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Alexandre C.

Carbonieri A Farsa Sobre o Demônio 1

A FARSA SOBRE O DEMÔNIO


Alexandre C. Carbonieri
Parte I

Primeiras descrições do demônio e seu surgimento

A farsa sobre o diabo é uma ferramenta de repressão, opressão e imposição de certas


religiões que nas mãos de seus fanáticos lideres religiosos vem se mostrando muito
perigosa para a humanidade no decorrer dos séculos. No entanto, podemos ver que esse
conceito não é tão antigo, a idéia de um ser maldoso que odeia a todos, muito utilizado
no cristianismo antigo, mas principalmente usado nas novas igrejas cristãos, além da
sua utilização no islamismo, espiritismo, etc..

Para compreendermos esse “mito” (no sentido popular de algo falso), devemos remontar
às Tribos nômades que habitavam a Eurásia há mais de 6.000 anos atrás para vermos
como se chegou a criar tal conceito falso acerca do ser diabólico e ainda, muitas outras
supostas declarações “religiosas” ou datas comemorativas, tidas como sagradas, como o
natal dos cristãos. Vale lembrar que, para as crenças cristãs, a Terra tem nada mais que
6.000 anos, sendo que em alguns casos chegam a falar de no máximo 4.000 anos
apenas. Bem, esses pastores da Eurásia, que cultuavam um deus-touro, chamado por
eles de Mithra, eram nômades e já tinham alcançados terras distantes chegando até a
região de Portugal, na chamada era cristã, quando o culto à Mithra tornou-se muito
comum e popular no Império Romano. Porém, para barrar tal prática, a igreja cristã
adotou sua data sagrada no mesmo dia de adoração ao deus-touro Mithra, ou seja, no dia
25 de dezembro, para desviar a atenção das pessoas à aquela prática não-cristã, e assim
foi criado natal cristão. Esse processo também está embasado no fato de que, nem
mesmo os cristãos antigos sabem realmente qual o dia de nascimento de Jesus, criando
assim muitas incertezas em outros estudiosos sobre a real existência desse homem.

No entanto, depois do Concilio de Toledo, em 447 d.C., a igreja publica então a sua
primeira descrição oficial, ou seja, a sua primeira invenção, descrita oficialmente, do
demônio, o que seria difundido como a encarnação absoluta do mal. Nessas descrições
constam a imagem de um ser medonho, muito grande e forte, de aparência escura, com
chifres na cabeça, exatamente como o deus-touro Mithra da qual a igreja queria impedir
a adoração. Nasce aqui a farsa do demônio (um mito falso) na cultura cristã que seria
imensamente utilizado no futuro para dominar povos, impor seus costumes, derrubar
outras religiões e até mesmo para plantar o medo nos corações de todas as pessoas que
aderissem aos seus cultos, envolto de muita dor, medo e arrependimento. A busca pelo
poder fez com que os cristãos no decorrer dos séculos mantivessem tal farsa inventiva
através de práticas absurdas chegando-se a matar milhares de pessoas por serem
consideradas “tomadas pelo diabo”. Isso ainda ocorre nos dias atuais, século XXI, mas
de modo bem menos usuais e clandestinamente, ou ainda no imaginário de alguns
grupos sociais assim como o aparecimento de fenômenos arcaicos da demonizaçãono
imaginário do operário da modernidade[1]. Além disso, algumas seitas cristãs chegaram
a cometer assassinatos de crianças baseadas nessa farsa como é a pesquisa publicada na
revista especializadaTempo Social, em 2008, acerca do caso do assassinato de crianças
por um grupo de “parceiros” convertidos à Igreja Adventista da Promessa em
1955[2].
Sobre o surgimento dessa farsa também encontramos como ele se construiu segundo
alguns estudos e artigos que afirmam que:
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“(...) a primeira representação do Rabudo teria surgido no século VI a.C., na Pérsia.


O profeta Zoroastro descreveu a figura de Arimã, o „príncipe das trevas‟ em seu
conflito com Mazda, o „príncipe da luz‟. Eram essas duas divindades, que expressam a
polaridade existente no universo e dentro da própria alma humana, que regiam o
mundo de Zoroastro. Durante o cativeiro na Babilônia, os hebreus tiveram contato com
o masdeísmo persa, religião que divinizava os seres naturais. Segundo alguns
historiadores, isso foi fundamental para a concepção do que viria a ser o Satã do
Judaísmo e do Cristianismo. Na antiga língua hebraica, Satanás quer dizer acusador,
caluniador, aquele que põe obstáculos. E foi assim, sem a face aterrorizante que
ganharia mais tarde, que o Diabo estreou no Velho Testamento. Agia como um
colaborador de Jeová, o Deus judaico-cristão, para testar a lealdade ou castigar os
seus escolhidos. Jeová, por exemplo, determinou a Satã que precipitasse o desobediente
rei Saul no poço da depressão.”[3]

[1] MARTINS, José de Souza. A aparição do demônio na fábrica, no meio de produção. Tempo
Social.Rev. Soc. da USP, São Paulo, V. 5, n. 1-2, Novembro, 1994.
[2] CASTALDI, Carlo. A aparição do demônio no Catulé. Tempo Social. Rev. Soc. da USP, São Paulo,
V. 20, n. 1, Junho, 2008.
[3] Revista Superinteressante, edição 174, março de 2002.

Assim também surge a noção de bem e mal dentro do cristianismo, difundido até hoje
em qualquer uma das suas milhares de vertentes, seitas e igrejas pelo mundo afora, ou
seja, tem origem no Zoroastro, uma cultura religiosa e filosófica que viria, no futuro ser
chamada e acusada pelos cristãos de pagã (termo aliás, que ficou difundido como algo
anticristão, numa conotação claramente pejorativa, ao contrário do seu real significado,
ou seja, uma religiosidade ou espiritualidade pagã, que está relacionada ao cultivo do
sagrado na natureza), dando então, a esse termo uma conotação erroneamente pejorativa
que geraria muitas mortes e massacres durante as inquisições.

