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CULTURA POPULAR E

SENSIBILIDADE ROMÂNTICA:
as danças dramáticas
de Mário de Andrade

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Why have I sought my path with fervent jetividade.1 Conforme a leitura se estende, começa-
care, if not to hope to bring my brothers there? mos inadvertidamente a tratá-lo com a familiarida-
GOETHE, Fausto. de de um conviva diário: Mário. Ao mesmo tempo,
sua presença ideológica difusa e muito ativa marca
o cenário de debates contemporâneos. Diversos te-
Preâmbulo: Por que Mário de Andrade mas, como é, muito especialmente, o caso do
viu no Bumba não só “a mais exemplar” Bumba-meu-boi, emergem como que impregnados
como também “a mais estranha” das de Mário de Andrade.2
danças dramáticas? Sua presença insinuou-se com força cada vez
maior ao longo de minha pesquisa sobre o Boi-
Mário de Andrade encharcou de folclore a Bumbá de Parintins (AM) que, iniciada em 1996, foi
cultura brasileira e emerge hoje como uma incon- alargando horizontes, incluindo reflexões não só
tornável esfinge no percurso dos estudos das artes sobre a brincadeira do boi no Brasil, como também
e das culturas populares. Seu estilo direto, permea- sobre a própria leitura e utilização antropológica
do de arroubos expressivos, quase confessionais, contemporânea dos estudos de folclore.3 Surpreen-
dá-nos a imediata e perturbadora ilusão de com- deu-me, sobretudo, a forma ambivalente pela qual
partilharmos com ele uma dimensão íntima de sub- a forte influência de Mário de Andrade se impôs.
Em seu texto “As danças dramáticas do Brasil”
Artigo recebido em novembro/2002 (1982), escrito entre 1934 e 1944, Mário de Andrade
Aprovado em setembro/2003 tratou de conceituar essas danças, destacando o

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bumba-meu-boi como “a mais exemplar” e, tam- O assunto clamou por aprofundamento. Não
bém, como “a mais complexa, estranha, original de haveria alguma relação mais interna entre o de-
todas as nossas danças dramáticas”. Entretanto, na creto de morte e a própria conceituação das dan-
conclusão de seu périplo de estudos, nosso autor ças dramáticas? Afinal, seria possível, ao mesmo
vaticinou, em feroz desalento, um triste destino para tempo, recusar o vaticínio e manter aspectos da
as danças que tanto o fascinaram: “Da maneira formulação conceitual? Como dar conta de minha
como as coisas vão indo, a sentença é de morte”. própria ambivalência em relação ao autor? Como
A vitalidade contemporânea da brincadeira entender a idéia da “exemplaridade” cultural e na-
do boi e de diversos folguedos populares contra- cionalizante do Bumba-meu-boi assumida tão
diz, por si só e para nossa felicidade, esse orácu- acriticamente por tantos pesquisadores do assun-
lo. Assim é que, considerada sob seu ângulo mais to? Este texto é o resultado dessa busca.
concreto, como taxativa afirmação sobre o devir
da cultura popular, a douta sentença se esvanece.
Está certo que, sob o ângulo ideológico, a própria Mário de Andrade e os estudos
vitalidade atual dos folguedos populares poderia de folclore
falar justamente do sucesso póstumo do combate
de Mário de Andrade em prol da originalidade cul- O interesse expressivo e etnográfico de Má-
tural do país. Entretanto, quando considerado sob
rio de Andrade pelo folclore, bem como sua bus-
essa perspectiva, o decreto de morte parece trazer
ca, via folclore, do acesso a uma arte e cultura
consigo fortes conotações subjetivas, acentuando
que, sendo “modernas”, seriam também, a um só
a nostalgia romântica, tão característica no trato
tempo, “nacionais” e “universais” estão bem esta-
das coisas populares, com a amargura e as decep-
belecidos na bibliografia sobre o autor (Lopez,
ções do autor com os rumos da política cultural de
1972; Mello e Souza, 1979; Moraes, 1978, 1992;
então. Ainda assim, ao longo de seu estudo das
Travassos, 1997).
danças dramáticas, inquietações intelectuais insti-
Já em 1946, Florestan Fernandes assinalava a
gantes, percepções conceituais sensíveis e argutas
importância da abordagem do folclórico na obra
mantêm o calor de brasas vivas. Sob esse ângulo
de Mário de Andrade:
mais analítico, Mário de Andrade insiste em ressur-
gir das cinzas de sua assertiva fatal.4
É preciso não esquecer que o folclore domina – e
Em um primeiro texto sobre o Bumbá de Pa-
até certo ponto marca profundamente – sua ativi-
rintins (Cavalcanti, 2000), sugerindo uma perspecti- dade polimórfica de poeta, contista, romancista,
va estrutural, associei as transformações e as expan- crítico e ensaísta; e constitui também o seu campo
sões do festival nas últimas décadas, responsáveis predileto de pesquisas e estudos especializados.
por sua singularidade amazônica, a uma matriz de Por isso, quando se pretende analisar a sua contri-
sentido articulada em torno do tema da morte e res- buição ao folclore brasileiro, deve-se distinguir o
surreição do boi.5 Em que pese a distância teórica que fez como literato do que realizou, digamos à
existente entre a noção de mito evolucionista com sua revelia, como folclorista (1989, p. 150).
que Mário de Andrade operava e a noção antropo-
lógica contemporânea,6 na idéia de uma “matriz de Em suas análises sobre o Modernismo, Mo-
sentido” ressoa a concepção andradiana de um “nú- raes considerou Mário de Andrade o representan-
cleo” de sentido “mítico” a ordenar, por vezes, o te de uma “via de pesquisa, no sentido quase uni-
agregado compósito das danças dramáticas. Além versitário da palavra” (1978, p. 93), demonstrando,
disso, a definição formal de Mário de Andrade para com particular clareza, o lugar estratégico ocupa-
essas danças – uma seqüência dançada de cenas do pela categoria “folclore” na proposta de nacio-
dramáticas, livremente articuladas a partir de um nalismo cultural do autor.
conjunto de personagens alusivos ao motivo central Ora, a associação do folclore a uma “via de
– permanece sucinta e eficaz para o entendimento pesquisa” indica a apreensão, por parte de Mário
do arcabouço formal dos espetáculos do Bumbá. de Andrade, de uma originalidade e autonomia
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nos fatos populares que não permitem sua simples teresse pelo “folclore” traz consigo sempre um quê
redução à pura (ainda que sempre sofisticada) ins- de desejo de libertação social, do prazer de transpor
trumentalização, seja ela ideológica ou artística. os limites de uma sociabilidade de classe, e de expe-
Tratava-se, entretanto, de um folclorista à revelia, rimentar com isso o universal, uma humanidade em
num sem-querer querendo, ardentemente. Os sen- comum vivida junto com a gente do povo.10 Assim,
timentos de Mário de Andrade com relação à pes- não é apenas por buscar e produzir conhecimento
quisa folclórica que indubitavelmente praticou sobre o povo, mas também por comover-se com
eram, sem dúvida, contraditórios. esse tipo de contato humano que Mário de Andrade
Em sua viagem ao nordeste, quando chegou pode ser considerado um folclorista.
a Natal (RN), em 15 de dezembro de 1928, sem Esse encantamento, baseado na empatia, na
conseguir “dormir de felicidade” e anotando cor- capacidade de transpor-se para o lugar do outro e
reções importantes a serem feitas em seu Ensaio perceber, desse modo ficcional, o mundo sob novo
sobre música brasileira (1972 [1928]), Mário de ângulo, está presente em toda a tradição etnográfi-
Andrade defende-se do ímpeto estudioso confes- ca decisiva para a constituição da perspectiva antro-
so. Ironiza a aspiração dos estudos de folclore ao pológica (Stocking, 1989; Zengotita, 1989; Duarte,
estatuto de ciência, e reconhece-se sobretudo um 2003). Quando o assunto é folclore, o envolvimen-
“coletor” a “fornecer documentação pra músico” to de Mário de Andrade na tradição filosófica ro-
(1976, pp. 231-232). Entretanto, como corrobora mântica é evidente. O folclore é, na arquitetura de
Travassos (2002), em meio a seus muitos propó- sua obra, um canal privilegiado de religação com
sitos, com suas reflexões, pesquisas e coletas, Má- um mundo que aspira à totalidade.11
rio de Andrade colaborou decisivamente para o Aspiração sempre acompanhada de doloro-
desenvolvimento dos estudos de folclore no país.7 sa e irremediável nostalgia: a totalidade almejada
Sua pesquisa folclórica está certamente per- está perdida, ou a ponto de perder-se inexoravel-
meada de juízos de valor, pois Mário de Andrade mente, no mundo moderno.12 Os estudos de fol-
projetou sobre o folclore interesses instrumentais e clore são certamente, como já sugeriu Gonçalves,
fortemente ideológicos. Porém, as descobertas do um dos lugares privilegiados de construção e de
Brasil,8 que tanto o comoveram ou chatearam, alar- manifestação da “retórica da perda”. Retórica que,
dearam em alto e bom som assuntos que alargaram como assinalou o autor, repousa sobre forte ten-
horizontes de conhecimento e de sociabilidade: ca- são: expulsa-se da totalidade construída imagina-
topês, cateretês, cabocolinhos, Chico Antônio, Nau riamente – o “folclore brasileiro”, por exemplo –
Catarineta... Tanta gente, tanta festa, tanto artista qualquer princípio de conflito, incoerência ou
sem saber de ser: “Êh coisas de minha terra, passa- fragmentação. Isso posto, toda inconsistência ou
dos e formas de agora/Êh ritmos de síncopa e chei- problema surge nos quadros do pensamento sob
ros lentos de sertão/Varando contracorrente o mato a falsa aparência de um ataque externo (Gonçal-
impenetrável do meu ser...”.9 ves, 1997, p. 24).
