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Huntington e a negação da civilização africana

E
ste artigo constitui uma peque- A definição, a nomenclatura e mesmo o com os interesses e valores ocidentais. a ciência, a organização política, jurídica e
na contribuição para um debate número de civilizações é muito ambíguo A tese do professor Samuel Huntington, religiosa.
secular sobre África, a sua histó- no pensamento de Huntingnton. A noção longe de alcançar a unanimidade, é objecto
ria, a sua herança, a sua contri- de civilização abarca espaços e realidades de severas críticas aos seus diferentes para- Ideia e imagem da África
buição e o seu lugar no seio da diferentes tais como Estado e grupos sociais digmas, implicações, metodologia e mesmo A África sempre foi representada de uma
humanidade. Já se tinha negado (minorias étnicas e religiosas), grandes aos seus conceitos básicos. Interessa-nos certa forma no imaginário dos Europeus.
a África possuir uma história própria. Agora religiões (as civilizações tendo todas como neste artigo analisar a dúvida que paira No século XIX, e na primeira metade do
questiona-se a existência de civilização no origem uma grande religião que constitui sobre a existência ou não de uma civilização século XX, quando a moderna disciplina de
continente africano na polemicíssima tese o seu fundamento moral e político), proxi- africana. Mas antes é importante nos enten- História foi introduzida nas universidades
do «Choque das Civilizações» profetizada midade geográfica assim como semelhanças dermos quando falamos de civilização. ocidentais, a percepção geral europeia era
pelo Professor Samuel Huntington1. linguísticas. que a África, em particular a África Subsaa-
O mundo de Huntington é, assim, dividido Civilização: uma noção riana, não tinha história. As suas sociedades
«O Choque das Civilizações»: em oito grandes civilizações: de geometria variável eram vistas como primitivas, não possuindo
um novo marxismo versão ocidental? • A Civilização Ocidental, fundada na base A definição do que é uma civilização, em uma consciência histórica colectiva. Tal
A expressão «Choque de Civilizações» foi do Cristianismo Católico e Protestante. particular a distinção entre civilização e percepção racial foi o suporte ideológico
utilizada pela primeira vez em 1990 por Ber- • A Civilização Ortodoxa, fundada na base cultura, tem sido um debate intelectual e fundamental na era do imperialismo europeu
nard Lewis (académico americano, próximo do Cristianismo Ortodoxo. académico pautado por grandes ambiguida- e foi utilizado para justificar a partilha do
dos meios neo-conservadores americanos). • A Civilização Latino-Americana, fundada des e profundas controvérsias. continente no século XIX.
Em 1991, Barry Buzan retoma a expressão na base do Catolicismo e nas estruturas Baseando no texto de Jean Cazeneuve2, Foram as navegações portuguesas das
para ilustrar uma «guerra fria societal» entre políticas latino-americanas corporativistas podemos distinguir três definições do termo descobertas que não só serviram para
o Ocidente e o Islão, tendo como palco a herdadas da colonização. civilização: em primeiro lugar, na linguagem aprofundar o conhecimento europeu da
Europa. Finalmente, a expressão é consa- • A Civilização Islâmica, fundada na base corrente o termo civilização é associado a África como iniciaram o processo que iria
grada e mediatizada por Samuel Huntington do Islão. um juízo de valores, qualificando positi- transformar o pensamento dos europeus
(1993, 1996). • A Civilização Hindu, fundada na base da vamente ou favoravelmente as sociedades sobre os africanos. O contexto para esta
Contrariamente à opinião da maioria dos religião hinduísta. para as quais utilizamos o termo. Este facto transformação foi o comércio transatlântico
pensadores do período pós-Guerra Fria, • A Civilização Chinesa. supõe que exista, inversamente, povos ou de escravos. É de referir que a escravatura
segundo a qual a principal clivagem ideoló- • A Civilização Japonesa. sociedades não civilizados ou selvagens. Em foi um elemento essencial na época clássica