Os nomes dados ao Diabo

É lamentável que exista uma difusão tão grande de uma farsa tão absurda como o de
um Mal Personificado, ou seja, um demônio e inimigo de Deus. Nesse sentido já
podemos analisar o quanto esse conceito de um demônio, passa a ser algo sem nenhum
sentido, do ponto de vista filosófico ou ontológico. Pois, se Deus é absoluto e supremo,
e isso é algo que todas as religiões concordam juntas, não se pode aceitar que esse Deus
possa ter um “concorrente”, tal como um demônio, de forma geral. E mesmo nas
atribuições antigas dadas a esse ser, parece muito controverso que ele instigue medo nos
próprios fiéis de Deus, ou seja, que essa farsa mitológica seja usada para controlar os
membros de uma dada religião através do medo.
Sabemos hoje que a farsa do demônio, capeta, diabo, asmodeu, belzebu, azazel, belial,
etc., (uma infinidade de nomes) é algo relativamente recente na humanidade, pois
religiões muito antigas que remontam a milhares de anos atrás não tinham qualquer
relação com isso e mesmo se analisarmos o significado da palavra religião, de forma
geral (aceito pela maioria dos religiosos), ou seja, religar o homem ao Homem
Supremo, Deus, nada importaria um suposto diabo, ou o iblis, como dizem os
muçulmanos ou o arimã, como o chamavam os seguidores de Zoroastro, na Pérsia.

No Brasil, os temerosos de mencionar-lhe o nome, o chamam de rabudo, tinhoso,


beiçudo, pai da mentira, cão e mais uma lista imensa de nomes que soam no mínimo
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irônicos, mas que nos mostram a tendência a criar um ser que mistura homem e animal,
como dissemos acima. Para muitos estudiosos da religião, ou das religiões, diversos
conceitos utilizados hoje, forma se modificando com o passar dos tempos e tomando
forma que servisse para seu intento original, ou seja, a dominação dos povos pela
religião. Mesmo as religiões mais novas e recentes tiveram suas origens em conceitos
muito diferentes dos que hoje se apregoa. A palavra demônio (demon, devil, etc.), por
sinal, deriva do grego daimon, que significa simplesmente "espírito”. Espírito é o que
todos os seres vivos são, e isso é um conceito comum a qualquer religião, ou seja, está
ai mais uma contradição dentre muitas que aparecem na lista das supostas “verdades
reveladas” em torno desse mito que é fonte de rendimentos financeiros para muitos,
especialmente para as novas igrejas cristãs evangélicas, chamadas tecnicamente de neo-
pentecostais.

Lembramos que as idéias do inferno (a suposta morada do diabo), julgamento final,


castigo eterno e outros dogmas criados por líderes cristãos do passado, estão
diretamente relacionadas com a farsa do demônio, assim, como foram surgindo e se
reformulando com o passar dos tempos e as devidas alterações nas escrituras, como a
bíblia, inúmeras vezes alterada e sem nenhuma comprovação até hoje de sua veracidade,
em qualquer época ou parte, seja velho ou novo testamento, seja achados do mar morto
ou qualquer novas revelações, como é comum a algumas seitas cristãs, como os
mórmons, criada nos Estados Unidos e muito forte no estado de Utah, daquele país.

Onde se encontram a farsa do demônio

Os grandes santos e homens de verdadeira integridade espiritual sempre cultivaram o


amor a Deus, aos outros, á Terra, aos animais, assim como cultivavam, praticavam e
ainda praticam em suas vidas diariamente a bondade e a compaixão, a auto-realização, a
felicidade interior plena e a pureza de coração, mente e palavras, e claro, o total
destemor. Essas são algumas das qualidades cultivadas e facilmente vistas nessas
pessoas chamadas de “santas”[1], e isso podemos encontrar em muitos homens e
mulheres em diferentes seguimentos religiosos, sejam no Oriente ou no Ocidente, até
mesmo no cristianismo, onde esse mito do diabo, ou essa farsa, foi (e ainda é) mais
difundido e, segundo alguns, criado por antigos reis e/ou clérigos com o intuito de
arrebatar novos “fiéis” através do medo de não se tornarem cristãos como citamos no
inicio desse artigo.

De fato, outros seguimentos utilizaram-se desse conceito também, tal como o Islamismo
em suas vertentes diversas, o Espiritismo, vertentes do Judaísmo e até mesmo religiões
novas, as chamadas “new ages”, dentre outras, todas essas relacionadas à religiosidade
tida como Ocidentais, embora de surgimento longe de suas maiores difusões, como
Europa e as Américas.

No que se refere às linhas religiosas tidas como orientais, podemos encontrar menções a
seres malignos, mas não exatamente a um ser como o diabo, tal como descrevem as
tradições acima citadas. É muito raro, ou quase inexistente encontrar esse tipo de
conceito, nos moldes explícitos aqui, em linhas religiosas como as do chamado
“hinduismo” e em suas diversas vertentes (como os monoteístas chamados de
Vaishnava, ou seja, os Hare Krishna, e também nos impersonalistas Mayavadis, etc.) e
também no budismo (que embora não seja uma religião, do ponto de vista de um
conceito de Deus, ou ligação com esse ser Supremo, mas é vista como tal). Muito pouco
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também se fala desse conceito do mal personificado no Jainismo, e em outras linhas


espiritualistas de origem oriental, assim como nos seguimentos do Judaísmo antigo
ortodoxo, porém sempre podemos encontrar esse conceito no cristianismo, que se
derivou do Judaísmo e mais explicitamente no cristianismo-protestante e nos chamados,
“novo protestantismo” ou “neo-protestantismo”, que seriam os evangélicos, ou
popularmente conhecidos como “crentes”.

[1] Ou religiosas, pois uma pessoa “santa” englobaria a noção de pureza, que não é aceita por algumas
denominações religiosas, como os neo-pentecostais (evangélicos) que não aceitam a santificação ou
pureza de ninguém, reconhecendo assim, no conceito exclusivamente deles, que ninguém na Terra é
santo ou puro, absolutamente ninguém.

Mas de forma geral, esse conceito, ou como preferimos chamar aqui, essa farsa, é muito
questionável, quando levamos em consideração a noção de Deus, em qualquer religião,
qualquer seguimento espiritualista, desde que baseados em escrituras autênticas das
quais cabe alguma discussão aqui.