No solo híbrido de suas pesquisas, insinuam-se Abordando a dimensão etnográfica e artísti-
também vozes próprias e distintas da sua – vozes “do ca na obra de Mário de Andrade, Travassos obser-
povo” – captadas pelo ângulo mais universalista e vou também a presença de tensão de outra natu-
humanista de sua aproximação. Por tudo isso, Mário reza, cunhada como “paradoxo do primitivismo”.
de Andrade ergue-se como um dos expoentes de Essa noção sintetizaria a atitude intelectual, carac-
uma área de estudos que se define não apenas pelo terística de certos movimentos artísticos do sécu-
interesse intelectual pelos fatos estudados, mas tam- lo XX que equacionaram a relação entre o “eu ci-
bém, muito especialmente, por uma peculiar atitude vilizado” e o “outro primitivo” por meio de um
existencial. De seus primórdios até nossos dias, os jogo de ausência e presença de qualidades cultu-
estudos de folclore trazem embutida a notável capa- rais. Segundo a autora, Mário de Andrade estaria
cidade de provocar entusiasmo, e mesmo encanta- “entre os melhores representantes do paradoxo,
mento. Mesmo quando fortemente acadêmico, o in- para os brasileiros” (1997, p. 7).13
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De fato, Mário de Andrade propôs e experi- de da obra. O célebre alexandrino “eu sou trezen-
mentou o encontro com a cultura popular de modo tos, sou trezentos e cinqüenta”, nos lembra esse
fortemente ambivalente. Numa variação do evolu- autor, não exclui ou contradiz seu complemento
cionismo, a cultura popular apresenta-se em sua menos conhecido – “Mas um dia afinal eu toparei
obra como valorização do primitivo, num confron- comigo” (1988, p. 12). Vale a pena lembrar, com
to entre identidade e alteridade por meio de gru- Anatol Rosenfeld (1973), os belos versos que se-
pos humanos distintos. Acrescenta-se ainda, bem guem, concluindo a última estrofe desse poema:
ao gosto romântico, a idéia de que a força nutriz “Tenhamos paciência, andorinhas curtas/Só o es-
da originalidade cultural brasileira está nas criações quecimento é que condensa/E então minha alma
artísticas populares (Cavalcanti et al., 1992). O fol- servirá de abrigo”.14
clore é considerado, então, uma espécie de muira- Ora, a etimologia da palavra poligrafia indi-
quitã nacional, o amuleto da boa sorte sempre ca sentidos recobertos. É não só a “obra de assun-
ameaçado pelo risco da perda. Pois, se é verdade tos diversos”, e a “qualidade de escrever de diver-
que as qualidades perdidas e procuradas pelo “eu- sas maneiras”, ou ainda “cifradamente”, como
artista-civilizado” se encontram no “outro-povo-pri- também a “arte de decifrar esse tipo de escrita”
mitivo”, esse encontro tão almejado, ao se realizar, (Houaiss, 2001). Todos poligrafamos quando pes-
produz sobretudo um terrível aguçamento do sen- quisamos Mário de Andrade. Sua obra apresenta-
timento de perda. As qualidades observadas no se como um vasto sistema fragmentário, em que
povo vêem-se imediatamente mais ameaçadas do nos enredamos na busca de laços e nexos de sen-
que nunca por tudo o que representa aquele mes- tido, atendendo certamente a apelos do autor.15
mo que as reencontra e valoriza, desejoso de trans- Ora, entre os muitos níveis pelos quais o
pô-las para si. A construção do terceiro termo re- pensamento de Mário de Andrade se desloca, há
sultante desse encontro, uma nova arte brasileira elementos decisivos e recorrentes a estabelecerem
como queria Mário de Andrade, traz consigo o interconexões de sentido: o “bumba-meu-boi” é
mal-estar de uma fissura que não se aquieta nem nitidamente um deles. Moraes (1978, 1992) anali-
com as mais ardentes descobertas da sensibilidade sou o encadeamento de significados propiciado
e do talento expressivo da gente do povo. A liga- pela categoria folclore na complexa arquitetura do
dura é incapaz de ser retida e parece sempre no- nacionalismo cultural andradiano. Lopez (1972,
vamente prestes a se romper: “da maneira como as 2002) chamou atenção para a posição especial
coisas vão indo a sentença é de morte!”. ocupada pelo bumba-meu-boi nesse contexto e
examinou a presença do boi como símbolo na
poesia de Mário de Andrade. Mello e Souza
Mário de Andrade e o Bumba-meu-boi (1979), por sua vez, defendeu exemplarmente o
papel de modelo de composição e criação artísti-
Em ensaio magistral sobre o romance Macu- cas ocupado pelo bumba-meu-boi na própria cria-
naíma, Mello e Souza falou de sua tentativa de ção literária do modernismo andradiano.16
analisar “o grande dilaceramento que se projeta José Guilherme Merquior, resenhando o li-
em todos os níveis da narrativa” (1979, p. 56); do vro de Mello e Souza – “grande pequeno estudo”
“conhecimento da fissura profunda que fere todos (1981, p. 267) – acentuou o pessimismo da leitu-
os setores da reflexão de Mário de Andrade [...]” ra proposta baseado na iluminação da articulação
(Idem, p. 60); e do debate sobre a identidade bra- dos dois eixos sintagmáticos condutores da narra-
sileira que “nunca mais abandonará a reflexão tiva de Macunaíma: não se trata só do herói que
atormentada do escritor” (Idem, p. 63). Segundo a perde e recobra seu amuleto mágico, mas tam-
autora, embora fraturado entre tensões e contra- bém, e sobretudo, do anti-herói que termina, fi-
dições, o pensamento de Mário de Andrade tem nalmente, perdendo seu amuleto por conta de
caráter unitário. Também Sandroni, ao comentar a uma escolha funesta. “Em última análise, a rapsó-
poligrafia de Mário de Andrade, enfatiza a unida- dia andradiana é um romance arturiano que levou
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uma tremenda injeção de ambivalência”, nos diz As danças dramáticas do Brasil


Merquior (Idem, p. 265).
A resenha ilumina, entretanto, outro aspecto Quem dirá que não vivo satisfeito! Eu danço! [...]
fundamental da interpretação de Mello e Souza Dança do berço: Sim e Não
que vale ressaltar: a importância da forma estética Dança do berço: Não e Sim19
na solução da busca nacionalista de nosso autor.17
Haveria aqui, um “otimismo da forma”: o modelo
compositivo do romance é o da música popular, Os textos e algum contexto
que é também o das formas européias da suíte e
da variação. A positividade nacionalista do projeto Os estudos de Mário de Andrade sobre o
de Mário de Andrade – “nacionalismo de modula- folclore brasileiro situam-se num entrecruzamen-
ção”, de qualidade estética “excepcionalmente in- to de diferentes motivações. Neles se entrelaçam
clusiva” (Idem, p. 266) – repousaria, então, na so- seu desejo de conhecimento de formas artísticas
lução formal da expressão, e não na leitura ufanista e expressivas próprias (ou seja, “populares”, di-
do conteúdo do romance, de um pessimismo pró- versas daquelas praticadas e vividas pela elite ar-
ximo ao trágico como demonstrou Mello e Souza. tística brasileira ou paulistana da época); a expe-
Em Macunaíma, nos diz Merquior, na composição rimentação amadorística da idéia de etnografia
do personagem como anti-herói, “malazarte amo-
como experiência de contato direto com a gente
ral sem grei nem lei”, como na ópera, o melos de-
do povo; a busca de processos criativos popula-
glutiria o ethos, revelando uma sociedade inverte-
res para utilização expressiva na composição de
brada “não uma sociedade sem classes, mas uma
sua própria arte; e, finalmente, a utilização ideo-
sociedade ainda sem dinâmica de classes, que co-
lógica da idéia de folclore na busca de um novo
meçava a viver a modernização ‘sofrendo-a’ em
nacionalismo cultural. Seus escritos sobre o as-
vez de assumi-la”(Idem, p. 268).18
sunto sobrepõem essas distintas camadas de inte-
Volto ao nosso ponto, lembrando que o mo-
resse, imbricadas umas na outras sempre de
delo da composição narrativa de Macunaíma não
modo especialmente tenso.
é simplesmente uma melodia mas, mais exata-
A publicação póstuma dos três tomos das
mente, um bailado popular: a “dança dramática”
“Danças dramáticas do Brasil” (doravante DDB)
do bumba-meu-boi. Mello e Souza sugeriu a exis-
tência de afinidades estruturais entre o romance foi cuidadosamente organizada por Oneida Alva-
Macunaíma e “o bailado popular que melhor re- renga (1982). O farto material coletado, acrescido
presentava a nacionalidade” e demonstrou com de muitas notas e comentários, é precedido pelo
maestria o anti-heroísmo de Macunaíma. Se assim ensaio do mesmo nome (doravante DD) que cons-
o é, vale a pena problematizar também o ufanis- titui aqui a referência de nossas indagações. Pela
mo residual que permanece implícito nessa visão amplitude do impulso sistematizador e conceitual,
do folguedo do boi. Afinal, Mário de Andrade viu esse texto ocupa lugar importante na caracteriza-
o bumba não só como a mais “exemplar”, mas ção de Mário de Andrade como um estudioso do
também a mais “estranha” das danças. folclore brasileiro. O corpo do texto, datado de
Com esse propósito, examino as formulações 1934, sofreu revisões e significativos acréscimos
conceituais contidas em “As danças dramáticas do até a publicação, em 1944, no VI Boletim Latino-
Brasil”. A apreensão da complexidade de valores, Americano de Música, sendo essa a versão publi-
dos impasses conceituais e da riqueza de percep- cada na coletânea sobre o tema. Alvarenga (1982,
ções embutida na noção de danças dramáticas tal- p. 21) assinala o fato de ser esse o único trabalho
vez possa contribuir para relativizar aspectos im- do autor sobre os bailados populares a apresentar
portantes da compreensão contemporânea do uma “forma positivamente definitiva”. O texto
bumba-meu-boi. Talvez possa contribuir também acompanhou, portanto, a vida do autor por um
para a integração desse aspecto da reflexão de Má- período de dez anos. O longo período de elabo-
rio de Andrade às análises do conjunto de sua obra. ração e o fato de tê-lo publicado em vida o tor-
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nam especialmente revelador da trajetória de estu- mas e intensas” teriam obrigado nosso autor a
dos do autor. preservá-las. “Paciência...” – nos diz ele – acres-
Em sua origem, como indica Telê Porto Lo- cendo reticências irônicas a seu legado. Conhece-
pez (1972), a primeira versão das DD, escrita em mos assim sua primeira viagem por meio de um
1934, corresponderia à expressão do amadureci- elaboradíssimo diário, cheio de desabafos e de ti-
mento do interesse pelo “folclore em si”. A reda- radas literárias lapidadas por uma sensibilidade
ção de Macunaíma (primeiro esboço em brincalhona e irônica, mesmo quando triste. Má-
1926/1927 e publicação em meados de 1928), na rio de Andrade quer falar de si, estabelecendo
esteira dos poemas do Clã do Jaboti (1926), é vis- uma subjetividade que sofre e sente. Expressá-la
ta pela autora como o início de uma fase em que é um prazer estético quase masoquista:
o desejo do estudioso foi ganhando forma mais
definida.20 Esse mesmo desejo teria movido as Não fui feito pra viajar, bolas! Estou sorrindo, mas
viagens ao Norte e ao Nordeste que, realizadas por dentro de mim vai um arrependimento as-
sombrado, cor de incesto. Entro na cabina, agora
entre 1927 e 1929, foram postumamente publica-
é tarde, já parti, nem posso me arrepender. Um
das em “O turista aprendiz” (Andrade, 1976). O vazio compacto dentro de mim. Sento em mim”
início da redação das DD imbricar-se-ia, assim, (Idem, p. 51).
