Professional Documents
Culture Documents
Izabela Leal
RESUMO
A
procura do idioma poético não se dá sem uma certa dose de
violência em relação à língua materna. É preciso que o poeta, ao
buscar a sua dicção, desate os laços que modulam a sua fala, per-
mitindo que uma nova voz irrompa da massa compacta da língua. Nesse
sentido, o poeta é aquele que precisa se insurgir contra a língua mãe, ainda
que a voz que fala através dele continue a ser proveniente desta. A fala do
poeta é portadora de uma condição paradoxal na medida em que encena a
separação da língua materna ao mesmo tempo em que explicita a sua dívi-
da para com ela.
A relação entre a língua materna e a construção do idioma poético é
inseparável do processo de formação do poeta a partir do registro da me-
mória – e da ancestralidade – que toda poesia carrega em si. Na poética de
Herberto Helder, a língua materna encontra um eco na figura da própria
mãe, que, por um lado, é aquela que dá a vida e é portadora da memória,
e, por outro, é também aquela que é modificada pelo nascimento do fi-
128 Leal, Izabela. No reino das mães: notas sobre a poética de Herberto Helder
1
HELDER, Herberto. Poesia toda. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004. p. 48.
2
LOPES, Silvina Rodrigues. A inocência do devir. Lisboa: Vendaval, 2003. p. 3 1.
3
HELDER, 2004, p. 226.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 127-138, 2008 129
4
Ibidem, p. 228.
5
HELDER, p. 239.
130 Leal, Izabela. No reino das mães: notas sobre a poética de Herberto Helder
6
HELDER, Herberto (Org.). Edoi Lelia Doura – antologia das vozes comunicantes da
poesia moderna portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 1985. p. 7.
7
HELDER, 2004, p. 48.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 127-138, 2008 131
oferece o seu corpo para ser consumido, utilizado pelo filho. Mas esse ato
não significa o aniquilamento ou desaparecimento da mãe, muito ao con-
trário. As mães, como fênix renascidas, surgem das cinzas e são “as mais
altas coisas que os filhos criam”. De modo que se estamos associando o
filho à criação de um idioma poético novo, a mãe será não apenas a “fon-
te” desse idioma, como também, e necessariamente, aquilo que se produz
a partir dele. Pois não podemos dizer que, em última análise, o que a fala
poética faz é consagrar a língua mãe, ainda que isso ocorra através da sua
parcial destruição?
Num instigante ensaio intitulado “O amor cru: Herberto Helder e
Camões ou as duas mães”, Jorge Fernandes da Silveira aborda o tema do
matricídio na cultura portuguesa. Tomando como base algumas consi-
derações de Eduardo Lourenço e António José Saraiva, o autor empre-
enderá a leitura de versos de Camões e Herberto Helder a partir do
surgimento traumático da nação, representado por D.Tareja e Afonso
Henriques, isto é, pelo mito do filho que se volta contra a figura mater-
na. Se a imagem de Afonso Henriques é aqui convocada como o arauto
do matricídio, é em grande parte por ser ele quem melhor representa,
na história de Portugal e, segundo a epopéia camoniana, a memória des-
sa insurreição, revelada através da presença do “filho fero contra a mãe
adúltera”.8
No referido episódio histórico, o matricídio ocorre para que se dê a
fundação do reino, e o mesmo pode ser dito a respeito do nascimento do
poeta, isto é, de seu processo de formação. Nascer é separar-se da mãe. O
matricídio será, portanto, uma metáfora emblemática do trabalho do po-
eta, ainda que o crime poético apresente particularidades que apontem
para a relação entre amor e morte, ou, em outras palavras, que a realiza-
ção do trabalho de escrita constitua uma espécie de crime que envolve, ao
mesmo tempo, o matricídio e o incesto.
Rosemary Arrojos, num texto intitulado “A tradução e o flagrante
da transferência”, compara a tradução e a escrita ao processo de transfe-
rência em análise, mostrando que o traduzir e o escrever envolvem uma
relação afetiva com a língua materna, relação essa que se expressa através
8
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. O amor cru: Herberto Helder e Camões ou as duas
mães. In: ______. Verso com verso. Coimbra: Angelus Novus, 2004. p. 73-91.
132 Leal, Izabela. No reino das mães: notas sobre a poética de Herberto Helder
9
HELDER, op. cit., p. 47.
10
SILVEIRA, op.cit., p. 81.
11
ARROJOS, Rosemary. A tradução e o flagrante da transferência: algumas aventuras
textuais com Dom Quixote e Pierre Menard. In: ______. Tradução, desconstrução e psicanáli-
se. Rio de Janeiro, Imago, 1993. p. 151-175.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 127-138, 2008 133
12
HELDER, 2004, p. 48.
13
HELDER, 1985, p. 8.
134 Leal, Izabela. No reino das mães: notas sobre a poética de Herberto Helder
14
ARROJOS, 1993, p. 158.
15
Ibidem, p. 160.
16
EIRAS, Pedro. Esquecer Fausto – a fragmentação do sujeito em Fernando Pessoa, Raul
Brandão, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol. Porto: Campo das Letras, 2005.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 127-138, 2008 135
17
ARROJOS, 1993, p. 161.
18
HELDER, 2004, p, 55.
136 Leal, Izabela. No reino das mães: notas sobre a poética de Herberto Helder
19
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
20
HELDER, 2004, p. 56.
21
MORAES, Marcelo Jacques. Georges Bataille e as formações do abjeto. In: ______.
Outra travessia, n. 5, p. 107-120, Universidade Federal de Santa Catarina, 2° semestre de
2005.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 127-138, 2008 137
22
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
23
HELDER, 2004, p. 49.
138 Leal, Izabela. No reino das mães: notas sobre a poética de Herberto Helder
ABSTRACT
24
HELDER, 2004, p. 49.