Epistemologia do diabo

Como Deus, seja qual o nome que você preferir chama-lO, poderia ter um inimigo, um
inimigo supremo ? Isso é incongruente. Não cabe na noção de Deus, pois Ele não estaria
sujeito aos defeitos dos seres humanos condicionados pelos modos da matéria, ou seja,
aceitar algum inimigo, ter algum inimigo ou existir algo que realmente se coloque
perante Ele de forma contestadora, ou sequer sentir esse ranço, esse mal-entendido com
um ser, que de uma forma ou de outra, foi criado por Ele mesmo. Nem Ele, Deus,
poderia se sujeitar a tal postura, em qualquer situação que fosse passageira, pois isso
imediatamente o transformaria em um ser fraco, falível, emocionalmente volúvel, e não
em Deus propriamente dito.

Um bom exemplo, para uma explicação clara, são os antigos Vedas, seguidos pela
tradição monoteísta hindu denominada Vaishnava ou popularmente conhecida como
Hare Krishna. Devemos lembrar que os Vedas foram referencia para os estudos do
famoso sociólogo Max Weber, considerado o fundador da sociologia da religião. Além
dele, muitos estudiosos estudaram profundamente essa literatura, como Schopenhauer,
dentre outros. Segundo essas sagradas escrituras védicas, tidas como as mais antigas do
mundo, embora Deus tenha vindo em pessoa á Terra, na Sua forma eterna e original
como Krishna (reconhecida por seus seguidores como a Suprema Personalidade de
Deus), há mais de 5.000 anos, Ele jamais é ou foi controlado ou influenciado pelos
modos da natureza material, a saber, Bondade, Paixão e Ignorância, conforme a filosofia
védica. Isso é claramente afirmado no livro sagrado védico Bhagavad-Gita (considerado
a essência de toda a vasta literatura védica), que é o livro que registra a conversa entre
Krishna, a Suprema Personalidade de Deus para essa religião, e seu amigo e devoto
Arjuna.

Porém, independente da religião escolhida por alguém ou imposta por sua família ou
sociedade, qualquer pessoa religiosa, que, por sua vez acredite num Ser Divino, ou seja,
Deus, concorda que Ele é um Ser Supremo, criador e origem de tudo. Assim, acreditar
também no demônio implica em ter uma noção religiosa, transcendental, espiritual, pois
essa noção exposta pelos que cultivam esse conceito falso de demônio ou diabo está
diretamente relacionada com o sutil e não única e exclusivamente com a matéria, já que
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a farsa do demônio requer aceitar que ele está num Inferno, controlando e influenciando
as pessoas nesse mundo e até em outros, se é que acreditem essas pessoas em vida em
outros planetas, mas isso é outro assunto. Assim, de certa forma, tanto Deus como o
diabo, estariam na mesma plataforma, necessariamente, numa lógica simples e
facilmente aceita por seguidores pouco questionadores.

Sem dúvida que existem muitos planetas, sistemas e universos e muitas vidas em todos
eles, a própria ciência tem chegado a essa conclusão, ou avançará mais nesse sentido
nas próximas décadas. Assim, teríamos planetas superiores e inferiores á Terra. Dentro
dessa idéia, encontramos nos Vedas o conceito de que, nesses planetas inferiores a vida
é o que poderíamos de fato caracterizar como infernal, porém, não tem nenhuma relação
com a farsa do capeta ou satanás (satan, em inglês), como explicaremos a diante.

Nesse ponto temos que acrescentar que um ateu jamais poderia acreditar de fato num
demônio, como a farsa exposta, ou então não seria um ateu, já que se trata de algo além
da matéria, como acrescentamos brevemente acima. Sendo assim, só podemos aceitar
que essa mesma pessoa que acredita no demônio, seja como adorador dele ou não, tenha
em suas crenças a noção e aceitação de um ser tal como Deus, mesmo não o aceitando
como fonte de sua fé principal, pois tudo está num plano transcendental e sutil,
supostamente.

Sendo assim, toda a noção do transcendente deve estar pautada em escrituras sagradas
autorizadas e comprovadas, conforma as próprias religiões apregoam, pois de outra
forma não passa de especulação mental e malabarismos filosóficos. Ou criações
espiritualistas advindas de supostos seres superiores com poderes, por exemplo, de
grande intuição, no entanto, estando pautados apenas em suas criações mentais, embora
essas tenham tido antes fontes religiosas escriturais, pois nada é criado sem uma
referencia anterior[1]. E essas escrituras devem ser consideradas autorizadas e
fidedignas quando o seu conhecimento tem uma origem, como dizem os
Vedas, apauriseya, ou seja, que veio diretamente de Deus, do Absoluto Supremo, e não
criado por alguém ordinário.

Importante salientar que nós utilizaremos aqui as escrituras védicas como referencia por
serem as escrituras sagradas reveladas mais antigas que se tem registro e por
reconhecermos serem as mais adequadas para essa discussão, por isso a temos como
referencia em muitos aspectos, tal como o teve Max Weber, ao discutir alguns pontos
pendentes em muitas religiões, como a importante questão da teodicéia[2].

Dessa forma, se concordam todas as linhas religiosas que Deus é o criador e a origem de
tudo, então também concordam que Deus é o controlador supremo de tudo, como se
afirma até mesmo no sagrado livro védico Sri Brahma-samhita 5.1, uma antiga escritura
védica, “isvarah paramah krishnah”, ou seja, Krishna (Deus) é o Controlador Supremo.
Assim, podemos encontrar afirmações semelhantes no alcorão, na bíblia, etc.

