de fazê-lo. Se me convenço de que você é completamente incapaz de resistir a tais impulsos (mesmo, digamos, que seja
para seu próprio benefício), fico mais inclinado a considerá-lo um louco, ou pelo menos obsessivo, em vez de mau.
É dessa forma que a liberdade moral é pressuposta em atribuições de responsabilidade moral. Assinala-se corretamente,
por exemplo, que o fato de que eu estava livre para fazer o que quisesse não basta para mostrar que eu estava moralmente livre,
pois a própria vontade pode ter sido tão obsessiva a ponto de minar minha liberdade moral. Viciados em drogas não são
moralmente livres mesmo quando eles fazem o que seus desejos os compelem a fazer. São escravos de seu vício. Talvez ocorram
aqui dois tipos de coisas. Em primeiro lugar, seus desejos podem ser tão fortes a ponto de obnubilar seus juízos ― embora haja
boas razões para resistirem a eles, o próprio vício os impede de enxergá-las. Em segundo lugar, o vício pode não moldar seus
juízos, mas pode prejudicar sua habilidade para agir com base nele ― eles vêem com clareza que possuem boas razões para não
fazer o que seu vício lhes determina, mas são incapazes de deter a si mesmos.
Em ambos os casos, sua liberdade moral está enfraquecida e sua responsabilidade moral diminuída. Assim, se
supusermos que o vício impulsionou uma pessoa ao crime, ambos os casos, se provados, poderiam ser reconhecidos por um juiz
como atenuante, em certo grau. De modo geral, a liberdade moral é uma função da economia global do caráter de uma pessoa ― o
grau em que os sentimentos de uma pessoa estão sob o controle de sua capacidade de reconhecer razões, em vez de exceder
esse controle ou mesmo de reduzir ou controlar a própria capacidade. A liberdade moral, assim concebida, é uma das virtudes, que
um ser humano pode ter em maior ou menor grau. No entanto, ela tem ainda um papel especial na economia do caráter: é uma
precondição da ação moral enquanto tal e é auxiliada por todas as outras virtudes, na medida em que estas são disposições
afetivas para agir segundo tipos específicos de boas razões. Pode-se imaginar, como possibilidade lógica, a pessoa que vê o que é
certo claramente e, mediante um grande esforço, é capaz de agir de acordo com isso, a despeito dos sempre presentes impulsos
viciosos. Contudo, é mais fácil que alguém com mais impulsos virtuosos do que viciosos seja moralmente livre.
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Livre-arbítrio e liberdade moral

Muitos filósofos negaram que, se nosso comportamento é governado por leis causais, possamos ser moralmente livres.
Outros, porém, não viram inconsistência entre essas duas coisas. A questão é importante para a ética, porque a desaprovação
e, portanto, a moralidade pressupõem a liberdade moral. Em particular, a desaprovação supõe que o agente responsável
poderia ter se refreado de agir com base nos motivos pelos quais ele de fato agiu ― quando havia razão para se conter. Ao
censurar, portanto, julgamos que uma pessoa possuía a capacidade de se conter ― e a distinção que fazemos (é essa pessoa
um fumante apenas ocasional ou um viciado?) não parece de modo algum depender da verdade, ou não de alguma global
sobre a determinação causal do comportamento humano. Antes de censurar um agente, queremos saber, entre outras coisas,
se ele poderia ter se abstido de fazer o que fez. Em particular, queremos saber se ele poderia ter reconhecido as razões para
se abster, e ser contido, dado que seus desejos permanecem iguais. Essa é uma questão sobre sua capacidade de
autocontrole racional. Não estamos perguntando se há um mundo possível no qual todas as causas de sua ação fossem as
mesmas, e a ação não ocorresse. Se o determinismo for verdadeiro, não há tal mundo; porém, qual a relação disso com o
autocontrole racional e, assim, com a questão da liberdade moral?
Com certeza, um exame mais atento pode mostrar alguma conexão. Cabe ao filósofo que pensa que a verdade do
determinismo abalaria a liberdade moral ― o poder de agir ou não agir, de acordo com as determinações da razão ― mostrar
em que consiste a conexão. Houve inúmeras tentativas para estabelecer uma conexão. A longevidade da disputa é testemunho
da impossibilidade de resolvê-la.

A liberdade racional é a racionalidade, compreendida como a capacidade de autocontrole racional. Essa doutrina aparece
na concepção de PLATÃO (capítulo 23) da justiça na alma e foi continuamente reafirmada pela tradição ética ocidental. No entanto,
se formos objetos naturais, cujo comportamento é regido por leis naturais, podemos ser, nesse sentido, moralmente livres? Esse
constitui o problema filosófico do “livre-arbítrio e do determinismo”.

4. Uma teoria ética ― o caso do utilitarismo

Já nos referimos ao modo como os juízos que concernem ao que é desejável, censurável e admirável baseiam-se no
exame dos sentimentos de uma pessoa e da discussão com outras, e de como eles fundamentam as esferas de valor em interação
da prudência, da moralidade e da excelência na atividade e no caráter. Não dissemos nada, porém, do modo como tais juízos nos
fornecem razões para agir. Dado que a ética, segundo nosso relato, é o estudo geral das razões para a ação, essa importante
questão é de cunho ético.
Poder-se-ia dizer que a “teoria” ética consiste simplesmente de respostas ponderadas, minuciosas a essa questão. Então
dificilmente haveria controvérsia a respeito. Contudo, há controvérsia ― pois “teoria” sugere algo mais que um conjunto de
respostas fragmentadas e pessoais, por ponderadas que sejam. Contém uma promessa de sistematicidade e objetividade, e muitos
duvidam que as respostas a questões éticas possam alcançar essas metas. Suas dúvidas não são discordantes. Considerando a
história da ética até nossos dias ― em nosso mundo de culturas éticas que parecem terminantemente fragmentadas e díspares ―,
suas dúvidas precisam ser levadas a sério. Não vejo utilidade, entretanto, em debater o quão ambiciosa a teoria ética deve ser.
Alcançaremos maior progresso se tomarmos como exemplo o que todos concordam que é a mais ambiciosa teoria ética – o
UTILITARISMO (capítulo 35) ―, considerando sua estrutura e as várias objeções a ela, e perguntado, enfim, quando e de que maneira
estas constituem objeções à “teoria ética” enquanto tal. Desse modo, seremos capazes de perceber que dificuldade enfrenta a idéia
de sistema; as dificuldades que se apresentam à idéia de objetividade serão examinadas na seção 11.
O utilitarismo é a tese de que o bem-estar de todo indivíduo possui valor ético intrínseco, de que, quanto maior o bem-
estar, maior seu valor e de que nada mais possui valor ético intrínseco.
A expressão “valor ético intrínseco” requer explanação. Digamos que uma propriedade possui valor ético se houver razão
para fazer tudo o que possa produzir ou preservá-la, aumentar sua intensidade, e assim por diante. Ela possui valor ético intrínseco
se essa razão se resumir ao fato de essa propriedade ser essa propriedade, e não derivar de quaisquer outros fatos sobre suas
conexões com outras propriedades. Por que falar de “propriedades”? O valor ético dos objetos e situações, as razões para agir que
eles suscitam, seja intrínsecas ou extrínsecas, sempre parecem residir em algo acerca deles ― eles possuem valor em virtude de
características ou propriedades que possuem. Na verdade, isso parece valer para qualquer tipo de valor: o valor de uma coisa
sempre deriva de alguma característica ou propriedade que ela possui. Uma maneira comum de dizer isso é afirmar que o valor de
uma coisa sempre sobrevém a algumas propriedades que ela possui. Se certo valor sobrevém a algumas propriedades, então algo
que possua justamente tais propriedades terá justamente tais valores ― uma diferença de valor implica uma diferença nessas
propriedades.
Para o utilitarista, a única coisa que possui valor ético intrínseco é uma propriedade dos indivíduos, uma propriedade que
eles podem possuir em maior ou menor grau: a de estar ou passar bem. Quanto maior o bem-estar, tanto maior o valor ético; ou
seja, tanto maior a razão para produzir ou preservá-lo. Os utilitaristas quererão explicar de modo detalhado em que consiste o bem-
estar. Eles terão de considerar, então, que fins são desejáveis, servindo-se do método do auto-exame e da discussão considerado
na seção 2. No entanto, nosso interesse agora se concentra na estrutura da concepção utilitária, mais do que nos pormenores de
sua doutrina do bem-estar ou da “utilidade”.
O utilitarista afirma que o valor ético do bem-estar não é afetado pela questão de quem é o portador desse bem-estar ―
ou pelo menos isso é verdade se os únicos indivíduos sob consideração são os seres humanos. Contudo, os utilitaristas sempre
admitiram de bom grado que o bem-estar de todos os indivíduos dos quais se pode dizer que são capazes de sentir, ou talvez (se
isso for diferente) capazes de ter desejos, deve ser levado em consideração. Entretanto, isso já é uma classe menor do que a dos
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indivíduos dos quais se pode dizer que possuam bem-estar de algum modo. Coisas vivas de modo geral podem passar bem ou
mal, e um eticista do Partido Verde pode sustentar que todas essa variedades de bem-estar possuem valor ético. O bem-estar de
animais não-humanos possui valor ético intrínseco, mas não tão grande quanto o dos seres humanos. Questões mais profundas se
insinuam aqui, não só para os utilitaristas; questões sobre o que essas diferenças de valor ético, como as que se dão entre o bem-
estar dos diferentes tipos de indivíduos, sobrevêm.
De todo modo, seja qual for a classe de indivíduos cujo bem-estar deve ser levado em consideração, o utilitarista
considera o bem-estar geral uma função positiva do bem-estar de todos eles, e de nada mais ― uma função na qual a utilidade de
cada indivíduo é levada em conta imparcialmente. O valor ético consiste, portanto, no bem-estar geral e em nada mais. Note-se,
contudo, que o “bem-estar geral” é uma abstração construída a partir do bem-estar de indivíduos concretos. Nenhum “ser em geral”
goza de “bem-estar geral”. O valor ético reside, de fato, segundo o utilitarista, apenas no bem-estar dos indivíduos concretos.
Geralmente se considera que o utilitarismo clássico afirma que esse bem-estar é estabelecido pela soma do bem-estar de
todos os indivíduos. Henry SIDGWICK (capítulo 35), o terceiro membro do grande trio britânico de utilitaristas, assevera que ele
também pode ser estabelecido pela média: ou seja, o maior valor ético é alcançado quando o bem-estar médio, mais do que o total,
atinge seu ponto máximo. Todas essas concepções assumem que se pode olhar a soma dos níveis de bem-estar dos diferentes
indivíduos ― assume-se que o projeto faz sentido, não que ele possa ser realizado de fato. A questão prática da medição adquire
importância caso se queira aplicar o utilitarismo, como por exemplo na política econômica do bem-estar social. Contudo, mesmo na
qualidade de teoria ética pura, o utilitarismo clássico requer que questões comparativas como estas sejam inteligíveis: o aumento
do bem-estar de X contrabalançaria o decréscimo de bem-estar de Y? O ganho de X seria maior do que a perda de Y e Z?
Essas questões com certeza fazem sentido em certos casos. Posso perguntar-me se um livro vai proporcionar maior
prazer a Cátia ou a Júlia. Posso mesmo perguntar-me se Cátia obteria maior prazer com esse livro do que Júlia e Ana obteriam com
dois outros livros pela metade do preço. Uma maneira superficial de comparar e calcular está em jogo aqui. A noção de soma de
bem-estar pode ser suficientemente bem definida em certas áreas, com certos fins, para serem significativas, mesmo que não seja
em todas. Parece de fato que a empregamos. Mas será que essas questões sempre ― mesmo em princípio ― fazem sentido? E
quão importante é para o utilitarismo que elas sempre façam sentido?
John Stuart Mill teria concedido que elas nem sempre fazem sentido, pois ele pensava que se pode distinguir entre
qualidade e quantidade de felicidade. Felicidade, pensava ele, é em que consiste o bem-estar, mas algumas formas de felicidade
são “superiores” ― ou, talvez, mais profundas, verdadeiras ou úteis ― de uma maneira diferente daquele em que ter dois sorvetes
de chocolate é mais valioso do que ter apenas um. De forma que talvez haja descontinuidade aqui, no sentido de que, pelo menos
em certos contextos, é razoável que uma pessoa não esteja disposta a trocar um prazer superior por nenhuma quantidade de um
inferior. Ela prefere o primeiro ao segundo, mas não fará sentido afirmar que o considera n vezes melhor. Pois se fizesse, ela teria
de estar disposta a sacrificar uma experiência específica superior por n ou mais do tipo inferior. Isso pelo menos aponta
complicações genuinamente presentes em nosso pensamento sobre o que contribui para uma vida virtuosa. Devemos ter em mente
que pode ser inteligível ordenar estados possíveis (talvez apenas de maneira parcial) pelo nível de bem-estar que eles produzem,
mesmo que não seja possível, de modo geral, dizer que fração do bem-estar no estado Y é o bem-estar no estado X.
A idéia básica do utilitarismo era que as considerações de bem-estar fornecem as únicas razões intrínsecas para a ação,
e que, ao avaliar a força de tais razões, se deveria considerar imparcialmente o bem-estar de todos os indivíduos envolvidos. A
única exigência disso é que devemos, em princípio, ser capazes de ordenar as distribuições do bem-estar por seu valor ético. O
utilitarismo pensa, então, que o valor ético é uma função de tais distribuições e de nada mais. Além disso, afirma a função positiva:
se o bem-estar de um ou mais indivíduos aumenta, sem qualquer outra mudança, o valor ético também aumenta. E, enfim, ele
requer que a função seja imparcial. Mas o que está em jogo nessa noção de imparcialidade?