com o impulso criativo que, iniciado em 1926, de-
saguaria também no aproveitamento literário da Lopez qualifica esse primeiro relato como
experiência das viagens. “discurso propriamente literário, artisticamente
Vale a pena examinar de mais perto a relação trabalhado”(Idem, p. 39).
existente entre o material que compõe essas duas A pesquisadora observa, entretanto, já nesse
obras póstumas – “As danças dramáticas do Brasil” primeiro diário a presença do interesse pelas
e “O turista aprendiz”. Este último livro, organiza- “danças dramáticas”. Há o caso nítido da ciranda
do por Telê Porto Ancona Lopez, reúne sob o mes- com o episódio da morte e ressurreição do Ca-
mo título dois projetos distintos embora interliga- rão,21 encontrada por feliz acaso e apressadamen-
dos de Mário de Andrade. Como assinala a te registrada em 12 de junho (Idem, p. 97) no Alto
pesquisadora (Andrade, 1976, p. 89), o primeiro Solimões, igarapé a dentro, num lugarejo chama-
projeto foi batizado com esse nome pelo próprio do Caiçara. No retorno de Mário de Andrade a São
autor. Em seu “mais advertência que prefácio” Paulo, essa mesma ciranda seria objeto da primei-
(Idem, p. 49), o autor nos esclarece que esses tex- ra crônica (8/12/1927) do novo crítico do Diário
tos, escritos em cadernos e papéis soltos durante a Nacional.22 Essa crônica revela, de modo muito
viagem ao Norte do país, realizada entre 7 de maio característico, o entrelaçamento do gosto do autor
e 15 de agosto de 1927, foram reunidos em 1943, pela descrição etnográfica com a busca estética
visando à publicação. A pesquisadora, por sua vez, interessada cheia de juízos valorativos e permite
nos lembra que a época de decorrência não é, nes- algumas valiosas observações. Antes de mais
se caso, a mesma da redação, pois o escritor já ma- nada, a expressão “dança dramática” está ausen-
duro teria reescrito, em 1942, a experiência de te. A ciranda é aqui apenas uma “festa popular”,
1927 (Idem, p. 39). Apesar do “cheiro de modernis- um “reisado” sem muita vitalidade dramática, cujo
mo envelhecido” que o conjunto lhe trazia, Mário enredo era “vago e sem continuidade” (Idem, pp.
de Andrade almejava publicar essas memórias de 335-336), ou, mais ainda, “uma barafunda”, não
um antiviajante “viajando sempre machucado, alar- possuindo o “nexo e a legitimidade dramática do
mado, incompleto, sempre inventando malquisto Boi-Bumbá”. A observação revela, com todas as
do ambiente estranho que percorre”. letras, a preferência de Mário de Andrade pelo
Porém, se viajar lhe trazia um forte senti- folguedo do Boi como já plenamente estabeleci-
mento de desajuste e inadaptação, era também da em 1927.
experiência de contato e mesmo de revelações. Assim é que, apesar de enxergar no episódio
Ao reler suas antigas notas, “sensações tão próxi- da morte e ressurreição do Carão, a parte mais
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viva da festa, Mário de Andrade achou tudo mui- tão já claramente definidos desde a primeira ver-
to sem graça: são do texto. Essa versão, datada de 1934, com-
põe-se de 27 páginas e termina no trecho corres-
Afinal essa trapalhada dramática não passa duma pondente ao da penúltima página da versão
brincadeira de crianças a que gente adulta mais publicada, com a palavra “Rio Grande do Norte”
primitiva deu uma função interessada mais carac- (Andrade, 1982, p. 69). Segue-se a esse final dati-
terística e perceptível, macaqueando o amor, a re-
lografado a seguinte anotação feita a lápis pelo
ligião, a caça e os animais tabus. Nem a dança
vale nada, monótona, sem originalidade, primiti- autor: “decadência atual das danças dramáticas”.
va, muito parecida com as danças indígenas que O tema da decadência seria desenvolvido então
Martius e Léry descreveram. O que vale mesmo é na “segunda versão” do texto, datada do mesmo
a música (Idem, p. 336 ).23 ano. Com acréscimos que pouco alteraram seu
conteúdo, esse trecho corresponde ao longo e úl-
A série de 1928-1929 responde a uma outra timo parágrafo da versão publicada (1944). A ter-
concepção de viagem, visivelmente comprometi- ceira versão, datada ainda de 1934, corresponde à
da com um relato mais objetivo de fatos. Como datilografia das revisões empreendidas pelo autor
nos diz Lopez (Idem, p. 41): “trata-se do diário na versão anterior. O processo de confecção do
com o imediato endereço jornalístico”. Mário de texto interrompe-se e, aparentemente, será reto-
Andrade viajava, então, como correspondente do mado apenas dez anos mais tarde, em 1944, com
Diário Nacional, tendo planejado coletas e estu- a revisão dessa terceira versão e, finalmente, com a
dos em estreito contato com Camara Cascudo.24 O redação e a revisão da quarta versão que corres-
texto é uma coletânea das setenta crônicas que, ponde ao texto publicado.
escritas durante a sua permanência no Nordeste, A idéia da degradação das danças está, portan-
entre 27 de novembro de 1928 e 5 de fevereiro de to, presente desde o momento inicial do texto, inte-
1929, foram publicadas no Diário Nacional, na grando a abordagem do assunto. Ela se torna, ape-
série “O turista aprendiz”, entre 14 de dezembro nas, mais desesperançada entre a versão finalizada
de 1928 e 29 de março de 1929. em 1934 (Andrade, 1934b) e aquelas de 1944.28 A se-
A relação entre esse segundo “diário” e as qüência de revisões opera basicamente por acrésci-
DD é especialmente orgânica. Grande parte da mos interpostos ao longo de um texto cujo eixo
documentação relativa a melodias, coreografias e central está definido desde o começo. Esse procedi-
artes relatadas nessas crônicas compõe a coleta mento (acréscimos de notas, de bibliografia, e so-
publicada nos três tomos de “As Danças dramáti- bretudo de trechos inéditos ou já redigidos para ou-
cas do Brasil”.25 Segundo Lopez, o retorno dessa tros propósitos) torna a composição do texto final
segunda viagem teria inaugurado intensos estu- curiosamente semelhante ao próprio processo de
dos, visando a compreender as danças registradas. composição das danças dramáticas tal como descri-
Mário de Andrade teria se dedicado, com o afinco to por Mário de Andrade: inchado de elementos que
característico, ao estudo da tríade de antropólogos recheiam o argumento central num intrigante pro-
evolucionistas (Tylor, Frazer e Lévy-Bruhl).26 Em cesso de “justaposição discricionária”.
meio a esse projeto de estudos, inicia-se a redação
do texto (DD) que nos interessa especialmente.
O Instituto de Estudos Brasileiros – IEB da O texto
USP, guardião do arquivo Mário de Andrade, dis-
põe das versões anteriores àquela publicada. A Certamente, Mário de Andrade era um auto-
versão publicada por Oneida Alvarenga nos servi- didata nos assuntos de folclore e antropologia. É
rá de referência básica, muito embora a conside- preciso ter em mente sua relativa exterioridade do
ração do conjunto das versões permita precisar e iniciante mundo acadêmico das ciências sociais
esclarecer pontos relevantes.27 que, entre as décadas de 1930 e 1940, desenhava-
O argumento e a direção geral do texto es- se com frouxas fronteiras em São Paulo (Peixoto,
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2002). Entretanto, mesmo considerando a ambiva- vo se lembrarmos de sua idéia acerca da precarie-
lência de Mário de Andrade para com o seu afã dade brasileira de tradições próprias (Moraes,
estudioso, o texto das DD pertence inequivoca- 1978; Travassos, 1997).
mente a esse homem de estudo que, a seu modo Porém há mais. A música o conduz, é certo.
doído, ele também foi. Entretanto, a associação entre música, dança e
Nesse texto, quem fala, de certo modo ávido drama encontrada nessas formas populares pare-
em posicionar-se como tal, é o Mário pesquisador ce sugerir solução a um dos problemas críticos da
alçando vôo ambicioso. Alguns rompantes expres- busca estética de Mário de Andrade, o da integra-
sivos emergem aqui e ali. Ele não resiste a nos ção entre arte e vida. Na dança companheira da
contar que foi sua “curiosidade apaixonada pelas música, há expressão artística realizada numa for-
coisas do povo” (Andrade, 1982, p. 43) que o con- ma plena de vida.29 Diante dessa percepção, se
duziu, em 1927 no Alto Solimões, a uma Ciranda. adotarmos um ângulo de leitura já bastante enfa-
Por sinal, presenciada apenas parcialmente, por- tizado por diversos estudiosos, essas danças se-
que “sua paixão folclórica” já o fizera atrasar a par- riam, digamos, arte com imediata “funcionalidade
tida do navio que aguardava no porto. Diversas social”; e com isso insinuam-se os já bem conhe-
formulações aparecem despretensiosamente como cidos desdobramentos ideológicos que conferem
de suas “sensações” (Idem, p. 30, por exemplo). à idéia mesma de folclore uma clara expressão
Entretanto, a abundância de citações bibliográfi- nacionalista. Há, entretanto, um outro ângulo
cas, a utilização reflexiva de sua experiência de possível em que se destaca a percepção pura (isto
observação e registro das danças, o amplo desen- é não instrumental ou ideológica) de uma outra
volvimento das notas e o desejo de sistematização estética.30 Nesse folclore, o corpo humano, ex-
de informações reunidas “por toda a documenta- pressando-se por inteiro e coletivamente, é ele
ção que conheço” (Idem, p. 46), estabelecem a li- mesmo o veículo de formas artísticas.31 A integri-
nha dominante do texto, marcado também pela dade dessa forma de expressão comovia Mário de
inquieta busca de sentidos primordiais. Andrade.
