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IAN HACKING

Ian Hacking, professor honorário do Collège de France, em dois textos com quatro anos de
diferença entre si, ambos partes de cursos desenvolvidos no Collège de France, nos coloca
frente a uma questão: a idéia de “verdade” no conhecimento científico. Embora se declare
um realista nos parece descrer da idéia de uma verdade inscrita numa ordem natural das
coisas. Em sua conferencia inaugural se pergunta sobre o que é obra de Deus ou da
natureza, e o que é obra do homem. Ou, em outras palavras, o quanto das coisas são
determinadas totalmente independente de nós, e o quanto é produto de nossa atividade. Ao
conhecimento científico cabe descobrir e captar uma natureza ou é um discurso que se
institui sobre as coisas e que acaba por constituí-las? Para tentar dar conta desta questão se
propõe a compreender quais os tipos de raciocínios científicos são utilizados pelas ciências
na constituição de seu objeto.
Um dos eixos de seu pensamento é a critica que faz acerca da concepção de que
haveria uma natureza a ser descoberta, classificada e explicada. Uma verdade totalmente
transcendente ao homem a espera de ser desvelada. Uma verdade assim seria uma verdade
dotada de uma autoridade quase metafísica, que dotaria, por transferência, a ciência desse
poder de verdade. Mas, ao mesmo tempo que portadora de um poder, configura-se como
uma ciência que se pretende desenraizada social e historicamente, algo que lhe dota de mais
poder ainda.
Mas, segundo Hacking, cada estilo de raciocínio científico, ao introduzir um novo
domínio de objetos ao mesmo tempo institui uma nova classe de objetos. Frente à
possibilidade de serem objetos realmente existentes na forma como são concebidos pelo
estilo de raciocínio científico, ele contrapõe a possibilidade de serem reais enquanto
criações do espírito humano, reais, também, na medida em que são operativas sobre o
mundo, sobre a sociedade e sobre as pessoas. Não são ficções, são criações do espírito
humano dotadas de realidade enquanto tais. Talvez seja desse modo que podemos
compreender seu realismo. Embora isso se aproxime do construcionismo social Hacking
não deixa de se colocar com certa reserva em relação a ele. Talvez porque não negue a
existência real de um mundo, mas diga que para conhecê-lo nos utilizamos de formas de
raciocínio científico e que, portanto, a verdade não teria uma correspondência direta com
esse mundo, mas sim com estilo de raciocínio que o concebe.
Nesse ponto nos acercamos um pouco de Canguillen quando nos fala em cérebro e
pensamento. Parece-nos que um dos pontos importantes tocados por Canguillen é o da
autonomia do pensamento humano em relação ás suas bases neurobiológicas. É essa
autonomia que paira sobre as inter-relações entre a neurobiologia e o social, autonomia essa
ressaltada por outro ângulo por Hacking, que proporcionaria um âmbito específico ao
humano, tirando-o do âmbito estrito de reducionismos deterministas.
Por outro lado, aqui podemos colocar o texto de Sandra Caponi, que no entremeio
entre Hacking e Canguillen nos mostra de modo claro, ao falar sobre o determinismo
biológico das condutas indesejadas, o que é que Hacking critica nesse estilo de
conhecimento científico, bem como nos evidencia o empobrecimento resultante da
anulação da autonomia do âmbito humano pelo reducionismo determinista abordado por
Canguillen.
Contudo, voltando a Hacking, seu pensamento tem outras implicações. Por
limitação de espaço nos ateremos mais sobre o que fala sobre as ciências humanas. Citando
Nietzsche onde este escreve que “o nome das coisas é infinitamente mais importante que as
coisas em si”, e que, em decorrência disso, as classificações são produtos históricos, sociais
e mentais que podem ser desconstruídas, modificáveis e reconstruídas. E que essa
construção, essa criação, é um processo gradativo, que começa pelo externo, por
superposições graduais de camadas que acabam por aparentar solidificar-se, dando a
impressão de uma essência. Mas expressando uma reserva em relação a Nietzsche, Hacking
coloca que esse processo de criação não é uma atividade livre do espírito humano, mas sim
algo que necessita de autoridade e que acaba por se fazer ao serviço e dentro de marcos
institucionais e de uma história social em ação. Dessa forma, os nomes, que tem então o
poder de nos mudar e de mudar a maneira como nos vemos, fazem parte de “um mundo de
práticas, de instituições, de autoridades, de conotações, de história, de analogias,
lembranças e fantasmas”.
Os nomes, as classificações, podem dessa forma e com esse poder que lhes subjaz
modificar as características dos indivíduos, as formas como se concebem e os modos como
se inserem no mundo. Isto é o que Hacking conceitua como “fazer pessoas”. E tais
modificações, por sua vez, vão implicar na necessidade de se revisar o que se disse dos
indivíduos e as próprias classificações. Tal é o que Hacking chama de “efeito circular das
classificações humanas”.Os objetos de tal processo são por ele chamados de “alvos
móveis”, pois sua “posição” é constantemente mutável em decorrência de sua constante
interação com o saber que os constitui.
Em seu segundo texto Hacking vai deter-se mais no processo de “fazer pessoas”,
nos dando alguns exemplos de quadros mutáveis que surgiram na área das supostas
perturbações mentais, como a personalidade múltipla, o autismo, o suicídio e outras
situações como os pobres e os gênios. Nos mostra como tais situações, supostamente tão
impregnadas de uma autoridade científica em sua definição, são situações altamente
mutáveis historicamente, e o quanto tais mutações implicaram em transformações e
mudanças naquelas pessoas por elas enquadradas classificatoriamente. Nas situações
médicas torna-se mais evidente que os sistemas de diagnóstico e tratamento das
perturbações mentais interage com as pessoas classificadas produzindo um comportamento
que vem a confirmar o diagnóstico. A conseqüência disto é o fato de a pessoa entrar em um
jogo de poder, de constituição de subjetividade - e aqui Hacking aproxima-se de Foucault
no que tange à questão de poder e da subjetividade – cuja base é um raciocinio científico
taxonômico essencialista, que lhe priva da possibilidade de uma autosignificação, ou de
significação de suas experiências. Ou seja, da possibilidade de vivência da individualidade
única de cada pessoa, algo talvez relacionado ao processo realmente criativo da existência.
Dessa forma, cremos, é possivel compreender-se sua crítica Às classificações vistas como
reflexos de estruturas naturais e sua aproximação como que denomina de nominalismo
dinâmico.
Nesse processo de “fazer pessoas”, identifica vários elementos, que denomina de
“motores de descobrimento. Os sete primeiros seriam “motores” de descobrimento
propriamente ditos, o oitavo de prática, o nono de administração, e o décimo de resistência
aos que detém o saber:
1- Contar
2- Quantificar
3- Criar as normas
4- Correlacionar
5- Medicalizar
6- Biologizar
7- Tornar genético
8- Normalizar
9- Burocratizar
10- Reivindiquemos nossa identidade.

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