5. Imparcialidade

Maximizar a soma do bem-estar dos indivíduos, se é que faz algum sentido expressar-se dessa maneira, com certeza
parece imparcial. Não se atribui peso maior a nenhum bem-estar individual na soma geral. Ninguém tem seu bem-estar multiplicado
por dois ou dividido por três. Essa é uma forma de levar a cabo o princípio "Contar cada um por um, e ninguém como mais do que
um" ― que, em Utilitarianism, Mill atribuiu a Bentham, e considerou expressão do princípio de imparcialidade (Mill, 1963-, vol. X, p.
257). Deve-se notar que ele se referia unicamente ao bem-estar dos humanos - caso se considerem também os não-humanos,
conforme notado na seção anterior, deixaria de ser tão plausível que a imparcialidade proíba de atribuir peso maior ao bem-estar de
certos indivíduos do que ao bem-estar de outros. Esse é um dos aspectos da conexão entre atribuição de pesos e imparcialidade.
Outro aspecto, porém, é que a somatória ― com ou sem atribuição de pesos ― é apenas uma maneira de ser imparcial.
Igualmente imparciais são não só a idéia de Sidgwick de maximizar a média de bem-estar, mas também uma ampla variedade de
outros princípios distributivos.
Considere-se o PRINCÍPIO DA DIFERENÇA (p. 261) proposto por John Rawls. De acordo com uma das versões (Rawls, 1972,
p. 83), os recursos devem ser distribuídos de modo a fazer com que o grupo em pior situação fique na melhor situação possível
para ele próprio; depois disso, o segundo grupo em pior situação deve ser posto na melhor situação possível para ele próprio, e
assim prosseguindo ao longo da escala social. O próprio Rawls não propõe esse princípio como uma teoria ética abrangente. Ele a
apresenta como uma exposição da "justiça como eqüidade" no reino POLÍTICO (capítulo 8), exposição com a qual ele espera que
pessoas com uma variedade de concepções éticas abrangentes possam concordar. Todavia, poderíamos tratá-la também como
uma proposta sobre como se deve compreender a imparcialidade dentro de uma teoria ética abrangente, uma proposta que
compartilhasse com o utilitarismo clássico a característica de considerar o valor ético uma função imparcial positiva do bem-estar
individual e de nada mais. Tampouco é ela a única proposta possível a compartilhar essa característica com o utilitarismo clássico;
há muitas outras.
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O princípio de diferença favorece os que estão em pior situação, na medida em que vincula uma prioridade ética a
melhorias em seu bem-estar. No entanto, pode-se dizer também que conta todas as pessoas por uma e ninguém por mais do que
um, nesse sentido: é indiferente a qual indivíduo concreto está em questão. Não leva em consideração nenhuma outra propriedade
do indivíduo além de seu bem-estar comparativo.
Uma característica distintiva do utilitarismo clássico é que ele avalia uma quantidade igual de bem-estar como portadora
de valor ético igual, não importando como seja distribuído entre os indivíduos. Isto não é verdadeiro em relação ao princípio da
diferença, pois um benefício em favor das pessoas em pior situação terá maior valor ético do que aquele em favor das pessoas em
melhor situação. Note-se, contudo, que essa discrepância assume que faz sentido pensar em dada quantidade de bem-estar sendo
distribuída de diversas maneiras entre os indivíduos. Onde não fizer sentido falar de mobilidade dentro de uma quantidade igual de
bem-estar, tampouco fará sentido falar de somatória ou de média. O principio de diferença não requer que tal faça sentido, embora
requeira que sejamos capazes de comparar os níveis de bem-estar dos diferentes indivíduos. Não que se trate de um argumento
ético a seu favor; isso mostra simplesmente que, à medida que ficarmos mais sofisticados em relação ao que faz sentido dizer,
teremos de encontrar maneiras mais sutis de cumprir esses princípios distributivos em funções de welfare rivais. Mas todos eles são
imparciais.
Como devemos compreender o termo "utilitarismo" hoje? Os críticos arrasaram com ele, e não seria difícil argumentar a
favor de que seja enterrado. No entanto, qualquer outro termo, como "welfarismo", seria pelo menos tão equívoco e aberto a
distorções quanto ele. E "utilitarismo" tem o mérito de invocar uma tradição historicamente definida. Sugiro que o interpretemos
genericamente ― uma classe de teorias éticas que afirmam que o valor ético global é alguma função imparcial positiva do bem-
estar individual. Com base nessa definição fraca, o que chamei de utilitarismo clássico toma-se uma espécie particular ― e
particularmente simples ― de teoria ética utilitarista. O "utilitarismo genérico" generaliza-a admitindo (1) princípios distributivos
diferentes do principio agregativo dos utilitaristas clássicos; e (2) interpretações diferentes da concepção clássica de bem-estar,
segundo a qual ele consistiria exclusivamente em felicidade. Ela generaliza da mesma forma que se generaliza quando se muda do
paradigma euclidiano da GEOMETRIA (p, 328) para uma classe de geometrias das quais a euclidiana é apenas uma entre outras:
admitindo que se variem certos axiomas da teoria original. Que princípio distributivo e que explicação dos fins humanos devem ser
adotados é uma questão que permanece aberta entre os utilitaristas genéricos.