O artista evidentemente lá está, fascinado O último relato do segundo diário do “Turis-
pela dimensão expressiva das danças. Porém isso ta aprendiz”, feito na Paraíba (5/2/1929, às 23 ho-
não lhe basta, e o estudioso é, também, fortemen- ras),32 bem demonstra o tipo de emoção suscita-
te atraído pela necessidade de lhes dar coerência do por esses bailados em nosso autor:
conceitual, e de entender-lhes a origem. A expres-
são “danças dramáticas” foi cunhada, justamente, Não tem cantigas e só de longe em longe uma
com o intuito de revelar a unidade subjacente a fa- fala, tão esquematizada, tão pura que atinge o cú-
tos culturais até então chamados por diferentes no- mulo da força emotiva. Imaginem só: fazia já mais
mes. Muito da dificuldade do texto resulta do en- de uma hora que o pessoal estava dançando,
dançando sem parada, com fúria. Matroá é uma
trecruzamento desses diversos veios de indagação.
das figuras importantes do baile. É o “caboclo ve-
No ponto de partida do investimento reflexi- lho”, de-certo, espécie de pajé da figuração tribal
vo está o interesse fundamental de Mário de An- da dança. De-repente Matroá principiou uma co-
drade pela música. As danças dramáticas são, reografia de arquejo, brutal, braço esquerdo en-
como nos diz a primeira frase do texto, “uma das gruvinhado, com o arco por debaixo, duas mãos
manifestações mais características da música po- no peito, segurando a vida. Cada vez mais. Cur-
pular brasileira” e, mais do que isso, um ponto vando, curvando, já levantava os pés custoso. O
em que o povo teria evolucionado bem “sobre as apito bateu duas feitas, parou tudo. O Reis falou
pra Piramingu, “Caboclo menino”:
raças que nos originaram e as outras formações
– Piramingu!
nacionais da América” (Idem, p. 23). Mário de An- – Sinhô.
drade enxerga nessas danças uma solução brasi- – Mataram nosso Matroá.
leira e original (“bem evolucionada”) de cultura Tururu, tarára, tururu, tarára…” a solfa continuou.
popular: há aí dinamismo e criação. Ponto decisi- O bailado se moveu de novo e Matroá foi enro-
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lando uma perna na outra, já não levanta pé do que a comandar o olhar é o do músico, pois es-
chão mais não, levou uns 10 minutos se moven- ses bailados “obedecendo a um tema dado tradi-
do em pé, difícil de morrer como em todos os cional, respeitam o princípio formal da suíte, i.e.
teatros e na vida.
obra musical constituída pela seriação de várias
Isso é que é perfeição! Fiquei tonto. Aquelas pa-
peças coreográficas” (Andrade, 1982, p. 71, n. 1).
lavras puras, só aquilo. Fiquei com dó, não sei
como fiquei, fiquei tonto, está certo, numa como- A ele, soma-se contudo o gosto pelo dramático,
ção danada. em especial pela teatralidade dialogada.34 Em par-
Matroá levou um tombo e principiou se estorcen- ticular, a forma rapsódica de composição, comum
do. Então os bugres de mentira principiaram uma a todas as danças, revelar-se-ia especialmente ní-
figuração nova, circulando em torno do moribun- tida no Bumba-meu-boi. A idéia de suíte, que in-
do e acabando com a vida dele, frechando-o. Ma- dica composições musicais de natureza também
troá se defendia, também frechando pra um lado
coreográfica, alarga-se na conceituação de Mário
e pra outro. De-repente se levantou, vivinho. A
de Andrade, abrangendo a dimensão dramatizada
dança da morte acabara e Matroá dançava como
todos vivo feito eu e vós (Andrade, 1976, p. 320). do folguedo.
A tensão entre uma visão mais integrada e
Mário de Andrade buscava no folclore for- outra mais fragmentária das danças dramáticas,
mas expressivas capazes de provocar identifica- que se desdobrará ao longo de todo o texto, se
ção e emoções genuínas. Buscava a beleza resul- faz imediatamente presente.
tante disso.33 Não é outra, me parece, a razão de A visão mais integrada emerge sub-repticia-
sua impaciência, e mesmo do desânimo com a mente em uma das definições mais utilizadas por
monotonia ou a falta de jeito de certas apresenta- outros pesquisadores:
ções de bailados que embasam, por vezes, o sen-
[...] as danças dramáticas se dividem em duas par-
timento de “decadência” dessas formas. Nosso au-
tes bem distintas: o cortejo, caracterizado coreogra-
tor impacienta-se com a “falha” (Leiris, 2002), ficamente por peças que permitem a locomoção
parte integrante da graça antropológica, e não ex- dos dançadores, em geral chamadas de “cantigas”;
clusivamente estética ou expressiva, de rituais e a parte propriamente dramática, em geral chama-
que dependem fortemente da destreza e do talen- da de “embaixada” caracterizada pela representa-
to de seus agentes. ção mais ou menos coreográfica dum entrecho, e
exigindo arena fixa, sala, tablado, pátio, frente de
casa ou igreja (Idem, p. 57, grifo meu).35

O Conceito
Um trecho da primeira versão da redação das
DD, depois retirado, permite perceber claramente
Junto com essa busca artística, está o empe-
a valorização da unidade intelectual e estética pro-
nho estudioso em conceituar, com a noção de dan-
piciada pela idéia de um “entrecho dramático”:
ças dramáticas, a natureza de fatos culturais disper-
sos e entretanto aparentados. Nessa conceituação, o
Tive ocasião de assistir a um Boi Bumbá – nome
movimento do pensamento de Mário de Andrade amazônico do BMB, na cidadinha de Humaitá no
assemelha-se, ele mesmo, a um bailado dramático – Madeira. Colhi mesmo dela várias cantigas. Era
ora comovido, ora hesitante, ora lúcido e tenso, e uma peça admirávelmente unida, em que todos
finalmente trágico. Dada a complexidade da argu- os episódios se juntavam ao núcleo de morte e
mentação, desdobrei a procura de unidade concei- ressurreição do boi, sempre em referencia com
tual em três planos entremeados no texto: forma es- ele. Era legitimamente o Reisado do Bumba-meu-
boi a que apenas tinham se ajuntado episódios
tética, conteúdo temático e origem comum.
desenvolvidos do próprio assunto. É o que se á
a) Forma estética também ainda com as cheganças, com os congos,
A definição formal enfatizou a presença da em que por enquanto os episódios esporádicos
dança companheira da música e da dramatização ainda são ajuntados de maneira a constituir um
de um tema nesse tipo de fato cultural. O enfo- todo harmonioso, mais ou menos, como foi a for-
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mação da Odisséia, quer ela tenha como autor As danças dramáticas abarcariam Pastoris,
Homero ou o tempo (1934a, p. 19). Cheganças e Reisados.36 Na distinção estabelecida
entre este último e os dois primeiros, há uma níti-
Entretanto, ao mesmo tempo, a visão mais da hierarquia de ancestralidade cultural. De ime-
fragmentária também se apresenta. Pois, a dança diato, o tema da “morte e ressurreição da entida-
dramática do bumba-meu-boi não seria, nos diz o de principal do bailado” destaca-se, ocorrendo “no
autor logo a seguir na versão publicada das DD: Bumba-meu-boi, nos Cabocolinhos, nos Cordões
de Bichos amazônicos, ainda nos Congos, nos Cu-
[...] um todo unitário em que se desenvolve uma cumbis e nos Reisados [...]” (Idem, p. 25). Reisa-
idéia, um tema só. O tamanho dela, bem como dos, então, é o termo escolhido para englobar
seu significado ideológico, independe do assunto
toda essa classe de danças que tematizam “sempre
básico. No geral, o assunto dá ensejo a um episó-
o assunto de imemorial significação mágica em
dio só, rápido, dramaticamente conciso. E esse
núcleo básico é então recheado de temas apostos
que se dá morte e ressurreição do bicho ou plan-
a ele; romances e outras quaisquer peças tradicio- ta” (Idem, p. 39). Já nos Pastoris e Cheganças,
nais mesmo de uso anual se grudam nele; textos
e mesmo outros núcleos de outras danças se [...] danças dramáticas de origem proximamente
ajuntam a ele. Às vezes mesmo estas aposições ibérica [...], há somente o elemento fundamental de
não têm ligação nenhuma com o núcleo (Andra- qualquer drama [...] isto é a luta de um bem contra
de, 1982, pp. 53-54, grifo meu). um mal, que os bailados coletivos, e por isto infen-
sos aos sentimentos individualistas (principalmente
amoroso), caracterizam na noção de perigo e sal-
A unidade formal das danças dramáticas os-
vação (Idem, p. 25).
cila então entre uma definição integradora, que
postula a existência de um núcleo temático bási- Nesse caso, o tema aglutinador seria o prin-
co a comandar as agregações por aposição, e uma cípio da oposição entre o Bem e o Mal (Idem, p.
visão fragmentária, em que os temas agregados 39).37
não teriam mesmo nenhuma ligação com o su- Na fundamentação do conteúdo simbólico,
posto núcleo. Apesar da aparente contemporanei- parece predominar a visão mais integrada da uni-
dade dessas duas maneiras de existência dessas dade formal apresentada no item anterior. O
danças, a visão fragmentária associa-se à presen- “tema” é exposto no “núcleo básico”, e funciona
ça das deletérias influências urbanas e aos males como “princípio de agregação” a presidir e orde-
da civilização. Mário de Andrade hesita contudo nar a seriação e a justaposição características das
todo tempo entre essas duas visões, e a brecha diversas peças musicais e dramáticas que com-
aberta para a fragmentação desordenada, por sua põem esses bailados.
vez associada à perda do caráter sintético e dra-
mático do “núcleo básico”, terá importantes con- c) Origem comum
seqüências na solução do texto. Um terceiro plano de reflexão busca uma ori-
gem comum às danças dramáticas, e a identificação
b) Conteúdo temático das influências recebidas por elas ao longo do tem-
A unidade do motivo simbólico remete ao po. É um terreno movediço, sobretudo se atenta-
assunto do fato cultural em questão, a princípio mos para o fato de que a idéia de história desloca-
acolhido e exposto na representação do “entre- se por vezes para uma mito-história e expressa-se
cho” ou do “núcleo básico” acima mencionados. freqüentemente num difusionismo desenfreado.38
Porém, acabamos de ver como o autor nos disse Em Mário de Andrade, essa busca de origens
também que o tamanho e o significado ideológi- norteia-se implicitamente pela definição formal
co do bailado do Bumba-meu-boi “independem das danças dramáticas que, como vimos, privile-
do assunto básico”. O desenvolvimento do argu- gia música, bailado e dramatização de um tema.