[1] Sabemos que aqui esbarramos em discussões filosóficas abrangentes, sobre as origens das idéias ou
criações, referencias anteriores, etc., mas não entraremos nessas discussões nesse momento.
[2] Conforme consta em WEBER, Max. “Sociologia da religião (tipos de relações comunitárias
religiosas)”. In: Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 1. Brasília:
UnB, 2009. pp. 350-355.
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Parte II

As fontes, as alterações e os absurdos

O nome dado a Deus nessa literatura sagrada védica, ou seja Krishna, significa "aquele
que atrai a todos" ou "O Todo-Atrativo", e é o nome da Suprema Personalidade de
Deus, ou seja, o nome original de Deus segundo os antigos textos védicos. Logo, a frase
acima afirma que Deus é o controlador supremo de tudo e todos, sem exceção. Em
muitas passagens das escrituras védicas, há a afirmativa de que Deus, ou Krishna, é o
controlador e a origem de tudo, seja material ou espiritual, tal como a Suprema
Personalidade de Deus, o próprio Sri Krishna, afirma no Bhagavad-Gita 10.8, aham
sarvasya prabhuvo mattah sarvam pravartate, "Eu sou a fonte de todos os mundos
materiais e espirituais, Tudo emana de Mim"[1]. Também no Sri Isopanishad, outro
livro védico, no mantra de invocação, encontramos o famoso verso onde se afirma que o
Supremo é a origem de tudo, tudo provem dEle e Ele é Absoluto e Completo, e tudo que
provem dEle é Todo-Completo também, e mesmo assim, Ele jamais deixa de ser Todo-
Completo[2]. Da mesma forma, muitas outras escrituras sagradas de diversas religiões
chegaram à mesma conclusão em algum momento, de que Deus é Supremo, Absoluto e
Completo em Si mesmo, logo tudo é criado por Ele. Essa máxima das religiões deve
ficar claro para compreendermos como se enquadraria uma noção do mal ou a suposta
existência do diabo.

Claro que nem vamos falar muito sobre as inúmeras alterações que houveram em
algumas escrituras, principalmente na bíblia, que segundo alguns estudiosos, foi
alterada tantas vezes e modificada de forma tão bruta em suas traduções que perdeu
todo sentido e foge como "o diabo foge da cruz", quanto ao que seria o original.
Segundo estudiosos das religiões houveram mudanças no Alcorão também e há muitos
pontos mal-explicados em escritos de seguimentos como Mormos, judaísmo-mistico,
nas escrituras do budismo e nas interpretações espíritas ou afros, dentre outras. Talvez
isso tenha ocorrido por não existir uma tradição de sucessão de mestres ou líderes
nessas linhas que não estivessem ligados a poderes políticos e simplesmente fossem
dedicados aos rituais religiosos, no que se refere á manutenção dos ensinamentos em
sua forma original ao repassá-los aos seus seguidores, embora se saiba dos motivos
propositais visando poder e interesses próprios, por exemplo, em casos como a igreja
católica, em especial durante a idade média. Ainda há tradições como os impersonalistas
ou Mayavadis no hinduismo, que distorcem o conhecimento dos Vedas, e mantém esse
mesmo erro.

[1] PRABHUPADA, A. C. Bhaktivedanta Swami. Bhagavad-gita como ele é. São Paulo: Editora BBT,
1995. p. 492.
[2] PRABHUPADA, A. C. Bhaktivedanta Swami. Sri Isopanisad. São Paulo: Editora BBT, 1999. p. 01.

Curioso é que só se encontra referencia à farsa do demônio, tal como se conhece hoje,
em ditas escrituras que foram claramente alteradas como a bíblia ou em passagens
suspeitas e interpretativas de diversas escrituras complementares.

Dito isso, a única explicação até agora que poderíamos ter acerca do dito demônio é que
esse não passa de uma criação humana com intuitos escusos, baixos, mesquinhos e
desprezíveis, visando à instigação do medo ás pessoas numa tentativa de conversão
religiosa como muito se viu na Idade Média no Ocidente.
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Desejando o poder, algumas instituições religiosas difundiram de diversas formas a


farsa do demônio para obter um maior controle sobre pessoas inocentes e carentes de
proteção. Infelizmente isso ainda é visto muito hoje em dia, em especial nas inúmeras
igrejas neo-protestantes ou neo-pentecostais, vertente protestante surgida nos anos 70,
chamados de "crentes" que são criadas a cada ano. Toda a multidão que freqüenta essas
igrejas buscam ser protegidas pelas tais orações de pastores enquanto esses tem suas
contas bancárias cada dia maiores e mais gordas. E também, de forma geral, sabemos
que o cristianismo foi o maior difusor de suas doutrinas através da força e da persuasão
armada ou em muitos casos pela imposição através do medo. O Vaticano incentiva que
os fiéis católicos considerem o diabo como "a causa do mal", cuja presença estaria
evidente desde a crença de que a felicidade está no dinheiro, aceita pela igreja católica
após a cisma e surgimento do protestantismo na Europa (em especial após Calvino), no
poder e na concupiscência carnal até o relativismo que induz o homem a não atender "à
vontade de Deus". Tudo isso seria culpa de satã e não do próprio homem, de sua mente
ou fraquezas.

O diabo tornou-se, para os católicos, e depois, mais forte ainda para os protestantes,
evangélicos ou "crentes" e outras linhas do cristianismo, com o passar dos séculos, um
ser sutil e requintado, com uma imagem diferente da antiga, mas ainda poderoso a ponto
de apossar-se dos homens, como esclarece o documento católico oficial "De Exorcismis
et Supplicationibus" ("De todos os Gêneros de Exorcismos e Súplicas"), de 1999, que
nada se diferencia das idéias mais exageradas dos evangélicos.

A função do diabo para a religião cristã é forte e nota-se isso muito bem, por exemplo,
no novo testamento, base da doutrina cristã, em que há mais citações do mal que do
bem. Mais referências a satã que a Deus, o que é no mínimo contraditório com um livro
que se diz sagrado e para ser usado com base para quem acredita e pretenda seguir a
Deus. "No Cristianismo a presença do mal é essencial como em nenhuma outra
religião", diz o filósofo Roberto Romano, da Universidade de Campinas (Unicamp) e
isso é facilmente visto por qualquer pessoa que estudar um pouco sobre esse conceito
nas religiões. A corporificação e invenção completa do diabo cristão levou cerca de 400
anos de debates e transformações passando pelos anos citados acima e só veio a
consolidar-se no século VII, com a ajuda da arte cristã que misturava motivos
animalescos com a idéia de um ser horrível, com aspecto nojento e claro, o mais
assustador possível. Até essa data, não havia uma personificação ou caracterização
física do Diabo, e depois dela tudo foi desenvolvido de uma forma realmente tão cruel
chegando ao ponto de realizar-se atos como a Inquisição, queima de seres humanos,
matanças, assassinatos dos próprios filhos ou pais que supostamente estariam com "o
diabo no corpo" e tantos outros fanatismo sem limites, tudo isso apoiado na idéia
absurda da existência de um mal que leva a pessoa e a sociedade ao caos. Mas será que
quem levou de fato a sociedade ao caos, destruindo famílias, culturas e indivíduos
inocentes, não teria sido aqueles que deflagraram a idéia do diabo e o fazem até hoje ?
Aqueles que culpam tudo e todos por supostamente ter associação com ele, e agem "em
nome de Deus" para livrar o mundo de tal peste ? E sabemos bem quem são essas
pessoas.

