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"Ah, se o nosso pai nos pudesse ver neste momento", diz Napoleão a seu irmão José.
Com esta frase recorda o caminho percorrido nos últimos dez anos por si e por sua
família: aquele conjunto de rostos morenos que, entre príncipes e embaixadores,
marechais e altos dignitários, o fita da nave central. Que o seguiu desde a pequena
Ajácio até esta catedral. Até à glória.
OS ANOS DA JUVENTUDE
1789, ano da Revolução Francesa. Distúrbios por todo o país. Também na Borgonha,
onde está colocado. Mas ali quem manda é o tenente Bonaparte. Repressão dura.
Ameaça disparar. Não hesitará nem um segundo em cumprir a ameaça - prefere a
injustiça à desordem. Detém os cabecilhas. Encerra-os num calabouço. Rebelião
sufocada. No entanto, esta não é a sua revolução. Francês "de segunda", soldado do rei
por ofício, o que lhe interessa é aproveitar a situação para libertar a Córsega. É
espectador da Revolução. Solicita contínuas licenças para "ir a casa". Entre Setembro de
1789 e Junho de 1793 está quase sempre na ilha e intervém nos pequenos conflitos
locais. O que provoca o seu afastamento do exército francês. Tem de mover influências
para ser reincorporado. Também consegue ser promovido a capitão. Em 10 de Agosto,
ao ver Luís XVI à janela com o barrete frígio na cabeça, grita: "Che coglione!". Se
pudesse, teria aberto fogo contra esta "vil canalha". Aos vinte e quatro anos perdeu a fé
nos ideais revolucionários defendidos pelos filósofos. De agora em diante irá chamar-
lhes, depreciativamente, ideólogos. Desprezará definitivamente as teorias. Só uma coisa
lhe interessa: a acção. A França mergulha na anarquia. Talvez a queda do rei favoreça a
independência da Córsega. O colégio onde estuda a sua irmã Elisa fecha as portas. Bom
pretexto para regressar levando a irmã para casa.
Mas ainda tarda o começo de uma grande carreira militar. Durante a Revolução muitos
generais de brigada são facilmente nomeados e destituídos. Ganhou o apreço de
Robespierre. Mas quanto tempo se aguentará este no poder? Participa na campanha de
Itália. O seu génio militar começa a dar nas vistas, mas chega o 9 de Termidor e o fim
do Terror. Robespierre é deposto. Napoleão é detido por ordem do seu amigo Salicetti.
Tempos de revolução, amizade frágil... Depois é libertado. Mas consideram-no suspeito.
Em 1795, as autoridades de Paris afastam-no da frente italiana e destinam-no ao
exército da Vendeia, infantaria. Recusa. "A artilharia é que é a minha arma". Tempos
difíceis. José envia-lhe algum dinheiro. Junot, seu ajudante de campo, reparte com ele
os escassos recursos. Quer casar-se com a bela Pauline Bonaparte mas Napoleão
convence-o a desistir: "Tu não tens nada, ela nada tem. Qual é o total? Nada."
É então que conhece Josefina de Beauharnais, uma crioula graciosa ("pior do que se
fosse bonita", dirá alguém), viúva de um general guilhotinado durante o Terror. Tem 32
anos, mais 6 do que Bonaparte. Casam em 9 de Março de 1796. Ambos falseiam as
idades para reduzir a diferença. Prenda de casamento: Barras oferece ao jovem general o
comando supremo do exército de Itália. É o que ambiciona há muito tempo. Chega a
Nice. O exército francês, menos numeroso que o inimigo austríaco e piemontês, está
faminto, mal municiado, descalço e esfarrapado. Os generais mais antigos mostram-se
insolentes para aquele rapazito insignificante, baixo, mal uniformizado, de cabelo
comprido, com acento corso. Mas Napoleão é quem manda, não haja dúvidas. Severo,
mantém-os à distância. Afável com os soldados, devolve-lhes a esperança, arenga à
moda antiga, própria de quem leu Plutarco e Tito Lívio: "Soldados, estais nus e mal
alimentados. Eu levar-vos-ei às planícies mais férteis do mundo. Ricas províncias e
grandes cidades cairão em vosso poder. Ali ireis encontrar honra, glória e riqueza."
O PRIMEIRO CÔNSUL
"Soldados, do alto destas pirâmides, quatro mil anos vos contemplam!", diz Napoleão às
suas tropas antes da batalha das Pirâmides. A campanha do Egipto é necessária para
enfraquecer a Inglaterra. Dificuldades na travessia de um Mediterrâneo dominado pela
armada inglesa, mas o desembarque é um êxito. Os mamelucos, milícia turco-egípcia,
são vencidos. Porém, a esquadra francesa em que as tropas fizeram a travessia é
destruída por Nelson na baía de Abukir. Ficar isolado no Egipto? Não se atemoriza:
"Quanto tempo passaremos no Egipto? Alguns meses ou seis anos... Só temos vinte e
nove; teremos então trinta e cinco. Se tudo correr bem, estes seis anos ser-me-ão
suficientes para chegar à Índia." Os Turcos avançam na Síria para o expulsar do Egipto?