mento opera com essa imprecisão. A documentação conhecida indicaria uma ex-
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traordinária floração dessas danças em fins do sé- No entanto, vale observar que, à diferença
culo XVIII e início do XIX, concomitante à forma- dos demais reisados, para os quais se identifica o
ção de uma cultura popular de ampla base cató- romance que estaria na origem da dramatização
lica.39 Essas danças encontraram abrigo nas datas dançada do tema,43 não há para o Bumba-meu-boi
festivas desse calendário, em especial o natal, o nenhum romance. No Bumba, o tema do “entre-
carnaval e os santos de junho.40 A primeira parte cho”, elemento que fornece um princípio de uni-
é um cortejo, e cortejos foram sistematicamente dade ao bailado seriado, é essencialmente “míti-
usados pelos jesuítas no Brasil no processo de co”, vem de camadas de humanidade mais
cristianização que convertia cerimônias pagãs em profundas.44 Essa é, parece-me, uma das razões
procissões católicas. importantes da primazia desse reisado sobre os
demais. O Bumba emerge como elo da cultura
Essas folias com que não apenas os “negros” des- popular brasileira com uma dimensão humana
tas Índias Ocidentais, porém ainda os “negros da
universal. Talvez possamos derivar daí, também,
Guiné”, e mesmo os brancos acompanhavam com
o seu poder de atração como grande “aglutina-
danças as procissões católicas, foram certamente
no país o maior incentivo para a tradicionalização dor” de outros reisados.
do princípio do cortejo-baile, usado pelas nossas O Bumba-meu-boi é tema “mítico” por exce-
danças dramáticas (Andrade, 1982, p. 33). lência, expressão do primitivo e do ancestral. Nes-
sa condição, o folguedo expressa a unidade bási-
O caráter dramático das danças, por sua vez, ca do humano tão cara ao evolucionismo. Em
encontraria raízes nas Paixões da Idade Média.41 Mário de Andrade, essa unidade transforma-se
No Brasil, o povo teria recorrido aos temas dos também em expressão possível de uma universa-
romances ibéricos para teatralização. A origem lidade (mais do que propriamente uma unidade)
dos diversos Reisados residiria nesse notável pro- brasileira. O autor idealiza e transfigura o Boi. A
cesso de transposição de uma forma verbal e poé- cadeia de raciocínios é tortuosa, cheia de lapsos
tica à forma dramática dançada.42 Porém, nesse preenchidos por malabarismos mentais.
conjunto, o Bumba-meu-boi ocupa lugar ímpar e Mário de Andrade é agora um evolucionista
de certo modo anômalo. intelectualista, envolto nos meandros do ramo
dourado de Frazer e seduzido pela possibilidade
de raciocinar tal qual um primitivo sugerida pela
Os Reisados e o Bumba-meu-boi leitura de Tylor. Desvenda então o “mistério” que,
na mentalidade primitiva, “idêntica nesse ponto à
Mário de Andrade enumera os 24 reisados popular, pode explicar outro mistério ou qualquer
“que os livros me indicam” (Andrade, 1982, pp. 50- realidade”.
53). Nessa enumeração, as distinções estabelecidas
insistem em se confundir, sugerindo ao leitor con- Desprovido das defesas da técnica, na sua luta
temporâneo, sobretudo, a presença de um univer- contra… o resto, incapaz ainda de a organizar de
so cultural de extrema mobilidade formal. Assim, maneira eficaz, se afirma no primitivo a noção de
por exemplo, o reisado da “Barca Bela” está na uma força superior à dele, e que ele aplica ime-
diatamente aos animais, vegetais, minerais e fatos
“Chegança de Marujos cearense”, tendo se enquis-
[...]. E assim, se nas culturas primitivas surgiu na
tado entre nós no romance da Nau Catarineta
forma de magia homeopática, mimética, o culto
(Idem, pp. 50-51); e nove reisados relacionados já do vegetal, da primavera, Perséfona, o totem, e
se encontrariam, nos idos de 1930, agregados ao principalmente, por mais genérica, a noção de
Bumba-meu-boi: “o mais importante de todos, que morte e ressurreição da terra, do sol, do boi, do
fazia parte final obrigatória de todos os Reisados. bicho, do vegetal, de deus [...] (Idem, p. 24).
Espalhado por quase todo o Brasil, permanecido
muito vivo até agora”, especialmente nas regiões Se o tema da morte e da ressurreição é moti-
do Norte e Nordeste do país (Idem, p. 50). vo humano primevo, imposto pelo renovar dos ci-
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clos naturais da vegetação, a predileção pelo Boi indicar a unidade do boi. O boi é realmente o
no Brasil teria também razões especificamente bra- principal elemento unificador do Brasil (apud Lo-
sileiras. O centro econômico da colonização teria pez, 1972, pp. 131-132).
sido o Boi, verdadeiro continuador dos desbrava-
mentos interioranos iniciados pelos bandeirantes
nos séculos XVI e XVII (Lopez, 1972, pp. 127 ss.). Tensão: fragmentação e integração
Nada mais “natural” do que sua valorização mítica.
A própria variação da inserção do Boi no ca- Entre todas as danças dramáticas, destacar-
lendário católico popular que intriga o autor – se-iam, portanto, os Reisados, e dentro deles o
pois o Boi é encontrado no Norte entre as festas Bumba-meu-boi por sua ancestralidade, universa-
juninas e, no Nordeste, nas festas natalinas – en- lidade e brasilidade. Nessa valorização, desenha-
contraria resposta plausível pelo viés de sua leitu- se uma forte tensão. Pois, de um lado, os Reisados
ra frazeriana. Lopez transcreve uma ficha manus- emergem tal como concretamente encontrados
crita, que bem demonstra a natureza do anseio por Mário de Andrade: aglutinados e justapostos,
intelectual de Mário de Andrade: num processo em que o Bumba seria, por assim
dizer, um reisado expansionista a impor aos outros
Bumba meu Boi ou Boi Bumbá! O Boi mal com- uma espécie de hegemonia dramática. Contudo,
parando, parece assumir uma posição de Dionísio, de outro lado, está a idéia de uma “integridade”
símbolo do reflorescimento e do tempo fecundo. originária, expressa na representação de um “en-
Ora é curioso pois que a celebração dele no Nor- trecho”, exigência ideológica de síntese: “Sobretu-
te venha justamente em junho, tempo de inverno, do é isso que é o Reisado: uma representação
tempo de cheia nos rios, tempo de menos febre,
dançada e cantada, consistindo num episódio só
mais facilidade na vegetação ao passo que no Nor-
deste está também quando chega o que por lá cha-
que contém sinteticamente a significação comple-
mam de “inverno”, tempo de Natal, tempo das ta do assunto” (Andrade, 1982, p. 53).
águas, tempo de reflorescimento, e de muito mais Mário de Andrade viu-se então, talvez à sua
facilidade. Parece haver uma razão profundamen- própria revelia, levado a dar conta da distância
te humana e a seu modo religiosa nessa escolha de que separava o estado dos Reisados, tal como tes-
datas (apud Lopez, 1972, p. 128). temunhado por ele, e a suposta integridade origi-
nal, cujos efeitos expressivos ele parece ter tam-
Em ambos os casos, estaríamos diante do bém experimentado, ao menos emocionalmente,
apogeu da vegetação cultuada por meio do sacri- em certas ocasiões felizes, como no episódio “Ma-
fício de seu símbolo animal, o Boi.45 troá” citado acima.47 De forma consciente, leve-
Porém, esse sentido mais profundo e pleno já mente irônica, Mário de Andrade inventou uma
se teria perdido. Para usarmos uma noção impor- história totalmente especulativa da evolução for-
tante em Tylor, o Boi seria “sobrevivência”,46 noção mal das danças dramáticas: “Parece porém que
que Mário de Andrade parece ter fundido com suas desde logo ou desde sempre [grifo meu], a curteza
leituras freudianas na noção de “sintoma”. O Boi, esteticamente admirável do reisado se tornou in-
como nos diz Telê Ancona Lopez, é “sintoma-Bra- satisfatória ao povo”. [Andrade, 1982, p 53]. A
sil” (1972, p. 132). Um fato cultural revelador de “psicologia popular” adepta das “criações artísti-
uma possível universalidade brasileira: cas alongadas”, logo teria começado a reunir dois
ou mais reisados. Nesse processo, o “complexo
Mas, no Brasil isso é assombroso. E o Bumba re- do boi” tornou-se dominante:
presenta porventura a mais bela noção crítica de
nosso fenômeno nacional, tirada inconsciente-
Ficou assim um reisado único, que não tem po-
mente pelo povo brasileiro. Unidade de língua,
unidade de religião, várias são as razões inventa- pularmente este nome, a dança dramática do
das para designar esse fenômeno absurdo que é Bumba-meu-boi, que embora não seja nativa-
a unidade brasileira. Talvez fosse mais razoável mente brasileira, mas ibérica e européia, coinci-
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dindo com festas mágicas afro-negras, se tornou clear tornar-se-ia tradição esquemática e as partes
a mais complexa, estranha, original de todas as fixas perderiam gradativamente sentido. Em sua
nossas danças dramáticas. Por vezes, mesmo uma briga com a civilização, as danças dramáticas es-
verdadeira revista de números vários, com a dra- tariam “em plena, muito rápida decadência. Os
matização da morte e ressurreição do boi como reisados de muitas partes já desapareceram”. Ape-
episódio final (Idem, pp. 53-54). nas no Norte e no Nordeste, eles persistiriam sua
furiosa luta. É um Mário de Andrade triste e trági-
Além da hesitação intelectual entre as ori- co quem vaticina “Da maneira como as coisas vão
gens “histórico-raciais” do bailado, o ponto é crí- indo, a sentença é de morte” (Idem, p. 70).
tico. Revela um desencontro profundo entre aqui-
lo que a sensibilidade artística de Mário de
Andrade buscava, e por vezes de fato encontrava – Alguma conclusão
a curteza expressiva admirável que o comovia –,
e aquilo que o pesquisador encontrou com mais A combinação entre exemplaridade e estra-
freqüência diante de si – a desorganização da in- nheza sinaliza a extrema ambivalência de Mário
definição de formas, um mundo festivo em esta- de Andrade para com o Bumba-meu-boi. Aquilo
do de permanente mutação, que contrariava o de- mesmo que tanto o fascinava parece ter corres-
sejo de “fixar” uma forma expressiva como ideal. pondido apenas raramente a suas expectativas de
Nas entrelinhas do texto, esse desencontro pro-
integridade e síntese estéticas. Laço desfeito ao
duz um grau de tensão que beira o dilaceramen-
ser encontrado. O “desde logo ou desde sempre”,
to. A integridade inicial suposta e procurada (tal-
tão significativo no trecho citado sobre a evolução
vez nos aproximemos aqui da idéia da “falta de
dos reisados, não deixa de expressar formas de
caráter” de seu anti-herói nacional) colide com a
pensar que, ainda que ironizadas, têm conse-
avaliação predominante da realidade encontrada
qüências importantes na solução do texto e um
e se traduz em forte ambivalência na valoração do
imenso impacto na visão subseqüente de diversos
Bumba-meu-boi.
pesquisadores acerca da brincadeira.
