You are on page 1of 8

Profª. Drª.

Telma Aparecida Mafra

11. EÇA DE QUEIRÓS: Um Painel

Profª. Drª. Telma Aparecida Mafra1

Resumo
O presente artigo apresenta breve biografia de Eça de Queirós,
contrapondo sua existência banal à sua extraordinária obra. Aborda
também a trajetória literária de Eça, evidenciando os principais aspectos
de sua construção narrativa. O artigo finaliza discutindo a recepção da
obra queirosiana, por parte da crítica e do público brasileiros.

Palavras-chaves:
Eça de Queirós; Realismo; crítica; sociedade; recepção.

Abstract 231
This article presents a brief biography of Eça de Queiroz, taking his
banal existence as a counterpoint to his extraordinary works. The text
approaches Eça’s literary pathway, pointing out the main aspects of its
narrative construction. The article ends by discussing the reception to
Queiroz’s works by Brazilian critics and public.

Keywords:
Eça de Queiroz; Realism; criticism; society; reception.

1
Professora de Literatura Portuguesa e Coordenadora do curso de Letras da UniABC. Doutora em Litera-
tura Portuguesa pela Universidade de São Paulo – USP.

Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas | Letras - Languages - Letras
Eça de Queirós: um painel

Resumen
Este artículo presenta una breve biografía de Eça de Queirós,
contraponiendo su existencia banal a su extraordinaria obra. También
aborda la trayectoria literaria de Eça, señalando los principales aspectos
de su construcción narrativa. El artículo finaliza discutiendo la recepción
de la obra queirosiana, por parte de la crítica y del público brasileño.

Palabras-llaves:
Eça de Queiros; Realismo; crítica; sociedad; recepción.

A impressão mais nítida que fica de Eça é a de um


homem no turbilhão. Vida particular quase sem
história; vida literária completa. ( Viana Moog)

Eça de Queirós, inegavelmente, é uma referência literária em todo o


mundo. É tido como o mais popular dentre os romancistas portugueses do
século 19 e tornou-se famoso por sua capacidade de observação e análise,
232
criando verdadeiros painéis da burguesia portuguesa de seu tempo.
Quanto à sua biografia, José Maria Eça de Queirós desde muito cedo
teve uma vida de afastamentos: quando nasceu, em 1845, seus pais não
eram oficialmente casados; dessa forma, saiu de sua terra natal – Póvoa
de Varzim – e foi levado à Vila do Conde, para viver na casa de uma ama.
Lá permaneceu por cinco anos. Seu pai tentava, dessa forma, ocultar o
nascimento do filho, temendo a censura oficial, a qual prejudicaria a
manutenção do cargo público de magistrado, que possuía.
Depois de cinco anos, foi transferido para a casa de seus avós paternos, o
que o privou do convívio com seus irmãos. Aos dez anos, foi matriculado no
colégio interno, onde permaneceu por vários anos. Ao sair, foi para Coimbra
iniciar cursos preparatórios para o ingresso na Faculdade de Direito.
Já na Universidade de Coimbra, em 1861, foi um aluno mediano,
apagado, sem destaque. Pertencia àquele grupo que Teófilo Braga intitularia

Letras - Languages - Letras | Humanas | Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818
Profª. Drª. Telma Aparecida Mafra

“a coelheira”, ou seja, os alunos que ficavam do meio para trás. Dessa


forma, afastavam-se dos debates e dos enfrentamentos aos professores,
pois não tinham saber para tanto. Na Universidade de Coimbra, a esse
tempo, não era Eça quem se destacava, mas sim Antero de Quental, Teófilo
Braga e tantos outros seus seguidores.
O próprio Eça, anos depois, escreveria uma primorosa página de letras,
descrevendo como encontrou Antero de Quental, que seria aquele que
lhe indicaria o rumo literário a seguir:

Em Coimbra, uma noite, noite macia de abril ou de


maio, atravessando lentamente, com as minhas se-
bentas mãos na algibeira, o Largo da Feira, avistei
sobre as escadarias da Sé Nova (...) um homem de
pé, que improvisava. (...) E sentados nos degraus da
igreja, outros homens embuçados, sombras imóveis
sobre cantarias claras, escutavam com atenção e en-
levo, como discípulos.
Parei, seduzido com a impressão que não era aquele
um repentista picaresco ou amavioso, como os va- 233
tes do antiquíssimo século XVIII, mas um bardo, um
bardo dos tempos novos, despertando almas, anun-
ciando verdades. Os mundos que rolam carregados
de humanidades, a luz suprema habitada pela idéia
pura. Deslumbrado, toquei o cotovelo de um cama-
rada, que murmurou por entre os lábios abertos de
gosto e pasmo: - É o Antero.
(...) Então, perante esse Céu, onde os escravos eram
mais gloriosamente acolhidos que os doutores, des-
tracei a capa, também me sentei num degrau, quase
aos pés de Antero que improvisava, a escutar num
enlevo, como um discípulo, e para sempre assim, me
conservei na vida.(QUEIRÓS, 1977)

Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas | Letras - Languages - Letras
Eça de Queirós: um painel

Com esta página, Eça demonstra sua humildade e modéstia, o que tam-
bém faz concluir que este não é um autor que se constitua em exemplar
alvo de bibliografia, visto que não há em sua vida grandes amores, gran-
des acontecimentos ou destaques óbvios. O que se percebe é uma figura
tímida e sensível, um aluno apagado que se mantém à margem da Ques-
tão Coimbrã, uma vida que nada tem de extraordinário; ao contrário, é
quase silenciosa. Mas, em contrapartida, Eça de Queirós foi considerado
por vários nomes da crítica como o maior romancista português de todos
os tempos. Ele representa a melhor síntese dos modos e modas de seu
tempo. Conseguiu conciliar exímia destreza na composição narrativa à de-
núncia da ordem social.
Eça de Queirós iniciou-se como escritor na vertente romântica. Era um
verdadeiro adorador de Victor Hugo, chegando a afirmar que aprendeu a
ler e a escrever com este autor. Resquícios de traços românticos podem ser
observados em toda sua trajetória literária.
Ao passar do Romantismo para a vertente realista, enveredou-se pela crítica
severa e crudente. Roubou da vida cotidiana de Lisboa tipos maravilhosos, que
vão tomando forma nas linhas que compõem seus romances.
Eça expôs a condição humana, sempre se apoiando em alguma idéia
234 ou esquema preexistentes. Buscava em outros autores o ponto de partida
para a sua ficção. Esse aspecto é assim definido por Carlos Heitor Cony,
escritor e acadêmico: “O poeta inventa, o romancista não tem obrigação
de criar do nada, o seu destino é captar, roubar da realidade, observá-la e,
na maioria das vezes, condená-la.”2
Tal afirmação é polêmica, mas inegável é que muitos autores assim
procederam, em todos os tempos da literatura. Dentre eles, o próprio
Shakespeare, cujos poemas e sonetos eram carregados de inventividade, e
cujas tragédias, comédias e dramas não eram originais em sua fábula: ou
eram divulgadas pelo relato oral ou já estavam publicadas em livros.
Igualmente, a obra de Eça de Queirós não dependeu da originalidade
de seus enredos, e sim da profundidade de suas observações, da facção
de suas narrativas.

2
CONY, Carlos Heitor in Conferências na Academia Brasileira de Letras, durante o Ciclo sobre o cente-
nário de Eça de Queirós.

Letras - Languages - Letras | Humanas | Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818
Profª. Drª. Telma Aparecida Mafra

Em carta a Teófilo Braga, Eça confessou que “possuía o processo como


ninguém, mas faltava-lhe a história”, e em outra correspondência a Ramalho
Ortigão, afirma algo muito similar: “que tinha o processo literário, mas
faltava-lhe a tese”.
A verdade é que um autor abastece-se de outro, sofre influências e toda
obra escrita torna-se resultado de uma série de leituras.
Como exemplo é possível citar a obra O Primo Basílio, publicada em
1878, que tem na sua trama central quase uma repetição, uma paráfrase
de Madame Bovary, de Gustave Flaubert. As semelhanças psicológicas das
personagens são muito evidentes: Jorge é uma versão mais jovem e menos
ridícula de Carlos Bovary; Luísa tem a mesma insatisfação existencial
de Emma Bovary, com a diferença da ingenuidade, que é acrescentada à
personagem queirosiana; e Basílio seria uma síntese de todos os amantes de
Emma, que têm por características a irresponsabilidade, a concupiscência
e a falta de caráter.
No entanto, essa influência que Eça capta de outros autores e obras,
nem por um momento tira-lhe os méritos. Eça criou verdadeiros
símbolos, figuras extraordinárias que ganharam vida em suas narrativas.
A comprovação a essa afirmação vem também na obra O Primo Basílio,
na figura de Juliana Couceiro Tavira, criada típica da burguesia lisboeta, e 235
que corresponde à primeira grande megera da literatura portuguesa, mas
que tem o indulto determinista cedido pela condição de miserabilidade
em que vive. Ou ainda, na personagem do Conselheiro Acácio, que surge
no momento em que o culto à casta a que representa deixara de existir.
Vale por todos os homens de gestos largos, de maneiras hieráticas, de
frases feitas e pensamentos desgastados; traz por emblemas a casaca, a
respeitabilidade e os lugares-comuns.
Viana Moog, grande estudioso da obra queirosiana, afirmou:
Se, em arte, os que verdadeiramente contam são os
que criam símbolos, a consagração de Eça está asse-
gurada. Como Fausto fez a glória de Goethe, Pichwi-
ch a de Dickens, Dom Quixote a de Cervantes, Acácio
acabava de fazer a glória do Primo Basílio. Enquanto
Acácio existir como símbolo, o nome de seu criador
não perecerá. (MOOG, 1977)

Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas | Letras - Languages - Letras
Eça de Queirós: um painel

Depois de O crime do Padre Amaro e O primo Basílio outras obras


surgiram, e Eça de Queirós foi refinando mais e mais seu estilo, consa-
grando-se definitivamente no panorama literário, não só de Portugal, mas
também do Brasil, onde tornou-se forte presença.
Cabe lembrar que, apesar de escritas na mesma língua, as obras
queirosianas eram distanciadas do brasileiro, devido à mudança do
contexto cultural. É perceptível também que a obra literária estrangeira
sofre um deslocamento e ganha diferentes interpretações linguísticas.
Mesmo assim, Eça sempre se manteve presente diante do público e da
crítica brasileiros, sempre houve uma certa fidelidade em relação a ele. O
que se escreveu sobre este autor, aqui no Brasil, enche bibliotecas, visto
que a análise de sua obra ocupou críticos literários brasileiros de diversas
correntes e gerações.
Eça teve tão ampla aceitação no Brasil, que se usava o termo “ecite”,
referindo-se à doença da intensidade de apreço por este autor. Os doentes
de “ecite” faziam verdadeiras romarias aos “locais de Eça”, ou seja, as
pessoas visitavam, em Portugal, os lugares visitados ou descritos por ele.
O “fenômeno Eça” também é observado pelos títulos de artigos de
jornais brasileiros da época realista: “O Brasil rendeu-se a Eça” ou ainda
236 “O nosso Eça”. O jornal A Semana, quando relacionou os seis melhores
romances de Língua Portuguesa, citou como os três primeiros: Os Maias,
O Primo Basílio e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Na época, os
autores mais lidos nas bibliotecas eram José de Alencar, Machado de Assis
e Eça de Queirós.
Como entender que Eça de Queirós, autor português, tenha sido
tão fluente e admirado no Brasil? Talvez uma resposta nos surja pelos
comentários do crítico Jorge de Sena:

(...) mas Eça era, de certo modo, uma resposta a essa


sede por Paris e pela civilização européia, que era
tão predominante na sociedade brasileira. E o seu
naturalismo, quando atacava a maneira de viver

Letras - Languages - Letras | Humanas | Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818
Profª. Drª. Telma Aparecida Mafra

portuguesa do seu tempo e quando retratava satiri-


camente, não podia senão lisonjear a tendência bra-
sileira de ver os portugueses como um povo atrasado
e ridículo.3

Além do fascínio pelo universo francês e da necessidade crítica em


relação ao nosso colonizador, é inegável que o Brasil se reconheceu na
obra queirosiana, a qual representou e exprimiu uma época, sem tornar-se
prisioneiro de seus limites.
Portugueses e brasileiros acabaram, assim, encantados pela escrita de
Eça, que soube convencer a todos que suas narrativas correspondiam a
um espelho social, no qual cada um poderia se reconhecer.

Referências bibliográficas

BERRINI, Beatriz. O mundo de Eça de Queirós. Fundação C. Gul-


benkian / Fundação Brasil-Portugal, RJ: s/d. 237
FARO, Arnaldo. Eça de Queirós e o Brasil. São Paulo: Ed. Nacional /
EDUSP, 1977.

LINS, Álvaro. História literária de Eça de Queirós. 2. ed. Porto Alegre,


Globo, 1945.

LYRA, Heitor. O Brasil na vida de Eça de Queirós. Lisboa, Ed. Livros


do Brasil, 1965.

MOOG, Viana. Eça de Queirós e o século XIX. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1977.

3
SENA, Jorge, apud Scamtimburgo, João de, in Conferências na Academia Brasileira de Letras, Ciclo
sobre o centenário de Eça de Queirós.

Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas | Letras - Languages - Letras
Eça de Queirós: um painel

QUEIRÓS, Eça. Obra Completa. [Org. Beatriz Berrini]. Rio de Janei-


ro: Nova Aguilar, 1977. 2 v.

REIS, Carlos. Estudos Queirosianos – ensaios sobre Eça de Queirós e


sua obra. Lisboa, Presença, 1977.

238

Letras - Languages - Letras | Humanas | Revista UniABC - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818

You might also like