Vale lembrar que recentemente surgiu uma linha de estudiosos que tentam desvendar as
origens da pessoa Jesus, que seria a origem do cristianismo, pois de fato nada se sabe
até hoje sobre aquele homem. Nada se sabe com certeza sobre a bíblia e muito se
mudou ou se escondeu e ainda se esconde na igreja, o que de fato não parece segredo,
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ou seja, todos sabem que a igreja católica, e consequentemente as religiões cristãs em


geral, escondem muito mais do que revelam.

Farsa filosófico-ideológica

Filosoficamente, alguns teóricos adeptos da farsa do demônio, aceitam que o demônio


também teria a sua origem em Deus, tal como tudo o mais, claro, haja vista a
superioridade, qualidades e características inerentes à noção de Deus, tal como
brevemente afirmamos acima. Então algumas perguntas nos vem imediatamente a
agredir nosso bom-senso: Como Deus poderia perder o controle de algo ou de alguém ?
Ou então, como e porque criaria por Sua própria vontade um ser inimigo dEle mesmo ?
O que levaria a esse ser ( o diabo) ter tanto ódio de Deus, ou seja, o seu criador e do
seres humanos (pois essa é a imagem pintada em especial pelos cristãos) ? Como
poderia Deus ter um eterno "concorrente" ? E pior, como esse "concorrente", ou
personificação do mal, poderia ter tanto poder sobre os humanos que muitas vezes,
especialmente no decorrer da história humana, encobriria ou superaria o poder de Deus
em muitos momentos ? Nesse conceito, muitos poderiam talvez dizer que Deus não
existe então, pois a característica principal que faz de Deus um Deus único, é a Sua
onipotência.

Muitos malabarismos filosóficos e especulações fraquíssimas foram jogadas no


mercado em milhares de livros, mas nenhuma apresenta realmente uma conclusão ou
explicação coerente sobre o assunto. Isso é chamado de teodicéia, ou seja, como
entender o mal na criação de Deus, a maldade, a dor, etc.

Então afirmamos como alguém poderia responder essas perguntas sem usar de pressão
ideológica, de dogmas escriturais ultrapassados ou de especulações da mente imperfeita
do homem? Está dito que o homem é imperfeito, ao menos no que se refere á suas
atividades mundanas, materiais, onde é terrivelmente influenciado pelos modos da
natureza material, ou seja, a bondade, paixão e ignorância, e veja que isso nada tem a
ver com a influência de satanás ou o "chifrudo". Aliás, já foi desvendado onde teria
surgido o estereótipo do demônio do qual apresentamos brevemente no inicio dessa
exposição. Uma junção de animal e homem, com um bafo insuportável, chifres de touro
ou bode, tido por muitos como um animal "demoníaco", etc. Sem dúvida chega a ser
ridículo a imagem criada desse capeta, que foi feita exclusivamente para assustar
inocentes e porque não dizer, crianças. No decorrer dos anos, alguns escritores e autores
de filmes tiveram a "excelente" idéia de transformar a figura do satanás em uma pessoa
sedutora e bela, mais uma "bela" jogada de marketing. O famoso número 666, por
exemplo, foi criado por escritores do século passado em seus livros de suspense e terror,
com a intenção de criar mistério e vender seus livros, o que torna mais ridículo ainda o
uso desse número como o "número da besta". Poderíamos citar aqui muitos exemplos,
com suas respectivas referencias, mas me resguardo ao direito de apenas cita-las
brevemente e incentivar a pesquisa pessoal de todos que lerem esse artigo e desejem
descobrir a verdade por trás de uma farsa, que nem merece ser chamada de mito, em sua
conotação popular e pejorativa.

Outro ponto interessante a ser levantado aqui são criações dogmáticas de idéias
absurdas como o inferno eterno. Um lugar onde o ser humano sofreria eternamente por
algum erro cometido. Isso nos parece sem nenhum sentido. Que deus é esse que manda
seu filho sofrer dores e castigos horríveis e impensáveis por toda a eternidade por ter
cometido um pequeno erro, um deslize ? Mas um ponto que o cristianismo não explica e
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sequer permite questionamento sobre. Bem, saiba que essas idéias estão claramente
expostas na bíblia (possivelmente inclusas no período da criação da imagem do diabo) e
são seguidas à risca por seus divulgadores. Isso coaduna com a idéia do demônio, da
maldade, do castigador, da imposição do medo. Para exemplificar, podemos sugerir o
seguinte: Imaginem um pai castigando um filho eternamente porque esse filho cometeu
um erro, esqueceu algo, infligiu uma regra exposta. Essa pessoa, ou esse filho "mal"
seria enviado ao inferno aos cuidados de tal demônio após o suposto julgamento final,
outra farsa cruel criada pelas doutrinas cristãs, dentre outras, e pagaria com uma
eternidade de sofrimentos terríveis, atrozes, dores causadas por castigos inimagináveis,
por técnicas que não foram usadas nem nos campos de concentração comunista na
antiga URSS ou nos campos nazistas..

A personificação do demônio ou diabo e o verdadeiro local do mal

Na verdade percebe-se sem muita análise que essa noção de diabo é completamente
ilógica perante a noção de Deus, em qualquer linha espiritual ou religiosa que se queira
aceitar, e pautada, como dissemos acima, em bases sólidas e revelações originais, assim
como podemos facilmente questionar a noção de inferno, de julgamento final, etc.,
embora essas estejam relacionadas, como dissemos, ao cristianismo e suas milhares de
vertentes[1].

