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Mas coitada
(Camões, Filodemo)
A Farsa de Inês Pereira, um dos mais conhecidos autos de Gil Vicente, teatrólogo do Humanismo português,
conta a história de uma moça que recusa os papéis preestabelecidos e questiona o destino imposto à mulher na
sociedade quinhentista. Com a ironia característica das farsas medievais, o auto apresenta um desfecho
surpreendente, sugerindo as transformações que ocorriam à época. As personagens femininas do texto são
marcantes – não por acaso, uma delas dá título à peça - e apresentam diferenças entre si, sendo expressivo o
fato de cada uma refletir um aspecto da sociedade de então. Por meio dos diferentes discursos enunciados por
elas, o texto desvela a ideologia de cada uma, num entrelaçamento de falas, provérbios e negações.
Acreditando que a atitude da protagonista – expressa, inclusive, a partir de seu discurso – simboliza os valores
de um mundo em transição, propiciando uma reflexão acerca das mentalidades medieval e pré-renascentista,
nosso estudo propõe uma análise do auto em questão à luz dessa transição, em seus aspectos histórico, social
e lingüístico, no olhar desse escritor situado entre dois mundos, sobretudo no que se refere ao papel da mulher.
Originalmente concebido como o desenvolvimento dramático do provérbio “mais quero asno que me carregue
que cavalo que me derrube”, a Farsa de Inês Pereira constitui-se no primeiro provérbio glosado em teatro.
Trata-se de uma sátira com intenção moralizadora, apresentando traços de uma comédia de caráter e de
costumes com tipos bem definidos. Além de explorar a dicotomia ser / parecer, o texto reflete sobre o
momento histórico, na medida em que mostra a decadência da nobreza – um cavaleiro sem posses – e a
ascensão de uma povo pré-burguês, na figura do parvo Pero Marques.
Segundo classificação proposta por Fidelino de Figueiredo, o auto estrutura-se a partir de sete quadros que se
sucedem, organizados da seguinte forma: apresentação da vida de Inês, ainda solteira, com a mãe; conselhos
de Lianor Vaz sobre o casamento; apresentação de Pero Marques; entrada do escudeiro; as desilusões do
casamento; a viuvez de Inês Pereira e a vida de casada com Pero Marques.
A apresentação de Inês, já no início do texto, é marcada por uma atitude de revolta diante das entediantes
tarefas impostas à mulher da época. Só, em casa, cantarola e amaldiçoa a própria condição:
A fala da protagonista é marcada pela amargura e pela revolta diante de um trabalho que lhe é odioso,
sensações acentuadas pelos termos tormento, cegueira e canseira, refletindo o tédio presente em sua vida. Sua
fala é repleta de expressões que sugerem uma crítica à falta de perspectivas para a mulher da época. Seu
desencanto diz respeito, principalmente, à estagnação que vitimava as moças de então.
Isabel Allegro de Magalhães, em seu estudo O Tempo das Mulheres, destaca o tempo estático das mulheres na
Idade Média, um tempo de ficar, em contraste com o tempo masculino, o tempo de partir, marcado por
aventuras e por um espaço aberto e externo. Já às mulheres resta a clausura, o emparedamento. Note-se que
é justamente nesse ponto que reside a queixa de Inês, que lamenta o marasmo de sua vida:
(...)
A Farsa de Inês Pereira apresenta a condição da mulher encerrada em casa, mas, num vislumbre do novo
tempo, mostra uma protagonista que se rebela, renitente, contra o destino que lhe é oferecido. Inês representa
a fala destoante, pois nega os lugares-comuns, inclusive por meio de uma linguagem que defende a mudança.
Seu posicionamento ideológico de recusa dos valores vigentes verifica-se, lingüisticamente, por um discurso
repleto de exclamações – marcando o seu temperamento intempestivo - , e por indagações, como que a
interrogar a própria condição:
O lamento de Inês esbarra na oposição da mãe, humilde e simples, cuja fala reflete o conformismo diante da
sociedade de então. Além de censurar os desejos da filha, defende as regras e valores da época, ao aconselhar
Inês a ter bom senso:
(...)
(...)
Não te apresses tu, Inês:
e é homem de discrição
A Mãe parece sugerir à moça que represente um papel para agradar ao rapaz, sugerindo a hipocrisia vigente.
Expressivos são os conselhos dados à filha, demonstrando que os atributos femininos desejáveis então eram
aqueles ligados à passividade e à submissão: falar pouco, não rir, não encarar e olhar para baixo, numa atitude
subserviente condizente com a misoginia da época.