6. O que se espera de uma teoria ética?

O utilitarismo é uma teoria geral completa do valor ético e uma teoria geral completa das razões para agir. No entanto,
cumpre fazer duas elucidações adicionais.
A primeira é meramente um lembrete de que existem formas não-éticas de valores. O utilitarismo é uma teoria geral do
valor ético, não uma teoria geral do valor, de modo que ela não tem nada a dizer, diretamente, a respeito dessas outras formas. O
que torna um indício arqueológico valioso, por exemplo, é sua relação com questões arqueológicas do passado, e não seu efeito
sobre o bem-estar geral. O valor da peça reside nas razões que ela fornece para que se acredite numa coisa em detrimento de
outra: uma explicação geral do que torna um indício valioso é uma tarefa que cabe ao epistemologista, não ao eticista. De modo
similar, quando consideramos esplêndido ― ou enfadonho ― um recital de piano, recorremos aos padrões internos dessa
atividade, a estética de tocar piano.
Não obstante, podemos perguntar também, em um ou outro contexto mais abrangente, até que ponto vale a pena
procurar um indício admitidamente valioso ou executar uma brilhante performance ao piano. A questão poderia ser, por exemplo,
escolher entre financiar o recital de piano ou a escavação arqueológica. Considere-se um pianista que toque apenas para si, ou o
habitante solitário de uma ilha que vai procurar indícios arqueológicos da história da ilha que jamais serão conhecidos por outras
pessoas. O valor estético da performance, como o valor arqueológico do indício, possui uma relação mínima com quantas pessoas
podem extrair bem-estar dele. Contudo, se o utilitarista estiver certo, quantas pessoas obtêm bem-estar dessa atividade é
extremamente pertinente para seu valor ético. Se o pianista sente prazer em sua performance, isto lhe concede valor ético. Se
outros também o fazem, isto lhe atribui um valor ético ainda maior. Formas não-éticas de valores são traduzidas em razões para
ação por meio de seu valor ético. Os utilitaristas não reduzem outras formas de valor ao valor ético; eles propõem uma doutrina
sólida sobre quais conexões existem neles. Dizer que o ato de tocar bem piano deve ser almejado ou financiado por si próprio,
independentemente de sua contribuição para o bem-estar, é adotar outra doutrina, incompatível com o utilitarismo.
A segunda elucidação pode ser feita mediante a distinção entre uma teoria do valor ético e uma teoria da decisão. O
utilitarismo é uma teoria completamente geral do valor ético, mas isso não é o mesmo que dizer que ela está plenamente
desenvolvida. Ele se preocupa com razões intrínsecas para a ação e, nesse sentido, proporciona, como afirmaram os utilitaristas
clássicos, um "teste", ou "padrão", ou "critério" de conduta. Contudo, outra questão é saber se ele pode desenvolver-se em normas
ou procedimentos para decidir o que fazer. Não se segue necessariamente da teoria utilitarista do valor ético que devemos todos, a
todo momento, seguir a regra de decisão "faça a ação que produza maior valor ético". Podemos ignorar qual ação possui o maior
valor ético. Pode ser que as tentativas para seguir tais normas de decisão sejam bastante contraproducentes. E assim por diante.
Uma possibilidade limitadora é que o valor ético atinge o grau máximo num mundo em que nenhum individuo sequer acredite que o
utilitarismo é verdadeiro. Nesse caso, o utilitarismo se poria em segundo plano. Ele teria por conseqüência que o melhor mundo
seria aquele no qual não se acreditasse nele. Não se trata de objeções ao utilitarismo. Dizer que o utilitarismo se põe em segundo
plano não é o mesmo que dizer que ele se auto-aniquila.
O utilitarismo não está comprometido com a concepção de que a ação moralmente correta seria a ação ofelímica ― ou
seja, a ação que produz o maior bem-estar ―nem de que a "ação ofelímíca'' está bem definida, mesmo em princípio, em toda
situação. Não só é consistente com o utilitarismo adotar a explicação da moralidade por mim fornecida anteriormente ― na
verdade, a explicação que o próprio Mill forneceu. Nosso pensamento moral cotidiano não é inteiramente imparcial, como o é a
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teoria utilitarista do valor ético. Acreditamos que temos obrigações especiais com algumas pessoas devido à relação que mantemos
com elas - de parentesco, vizinhança, cidadania, contrato. Acreditamos que temos deveres derivados de nossa "condição".
Dispomos de respostas morais bem específicas a nossas ações e às dos outros em seu contexto, que com certeza não derivam de
uma teoria ética, seja utilitarista ou outra qualquer.
Todavia, a teoria ética não precisa sustentar que essas respostas foram derivadas. Podemos reconhecer que elas se baseiam em
sentimentos morais espontâneos, conforme discutido na seção 2. Sem dúvida, o utilitarismo está comprometido com isso: onde se
puder mostrar que o bem-estar geral seria melhorado se determinada maneira de fazer as coisas fosse modificada, então isso deve
ser feito. É isso o que se tem em mente ao denominar ao bem-estar geral de teste de conduta. Outra teoria ética, como o
contratualismo (ver seção 9 abaixo), teria o mesmo compromisso com o teste de conduta que ela favorecesse.
Caso nunca se pudesse mostrar de maneira plausível, a respeito de qualquer prática, que o bem-estar geral seria
aumentado se ela fosse modificada, então o utilitarismo não teria nenhum critério distintivo ― embora pudesse ser verdadeiro. De
maneira similar, se as versões do utilitarismo genérico diferem no que concerne a sua estrutura distributiva, ou em suas concepções
dos fins da vida, mas não diferem nas mudanças por elas recomendadas, a distinção entre elas não tem importância prática.
Apresentar um modelo de utilitarismo representa uma sutil, mas importante, diferença, assim como apresentar modelos de
MÉTODO CIENTÍFICO (capítulo 9) representa uma diferença para nossas crenças sobre o mundo. Em nenhum dos casos, porém, o
efeito ocorre mediante uma derivação "linear" das normas morais a partir de uma função de welfare, ou de hipóteses científicas
específicas a partir de cânones do método científico. Em ambos os casos, os modelos novos ou aperfeiçoados operam dentro de
uma tradição cosmológica ou moral existente; eles a modificam, mas de uma forma holística e conservadora. "Onde não incomoda,
não coce" é a fórmula de Quine para esse método de holismo conservador. Ele se aplica igualmente ao método ético.
Com certeza, os utilitaristas clássicos às vezes se expressaram de maneira "linear", mas também tiveram seus momentos
holístico-conservadores. Mill, em particular, enfatizou esse elemento de holismo conservador, pois estava respondendo a críticas de
Bentham e outros utilitaristas radicais pioneiros precisamente sobre esse ponto. Sidgwick sistematizou e estendeu essa estratégia.
É preciso recordar tudo isso se queremos evitar estabelecer distinções excessivamente simplificadas entre as concepções dos
utilitaristas e de outros sobre a moralidade.
A atração que o utilitarismo genérico exerce é de duplo caráter. Em primeiro lugar, parece perfeitamente possível
perguntar por que se deveria obedecer a um conjunto particular de regras morais, como, digamos, os Dez Mandamentos. Se
respostas como que eles são auto-evidentes ou que são ditados por um deus parecem insatisfatórias, pelo menos um dos motivos
disso é que queremos saber a finalidade ou propósito de tais regras. E uma vez aceita a questão "a que propósito serve essa lei?"
como apropriada, a resposta utilitarista genérica, que nos remete ao padrão do bem-estar geral, exerce grande atração. Ser
informado de que o adultério é errado devido à mágoa que provoca, tanto diretamente como pela quebra de confiança, é algo mais
satisfatório, embora sem dúvida seja mais discutível do que ser informado de que seu caráter errado é auto-evidente, ou proibido
pela Bíblia.