Outro ponto interessante é que se o diabo existisse e tivesse tanto poder como apregoam
seus "amigos" criadores, estaria inevitavelmente acima do conceito de ser humano, mas
de onde vem todo seu poder ? Quem os deu ? E se foi Deus, porque não os tira ? E se
Deus é a origem, porque não apenas adorar a Deus e esquecer o tal Diabo ? Se alguém
adora a Deus, porque e como o diabo poderia importuná-lo ? Essas perturbações estão
apenas em quem as quer ou se deixa ter sem questionar.

Na verdade, se tudo vem de Deus, mesmo o que nossas vãs mentes imaginem como
sendo o mal, então nada haveria para um religioso ou espiritualista se preocupar. Na
verdade o que existe é um relativo e minúsculo livre-arbítrio que leva qualquer pessoa a
praticar o bem ou o mal, e isso é da iniciativa de cada um, da consciência cultivada
individualmente de cada ser. Está afirmado nas escrituras Védicas que a existência
material está dividida em quatro eras, da qual a era atual, a quarta, chama-se Kali, que
poderíamos traduzir como a era das desavenças e hipocrisia. Sim, muita hipocrisia.
Nessa era de Kali, ou Kali-yuga, o bem e o mal existem dentro de cada ser vivo, o que
difere de outras eras passadas. Assim como a dualidade é perseverante. Essa noção está
também exposta no budismo e até mesmo alguns cristãos "alternativos" a aceitam. A
conclusão de que o bem e o mal existe dentro de todos nós é facilmente constatada por
nossas experiências diárias, quando atuamos de forma positiva ou negativa, quando
temos pensamentos positivos ou desejamos o bem e quando desejamos o mal, assim
como as possibilidades de agir de forma "divina" ou de forma "demoníaca".

[1] Vertentes essas possíveis devido a facilidade de interpretações diversificadas que a bíblia
proporciona, haja vista, sua composição feita através de parábolas e alterações incontáveis.

Essa dualidade existe no mundo material, que de um jeito ou de outro, pode ser visto
como um mundo temporário do ponto de vista do ser vivo, existente como atuante nele,
e difere de nossa natureza verdadeira, que é eterna e perfeita, como almas espirituais
individuais eternamente relacionadas com Deus em amor pleno, de um ponto de vista
religioso ou espiritual. No mundo espiritual, tudo deve ser, pela lógica, superior,
Alexandre C. Carbonieri A Farsa Sobre o Demônio 10

supremo e claro, absoluto. Logo, a dualidade do bem e mal não existe no mundo
espiritual, que por si só, e por característica diferentemente do material, deve ser eterno.
Existe apenas, segundo o conhecimento oriental, o chamado sat-cit-ananda, ou seja,
conhecimento e bem-aventurança eternos. As dualidades, o bem versus o mal, as
hipocrisias, as farsas, as dores, as doenças e castigos, que são atribuições humanas,
materiais e de interesses que poderiam ser classificados como demoníacos, seriam de
conotações exclusivamente mundanas, passageiras e não extramundanas ou
transcendentais e pós-morte, mesmo num conceito de inferno.

No entanto, um dos maiores defeitos do homem é tentar sempre culpar outros, ou culpar
Deus, ou claro, o diabo, mas a culpa pelos nossos erros, as reações a serem pagas por
tais atitudes e suas conseqüências são de responsabilidade exclusivamente nossas.
Culpar Deus ou o tal do diabo, que nem existe do ponto de vista exposto aqui, é tentar
achar justificativas para nossas imperfeições ou erros e só demonstram nossa natureza
mesquinha.

Está dito que quando nos encontramos nesses corpos materiais, nesse mundo material,
estamos inevitavelmente sujeitos aos defeitos tais como ser enganados, propensão a
enganar os outros, cometer erros, etc., sendo assim, as escrituras antigas védicas, as
mais antigas do mundo, afirmam que Deus (Bhagavan), ou Krishna, está acima de tudo,
haja vista que tudo vem dEle, e como afirmamos acima, todos os religiosos e
espiritualistas concordam com isso, mesmo se utilizando de nomes diversificados, como
Alá ou Pai. Assim, pode-se dizer que somente Deus e Seus associados eternos (nitya-
siddhas) estariam livres das influencias dos modos da natureza material, livres da ilusão
e das imperfeições. Quanto a nós, os Vedas afirmam que seriamos perfeitamente servos
eternos e amorosos da Suprema Personalidade de Deus também, associados dEle, mas
nos encontraríamos numa esfera material agora, da qual tudo e todos que não são
associados eternos em amor a Deus estão cada qual com sua função. Portanto, mesmo
de um ponto de vista religioso, espiritual e tão antigo como os Vedas, perder tempo com
farsas ao invés de encontrar a meta verdadeira da vida, é realmente algo triste de ver e
absurdo de se aceitar.

Em todos os lugares existem almas espirituais, seres vivos, seja em que forma se
encontrem, e a vida então está presente, a realidade é a vida, não a dor, a miséria, o
sofrimento e tudo o mais que os adoradores e falastrões do diabo tanto pregam em suas
igrejas. O que falta é a compreensão além dos dogmas cristãos, por exemplo. O que vai
além das tradições impostas por poder, delírio ou loucura. A verdade pode estar mais
próxima do que imaginamos, dentro de nós mesmos. Jesus, por exemplo, nunca disse
para criarem igrejas. Na verdade, pouco se sabe sobre ele de fato. Pouco se sabe sobre
muitas coisas nas filosofias advindas de teólogos que reproduzem as mesmas farsas ano
após ano.