Pois bem, irá ao seu encontro, sublevará os cristãos do Líbano, avançará sobre
Constantinopla e dali irá até Viena, conquistando a Europa pela rectaguarda; isto se não
se decidir a conquistar a Índia. Este é o sonho, mas a realidade é diferente: vence os
Turcos, mas é detido em São João de Acre. As muralhas são sólidas e Bonaparte não
dispõe de artilharia suficiente. Furioso, manda queimar as colheitas e matar todos os
prisioneiros que não pode transportar: "Um homem de Estado não tem o direito de ser
sentimental". Marido ciumento, a infidelidade de Josefina já foi tornada pública. Os
Ingleses apoderaram-se de algumas cartas ridículas e publicaram-nas na imprensa.
Numa delas, pede a José que lhe encontre um lugar no campo onde se possa isolar, pois
está farto da natureza humana: "Preciso de solidão e de isolamento, a grandeza
aborrece-me, os meus sentimentos estão secos, a minha glória fenece; aos vinte e nove
anos esgotei tudo".
A situação em França degrada-se de dia para dia. No Outono de 1799 deixa as tropas no
Egipto e enfrenta as dificuldades da travessia de um Mediterrâneo dominado pelos
Ingleses. Quando desembarca depara-se-lhe um país diferente do que deixara. A maioria
da população hostiliza o Directório. Taine diz: "a jovem República sofre de
degenerescência senil. Ninguém faz qualquer esforço para a derrubar, mas parece já não
ter forças para se manter de pé." O trio de sacerdotes (Sieyès, Fouché e Talleyrand) que
constitui a trave mestra do Directório, pensa ser necessário um golpe de Estado. Para o
êxito precisam de Bonaparte, de "alguém capaz de violar a lei, mas respeitando-a". E o
18 de Brumário (9 de Novembro de 1799), demite os membros do Directório,
substituindo-os por três cônsules: Bonaparte, Sieyès e Roger Ducos. Em breve irá
assumir todo o protagonismo. Os outros dois passarão para segundo plano. Fevereiro de
1800, plebiscito. De três milhões de eleitores apenas mil e quinhentos votam "não".
Aberto o caminho para o poder ditatorial. Um homem eleito por um período de dez anos
governa, nomeia e demite ministros, magistrados e funcionários. É como que uma
"monarquia pessoal". Para as massas, a constituição tem um nome: Bonaparte. Muitas
das actuais instituições da França vêm deste período - o Instituto de França, a divisão
administrativa, o Conselho de Estado, etc. Uma concordata assinada com a Santa Sé,
põe fim ao diferendo entre a França e a Igreja. Napoleão pensa que "a religião tem uma
grande utilidade para os governantes, pois ajuda-os a manobrar as pessoas".
Napoleão acreditou que, ao fazer-se coroar na Notre-Dame pelo papa, seria admitido no
círculo dos soberanos legítimos. Poderia assim abrandar a crispação internacional.
Ilusão! A aristocracia europeia está decidida a fustigar a arrogância do "soldado de
fortuna". Uma nova coalizão, encabeçada pelos Ingleses, confronta-se de novo com a
França. Napoleão projecta a invasão da Grã-Bretanha, mas vê-se obrigado a pôr de parte
o seu intento, após a destruição da esquadra franco-espanhola pelo almirante Nelson em
Trafalgar. Dirige em seguida os seus exércitos para o centro da Europa e aniquila as
tropas austro-russas na maior vitória da sua carreira militar: a batalha de Austerlitz, em
1805. No dia seguinte ao da batalha, o próprio imperador austríaco lhe solicita um
armistício. Em 1806, a Prússia é vencida em Iena. "Querida", escreve ele a Josefina,
"utilizei uma excelente estratégia contra os Prussianos. Ontem obtive uma grande
vitória. Estive muito próximo do rei da Prússia; por pouco não o consegui aprisionar, a
ele e à rainha... Sinto-me maravilhosamente bem." Em 1807, o czar da Rússia negoceia
a paz no acordo de Tilsit. Estas vitórias permitem a formação de um vasto império, com
estados governados por parentes, amigos e aliados do imperador. Napoleão nomeia-se
rei de Itália (Norte da península), ocupa os Estados Pontifícios, cede a Holanda ao seu
irmão Luís, Nápoles a José (mais tarde entregue a Murat, casado com uma irmã de
Bonaparte) e a Vestefália a Jerónimo, a quem obriga a anular o casamento com uma
americana para poder desposar a princesa Catarina de Württemberg; Eugène de
Beauharnais, filho de Josefina, torna-se genro do rei da Baviera. É um delírio de
snobismo monárquico que, ainda hoje, muitos historiadores têm dificuldade em
compreender num homem inteligente como Napoleão. Com dezasseis estados alemães
constitui a Confederação do Reno e, com algumas províncias polacas, cria o grão-
ducado de Varsóvia, ambos dependentes da França. A arquitectura das fronteiras
políticas modifica-se ao sabor da sua criatividade. Quando, mais tarde, em Santa
Helena, lhe perguntam qual foi o período mais feliz da sua vida, responde: "Talvez o de
Tilsit... Sentia-me vitorioso, ditando leis, rodeado de uma corte de reis e de
imperadores." Mas o glorioso edifício do Império começava a abrir fendas.
O CREPÚSCULO DO IMPÉRIO
OS ÚLTIMOS ANOS
Em 5 de Maio de 1821, com uma violenta tempestade assolando a ilha, Napoleão morre,
segundo a opinião do médico que o assistiu, não de um cancro no estômago, como seu
pai, mas de uma úlcera provocada por uma má dieta e, sobretudo, pela ansiedade. Um
antigo companheiro de armas envolve-o no capote que usou na Batalha de Marengo.