7. A pluralidade do valor

Pode-se perguntar, a respeito do utilitarismo ou de qualquer outra teoria ética, quais são suas credenciais. Que tipo de
coisa poderia mostrar que ela está correta? Onde ela se encaixa no mapa intelectual?
Impressões espontâneas a respeito de quando uma emoção está em seu devido lugar, estabilizada por meio de auto-exame e
discussão, geram critérios internos que regem sua razoabilidade ― normas de sentimento correto. O mesmo ocorre com as normas
epistêmicas, que consistem em juízos sobre aquilo em que se tem razão para crer ― normas de crença correta.
Essas apreciações se imbricam com nossos fins. Descobertas concernentes a culturas antigas, por exemplo ― se for seu
objetivo, você precisa atentar para indícios arqueológicos valiosos. De modo ainda mais óbvio, se quiser tocar piano bem você deve
interessar-se pelo que toma uma performance musical sensível, comovente.
Contudo, embora estejam imbricadas desse modo com nossos fins, essas apreciações não nos informam quais devem
ser nossos fins. A lógica ou o método arqueológico nos ensina qual indício é importante para se aproximar da verdade sobre a
Antiguidade, mas método algum lhe diz que esse deve ser seu objetivo ou que você deve buscar a verdade. Critérios internos lhe
informam que uma performance não é apenas tecnicamente acurada, mas bela, penetrante ou profunda. No entanto, não lhe dizem
quanto tempo despender nisso, que recursos utilizar.
Ao que parece, o mesmo se aplicaria ao que é censurável ― pelo menos se pensamos nisso como determinado
unicamente pelos critérios internos do sentimento de desaprovação. Tais critérios nos diriam o que é "moralmente certo" ou
"moralmente errado", mas não que razão temos para buscar o primeiro e evitar o segundo. Assim como alguém poderia escrever
um livro sobre A Arte do Pianista ou sobre O Bom Método em Arqueologia sem dizer nenhuma palavra sobre quão importantes são
essas atividades, comparadas a outras, do mesmo modo alguém poderia escrever um livro sobre A Arte da Bondade Moral sem
dizer nada sobre quão importante é buscar a bondade moral.
Alguns filósofos argumentaram como se esses critérios internos próprios a vários tipos de atividade e experiência fossem
os únicos de que necessitássemos. Eles diriam que não há espaço para o que chamei de questão ética. Há realmente uma questão
a propor sobre o motivo pelo qual devo evitar o que é moralmente errado, afastar-me de situações maçantes ou assustadoras,
procurar desenvolver em mim as qualidades que julgo admiráveis em outros?
A emoção pode moldar a ação de alguém por intermédio dos vínculos entre emoção e desejo, e desejo e ação. Culpa, tédio e medo
são emoções que suscitam desejos de eliminar ou evitar seu objeto. Outros, como o prazer estético, suscitam o desejo oposto.
Contudo, quais são as conexões no nível da razão? Por que eu deveria evitar fazer o que é aborrecido ou censurável? Considere-
se o seguinte: se algo é tedioso (censurável), então há motivos para não o fazer. Trata-se de uma verdade da lógica? Não parece
que seja. A verdade da lógica é antes esta: se uma coisa é tediosa (censurável), então o tédio (censurar a pessoa que a faz)
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constitui uma resposta apropriada, justificada, razoável. A conexão lógica é com as normas do sentimento, mais do que com as
normas de ação.
Fazer coisas tediosas ou censuráveis provavelmente vai deixar alguém chateado ou se sentindo culpado ― estados que a
maioria de nós considera desagradáveis. E, com certeza, as pessoas têm razão em evitar fazer o que é desagradável. Esta última
proposição é óbvia, e estabelece o vínculo lógico com os motivos para a ação. Contudo, também nos conduz ao território da teoria
ética, pois se trata de uma proposição normativa sobre as razões para a ação, e podemos nos perguntar qual é sua origem. Mas,
antes, é preciso considerar um ponto importante a respeito do status do moral.
Ambos os lados na disputa sobre a categoricidade moral devem oferecer uma explicação ética sobre quando se tem razão para
agir. Duas idéias podem ser brandidas por aqueles que rejeitam a categoricidade moral:

(1) você tem razão em buscar o que é bom para você e evitar o que lhe é prejudicial.
(2) você tem razão em fazer tudo o que promova seus objetivos.

As razões para agir moralmente dependerão, então, do que é bom para você, ou de quais são seus objetivos. Mas de
onde provêm essas idéias? Elas parecem ser produtos unicamente da reflexão racional, como em qualquer outra doutrina ética
sobre as razões para a ação. Desse modo, assim como toda a variedade de valores baseados na emoção que são dados para a
reflexão ética, parece haver algo mais, do qual ela deriva ― a razão prática.

Um status especial para a moralidade?

A moralidade com certeza não está no mesmo plano que as outras normas do sentimento. Pode-se citar como exemplo a
assimetria. Se, honestamente, considero um filme muito enfadonho, é provável que eu me disponha a julgar desfavoravelmente
uma pessoa que também não o ache enfadonho ― talvez como um cinéfilo não-crítico. Ora, em vez disso, posso ser levado a
questionar meu próprio gosto. Mas, mesmo que eu permaneça convencido de que o filme é enfadonho, dificilmente posso
sustentar que o cinéfilo não-crítico tenha motivos para evitar assisti-lo. Afinal, justamente por não ser crítico, ele o apreciará.
Podemos adotar a mesma linha de raciocínio que adotamos em relação à pessoa não-crítica com pessoas imorais? Se o
fizéssemos, poderíamos ainda assim formar uma opinião desfavorável a respeito de alguém que não sentisse culpa por fazer
algo censurável ― julgando-o despudorado ou censurável. No entanto, não poderíamos dizer que ele tinha uma razão para
abster-se do ato imoral.
Não existe simetria nesse caso. Devo evitar fazer algo moralmente errado porque é moralmente errado, não porque me fará
sentir culpado, o que é desagradável. Mesmo que não me faça sentir culpado, ainda tenho motivos para não o fazer. Considere-
se um especialista em canto que percebe que uma canção particular é bonita, mas que não consegue tirar mais nada dela ― o
especialista descompromissado. Ele não tem por que esperar a performance. Compare-se com o especialista moral
descompromissado ― que vê o que está certo e o que está errado mas não mais se sente comprometido com isso. Ele ainda
tem motivos para fazer a coisa certa e evitar a errada. Isso não depende de seu interesse pela coisa. Queremos manter este
princípio ético:

Se X é moralmente errado, então há razão para não fazer X.

E não pensamos que sua verdade dependa da apresentação de alguma outra condição, que podemos ou não obter. Por
exemplo, a existência de razões para que eu não faça o que é moralmente errado não depende de quais são meus objetivos, ou
se será desagradável, ou mesmo se irá causar a degradação de meu caráter. Pode-se expressar isso afirmando que as razões
morais são categóricas, de modo que o principio ético pode ser chamado de principio da categoricidade moral.
Isso não está de modo algum acima de controvérsias. Foi rejeitado veementemente, entre outros, por Phillipa Foot e Bernard
Williams (Foot, 1978, caps. VII-XIV; Williams, 1981, capo 8). Pode-se rejeitá-lo afirmando que as razões morais não são
categóricas ou, de modo mais incisivo ainda, afirmando que não existem razões. Porém, se endossarmos essas objeções,
precisaremos concluir que as normas morais não podem fundar-se somente em sentimentos espontâneos de desaprovação.
Precisam também corresponder a considerações éticas.