Talvez por isso, o Bumba seja a um só tem-
Com relação a esse último aspecto, lembro a
po estranho e original, exemplar e complexo.
conclusão de Mello e Souza que, retomando a in-
Como se o bailado explicitasse também uma exi-
gência existencial insatisfeita. Desse modo, ao dicação pessimista do próprio Mário de Andrade,
longo do texto, o mesmo processo de composi- viu Macunaíma como obra “ambivalente e inde-
ção rapsódica que tanto fascinou Mário de Andra- terminada, sendo antes o campo aberto e nevoen-
de vai ganhando também sinal negativo nas con- to de um debate do que o marco definitivo de
siderações tecidas acerca do estado atual uma certeza” (1979, p. 97). Creio que, inadvertida-
[1934/1944] e futuro do Boi. O “núcleo íntegro” do mente, as formulações de Mário de Andrade nas
Bumba-meu-Boi, “contendo como drama único a DD forjaram uma maneira de ver a brincadeira do
morte e ressurreição do grande bicho servil, cerca- Boi que, contendo percepções luminosas, lançou
do dos seus personagens humanos tradicionais” também sobre ela uma vasta neblina. Além da te-
persistiria apenas “em certos Bois-Bumbás do mática mais evidente da deterioração, especial-
Amazonas” (Idem, p. 54). A característica justapo- mente influente, e particularmente nebulosa, é a
sição de temas, vista em outros momentos como idéia de um núcleo de sentido compreendido de
original e mesmo exemplar, surge também forma fixa a presidir a unidade da brincadeira.48
como sintoma de perda e deterioração da integri- Essa idéia, associada a uma perspectiva racialista
dade primeva, que Mário de Andrade sabe entre- de cultura, parece estar na base de visões reifican-
tanto, confusamente, nunca ter existido. tes e extremamente difundidas dos processos de
Nem por isso a idéia deixa de ser bastante simbolização presentes na cultura popular.
ativa. No processo mesmo de conformação por Com relação à argumentação do próprio tex-
agregação e justaposição de temas, o assunto nu- to, o desenlace de tamanha ambivalência é um
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decreto de morte de tonalidade trágica. O boi fatos na análise contemporânea, seríamos seduzi-
como “sintoma-Brasil”, como brasilidade buscada, dos pela ilusão do arcaísmo, pela idéia do bom
estaria, ele também, fadado ao fracasso. O Bum- tempo de outrora quando as produções populares
ba-meu-boi surge efetivamente como um opera- não apresentavam descontinuidades, eram coeren-
dor de passagens no pensamento de Mário de An- tes e facilmente acessíveis à interpretação. Os ma-
drade. Mello e Souza (1979, p. 16) ressaltou a teriais folclóricos, nos sugere a autora, chegam até
sugestão do autor da existência de afinidades es- nós, estudiosos contemporâneos, carregados de
truturais entre Macunaíma e o bailado popular arcaísmos. Belmont propõe então o exame do ar-
que, a seu ver, melhor representava a nacionali- caísmo inerente a esses materiais como sintomas,
dade. Assinalou, nessa direção, como prenúncio na acepção psicanalítica do termo.
do desenlace trágico do romance, a utilização de Saltando sobre o abismo que separa repre-
um longo trecho do bailado que termina com a sentações da psicologia individual da psicologia
morte do boi no capítulo “Uraricoera” que prece- coletiva, a autora chama atenção para a observa-
de a morte do anti-herói, com sua transfiguração ção de Freud de que os sintomas neuróticos de
em estrela de brilho inútil. Nesse episódio, a som- eventos traumáticos não emergem de um passado
bra que persegue Macunaíma, confunde-o com distante, mas se formam no momento da evoca-
um boi malabar “chamado Espácio que viera do ção. No universo da própria cultura popular, o ar-
Piauí” (Andrade, 1978, pp. 200-203). E mata-o caísmo assumiria feições de mito, na acepção es-
como que por encosto, ela é quem engole a sua truturalista desse conceito.50 Contudo, quando
comida. O Boi esverdeia de fome, morre e apo- tornado moeda corrente nas visões sobre a cultu-
drece. Urubus o rodeiam e, cantando e dançando, ra popular nos circuitos intelectuais e eruditos, o
dividem entre si suas partes podres. Dessa refei- arcaísmo assumiria a forma de ilusão. Essa ilusão
ção ritual degradada emerge a “festa famanada do é a base do efeito neblina que identifico nas for-
bumba-meu-boi, também conhecida por Boi- mulações andradianas sobre o Bumba-meu-boi, as
Bumbá”. Mário de Andrade projetou sobre o boi quais tornaram o folguedo o envolvente símbolo
não apenas suas aspirações nacionalizantes (o boi de ancestralidade, universalidade e originalidade.
sintoma-Brasil) e criativas (o boi rapsódia-modelo Porém, no plano do próprio pensamento de
de Macunaíma), mas também a busca de integra- Mário de Andrade, o Boi assume também um ca-
ção de sua própria subjetividade. ráter sintomático, opera conexões de sentido en-
Em sugestivo artigo, Nicole Belmont (1986) tre a expressão de sua subjetividade, a busca
assinalou a ambivalência da relação da etnologia ideológica e estética da brasilidade e o esforço de
francesa contemporânea com o folclore. Numa conhecimento existencial e intelectual da cultura
avaliação que pode ser transposta para a contem- popular. O Boi traz à cena de seu pensamento, a
poraneidade da antropologia no Brasil, a autora um só tempo, a diferença, a ancestralidade e uma
nota a dificuldade existente mesmo quando se tra- insinuante desordem que desfaz continuamente
ta de reconhecer o folclore como etapa histórica esforços de ordenação e de satisfação. Atiça e
do estudo das sociedades e culturas da Europa. Os exaure a curiosidade intelectual, provocando si-
estudos de folclore teriam perdido crédito à medi- multaneamente, como as lembranças de infância,
da que a etnologia clássica penetrava na França, e os sintomas neuróticos e os sonhos mencionados
esse processo se teria tornado irreversível por volta por Belmont “estranheza, incompreensão, des-
de 1950. No entanto, como os “fatos folclóricos” – conforto e sedução” (1986, p. 266). Exemplar: o
crenças, práticas e rituais populares – são dotados mais estranho e original entre todas as danças.
de grande capacidade de persistência e de grande
poder de sedução, esses materiais reintegram-se Notas
sub-repticiamente em análises contemporâneas. O
folclore estaria assim condenado a uma espécie de 1 Gomes (1998) lembra-nos que o sentimento de
“retorno do reprimido”.49 Pois, ao reinserir esses compartilhamento da intimidade é ilusório: o que
CULTURA POPULAR E SENSIBILIDADE ROMÂNTICA 71

acessamos num texto, mesmo de natureza confes- da idéia da deterioração e inexorável perda das tra-
sional, é sempre a elaboração de uma representa- dições populares tão recorrente em tantos estudio-
ção de si por parte do autor. sos dos fatos populares, entre eles Mário de Andra-
de. Sobre o festival de Parintins, ver ainda
2 Como já disse, com felicidade, Carlos Sandroni
Cavalcanti (2002).
(1992, p. 83), “quando nos reunimos em torno des-
ses assuntos [folclore e cultura popular] estamos de 6 As formulações de Claude Lévi-Strauss são referên-
alguma forma sentados à mesa desse banquete em cias centrais para o entendimento contemporâneo
que ele [Mário de Andrade] se perpetuou – e sem da noção de mito (1964, 1970, 1971). Para a noção
dúvida, já sentimos em nossas bocas, com maior ou de mito com que Mário de Andrade trabalhava, as
menor intensidade, um sabor de Mário de Andrade”. referências principais são as obras de Frazer, Tylor
e Lévy-Bruhl.
3 Por sinal, em 1/6/1927, Mário de Andrade esteve
em Parintins, onde os dois Bois que hoje brincam 7 Ver também Cavalcanti et al. (1992 ) e Peixoto (2002).
já existiam desde 1912/1913, mas ele nem os viu e 8 Margarida Souza Neves e Ilmar Mattos coordenam
nem os menciona. Chegou de tarde numa breve na PUC/RJ o projeto de pesquisa intitulado “Moder-
pausa de viagem. Em 29 de maio, estava em “pleno nos Descobridores do Brasil”. Sobre Mário de An-
Amazonas”, na foz do Tapajós, tendo parado em drade, ver Neves (1998).
Itamarati no dia seguinte. Depois disso, a comitiva
desceu em Parintins, onde encontrou um “prefeito 9 “Improviso do mal da América” (fevereiro de 1929),
bem falante”. Nosso autor oferece a seus leitores o Andrade (1993, p. 265).
“Apostolado da oração”, cujas regras encontradas 10 Ver, por exemplo, Fernandes (1989). Sergio Miceli
na visita à igreja local, muito significativamente es- (1998), numa resenha sobre o livro de Luis Rodolfo
tabeleciam que seus fiéis: “1 – Renunciam totalmen- Vilhena (1997), chamou os estudos de folclore de
te às danças; 2 – renunciam a máscaras e fantasias; “disciplina de amor”.
3 – não tomam parte em festas particulares, etc.
11 Tanto Travassos (1997, pp. 202-203), como Moraes
[...]”. O grupo seguiu para Itacoatiara a caminho de
(1999, p. 31) encontraram essa dimensão filosófica
Manaus. Na volta, em 23 de julho, o diário registra
profunda do romantismo no modernismo de Mário
“Parintins pela madrugada, vista em sonhos” (An-
de Andrade.
drade, 1976, p. 76).