Com pouco ou nenhum conhecimento coerente, centenas de mulheres foram queimada


vivas durante a inquisição, porque utilizavam raízes e folhas, por exemplo, para curar
pessoas enfermas, e foram assim classificadas como bruxas. Termo pejorativo que ainda
impera nas mentes de pessoas atrasadas ou com claras intenções pouco nobres por
detrás das atitudes e palavras bem versadas lingüisticamente. Essas mulheres chamadas
de bruxas eram imediatamente ligadas ao diabo e caracterizadas com imagens feias,
assustadoras ou de "mente e corações impuros" pertos dos "santos cristãos". Quanta
crueldade se encontra nas raízes de algumas religiões, quantas barbaridades foram
realizadas em épocas escuras da história da humanidade, como a Idade Média ?
Alexandre C. Carbonieri A Farsa Sobre o Demônio 11

Parte III

Onde está o diabo e onde estamos nós

Devemos lembrar também dos ditos semideuses, seres divinos ao serviço de Deus. Na
doutrina cristã-católica (assim como islâmica, etc.), eles são chamados de anjos ou
santos, como "São Pedro", "anjo Gabriel", etc.. Já nas doutrinas cristãs-evangélicas nem
sequer são aceitos. Segundo o livro Védico-Vaishnava intitulado Sri Harinam-
Cintamani, escrito pelo intelectual e juiz indiano do século XIX, Srila Bhaktivinoda
Thakura, o santo Haridas Thakur, numa conversa com a encarnação de Deus aceita
como Sri Krishna Caitanya Mahaprabhu, teria dito: "não há lugar para os semideuses no
mundo espiritual". Sendo assim, se até os seres divinos chamados de semideuses ou os
anjos e santos estariam num plano material e temporário, o que dizer do mesmo ser
criado, o demônio, que também se encontraria no plano dos defeituosos. Portanto,
comentem erros e estão propensos a serem enganados. Também podemos afirmar uma
máxima do filósofo Anselmo, que afirma que "Deus é aquele que nada pode superar",
ou seja, Deus é aquele ser que nada ou ninguém mais pode estar acima ou superior a
Ele. Isso significa que, na melhor da hipóteses da existência do tal do diabo, ele nada
mais seria que um ser comum e estaria entre nós, ou melhor ainda, poderia ser qualquer
um de nós em qualquer momento de nossas vidas, ou ainda, todos o são em algum
instante, geralmente aqueles que estão distantes de atividades tidas como humanísticas,
benditas ou espirituais, assim, no máximo, o diabo seria um "estado de espírito", o que
nem precisaria de tantas invenções em torno desse ser.

Os chamados semideuses, segundo os Vedas, são seres como nós também, porém num
nível mais elevado de relacionamento divino, embora ainda material e, logo, sujeitos a
erros também, assim como a morte inerente, tal como o seria um suposto diabo. No
entanto, os semideuses, anjos, ou seja o termo que preferir usar o religioso ou sua
denominação religiosa, são servos eternos de Deus, como todos nós também o seríamos,
segundo um conceito "natural" a todas as linhas verdadeiramente espiritualistas. Esses
seres superiores (semideuses ou anjos) servem a Deus em determinados "setores" da
criação e manutenção material, sempre na dependência divina do seu Senhor, chamado
nas escrituras antigas como Vishnu, ou o Senhor Vishnu. Inclusive o senhor da morte
(maranatha em sânscrito), conhecido nos Vedas como Yamaraja, nada tem a ver com
alguém maldoso, rancoroso, diabólico, mas sim um servo de Deus que cumpre o destino
de todos os seres nascidos nesse mundo material, ou seja, morrer, uma das misérias
inevitáveis da vida material.

Até aqui algum leitor atencioso já poderia se perguntar: Então o demônio seria cada um
de nós, dependendo de nossas atividades ? Dependendo do caso, sim. O inferno pode
estar ali na esquina, dependendo de onde você mora, ou quais as suas atividades, qual a
sua consciência e consequentemente quais as suas reações a serem pagas, em termos
orientais e/ou védicos, depende de seu Karma passado ou presente e de suas escolhas e
atitudes de hoje mesmo. É claro que as mesma linhas religiosas e/ou instituições ou
igrejas que não aceitam essa noção de Karma e reencarnação são as mesmas que
utilizam descaradamente a farsa do demônio e nada explicam acerca disso tudo. Apenas
impõe seus dogmas. Aqui nasce a discussão da teodicéia, da qual trataremos em outro
momento.

Sem dúvida que existem casos paranormais e difíceis de serem explicados por leigos ou
dogmáticos e difíceis de serem aceitos pelos humanos neófitos, mas não podemos
Alexandre C. Carbonieri A Farsa Sobre o Demônio 12

aceitar que isso possa ter relação com um ser de chifres, um garfo enorme em suas mãos
e que adora devorar pessoas em seu planeta repleto de fogo, dentre outras bobagens que
beiram o cômico, se não fossem absurdamente prejudiciais ás pessoas, pois as tornam
medrosas diante de tudo que parece estranho ou desconhecido e as fazem ficar tão
fascinadas com essa farsa, que não tem tempo para conhecerem acerca de Deus, dos
homens, das culturas diversas, de quem elas próprias são e o que pode ou não haver
após a morte. Há casos de se recusarem, a saber, qualquer coisa sobre Deus, pois vêem
até mesmo Deus como um ser temeroso. Transfere-se o temor até para Deus, que seria a
fonte do amor ou devoção. Falta de conhecimento mais profundo acerca dos casos
metafísicos. Ainda hoje em dia podemos facilmente encontrar a máxima de que uma
pessoa afirma em plenos pulmões e orgulhosamente que é um ser "temente a Deus".
Temente a Deus ? Medo até de Deus e de seus castigos.

A idéia de fantasmas e almas perdidas e com más intenções é de fácil aceitação para
qualquer teísta, mas acreditar que foram recrutadas para o "exército do mal", é algo que
poderíamos caracterizar como uma palavra que por si só já demonstra sua origem e
significado: tolice.

Mais uma vez concluímos que nós mesmos, todos nós, seres humanos somos as fontes
dos desastres, das maldades e misérias. Claro que alguns supostos líderes tentam desviar
essa culpa como nesse trecho que encontramos de uma afirmação em livro de um
famoso líder evangélico que reflete a idéia de todos os outros desse mesmo seguimento
religioso: "O diabo é a origem das doenças, da miséria, dos desastres e de todos os
problemas que afligem o homem desde que ele iniciou sua vida na Terra", afirma o
fundador e controverso bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, em
seu livro "Orixás, Caboclos e Guias - Deuses ou Demônios?", um dos vários livros em
que Macedo tenta convencer a humanidade de que satã existe e exerce poder quase
absoluto sobre as pessoas, impondo medo sobre elas e ganhando "rios" de dinheiro dos
fiéis imersos no sofrimento e pânico da vida cotidiana que por si só já é bastante penosa
nos dias atuais. Nesse mesmo livro vemos no próprio título a intenção tipicamente
evangélica de ridicularizar e desprezar as outras religiões, em especial atacar as de
origem afro

Além dele, que é só um exemplo, todos os outros diversos líderes evangélicos que
abraçam a mesma causa, abraçam a farsa do diabo como seu maior aliado na conquista
de novos fiéis para suas igrejas e no esforço para destruir as outras religiões publicam
livros e mais livros com poluições destrutivas ao cérebro e inteligência de quem os lê.