8. Razão prática

A razão prática diz respeito às razões para agir, assim como a razão teórica refere-se às razões para crer. Como
insistimos na distinção entre razões para agir, para crer e para sentir, não deveríamos esperar uma terceira divisão da razão, ligada
a razões para sentir? Poder-se-ia intitulá-la "razão estética".
Se razão "prática" e razão "teórica" fossem meros rótulos para designar a disposição de elaborar juízos sobre razões para
agir e razões para crer, uma divisão tripartite como essa estaria correta. Contudo, a expressão "razão estética" não é empregada
habitualmente. O motivo é que razão "prática" e "teórica" não servem apenas para classificar disposições: são termos que invocam
uma concepção sobre a origem dessas disposições, a concepção segundo a qual os juízos sobre os motivos para agir e os motivos
para crer são exercícios da razão. Desse modo, a noção de "razão estética" é claudicante. Isso porque, embora constantemente
emitamos juízos sobre as razões para sentir, eles não são pronunciamentos da razão. Afirmar o contrário seria afirmar que existem
princípios racionais evidentes produzindo razões para sentir. De forma similar, a razão prática existe caso haja princípios racionais
evidentes produzindo razões para a ação. E a razão teórica existe se há princípios racionais evidentes produzindo razões para crer.
Contudo, no caso do sentimento, com certeza não existem tais princípios. Podemos ser razoáveis em nossos sentimentos, ou
irracionais, mas não é uma compreensão racional do sentimento correto que nos diz isso. A razão só é invocada, a esse respeito,
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em sua feição teórica, mediante a avaliação racional das crenças pressupostas por nossos sentimentos. Pascal disse que o
coração tem razões que a própria razão desconhece ("Le coeur ases raisons que la raison ne connait point", Pensées, sec. iv, n.
277). O contexto em que afirmava isso era outro, mas seu aforisma se encaixa bem no presente argumento.
Contudo, há algo como a razão prática? Distinguimos entre sentimentos razoáveis e irracionais, embora não haja
princípios a priori de sentimento justificado. Assim, a distinção entre ação racional e irracional requer a existência de princípios a
priori de ação justificada? E a distinção entre crenças racionais e irracionais requer a existência de princípios a priori de crença
justificada? Voltaremos a tratar desse ponto na seção 11. Por ora, notaremos apenas a tendência contemporânea a associar as
razões para agir com as razões para sentir, em vez de, como era tradicional, com as razões para crer. Ela assume, de forma certa
ou errônea, que, enquanto a crença racional pressupõe princípios racionalmente evidentes de raciocínio, a ação racional não os
pressupõe.
A idéia (2) da seção anterior relaciona-se de modo muito estreito com isso, ou com uma versão disso. Ela diz que uma
pessoa só tem razões para agir em relação a seus objetivos. O único conceito de uma razão para agir de que dispomos é o que faz
de uma razão uma relação entre um objetivo, um ator e uma ação, do seguinte modo: há razão para uma pessoa P, cujo objetivo é
O, fazer X. Isso será válido quando a performance de X por P for uma maneira de realizar O. Quão sólida é a razão dependerá de
quão efetiva for a performance de X ― quão provável ela torna a realização de O e quanto ela impede a realização de outros
objetivos de P. Pode-se chamar a isso de "instrumentalísmo" (porque essa corrente assevera que a única função prática da razão é
selecionar instrumentos apropriados para realizar objetivos). O instrumentalismo reduz a razão prática à razão instrumental, mas
não nega que haja verdadeiros enunciados de razão ― rejeita apenas que haja enunciados de razão categóricos verdadeiros.
Sustentar a existência de verdadeiros enunciados categóricos de razão é adotar uma concepção mais ambiciosa da razão prática.
Entre os que defendem a concepção mais ambiciosa, KANT (capitulo 22) foi de longe o mais proeminente. Ele afirmou que
algumas razões para agir são categóricas - em sua terminologia, imperativos categóricos, e não meramente hipotéticos. Com muita
ênfase, assegurou também que as únicas razões categóricas são as razões morais. Contudo, antes de considerar Kant,
examinemos algumas outras teorias éticas que também precisam aceitar a natureza categórica da razão prática.
Uma razão para que um agente faça algo é categórica se ela exige isso sem levar em conta os objetivos do agente. Isto
traça uma linha entre (1) e (2). Porque, de acordo com (1), você tem razão para buscar o que é bom para você, independentemente
de ser esse o seu objetivo. A pessoa que afirma ser essa a única razão categórica para agir é o egoísta racional. Devido ao fato de
que agir de modo egoísta pode ser ruim para você, os egoístas racionais não precisam recomendar o egoísmo no sentido usual.
Sua posição também é distinta da posição do instrumentalista. Por que, o que se entende por objetivos de uma pessoa? A
concepção estritamente instrumentalista é a de que os objetivos de uma pessoa são os objetivos que uma pessoa possui
efetivamente, e que são básicos, e não derivados de outros mais básicos que essa pessoa de fato tem. Não estamos nos referindo
a objetivos básicos que as pessoas teriam se tivessem plena compreensão racional ou quisessem o que a razão lhes diz para
querer, e assim por diante. O instrumentalista não dispõe dessas noções. Pode-se dizer que o instrumentalista precisa dar sua
adesão a pelo menos um principio categórico ― sob pena de incorrer em completo ceticismo a respeito da razão prática: "Você
deve fazer tudo o que promova seus objetivos, quaisquer que sejam eles": Ele precisa dar sua adesão a esse principio, mas é outra
questão se ele tem de vê-lo como um pronunciamento da razão (ver seção 11). Se ele puder negar que é, então, nesse sentido,
pode-se dizer que rejeita todos os princípios categóricos da razão prática.
Os utilitaristas, assim como os egoístas racionais, precisam aceitar um principio categórico da razão prática. Eles não
podem ser instrumentalistas, pois não apenas afirmam que, se o objetivo de alguém é promover o bem geral, essa pessoa tem
razão para promover o bem geral. Sua tese concerne fundamentalmente ao valor ético. Ela afirma que uma pessoa tem razão para
promover o bem geral quer ela queira, quer não. O bem-estar de todo indivíduo é uma fonte de razões categóricas para todo
indivíduo.
A diferença entre as concepções categórica e instrumental da razão prática é um divisor de águas crucial da ética, e dado
que o utilitarismo é grosseiramente confundido com noções instrumentalistas da razão é preciso salientar que o utilitarismo
convincente, pelo contrário, como o kantismo, situa-se do lado categórico e não do instrumental. Isso era mais claro para Mill do
que para Bentham, e mais claro para Sidgwick do que para Mill. Mas voltemos à doutrina ética de Kant.
Kant pensava que o conjunto total de princípios morais podia ser estabelecido por meio de um teste cuja correção, por
sua vez, deriva da razão pura. Esse teste é o imperativo categórico propriamente dito:

Age como se a máxima de tua ação pudesse se tornar por meio de tua vontade uma lei universal da natureza.

Quando aplicada a qualquer máxima de ação, supõe-se que ela a determine de uma maneira bem definida ― e,
supostamente, sem recurso a qualquer dado empírico ―, seja ou não essa máxima um princípio moral categoricamente impositivo.
Para Kant, o moral simplesmente é o racional.
Há tanto de solene e profundo na ética de Kant que é fácil esquecer, ou disfarçar, a ambição quase inacreditável dessa
doutrina central, que constitui a espinha dorsal da teoria. É difícil acreditar nela, mesmo quando se observam as diversas maneiras
em que Kant pensa que os fatos "antropológicos" a respeito dos humanos e de suas circunstâncias moldam os pormenores da
moralidade. Não se deveria encobrir essa incredibilidade, pois a grandeza de Kant como filósofo, combinada com ela, arruinou
doutrinas da razão prática mais defensáveis, que sofreram danos colaterais provocados pelo colapso do projeto excessivamente
ambicioso de Kant. Pelo fato de a razão não poder ter o monopólio na determinação do certo e do errado, que Kant, o grande
defensor da razão, procurou lhe atribuir, pensa-se que ela não pode desempenhar papel nenhum nessa determinação. Uma forma
extrema de racionalismo ético esbarra em formas extremas de irracionalismo ético. Logo, é preciso fazer uma relação do que, na
ética de Kant, precisa ser descartado e do que pode ser retido.
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9. O imperativo categórico e o contratualismo

Críticos de todas as correntes no século XIX (entre outros, Hegel, Mill, Schopenhauer e Nietzsche) assinalaram que,
embora o substancial ensinamento moral de Kant possua um conteúdo bastante definido e característico, seu imperativo categórico
é demasiado formal para produzir algum resultado tão substancial. Considere-se a máxima: "Rompe tua promessa quando for de
teu interesse fazê-lo". Kant dá a entender que seria autocontraditório supô-la uma lei universal, pois se todos aderissem a ela
"promessas" não existiriam. Formulado dessa maneira, isso está errado: pode-se adicionar o pressuposto de que todos sabem que
todos rompem as promessas quando é de seu interesse fazê-lo. Mas esse pressuposto é contingente.
O vínculo entre razão e autonomia é um postulado substancial de Kant, mas tentativas de extraí-lo de truques sobre
enunciados como "a própria razão requer que a razão seja respeitada" devem ser evitadas. Dispomos de uma noção de autonomia
racional (conforme vimos na seção 3) e sem dúvida pensamos que os seres racionais autônomos possuem pretensões morais
especiais em virtude de sua racionalidade. Não pensamos, porém, como exigiria a doutrina kantiana, que só os seres racionais
possuam pretensões morais e não pensamos que a única coisa que exigem de nós seja o respeito por sua racionalidade ― em
outros termos, a abstenção de qualquer coisa que impedisse ou diminuísse sua liberdade moral. Em todo caso, o formalismo de
Kant o impede de dar um conteúdo definido à noção de racionalidade prática. Segundo sua teoria, a racionalidade consiste em
constatar o que a lei universal da razão exige, e essa lei universal postula apenas que se deve respeitar a racionalidade: nada nos
informa sobre o que exigem o respeito pela racionalidade, e, portanto, a racionalidade. Assim, no fim das contas a acusação de
vacuidade do imperativo categórico de Kant permanece.

Razão e autonomia

Kant também estabelece que devemos ser capazes de querer que a máxima seja uma LEI DA NATUREZA (p. 510) universal, e
essa pareceu constituir uma linha de raciocínio mais promissora. Posso realmente querer que todos rompam suas promessas
quando for de seu interesse fazê-lo? É fácil equivocar-se aqui. Para Kant, a vontade em questão precisa ser uma vontade
puramente racional: é a força impulsionadora (móbil) da razão pura. Ela não pode recorrer a fins que almejamos incidentalmente,
de maneira contingente. Kant com certeza se refere à vontade como se ela fosse determinada unicamente pela idéia de lei
universal, e essa parte de sua doutrina não resiste a seus críticos do século XIX. Porém, de maneira menos explícita, ele também
assume que há fins que a razão pura exige que tenhamos: pessoas, ou seja, seres racionais, são os únicos fins que se pode
assegurar como fins intrínsecos unicamente à razão pura. Isto o conduz a outra versão, para muitos de ressonância muito maior,
do imperativo categórico:

Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.

Por ressonante que seja, ela não é inteiramente clara. O que é tratar uma pessoa, um ser racional, como um fim? Uma
concepção, que parece ser a de Kant, é que consiste em se abster de ações que impedem outros ou a si próprio o exercício da
racionalidade. Ora, para Kant, a racionalidade é a liberdade moral (a noção que discutimos na seção 3) ou, em sua terminologia,
autonomia. Esse é um dos elementos mais marcantes, assim como um dos mais centrais, da filosofia moral de Kant. Sua
concepção é que a própria razão requer que respeitemos, que não atentemos contra, a autonomia dos seres que podem ser
autônomos.