12 O sentimento é expresso por vários folcloristas. Ver,
4 Acompanho, por esse viés, a proposta de Geiger de por exemplo, o forte “pessimismo com relação aos
aproximação e reconhecimento de afinidades entre tempos atuais” que, conforme indicado por Abreu
a antropologia como disciplina e o momento “ro- (2001), perpassa a relação de Cecília Meireles com o
mântico” do modernismo brasileiro. Segundo o au- folclore. A atuação do Movimento Folclórico Brasi-
tor, o não reconhecimento disso implicaria em “dei- leiro e da Campanha Brasileira de Defesa do Folclo-
xar de exercitar [...] o que houve de impulso re (Cavalcanti et al., 1992, e Vilhena, 1997) tiveram
cognitivo qualitativo nos anos 20” (1999, p. 121). em sua raiz a idéia da “proteção do folclore”, numa
Por sinal, a idéia de que a antropologia se empo- tentativa de evitar o desaparecimento iminente das
brece ao forçar a alteridade com certas áreas “an- práticas tradicionais do povo. Essa visão embasou a
cestrais” está na base de pesquisa sobre os estudos atuação pública nacional até a década de 1980.
de folclore no Brasil. Ver Cavalcanti et al. (1992),
Cavalcanti e Vilhena (1990) e, em especial, Vilhena 13 Edmund Leach (1980) lembra-nos do mito da Idade
(1997). Esse ponto será retomado na conclusão des- de Ouro e da expulsão do Paraíso como formas mí-
te trabalho. ticas explicativas dos horrores da civilização. Love-
joy (1965), examinando o primitivismo na Antigüi-
5 Meu argumento, de colorido “anti-romântico”, situa dade, distingue duas acepções da noção. A primeira
o festival de Parintins – com toda alta tecnologia, seria o primitivismo cronológico, que alinhando
turismo, mídia e comercialização – como uma va- passado, presente e futuro atribui ao passado a me-
riante ritual que integra e atualiza um padrão recor- lhor condição da vida humana. A segunda, o primi-
rente da brincadeira do boi, registrada no país des- tivismo cultural, expressaria de outro modo o “mal-
de a primeira metade do século XIX. Fragmentação estar” civilizatório, acreditando que a vida tida
e maleabilidade são entendidas como características como mais simples e menos sofisticada de outros
positivas constituintes do folguedo. Sob esse aspec- grupos humanos seria sob todos os aspectos uma
to, a interpretação proposta afasta-se criticamente vida mais desejável.
72 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 54

14 Trata-se do poema “Eu sou trezentos...” (7/6/1929), originais são verdadeiras sínteses étnicas e parece
do livro Remate dos Males [1930] (Andrade, 1993, p. inconcebível que a tapuiada caiçarense tenha con-
211). De modo arguto, Rosenfeld assinala o recobri- cebido certos movimentos sonoros que são normas
mento em Mário de Andrade da busca da identida- nacionais dos nórdicos europeus” (1976, p. 336).
de nacional (no plano do próprio idioma) pela bus-
24 Ver, a esse respeito, Andrade (2000), Byington
ca de sua própria identidade pessoal. No roldão, o
(2000) e Gico (2002).
sugestivo tema da “sinceridade” e do “cabotinismo”,
que discute e retoma o exame do próprio Mário de 25 Cecília Mendonça (2002) examinou, nos três tomos das
Andrade acerca desses temas [1939] (2002a). DD, os escritos que acompanham a coleta empreendi-
da, organizada em torno de cinco principais danças: o
15 O título do trabalho pioneiro de Lopez é muito su-
Pastoril, a Chegança, o Bumba-meu-Boi, o Maracatu e
gestivo – Mário de Andrade: ramais e caminhos. A
os Cabocolinhos. Como informa Lopez, além das “dan-
extraordinária tarefa de organização de suas obras
ças dramáticas”, outros interesses derivarão da viagem:
completas, incluindo importantes edições póstumas
as melodias do boi, a música de feitiçaria, a religiosi-
em que se destacam os trabalhos de Alvarenga e
Lopez, as edições das correspondências ainda por dade e a poesia populares (1972, p. 21).
vir, a existência do IEB/USP, propiciando excelentes 26 Lopez transcreve, com zelo, anotações de leitura de
condições de consulta a seus arquivos, não só aten- Mário de Andrade que indicam suas interessantes
dem como ampliam imensamente esses apelos. discordâncias com Lévy-Bhruhl (1972, p. 99). Res-
16 Mello e Souza argumenta que o processo de criação salta também o impacto da idéia frazeriana de cul-
do romance tranpôs “duas formas básicas da música to vegetal primordial através do “bumba” anotado
ocidental, comuns tanto à música erudita como à cria- nas margens do texto de Frazer (Idem, p. 127).
ção popular: a que se baseia no princípio rapsódico 27 Esse material encontra-se hoje, graças ao trabalho
da suite – cujo exemplo popular mais perfeito podia do IEB, mais completo e acessível do que à época
ser encontrado no bailado nordestino do Bumba- da edição dos tomos por Alvarenga. Assim é que,
meu-boi – e a que se baseia no princípio da varia- em janeiro de 2003, além das quatro versões enu-
ção, presente no improviso do cantador nordestino, meradas por Alvarenga, encontrei no IEB a primei-
onde assume forma muito peculiar” (1979, p. 12). ra versão do texto cuja existência, indagada pela
17 Esse mesmo ponto, por sinal, é a base do argumen- pesquisadora, era tida como inexistente (Andrade,
to de Moraes (1999). 1982, último parágrafo da p. 18 e o primeiro da p.
19). Na primeira das três caixas de papelão que
18 Interessante observar a coincidência com a visão abrigam essa documentação, além do mencionado
adotada por Joaquim Pedro de Andrade em seu fil- texto de seis páginas, “Origens das DD bras. Ex-
me, que acentua Macunaíma como um herói vital, cerpto”, há um texto de 27 páginas datilografadas
mas inconsciente. O “moderno” apareceria na bus- em folhas azuis, cuja capa – uma folha azul com o
ca dessa elaboração consciente, empreendida pelo título “Danças dramáticas, introdução e primeira
romance, ou pelo filme ( cf. Buarque de Hollanda, versão” manuscrito a lápis – se encontrava desloca-
1978, pp. 125-126). da de lugar (então MA – MMA 38, 157/158) no ver-
19 Versos do poema “Danças” [1924] (Andrade, 1993, so de uma página escrita, provavelmente re-apro-
pp. 215-223). veitada pelo autor. Indiquei então o fato à profa.
Telê Ancona Porto Lopez. Vale observar também
20 Ver Lopez (1972, pp. 77-90). que, como assinalou Alvarenga em sua “Explicação”
21 Carão é um tipo de pássaro encontrado nas Améri- ao segundo tomo da série, essas versões são bastan-
cas Central e do Sul, e em todo território brasileiro. te ordenadas, “têm a mesma ordem expositiva, vão
cronologicamente num crescendo de dados, têm in-
22 A crônica foi publicada no apêndice do Turista
dicação clara da substituição progressiva de umas
Aprendiz, pp. 335-336. A editora/pesquisadora ob-
às outras e são rematadas por uma versão impressa
serva que dessa primeira viagem alguns outros tre-
em 1944, absolutamente igual à última datilografa-
chos ainda figuraram como crônicas.
da” (DDB, II Tomo, p. 12). O encontro dessa pri-
23 Mário de Andrade destaca a beleza do lamento co- meira versão só vem confirmar essas observações.
ral da morte do carão, revelador de uma coindicên- Na bibliografia, indico essa primeira versão de 27
cia com cantos populares escandinavos que o dei- páginas como 1934a, e sua revisão de 36 páginas
xa “atarantado”: “Porque os elementos melódicos como 1934b.
CULTURA POPULAR E SENSIBILIDADE ROMÂNTICA 73

28 No trecho final da versão publicada, antes da sen- abstraideira que nem a do intelectual culto” em que
tença fatídica, há o seguinte trecho: “A decadência se pensa com todo o ser (Mário de Andrade, apud
das danças dramáticas é estimulada pelos chefes, o Lopez, 1972, p. 99). Por essa via, a indicação da im-
seu empobrecimento é ‘protegido’ pelos ricos. E portância da dança na reflexão andradiana merece
elas vasquejam agora, como o teatro ibérico ao nas- aprofundamento. Também no “samba rural” e na
cer: Sin más hato que un pellico/un laúd y una vi- “música de feitiçaria”, as mesmas qualidades sines-
huela/una barba de zamarro/sin más oro ni más tésicas dessa música-que-é-dança parecem ter atraí-
seda” (Andrade, 1982, p. 70). Na primeira redação do o interesse estético e intelectual do autor.
desse trecho final (Andrade, 1934b, p. 36), no lugar
32 Como informa Lopez (em Andrade, 1976), o texto
do segmento citado acima, antes da mesma senten-
foi publicado no Diário Nacional de 29 de março de
ça final, lê-se o seguinte: “Mas estas minhas melan-
1929. Essa dança, por sua vez, “um cabocolinho”,
colias não querem ter sinal de lei. Além da estupi-
teve sua “documentação” publicada no segundo
dez de muitos, fôrça é confessar que a própria
civilização imprime ao povo uma andadura que não tomo das Danças dramáticas do Brasil. É um “cabo-
lhe deixa tempo mais prás grandes paciências que colinho” de João Pessoa, com a “Dança de Morte do
uma dança dramática exige. Isso também é certo: a Matroá” (Andrade, 1982, II tomo, pp. 198-199).
tempo novo, psicologia nova. Mas não é menos cer- 33 Ver, a esse respeito, Moraes (1999, p. 27). Em Mário
to que a psicologia tem bases inamovíveis (?) e na de Andrade “a arte tem essencialmente uma função
realização destas é que está a felicidade. Uma orien- expressiva e os elementos estéticos – a beleza –
tação esclarecida havia de permitir que as dansas precisam ajustar-se a essa função”. Ver, também,
dramáticas não morressem!”. Visivelmente em 1934, Travassos (1997), em especial o item “ Virtudes do
Mário de Andrade tem mais fair-play e esperança. povo” (pp. 184 ss.). Sobre a forma como elemento
29 Lopez (1972, p. 54) acentua a influência de Keyser- estético imprescindível da atuação da obra-de-arte
ling no pensamento do autor. Wisnik (1979, p. 64) sobre o espectador, ver Andrade (2002).