gica entre nações seria, doravante, baseada • A Civilização Africana (África Subsaariana, segundo lugar, a civilização é um aspecto do mundo mediterrâneo, tendo continuado
em questões relativas aos direitos humanos, sem a África do Norte e o Corno da África), da vida social cujas manifestações se con- sob várias formas na Europa medieval. De
à democracia liberal e ao livre mercado da fundada sobre um conjunto de práticas ani- cretizam nas instituições ou nas produções igual modo, a prática da escravatura foi lar-
economia capitalista, Huntington acredita mistas à qual não se reconhece a existência designadas por «obras das civilizações». Em gamente praticada no mundo muçulmano
que o fim das ideologias será substituído de uma religião dominante. terceiro lugar, a civilização é considerada – incluindo a África do Norte – e também
por uma nova clivagem caracterizada O mundo de Huntington é considerado por produto de um grau elevado de evolução. na África Subsaariana. Mas foi o comércio
pelo conflito cultural e civilizacional. A muitos críticos como simplista e arbitrário e A história e a etimologia da palavra «civili- transatlântico de escravos (que, entre os
sua tese tem como premissas um futuro assente no self-fulfilling prophecy (a profe- zação» mostram que a mesma servia para séculos XVI e XIX, implicou a migração
animado por conflitos com bases religiosas cia auto realizadora – à força de falar deles, designar os povos tidos como mais evoluí- forçada de cerca de 12 milhões de africanos
e culturais como última forma de con- os acontecimentos tão temidos acabarão dos relativamente a outros. Este facto leva para as Américas) que sustentou uma rela-
frontação entre povos. Paradoxalmente, por acontecer). A Civilização Chinesa é tida Jean Cazeneuve a constatar que o termo foi ção explícita na mente dos europeus entre
Huntington adopta neste seu paradigma de como a maior ameaça para o Ocidente uma utilizado num contexto colonialista ou im- inferioridade racial, escravidão e África.
conflito civilizacional uma grelha de análise vez que a cultura chinesa colide com os inte- perialista para designar a cultura europeia,
inspirada na dialéctica marxista ao colocar resses americanos de não existência de uma ocidental, como sendo superior às outras África: identidade e civilização
o conflito entre civilizações como motor potência regional no Sudeste Asiático. A Ci- de maneira absoluta. A hipótese evolucio- Culturalmente falando, entendendo a
da história – tal como Karl Marx elegera vilização Islâmica é considerada como uma nista utilizada na perspectiva de Spencer, «Cultura» como a soma de ideias, crenças,
a luta de classes como motor da história. potencial aliada da China por ambos serem permite considerar que uma sociedade é valores e representações partilhadas pelos
Porque motivo o Professor Huntington vê, animados por aspirações revisionistas e civilizada quando atinge um certo grau de membros de uma determinada comunida-
necessária e inevitavelmente, nas diferenças partilhando conflitos comuns com as outras complexidade, de heterogeneidade entre de5, os africanos são depositários de uma
culturais e religiosas um conflito? Porque civilizações, particularmente a Civilização as suas partes, de diferenciação entre os cultura própria, riquíssima e autêntica,
excluir as potencialidades de diálogo e Ocidental. Os interesses comuns identifi- seus órgãos segundo as suas funções. De predominante nos nossos dias na expressão
complementaridade entre civilizações para cados entre estas duas grandes civilizações maneira convencional, são retidos como artística: música, dança, arte plástica,
o bem da humanidade em vez de considerar são, nomeadamente, a proliferação de traços característicos de uma civilização a arquitectura, vestuário, decoração corporal,
a diversidade como fonte de tensões perma- armamentos, os direitos humanos e a demo- urbanização (tida como resultado e símbolo etc. Destas formas de arte, é, sem dúvida, a
nentes e de conflitos? cracia, aspectos que entram em contradição da civilização); a técnica; a escrita, a arte, música a que tem sido historicamente mais