O ingrediente que falta é a noção de um bem individual. Ao que parece, Kant considerava essa noção inapropriadamente
"antropológica" para um fim puramente racional. Contudo, a noção de um bem individual não é em si antropológica ― apenas
quando explicamos em que ele consiste para um ser humano descemos ao nível da antropologia. Se equipamos a razão pura com
a noção abstrata de um bem individual podemos perceber diversas maneiras de combiná-lo com a doutrina da vontade racional. Se
a própria racionalidade orienta os agentes racionais a buscar seu próprio bem, por exemplo, eles não podem querer racionalmente
que uma máxima se torne uma lei universal da natureza, quando essa lei da natureza os prejudica. Poderíamos também considerar
o respeito pelas pessoas como expressão de preocupação com seu bem, interpretando o imperativo categórico como a injunção
para tratar o bem de todas as pessoas como algo a ser promovido de maneira imparcial. O bem dos indivíduos, concebido de forma
imparcial, torna-se o objeto da vontade racional, de modo que se pode desejar que uma máxima se tome uma lei universal da
natureza, sendo assim adotada como uma lei moral somente se a anuência universal a ela contribuir para a promoção do bem
geral.
De qualquer forma, rejeitamos a idéia kantiana de que a racionalidade é o único fim racional, e pomos em seu lugar a
idéia não-kantiana de que o bem dos indivíduos é o único fim racional. Assim, qualquer desses desenvolvimentos, em direção ao
egoísmo racional ou (se bem é identificado com bem-estar) em direção ao utilitarismo, é um rompimento decisivo com Kant.
Consideremos um pouco mais a primeira idéia, que coloca o imperativo categórico contra um pano de fundo de egoísmo
racional. Um egoísta racional pode "querer" que "Rompa suas promessas sempre que for de seu interesse fazê-lo" seja uma lei
universal?
Bem, um egoísta racional pensa que ela é uma lei universal da razão. Mas talvez ele não queira que ela seja uma "lei da
natureza" universal, ou algo com o qual todos sempre concordem. Não que tal anuência universal seja inerentemente auto
contraditória, como pensava Kant; é que parece provável que ela o prejudicará. E se é provável que ela o prejudique ele não pode
querê-la, nem fazer nada para realizá-la. No entanto, suponha-se que modifiquemos o teste de Kant, como se segue:
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Aceite como princípio moral apenas a máxima que você pode querer que se tome uma lei universal da natureza.

Um egoísta racional que endosse esse teste de princípios morais não aceitará como um princípio moral o princípio de
romper as promessas quando for vantajoso fazê-lo. Pelo contrário, dado que ele pode querer que as pessoas, de modo universal,
cumpram suas promessas ― seria vantajoso para ele se o fizessem ―, ele aceita "Mantenha suas promessas" como um princípio
moral.
Essa modificação do teste de Kant para os princípios morais nos encaminha para o contratualismo. Uma forma de
contratualismo bastante próxima dela é a concepção segundo a qual as regras morais são aquelas com que o egoísta racional
poderia "concordar” ― promover como regras públicas de conduta. Outra modificação substitui o egoísmo racional pelo
instrumentalismo ― regras morais são aquelas com as quais agentes instrumentalmente racionais poderiam concordar. Isso se
distancia ainda mais de Kant, pois parece rejeitar a idéia de que exista algum princípio categórico racional, egoístico ou de outro
tipo ― mas, similarmente, parece a muitos atraentemente prática.
Embora essas formas de contratualismo tenham exercido bastante influência sobre a filosofia moral e política recente,
elas contêm um corolário imediato bastante indesejável: uma pessoa só tem motivo para obedecer a um princípio moral se é de seu
interesse fazê-lo, ou se fazê-lo contribui para promover seus objetivos. A construção egoísta ou instrumentalista da moralidade
pode me fornecer motivos para procurar, com todos os meios a meu alcance, influenciar as pessoas a aceitar diversos preceitos
"morais" ― mas isto não me dá motivos (mesmo em casos como o DILEMA DE PRISIONEIROS (pp. 377-378) para agir, eu próprio, de
acordo com esses preceitos moais quando não o fazer for de meu interesse, ou promover meus objetivos. Caso se aceite o
princípio de categoricidade moral examinado na seção 7, semelhante conclusão precisa ser rejeitada, e com ela a teoria que a
sustentou.
Outra forma recente de contratualismo é mais próximo, em espírito, de Kant A idéia kantiana de tratar as pessoas como
fins pode ser interpretada como a exigência de que não nos aproveitemos injustamente delas, e uma concepção contratualista da
moralidade baseada nessa interpretação pode considerar as regras morais aquelas que podem ser desejadas por uma pessoa
sensata ― alguém que persiga seu bem-estar ou seus objetivos aceitando ao mesmo tempo que todos precisam ter oportunidade
igualmente legítima de fazer o mesmo. As regras da moralidade são regras que nenhuma pessoa sensata rejeitaria. Thomas
Scanlon (1982) apresenta uma defesa sólida dessa concepção. Denominá-la-ei contratualismo kantiano, embora sua afinidade com
a ética de Kant seja uma questão de controvérsia acadêmica que não aprofundarei aqui.

Uma comparação

Dado que o contratualismo kantiano quase sempre se apresenta como uma alternativa ao utilitarismo, convém examinar as
similaridades e diferenças entre ambas as teorias éticas. E nesse caso a base apropriada de comparação é o utilitarismo genérico,
particularmente mais do que o clássico utilitarismo agregador.
Tanto uma como outra teoria reconhecem a imparcialidade, ou "eqüidade", como um princípio ético categórico situado fora do
âmbito da moralidade ― de modo que ambas divergem do puro instrumentalismo e do puro egoísmo. Os princípios morais, para o
contratualista kantiano, são aqueles cujo cumprimento beneficiaria a todos de maneira justa, uma maneira que respeitaria a
dignidade de todos como pessoas. Em particular, eles constituiriam o subgrupo dos princípios de acordo com os quais
concordaríamos em sancionar por meio de penalidades de censura por seu não-cumprimento. Ora, poderiam esses princípios
estabelecer obrigações de eqüidade, concebidas em seu ponto mínimo ― uma arena num mesmo plano para competição entre os
indivíduos que perseguem seus próprios fins? Ou será que o contratualismo kantiano nos conduz a algo mais sólido - um princípio
maximizador de justiça como o princípio de diferença de Rawls?
O resultado dessa opção mais sólida seria um teste de conduta coextensivo com uma ou outra versão do utilitarismo genérico.
Os contratualistas kantianos diriam que é provável que sua maneira de estabelecer o teste, por referência a um consenso
hipotético, os afastaria das concepções dos utilitaristas clássicos a respeito da imparcialidade, que admite que alguns individuas
sejam prejudicados de maneira "não razoável" para compensar as vantagens de outros. Eles podem estar certos nisso. Todavia,
permanece discutível se a objeção correta ao princípio agregativo do utilitarismo clássico é que ele é injusto. Pode ser irracional,
assim como pode parecer irracional aplicar princípios agregativos de distribuição similares à própria vida (permitindo que um certo
período da própria vida atinja um nível profundamente miserável para compensar vantagens em outros períodos). Porém, no último
caso, o irracional não está vinculado à ausência de eqüidade.
O contratualismo kantiano, como um todo, parece muito mais próximo do utilitarismo genérico do que das formas egoísta ou
instrumental de contratualismo das quais partimos. O princípio utilitarista é estritamente neutro em relação ao agente, na medida
que ele confere valor ao bem-estar de um indivíduo sem levar em conta a relação desse individuo com o agente que está
deliberando. De modo semelhante, o contratualismo kantiano apela a um princípio de eqüidade de neutralidade do agente. A razão
pela qual devo fazer o que é moralmente certo é que seria injusto não o fazer. Possa ou não a noção de eqüidade suportar esse
ônus, está claro pelo menos que não se pretende nesse caso fundar a moralidade ou a justiça exclusivamente sobre o egoísmo ou
o instrumentalismo. Não é feita qualquer tentativa, tampouco, de obter uma teoria substancial do que é correto a partir de
considerações meramente formais, como Kant, às vezes, parece tentar fazer. Tanto o utilitarismo genérico como o contratualismo
kantiano estão comprometidos com a concepção segundo a qual existem principias da razão prática que são categóricos, mas não
meramente formais.
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10. Razão, moralidade e religião