Não é difícil entender porque essas mesma pessoas, evangélicos de diferentes igrejas,
evitam ao máximo participar de debates religiosos, grupos inter-religiosos ou ao menos
discutir filosoficamente sobre esses assuntos com outras pessoas ou religiões.

Uma conclusão e um convite ao conhecimento

Atividades demoníacas existem, mas não o demônio, "o chefe da liga do mal". Isso mais
parece nome de desenho animado para adolescentes. Uma pessoa pode ser um "santo"
ou um "demônio", e lamentavelmente essas atividades demoníacas podem ser feitas até
mesmo em nome de uma suposta religião, como por exemplo, matar em nome de Deus,
explorar em nome de Deus, guerras em nome de um deus odioso, aterrorizar povos em
nome de um suposto deus, classificar um povo ou uma nação de diabólica, etc., como
infelizmente existe hoje e vemos desde a Idade Média em profusão, e antes desta em
Alexandre C. Carbonieri A Farsa Sobre o Demônio 13

menor grau. Ainda hoje são reconhecidos como terroristas "religiosos", fanáticos
cristãos, crentes, desvirtuados, etc., etc.

Também há quem pratique atividades caracterizadas como demoníacas mesmo sendo


ateu, ou agnóstico. Sabemos de tantos casos, como estupros, assassinatos, roubos,
matanças de animais e humanos, exploração, etc., são tantos casos que não vale á pena
gerar tanta frustração diante do mundo aqui nesse mero resquício de uma reflexão tão
ampla, afinal não é essa a nossa intenção.

Nossa intenção aqui é instigar uma reflexão pessoal, individual e muito profunda acerca
de uma farsa terrível e tão prejudicial ao ser humano quanto qualquer censura acerca de
realidade material e espiritual. Não há nada que prove a existência de um demônio,
diabo, capeta, satanás, "cão", "chifrudo", etc., a não ser o desejo fervoroso de alguns ou
algumas instituições (e obviamente não me refiro somente à igreja católica, mas
especialmente às doutrinas evangélicas, e outros) para obter poder através do medo.
Algumas seitas atuais chegam ao cúmulo de falar tanto sobre o demônio que nada falam
de Deus, nada conhecem acera de uma divindade suprema, de uma vida mais positiva e
bondosa, apenas se prega o medo, um medo a algo ilusório e inexistente. É a religião do
medo, das pessoas que odeiam tudo e todos e vivem com medo, "tirando o diabo do
corpo" e chamando todos os que são diferentes religiosamente, de adoradores do diabo.
Essas pobres pessoas nem sequer sabem como é Deus, nem sequer tem uma vaga idéia
de um ser Supremo para meditarem em algum instante de sanidade que possam ter e,
desse ponto de vista, nem poderiam ser classificadas como religiosas ou espiritualistas,
mas como loucas ou na melhor das hipóteses, como seres inocentemente iludidos e/ou
enganados.

Como dissemos no início, é lamentável que exista uma difusão tão forte dessa farsa,
mesmo como um suposto mito, tão prejudicial ao bom senso e espiritualidade sã das
pessoas em geral. No entanto, embora lamentável, podemos superar a lamentação e
determo-nos no descobrimento acerca da realidade e na destruição de tal motivo para
lamentação de qualquer um que busque a verdade, ao menos no que se concerne a nós
mesmos. Assim pretendemos humildemente aqui ajudar a desvendar tal farsa com o
sincero desejo de ajudar a elevação de todo aquele que procura por algo superior, seja
no dia-a-dia ou na busca de Deus, pela Verdade Absoluta ou pelo transcendente. Se uma
pessoa puder ser agraciada com a compreensão que tentamos também encontrar aqui,
nosso objetivo estará cumprido.

Afinal, qualquer pessoa que se diz um líder espiritual ou religioso, ou um missionário,


ou algo parecido e nada saiba sobre a essência da divindade, da espiritualidade, de
Deus, mas que sim fale de diabos e demônios, pode ter certeza, essa pessoa não passa de
um charlatão, um enganador desprezível que no mínimo está profundamente
equivocado ou tem claramente definido em seu intimo o interesse de tirar proveito sobre
ti e tua sociedade.

Concluímos que aqueles que divulgam e ainda insistem na mentira da existência de um


ser que concentra todo o mal, a causa das doenças, etc., o inimigo de Deus, ou seja, o
demônio, nada mais é que um grande ofensor de Deus e do bom senso humano, pois
despreza a noção real de Deus, glorifica o ato de um ser que não existe, usa-se dessa
farsa para ganhar dinheiro sobre os inocentes e inventar a noção pseudoreligiosa de que
Deus não foi e não é capaz de cuidar de tudo sozinho, que não teria sido capaz de evitar
tal "anjo caído" e pior, planta a crença de que o ser humano não é capaz de assumir seus
Alexandre C. Carbonieri A Farsa Sobre o Demônio 14

atos, de que nem é o culpado de fato e que deve continuar cultivando em seus corações
e mentes o medo, o ódio, a culpa, ao invés do amor, da lucidez e do conhecimento de si
mesmo e do transcendente.

Alguns chegam a declarar, sem receio da bobagem que afirmam, que conhecem tanto
sobre o diabo e suas atividades que nada sabem sobre Deus e sobre si mesmas e de fato
não podem saber, haja vista que estão tão imersos numa mentira febril que nada podem
saber sobre qualquer outra coisa, sobre a paz, o amor e muito menos o transcendente.
Cabe a cada um julgar como deseja viver, na busca pela verdade ou nos dogmas
enganadores de farsas terríveis.

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