JANUS 2009 anuário de relações exteriores


Aliança de Civilizações: um caminho possível?
Tcherno Djaló Áreas civilizacionais: uma geografia imaginária? 3.3.7

dinâmica ao nível continental e mundial. com o tempo quando se compreendeu que determina a religião como sendo o factor te mistura ou justaposição de diferentes gru-
A fusão nas Américas dos ritmos africanos estas «sociedades acéfalas» eram submeti- determinante da civilização, ignorando pos tribais, culturas e religiões sem relação
e canções europeias transformou a música das a autoridade (representada pelos seus complemente as outras variáveis, pode- uns com os outros. Como qualquer outro
popular, dando nascimento ao jazz, samba, «segmentos»: famílias, clãs, grupos de idade, mos mais facilmente responder à dúvida espaço, a África Subsaariana é uma entidade
son, rock, soul, reggae, rap, etc. cultos religiosos), tinham leis próprias e que suscitada pelo paradigma do «Choque das com identidade própria mas animada por
Apesar das esculturas da África Ocidental estavam longe da anarquia. Civilizações» quanto à existência ou não de diferenças internas, em termos humanos e
terem chegado à Europa nos princípios de Cada região de África testemunha uma diver- uma civilização africana. Reconhece-se como culturais. Como é óbvio, a distinção das civi-
1470, só com a conquista colonial é que a sidade linguística, cultural e política, fruto elemento comum à noção de civilização a lizações implica a definição dos seus contor-
«Arte africana» se tornou popular no Oci- de um processo milenar de movimentos complexidade, determinada em função de nos no espaço e no tempo. Por exemplo, nos
dente. Célebres peças de arte ou esculturas humanos, de conquistas e de subordinações, critérios axiológicos, morfológicos e inte- nossos dias, devemos falar de uma civilização
de vários povos e culturas africanas tornam- de intercâmbios culturais, do comércio lectuais, tais como a urbanização, as artes, ocidental, de uma civilização europeia ou de
-se incontornáveis para os mais prestigiosos de longa distância, da disseminação de as técnicas, as normas, os valores, as formas uma civilização anglo-saxónica, de uma civili-
museus, galerias e colecções privadas crenças religiosas, do colonialismo. Grandes de produção e de transmissão dos saberes, zação latina, ou de uma civilização francesa,
ocidentais. É de notar que a influência da impérios e reinos da antiguidade africana as organizações políticas e religiosas. Ora de uma civilização alemã? O importante para
arte da África Ocidental e Central é, aliás, re- desenvolveram importantes e célebres civi- todos estes factores estão presentes de qualquer estudo objectivo e responsável so-
flectida na obra de Pablo Picasso e de outros lizações das quais se destacam o Egipto (em maneira autêntica e específica em África, tal bre estas questões é evitar os etnocentrismos
artistas vanguardistas baseados em Paris. torno do qual gira um grande debate sobre como em qualquer outro continente. e preconceitos que outrora serviram para
No plano espiritual, a África é o continente a sua negritude, o Egiptocentrismo); o Kush, Um paralelismo com a civilização europeia legitimar as conquistas coloniais e insistir nos
caracterizado pela pluralidade confessional, tendo como capitais sucessivamente Kerma, permitirá traçar melhor o que consideramos interconnectedness que permitiriam melhor
indo do sistema de crenças tradicionais Napata e Méroé, situado na terceira Catarata constituir traços característicos e o deno- apreender os movimentos de populações, re-
às religiões de revelação monoteístas, o do Nilo, foi um importante centro de ouro minador comum da civilização negro-afri- lações comerciais e correntes culturais. Duas
Cristianismo e o Islão. Tal como as religiões e comercial entre a África Subsaariana e o cana. A construção civilizacional da Europa precauções se impõem nas abordagens des-
tradicionais, estas duas grandes religiões Egipto; o Aksum, no Norte da Etiópia, foi um alicerçada na herança judaico-cristã, em tas questões. Ao insistirmos na autonomia da
chamadas religiões mundiais assumem importante centro de comércio entre a África termos humanos, é produto do cruzamento história e da civilização africana, corremos o
várias formas, uma das quais constitui uma Oriental, a Índia e o Mediterrâneo. Na savana de vários povos (alguns oriundos da Ásia), de risco de reforçar a velha ideia da particulari-
distinta contribuição africana na história sudanesa e no Sahel, indo da costa do Sene- migrações e de emigrações, caracterizado por dade e do isolamento da África. Mas também,
destas crenças. Entre os exemplos das várias gal ao Kordofan, encontramos: o Ghana, país uma diversidade linguística com origem tanto ao insistirmos no interconnectedness com o
inovações africanas nestas grandes religiões, do ouro, primeiro grande reino do Sahel, no grego como no latim e possuindo como mundo, devemos acautelar por forma a não
podemos citar, no Islão, a Confraria dos tendo como capital Koumbi Saleh; o Mali, alfabeto o grego, o latino e o cirílico. Os seus diluirmos a essência da sua civilização num
Murid, no Senegal, e, no Cristianismo, as segundo grande reino do Sahel, com os cen- valores essenciais são o ideal democrático, processo unilinear dominado pelo Ocidente.
Igrejas de Aladura, no Sudoeste da Nigéria, tros intelectuais de Tombouctou e Djenné; o o principío da representação e do contrato A contribuição da civilização africana para a
já enraizadas nas cidades da Europa e da Sanghay, tendo como capital Gao; o Nok e o social, o princípio da separação dos poderes, história da humanidade deve ser reconhe-
América do Norte. Mas a maior «exportação» Kanem-Bornou. Na parte central e austral do a liberdade individual, a propriedade privada. cida no seu justo valor, uma contribuição
espiritual do continente africano são os continente, floresceram importantes reinos De igual modo, exceptuando o Norte de Áfri- específica entre outras, nem superior, nem
Deuses Oeste-Africanos Vodun e Orisha e civilizações como os Luba, Lunda, Kuba, ca islâmico, parte integrante do Dar-al-Islam, inferior. ■
que, no Brasil e nas Caraíbas, animam os Kongo, Buganda, Bunyoro, Ankole, Rwanda, a África Subsaariana, ou África Negra, cuja
1 «The Clash of Civilizations?», Foreign Affairs, Vol. 72, nº
rituais das crenças de voodoo, santería, Burundi e Monomotapa (este último entre o população era designada pelos comerciantes 3, 1993, pp. 22-49; The Clash of Civilizations and the Re-
candomblé e de outras religiões híbridas. Zambeze e o Limpopo). Se hoje é notável a árabes de bilâd as-sûdân (Terra dos Negros) making of World Order, 1996.
2 Jean Cazeneuve, «Civilization», in Encyclopaedia Univer-
No domínio da organização política, os afri- ausência de ruínas na África Tropical – apesar representa uma realidade civilizacional tendo salis, p. 944.
3 John Parker & Richard Rathbone, African History, a Very
canos conheceram no passado variadíssimas da região ter conhecido, no passado, impor- como matriz o animismo, caracterizada
Short Introduction, Oxford University Press, 2007.
formas de Estado, indo do mais absoluto tantes centros urbanos – a razão deve-se ao do ponto de vista humano por múltiplos 4 Maurice Houis et Emilio Bonvini, «Afrique Noire. Langues»,