Algumas pessoas acham que distinguir razão de moralidade, como fazem o utilitarismo e o contratualismo, é traçar uma
linha ultrajante. Os juízos morais, segundo tais pessoas, são racionalmente evidentes por si próprios. A vida moral possui sua
racionalidade interna. A idéia de que os critérios da razão prática se situam fora de sua esfera nos afasta dela.
Se a concepção utilitarista ou contratualista nos afastam da moralidade, isso constitui uma conseqüência lamentável, mas
não uma objeção a sua verdade. A questão filosófica tem de procurar saber se os juízos morais são, de fato, contrariamente ao que
pensam utilitaristas e contratualistas, evidentes por si próprios. Tal é a posição do intuicionista moral. Utilizo esse termo apenas
para denominar a concepção segundo a qual certos juízos morais são racionalmente evidentes por si próprios, sem assumir
qualquer explicação epistemológica particular sobre o que é ser racionalmente evidente.
Já tivemos ocasião de ver que os juízos sobre o que é admirável ou censurável, como outros sobre o que é razoável
sentir, possuem uma disciplina interna baseada na reflexão sobre os próprios sentimentos e na discussão com outras pessoas. No
entanto, essa disciplina interna não os vincula com as razões para agir; não poderia, muito menos, subscrever o princípio de
categoricidade moral (ver seções 2 e 7).
Para o intuicionista moral, a verdade, ou qualquer outro aspecto, dos juízos morais é conhecida diretamente pela mera
reflexão racional. Isso não é suficiente para mostrar por que o fato de algo ser moralmente errado ― algo que, segundo a hipótese
intuicionista, conheço mediante a reflexão racional ― me fornece razões para não o fazer. No entanto, apesar de o intuicionista
atribuir à reflexão racional um papel tão destacado, ele nada acrescenta ao afirmar que também sei que tenho razões para não
fazer o que é moralmente errado unicamente pela reflexão racional.
Os utilitaristas ou contratualistas que admitem o princípio de categoricidade moral não podem sertão diretos a respeito.
Eles precisam, antes, derivar a categoricidade das razões morais dos princípios éticos que consideram primitivamente categóricos o
bem geral ou a eqüidade. As razões morais, eles podem dizer, são as razões para agir que, dadas as circunstâncias humanas, as
pessoas devem observar e com base nas quais devem ser censuradas se deixarem de observar. Se são holistas conservadores
(seção 6), eles não pretenderão derivá-las de maneira linear de seus critérios éticos, mas se sentirão livres para fundamentá-las em
nossas disposições espontâneas para censurar. Em outros termos, eles vão aceitar que a orientação para a ação e a avaliação
fornecida por essas disposições, na ausência de bons argumentos em contrário, são legítimas; porém, insistirão que são corrigíveis
por uma boa argumentação baseada nos critérios éticos de sua preferência.
A crítica que farão dos intuicionistas será que estes confundem juízos espontâneos sobre o que é admirável e censurável
com intuições puramente racionais. Trata-se de uma crítica filosófica genuína e, a meu ver, bastante sólida. Se examinar minhas
respostas descubro emoções que suscitam juízos a respeito do admirável e do censurável, mas não descubro intuições puramente
racionais detalhadas. Não é a razão que me diz diretamente, em circunstâncias concretas, se devo contar uma mentira para salvar
um amigo. E o teórico utilitarista ou contratual pode ir além e extrair disso uma conseqüência social. Quando uma resposta
espontânea de admiração e censura se vê assim transformada numa suposta intuição racional, esse teórico pode afirmar ― sem
que seja permitido apelar a uma corte superior de julgamento ético, a nenhum padrão de crítica racional independente de nossos
sentimentos de admiração e censura ― que então uma importante fonte de regeneração da moralidade se perdeu. Onde esses
sentimentos estão firmemente reunidos em tomo de algo, como por exemplo sentimentos de censura em tomo do
homossexualismo, ou sentimentos de admiração em tomo de certos tipos de dominação masculina, não podemos nos desprender
desses sentimentos, tomar distância e perguntar o que está errado com o homossexualismo ou até que ponto realmente queremos
admirar esse tipo de liderança. Não estou afirmando que se trata de uma critica decisiva, dado que os intuicionistas podem replicar:
em primeiro lugar, que a questão formulada incorreu em círculo vicioso quando o que eles sustentavam como intuições morais
racionais é tratado como sentimentos de admiração e de censura; e, em segundo lugar, que essas intuições podem ser criticadas
internamente, quando entram em conflito entre si, sem qualquer apelo a um critério ético "externo".
Com certeza, a questão sobre a existência de semelhantes intuições racionais é, do ponto de vista filosófico, a questão
básica. A argumentação contrária é simplesmente que a razão não produz respostas morais detalhadas. Sem dúvida, a linguagem
de desprendimento do utilitarista ou do contratualista tem seus riscos próprios, de alienação de nosso legado moral e engenharia
social manipuladora. Idealmente, teríamos um padrão de critica racional que, de certo modo, ainda se situa dentro do campo da
moralidade e não a trata como um objeto. Esse é um dos mais poderosos atrativos da ética de Kant. O imperativo categórico
prometia fornecer um padrão de critica racional que cumpria esse ideal. Contudo, revelou-se vazio, a menos que se transmutasse
em principias éticos de eqüidade ou bem-estar geral ou, disfarçadamente, convertesse sentimentos morais em pronunciamentos da
razão pura.
A razão humana e os sentimentos morais humanos poderiam ser plenamente integrados se ambos proviessem de alguma
fonte mais sábia do que a humana. Eis uma rota que vai da moralidade à religião, que exerce poderosa influência sobre muitas
pessoas. Se tanto a razão como o sentimento moral estivessem embutidos em nós como respostas à lei moral estabelecida por
DEUS (capítulo 14), então poderíamos, de modo seguro, permanecer dentro do círculo da moralidade sem ser forçados a adotar
uma perspectiva fria e externa em que a razão poderia entrar em conflito com sentimentos transmitidos pela tradição.
Duas grandes dificuldades, entretanto, se apresentam como obstáculo a esse pensamento. A primeira é que qualquer
argumento desse teor ― algo que é ou não eticamente desejável tem a garantia de existir somente se Deus existir, logo Deus
existe ― é inválido. Não temos razões para supor que o mundo é tal como é desejável que fosse. É necessário um argumento
independente para estabelecer a existência de uma divindade sábia e benevolente.
A segunda dificuldade tem a ver com a autonomia do bem. No Eutífron de Platão (1961, 10a), Sócrates pergunta "se o
piedoso ou virtuoso é amado pelos deuses porque é virtuoso, ou virtuoso porque é amado pelos deuses". Pode-se perguntar, de
modo similar, se o moralmente bom é tal porque ordenado por Deus, ou ordenado por Deus porque é moralmente bom. Não poucos
crentes religiosos se atêm à primeira resposta. O mesmo ocorre com alguns ateus: está implícito na asserção de Nietzsche "Deus
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está morto" (A Gaia Ciência, 1974, seção 125), embora Nietzsche jogasse com a fantasia de que, após a morte de Deus, novos
valores, além do mal e do bem moral, poderiam ser criados pela imposição de uma vontade humana suficientemente forte.
Esse voluntarismo, porém, teológico ou nietzschiano, é incompatível com a categoricidade da moralidade. Se a
moralidade é o mandamento de Deus, é perfeitamente razoável perguntar que razão tenho para obedecer a ele. Punição e
recompensa na vida após a morte, poder-se-ia dizer, dar-me-iam uma razão auto-interessada. Apresentá-la como a única razão é
propor uma filosofia de vida bem mesquinha; porém, pondo de lado sua mesquinhez, considere-se sua lógica. Tenho aquela razão
porque meu bem-estar me fornece motivo para agir. No entanto, isso coloca a razão categórica fora da esfera da moralidade. Ainda
precisamos aceitar uma razão categórica, independente do mandamento de Deus, e segundo esse enfoque a única coisa que
fizemos foi fixá-la no egoísmo, mais do que na moralidade. É essa a transição ― auxiliada por Deus ― do egoísmo racional à
moralidade. E deve-se notar que não vinculamos nenhum significado a "Deus é bom", além (talvez) de "Deus obedece aos
mandamentos de Deus". Os mesmos argumentos lógicos também se aplicam aos motivos para obedecer à lei de Deus que não
sejam mesquinhos ― amor de Deus, assim como medo do inferno.
A outra resposta, segundo a qual a bondade de Deus consiste no seu reconhecimento do bem, parece bem mais correta.
Ela admite a autonomia do bem e, em geral, a autonomia das razões. O teísta pode argumentar dizendo que um Deus benevolente
implantou em nós nossos SENTIMENTOS MORAIS (p. 577) como guias confiáveis para o bem, o que fornece ao teísta uma maneira de
se reconciliar com tais sentimentos. É consistente com isso asseverar que o bem é alguma coisa autônoma, independente da
vontade de Deus, e passível de ser reconhecido, de maneira independente, por nós.
Tal foi a concepção de Kant, um dos maiores defensores da autonomia da razão:

Mesmo o Santo do evangelho tem primeiro de ser comparado com o nosso ideal de perfeição moral antes de o reconhecermos por
tal... Mas donde é que nós tiramos o conceito de Deus como soberano bem? Somente da idéia que a razão traça a priori da perfeição
moral (Kant, 1964, p. 29; trad. bras., 1980, pp. 120-121).

Se o bem é categórico, ele é autônomo, e se é autônomo é então transparente aos seres racionais. O poder e o
conhecimento de Deus podem permitir que ele implante em nós normas confiáveis de conduta, mas isso não lhe dá maior
compreensão de sua estrutura a priori.
Uma vez isolada, desse modo, a razão, resta uma questão a respeito de seu poder de inspiração. Pode-se amar a Deus,
mas pode-se amar a razão prática imparcial? Ela faz alguém amar a virtude? Alguém pode se elevar acima do auto-interesse e da
simpatia limitada sem tomar-se seco, se não possuir algum meio emocional para fazê-lo?
A virtude é naturalmente amada, porque se baseia no que admiramos espontaneamente. O exemplo moral pode fazer -
nos amar o bem de outros. Mas não é provável que somente uma perspectiva religiosa ou espiritual possa solidamente e de
maneira confiável fazer-nos ver o bem-estar de outros como nem mais nem menos importante que o nosso? Pois bem, mesmo que
o pensamento de que não há nada de especial a meu respeito me seja dado pela razão, isso pode ainda assim constituir uma
experiência tocante e libertadora. Caso se queira chamar a tal experiência de espiritual, que assim seja. No entanto, não é preciso
envolver nenhum aparato teísta.
Precisamos enfim abordar a prometida discussão metaética: se os juízos sobre os móveis das razões são autônomos, o
que justifica nossa formulação deles e o que os toma certos ou errados?