O conservadorismo da Mãe é visto também por ocasião da chegada de Lianor Vaz, que afirma ter sido
violentada por um clérigo. Dignas de destaque são as palavras de ambas, uma valendo-se de subterfúgios para
se justificar por não ter resistido ao ataque – estava cansada, teve um acesso de tosse, outro de riso – e outra
desfiando todas as possibilidades, e demonstrando desconfiança, uma vez que Lianor não apresentava as
marcas de laceração decorrentes do autoflagelo que deveria seguir-se ao estupro. Ambas comungam dos
códigos vigentes, fato que pode ser percebido nos conselhos dados por Lianor a Inês:
ou marido ou maridinho,
Em uma sociedade em que a única forma de sobrevivência feminina estava no matrimônio, a alcoviteira
aconselha a moça a se casar, mesmo que isso a incomode, numa reprodução dos valores da época. Na
repetição de ditados, um discurso que se limita a repetir os costumes e pensamentos de então, sem questioná-
los:
Significativa é uma das imagens evocadas pela Mãe: mais vale um asno que a leve do que um cavalo que a
derrube, numa retomada do mote e num prenúncio do desfecho do auto. Inês é firme em suas convicções:
quer um homem culto, ainda que não seja rico, e que a faça feliz. Movida por essa ilusão, despreza o primeiro
pretendente, o rude Pero Marques, filho de lavradores ricos, mas que peca pela rusticidade. Sua linguagem
revela a timidez e a ignorância, além de marcar a sua ingenuidade, aspecto fundamental para o desfecho da
peça. No processo de caracterização por meio da linguagem, os traços mais flagrantes de Pero Marques são
evidenciados, gerando o repúdio de Inês. Seu discurso denuncia a sua ingenuidade, ora exagerando na
formalidade, ora indicando a sua forma provinciana de se expressar:
e de mi também assi,
E, na sociedade em que o parecer vale mais do que o ser, surge a figura do escudeiro Brás da Mata, calculista e
mentiroso, que finge viver de forma abastada, apenas para impressionar. Os Judeus casamenteiros, através
das críticas que fazem entre si, desnudam a verdade sobre o Escudeiro, bem como o Moço que o acompanha,
fazendo-nos sabedores de suas mentiras e dificuldades financeiras. Impressiona Inês de imediato, pois seu
discurso é galante e é habilmente utilizado para conquistá-la. Curioso é o fato de tanto a má impressão deixada
por Pero Marques quanto o deslumbramento inspirado por Brás da Mata serem decorrentes de seus discursos.
Com um tom que remonta aos cantares de amor, o escudeiro encanta a moça:
(...)
Após casar-se com o escudeiro, Inês é rapidamente confrontada com a verdade: o marido revela-se um
déspota, proibindo-a de cantar, chegando mesmo a ameaçá-la fisicamente em caso de desobediência. A
reclusão de Inês fica ainda mais patente, pois ele informa que manterá trancada, sob permanente vigilância:
(...)
(...)
(...)
Havei-lo de confirmar
Arrependida de sua precipitação, Inês afirma que, se lhe fosse dada outra chance, não incorreria no mesmo
equívoco. Significativamente, ela principia seu novo discurso com o mesmo termo com que antes amaldiçoava
o lavrar: renego. Entretanto, o que ela renega aqui é a discrição, qualidade que a fez desposar o homem que a
faz infeliz. A protagonista modifica-se ao longo do auto, passando por um processo de sofrimento e de
aprendizagem:
fidalgos e escudeiros,
e na guerra lastimeiros.
Havia-me eu de vingar
A trama sofre uma reviravolta, pois Inês é informada de que o escudeiro havia sido morto. Tal acontecimento
possibilita que ela ponha em prática sua nova visão de mundo. Pero Marques, ainda mais abastado, volta a
cortejá-la, e a moça agora aceita seu pedido:
Após ter sofrido nas mãos do marido, Inês chega à conclusão: mais vale o asno que a carregue do que o cavalo
que a derrube. Numa sociedade em transição, os valores aos poucos se modificam: mais vale o camponês
simplório – o asno – do que o representante de uma aristocracia decadente – o cavalo – que simbolicamente a
derruba. Dessa vez, a moça é quem dita as regras, com as quais Pero Marques concorda. Em dado momento,
Inês reencontra um ermitão a quem desprezara no passado, e o texto sugere que ela o tomará como amante. A
referência ao asno que a carrega assume aqui uma dimensão literal, uma vez que o casal tem de cruzar um rio,
e ela pede que ele a leve às costas. A passagem, que termina o auto, mostra-nos ainda o marido fazendo-lhe
as vontades, e Inês, numa dose de ironia, começa a cantarolar, e o marido a acompanha no refrão Pois assi se
fazem as cousas, num indício de que Inês dará as ordens, cabendo a ele apenas repetir o refrão, uma frase que
sintetiza a sua aquiescência:
e vós me respondereis,
pera gamo.
pera cervo.
A ingenuidade do inocente Pero impede-o de perceber o comportamento de Inês. Ela, irônica, mostra que o
fará de bobo, num discurso em que o chama de gamo, símbolo do homem traído, e em seguida de cervo, numa
exploração lúdica do léxico, que reforça a idéia do gamo, e remete, por semelhança fônica, à subserviência do
servo. Ambos – traição e submissão – marcarão o casamento de ambos. Observe-se que a mudança de postura
de Inês reflete os valores do mundo em que está inserida: do encantamento e da fantasia em relação à figura
cortês do cavaleiro – imagem que significativamente desmorona no decorrer da farsa – , a protagonista
percebe as vantagens de aceitar a chegada do simplório porém bem situado Pero Marques, numa troca que
sugere as inúmeras mudanças a que a sociedade assistia. O mote da farsa – antes quero asno que me
carregue do que cavalo que me derrube - constitui a síntese estrutural do auto, e a dicotomia que atravessa o
texto metaforiza a transição da sociedade medieval para a renascentista. Gil Vicente, um homem situado entre
dois mundos, soube como poucos escrever a história de uma sociedade ainda guiada por um pensamento
religioso e medieval, mas que se descobria aos poucos tão mais valiosa quando assinada pelo homem.
BIBLIOGRAFIA
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo das mulheres. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987.
VICENTE, Gil. Antologia do teatro de Gil Vicente. Introdução e estudo crítico pela Prof.ª Cleonice Berardinelli.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.