tipo de monarquia às formas de organização uso de materiais extremamente biodegra- contactos e cruzamentos de povos, de in Encyclopaedia Universalis, vol.1, pp. 486-491.
5 John Parker, op. cit.

diametralmente opostas, sociedades cuja dáveis, a erosão dos ventos desérticos, as migrações e emigrações, herdando a tradição
Referências bibliográficas
ausência de identificáveis aristocracias ou de intensas chuvas e as actividades subversivas oral como forma de aquisição e transmissão
claras hierarquias de autoridade induziram das térmitas. Estes factores não deixaram do saber, uma expressão artistica (música, HUNTINGTON, Samuel – «The Clash of Civilizations?»,
Foreign Affairs, vol. 72, n.º 3, 1993, pp. 22-49.
certos antropólogos no passado a considera- vestígios se não os do «Grande Zimbabwe» e dança, esculturas) específica, uma forma de HUNTINGTON, Samuel – The Clash of Civilizations and
the Remaking of World Order, 1996.
lás como sociedades «acéfalas». Confron- as cidades de pedra na costa Swahili. expressão pela imagem e pelo ritmo. Os seus
PARKER, John, RATHBONE, Richard – African History, a
tados com sociedades onde os dirigentes valores basilares são a importância capital do Very Short Introduction, Oxford University Press, 2007.
O que podemos concluir Encyclopaedia Universalis
não são identificáveis, os observadores parentesco, o culto dos antepassados, a soli-
http://en.wikipedia.org/wiki/Clash_of_Civilizations
exteriores concluíram rapidamente estarem Se não nos deixarmos fechar na tentação dariedade, a harmonia nas relações sociais e http://en.wikipedia.org/wiki/sub-Saharan_Africa
LIAUZU, Claude – Race et Civilisation, l’Autre dans la
perante uma anarquia primitiva em vez de etnocêntrica e na definição simplista e o princípio da unanimidade, entre outros. culture occidentale. Anthologie historique, Syros/Alter-
uma ordem política. Esta opinião foi revista redutora do professor Huntington, que A África é muito mais de que uma discordan- natives, 1992.

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