11.Metaética

Os juízos que formulamos sobre nossas razões para agir, acreditar ou sentir podem ser chamados de "normativos " É
instrutivo tê-los em mente, mesmo que nossa preocupação seja metaética. Porque questões amiúde formuladas a respeito da
condição dos juízos éticos ou particulares podem ser formuladas, de modo geral, sobre todos eles. É possível perguntar se os
juízos normativos, não só os éticos, podem ser avaliados como verdadeiros ou falsos, corretos ou incorretos; e, se puderem, o que
os toma passíveis de ser, e como sabemos que são.
Formuladas desse modo, as questões atingem o domínio central da filosofia. Pode-se apresentar aqui apenas um mapa
bem rudimentar de sua geografia. Considere-se, para começar, a questão bastante comum: os juízos normativos são, ou podem
ser, "objetivos"?
A palavra é praticamente irresistível ― e a confusão inevitável. É como se seu oposto tivesse de ser "subjetivo"; porém,
ao ser pressionados a respeito, percebemos que realmente não temos noção do que pode ser um "juízo subjetivo".
Qual a causa de nosso embaraço? Um juízo dever ter um conteúdo ― pode-se julgar que algo é de tal maneira; pode-se
também supor que seja, especular se é, esperar que seja, e assim por diante. Julgar que é assim é julgar a proposição de que ela é
correta desse modo. Em outros termos, se não houver proposição ― nenhum conteúdo de juízo a ser julgado correto ou incorreto
― não cabe um julgamento. A própria noção de julgamento requer uma distinção entre o ato de julgar e seu conteúdo, a proposição
que é julgada correta ou incorreta. Contudo, só disporemos dessa distinção se formos igualmente capazes de efetuar uma
separação de princípio entre o que parece aos olhos do juiz ser assim, ou correto, e o que é de fato assim, ou incorreto. Deve ser
possível que o que parece aos olhos do juiz ser de tal modo não o seja de fato. E essa possibilidade faz parte da objetividade: um
discurso objetivo é aquele que pode ser sustentado. Se não puder sê-lo, não se pode falar de objetividade ― mas tampouco de
julgamento. O que devemos realmente perguntar, quando perguntamos se os juízos normativos são objetivos, é simplesmente se
existem juízos genuínos de modo geral. Foi exatamente a essa questão que David HUME (capítulo 21) respondeu pela negativa, no
que concerne à moral, quando afirmou que a "Moralidade ... é mais propriamente sentida do que julgada" (Hume, 1978, p. 470).
Hume admitia proposições, e portanto juízos, como "todos os pais são progenitores", que, em sua terminologia,
expressavam meramente "relações de idéias". Podemos dizer que elas são verdadeiras por definição. Exceto nesses casos, ele
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considerava as proposições factuais ― sua verdade dependia de corresponderem ou não a fatos. (A noção de verdade por
definição com certeza requer um exame minucioso, mas não precisamos nos aprofundar nela aqui: se não existirem tais verdades,
a tese de Hume consistiria em que todas as proposições são factuais.)
Não é fácil encaixar as proposições normativas, de modo geral, em nenhuma das categorias de Hume. Uma proposição
normativa pode assumir a seguinte forma:

Se p então há razão para crer em, fazer ou sentir algo.

Por exemplo:

(1) Se os dados disponíveis podem ser deduzidos da hipótese H, e nenhuma outra hipótese a nossa disposição é mais simples do que
H, então há alguma razão para crermos em H.
(2) Se a ação A promove o bem-estar de alguém, então há razão para que eu faça A.

Não é plausível que proposições desse tipo sejam verdadeiras por definição. (Que definição? De que palavra ou palavras?) Assim,
se as proposições são quer verdadeiras por definição, quer factuais, elas precisam ser factuais ― ou proposições não genuínas, a
despeito das aparências.
O próprio Hume pensava que elas podiam ser consideradas não-factuais, e ele tinha certeza de que essa conclusão se
aplicava a todas as supostas "proposições" normativas, não só às éticas. Existem diversas vias para se chegar a essa conclusão. A
mais simples é a mera implausibilidade de adequar a teoria correspondencial da verdade correspondente a proposições como (1) e
(2). A que fato, em que domínio da realidade, a verdade da proposição (1) corresponderia? Há algum fato de meta ou ultrafísica,
além dos fatos físicos? A mesma questão se aplica a (2). O fato de que fazer A contribuiria para o bem-estar de alguém me dá
razões para fazer A: devemos considerar isto um outro fato? Uma versão algo expandida dessa linha de raciocínio, que podemos
denominar (com um olhar de esguelha na direção de Kant) tese da autonomia das normas, enfatiza que a cognição se refere a fatos
e razões, de modo que o dualismo de fato e norma é inerente a ela. Fatos "no mundo" fornecem razões; porém, esse não pode ser,
por sua vez, um fato no mundo. Fato nenhum corresponde a uma proposição normativa.
O argumento também pode ser desenvolvido de forma EPISTEMOLÓGICA (ver capítulo 1) ― recorrendo à tese empirista de
que uma proposição factual só pode ser conhecida a posteriori, por meio de investigação empírica. De que outro modo eu poderia
estabelecer a existência de um fato independente de meu juízo, ainda que correspondesse a seu conteúdo? Todavia, as
proposições normativas não são conhecidas por investigação empírica. Na verdade, elas são ― no caso particular das proposições
sobre o que me dá razões para crer ― pressupostas pela investigação empírica.
Se seguirmos Hume, precisaremos aceitar que as "proposições" normativas não são proposições genuínas e que os
"juízos" normativos não são, propriamente falando,juízos, mas antes expressões de uma atitude afetiva, ou de uma decisão ou
volição. Respostas desse gênero amplamente humiano foram populares no século XX, sendo elevadas a altos níveis de
sofisticação pelos positivistas lógicos na década de 1930 e mais recentemente por outros. Elas ainda gozam de grande influência
nas culturas contemporâneas, mesmo entre aqueles que se consideram em campo oposto ao positivismo lógico. No entanto, outro
ponto igualmente interessante é que, pelo menos na filosofia, elas parecem estar perdendo terreno.
Quais são as alternativas? Pode-se rejeitar a posição de Hume de que todas as proposições são ou "verdadeiras por
definição", ou factuais. Ou pode-se rejeitar seu empirismo, sustentando, por exemplo, a existência de "fatos morais", ou "fatos
lógicos" que podem ser conhecidos, mas dos quais possuímos um conhecimento não-empírico. Ou, enfim, pode-se escolher a
opção cética: afirmar que, embora as proposições normativas sejam proposições genuínas, com pretensões de corresponder a um
domínio especial de fatos, não podemos conhecer tal domínio ou que não pode haver tal domínio. No entanto, esse gênero de
postura extrema tende a ser atraente apenas enquanto se se recusa a examiná-lo em sua totalidade.
Minha preferência é pela primeira resposta, a de rejeitar a posição de Hume de que todas as proposições são ou
verdadeiras por definição, ou factuais. Essa resposta é amplamente kantiana por respeitar a autonomia do normativo, mas não nos
obriga a aceitar o racionalismo kantiano. Ela pode reconhecer que "o coração tem razões que a própria razão desconhece". Mas,
diferentemente de Hume, ela reconhece plenamente o estatuto cognitivo ou proposicional dos enunciados normativos. Constitui
uma falsa dicotomia afirmar que a moralidade é mais propriamente sentida do que julgada. Ela é julgada sobre uma base que inclui
o sentimento.
Essa concepção distingue entre enunciados normativos e factuais ― os primeiros obedecendo a uma epistemologia de
auto-exame e discussão, e os segundos a uma epistemologia da correspondência. Distintamente da concepção realista, segundo a
qual existem fatos normativos, aos quais corresponderiam as proposições normativas verdadeiras, ela não assevera haver algo que
torna os enunciados normativos verdadeiros ou falsos, ou corretos ou incorretos ― no sentido de correspondência realista. Em
especial, a correção de um enunciado normativo não corresponde ao fato de que veredictos a seu respeito são idealmente
convergentes. Não é essa sua "condição de verdade": tal enunciado não possui uma condição de verdade não trivial. Assim, ele
tampouco pode ser considerado verdadeiro por um fato sobre aquilo com que as pessoas concordariam em um contrato ideal.
O retorno em direção à "objetividade" ― em direção ao reconhecimento dos juízos normativos de modo geral, e dos juízos
morais, em particular, como juízos genuínos tem sido uma característica marcante da filosofia moral nos últimos trinta anos. É
notável que essa mudança venha ocorrendo, mesmo que a rejeição da objetividade normativa tenha se ampliado e aprofundado na
cultura geral do mundo ocidental. A cultura em geral vai responder a essa virada objetivista em uma geração ou duas, como
respondeu à virada antiobjetivista dos filósofos nos anos 1920 e 1930? Podemos apenas esperar para ver.

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