assinala também a associação dança/drama/música. 34 “Em vez da descrição, que é um mecanismo intelec-
30 Em seu último livro, Moraes (1999) propõe-se a de- tual mais complicado e completo, abrangendo o as-
monstrar o arcabouço conceitual do pensamento sunto por mil lados, o povo prefere criar na forma
estético de Mário de Andrade, tomando como pon- de diálogo, de que ele tem a amostra fácil no me-
to de partida a conferência “O artista e o artesão”, canismo cotidiano das suas comunicações. O diálo-
proferida no final da década de 1930, na Universi- go evita a análise psicológica, evita a descricão de
dade do Distrito Federal. Moraes ilumina a reflexão gestos e de ambientes, facilita a síntese dos recon-
de Mário de Andrade acerca da relação existente tos [...]” (Andrade, 1982, p. 47). Um dos indícios de
entre o artista/indivíduo e a criação de sua arte, en- decadência é, assim, a perda do caráter dramático
fatizando o internalismo da visão andradiana que do episódio principal.
busca a dimensão social da arte no interior do fazer 35 Meyer (1991), Pereira de Queiroz (1967), Borba Fi-
artístico individual. A discussão é sobre arte erudi- lho (1966) estão entre os muitos autores que utili-
ta, a “coisa folclórica” entra, nesse sentido, a servi- zam essa definição como ponto de partida de seus
ço de um circuito erudito de criação artística. Dito trabalhos.
de outra forma, a reflexão de Moraes incide, muito
lucidamente, sobre questões levantadas no pensa- 36 Há uma quarta categoria enumerada por ele, os Ran-
mento andradiano pela transposição das formas po- chos e Ternos. Retiro-a pois logo Mário de Andrade
pulares para uma nova e almejada forma de arte afirma que reisado é a “obra de arte”, ao passo que
erudita. Mas o “folclore” existe, digamos, “lá fora” e ranchos e ternos seriam apenas designações dos
por si só, e Mário de Andrade não quis só utilizá-lo grupos de indivíduos que representam “um reisado
como fonte de soluções para novas formas de arte ou qualquer outra das danças dramáticas” (1982, p.
propostas e experimentadas por ele. Parece ter tam- 46). Para as três primeiras categorias, ele baseia-se
bém percebido nele uma diferença de certo modo na distinção de Sílvio Romero (Idem, pp. 35-36),
irredutível, e não necessariamente “nacionalizável”. para quem os Reisados agrupariam “folganças mui-
to variadas”, apresentando sempre ao final de várias
31 Além da noção de “participação”, o gosto de Mário
cantigas e danças, o brinquedo do Bumba-meu-boi.
de Andrade pela “mentalidade pré-lógica” de Lévy-
Bruhl provém justamente da percepção de uma for- 37 Para Mário de Andrade, o princípio de oposição en-
ma da inteligência “não fixadamente conceitual e tre o bem e mal seria facilmente assimilável ao da
74 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 54

morte e ressurreição. Quanto a este último, o leque fenômeno mais extraordinário de aproveitamento
simbólico é amplo, remetendo tanto a crenças pa- popular e conversão de forma, que já sofreram em
gãs antiquíssimas como ao mistério central do cris- qualquer país as poesias historiadas e contadas se-
tianismo. Mário de Andrade acredita tratar-se de jam em romances, baladas, gestas ou que nome te-
“uma noção mística primitiva, encontrável nos ritos nham” (Andrade, 1982, p. 50).
do culto vegetal e animal das estações do ano, e
43 Como, por exemplo, “O do Zé do Vale, aproveita-
que culmina sublimemente espiritualizado na mor-
do dum romance brasileiro do ciclo do cangaço”
te e ressurreição do Deus dos cristãos” (1982, p.
(Andrade, 1982, p. 51). Em alguns momentos do
25). Muitos pesquisadores o seguem, entre eles
texto, essa idéia é mesmo a definidora dos reisados,
Borba Filho, que se atém ao contexto cristão: “in-
que resultam “da adaptação dramático-coreográfica
discutivelmente, o Bumba-meu-boi, em seus princí-
de um tema oriundo de romances medievais aqui
pios, era um auto hierático, um reisado conclusivo
chegados com a colonização e cantigas populares”
sobre o boi da mangedoura do Nascimento de Nos-
so Senhor Jesus Cristo. Pouco a pouco outros reisa- (Idem, ibidem).
dos se foram juntando a ele, as marcas de cada épo- 44 Ver também nas páginas 25 e 26 o tema da morte e
ca anexando-se ao espetáculo. O boi, como animal da ressurreição que se impõe “em grande número
quase sagrado, também se foi fundindo com o boi das nossas danças dramáticas”, não naquelas de ori-
da região pastoril, o profano invadindo o folguedo. gem mais nitidamente européia, como nas Chegan-
Fenômeno idêntico ao do teatro litúrgico medieval ças. Esse tema surgiria sobretudo “nos bailados
[...]” (1996, pp. 19-20). mais próximos das culturas primitivas, nos Congos
38 Esse recurso intelectual é muito freqüente entre os de origem negra, nos Cabocolinhos de inspiração
folcloristas. Ver, por exemplo, o precioso verbete so- ameríndia, e nos Reisados e cordões de bichos de
bre o bumba-meu-boi, em Camara Cascudo (1984). sobrevivência do culto animal, que se dá morte e
Interessante notar, como observou Travassos (1997), ressurreição”.
que Mário de Andrade se dá conta também da in- 45 As famigeradas três raças presentes já no primeiro
fluência de poetas letrados e urbanos na conforma- parágrafo do texto DD na suave ironia modernista –
ção das danças, o que o desagrada e desconcerta, “E se me fatiga bastante, pela sua precariedade con-
indo contra as premissas da autenticidade popular. temporânea, afirmar que o povo brasileiro é forma-
Ver nota 4 das DD (1982, p. 71). Visto por um outro do das três correntes: portuguesa, africana e ame-
ângulo, esse afã de busca de origens remotas reve- ríndia, sempre é comovente verificar que apenas
la a permanência de certas formas culturais, cuja essas três bases étnicas o povo celebra secularmen-
vida se situa num plano cultural, que se aproximam te em suas danças dramáticas” (Andrade, 1982, p.
da idéia da “longa duração” (e de seus incertos ca- 23) – retornam, também, como que “sintetizadas”
minhos) tão cara aos historiadores. no Boi. Para Lopez, Mário de Andrade teria estabe-
39 Ver, a esse respeito, Abreu (1998). lecido, via Frazer, o culto na bagagem folclórica do
colonizador, que no Brasil entraria em contato com
40 Esse ponto importante é indicado numa nota (An- o “espírito totêmico do índio” e, mais tarde, “rece-
drade, 1982, pp. 71-75). berá igual influência totêmica do negro” (1972, p.
41 Mário de Andrade elencou nesse vasto conjunto de 130). Creio que Mário de Andrade realmente tinha
influências o teatro religioso semi-popular ibérico, alguma consciência da precariedade dessas idéias e,
acomodado pelos jesuítas aos interesses da cate- de fato, nunca se arriscou a sistematizá-las.
quese no Brasil. Curioso notar, entretanto (sobretu-
46 Belmont chamou atenção para a importância con-
do se posto lado a lado com sua ênfase na drama-
ceitual da noção de sobrevivência no avanço dos
tização), que Mário de Andrade “tem a sensação” de
estudos antropológicos em fins do século XIX. Tal
que esse teatro é um fenômeno à parte, que se de-
como proposta por Tylor e seus discípulos, essa no-
senvolveu ao lado das danças dramáticas, mas sem
ção “teorizava de modo bem sucedido a dupla exi-
influência direta sobre elas (1982, p. 30).
gência do distanciamento no tempo e no espaço,
42 Oneida Alvarenga o auxilia nesse ponto do argu- necessária para considerar sem temor a alteridade e
mento, acrescentando em nota um trecho de “Rei- a estranheza tanto dos povos primitivos quanto dos
sados e romances”. Na visão de Mário de Andrade, camponeses europeus” (1986, p. 262). Logo na se-
nos diz ela, os reisados seriam um caso de grande gunda nota das DD, Mário de Andrade sofistica a
importância para o estudo do folclore. “São eles o idéia de sobrevivência puramente mecânica e só re-
CULTURA POPULAR E SENSIBILIDADE ROMÂNTICA 75

sidual, detendo-se no problema de “compreender a 48 Luciana Carvalho (2003) lança questões novas para
permanência de certas tradições de realidades ex- a compreensão da natureza das “comédias” e “ma-
tintas, na coletividade” (1982, p. 71). Seu pensa- tanças” do bumba-meu-boi maranhense.
mento se amplia e, embora se saiba de sua leitura
49 A autora indica duas formas de lidar com a situação.
de Formas elementares da vida religiosa de Dur-
Uma delas seria a interrogação sobre a natureza
kheim, ele nunca realmente a incorporou. A vasti-
mesma do folclore como disciplina anteriormente
dão simbólica de certos temas permitiria ao povo “o
autônoma. A segunda seria a indagação sobre a na-
exercício permanente de certas práticas vitais”. Na
tureza do fato vivo que permanece sob a rubrica de
sua comtemporaneidade, o boi já não representaria
“folclore” (Belmont, 1986, p. 260). Para a aboragem
mais o animal tão historicamente básico da civiliza-
do primeiro ponto no Brasil, remeto novamente o
ção nacional. Mas evocaria (de forma grata à “repre-
leitor a Cavalcanti et al. (1992), Cavalcanti e Vilhe-
sentação coletiva”) as “dificuldades e lutas pra con-
na (1990) e, especialmente, a Vilhena (1997). Com
quistar o alimento, bem como as práticas da vida
relação ao segundo ponto, essa é exatamente a na-
familiar e coletiva [...] o tema não é mais uma idéia,
tureza do esforço aqui empreendido. A análise do
mas toda uma ideologia. A sua força e vagueza lhe
asseguram aceitação e permanência. É o jogo de bumba-meu-boi em Mário de Andrade busca des-
sentido spenceriano, em que se exercita em brin- prender o fato vivo “brincadeira do boi” de todo um
quedo uma atividade vital [...]” (Idem, ibidem). Ain- ativo conjunto de pressuposições e ilusões.
da assim, o estímulo “criativo” que gera a dança 50 A autora refere-se especialmente à possibilidade de
dramática é explicado pelo viés do evolucionismo alcançar o passado oferecida pelos informantes mais
intelectualista, derivando a ação vital de um pensa- idosos e à dimensão sincrônica da temporalidade
mento inaugural. presente nesses relatos.
47 Em pequena nota registrada no dia 9 de janeiro de
1929 no Rio Grande do Norte, no engenho Bom Jar-
dim, de Antônio Bento, lemos: “Trabalho quase dia BIBLIOGRAFIA
todo. De noite o “Boi” de Fontes veio dançar no en-
genho. A mais perfeita dança dramática que já vi na ABREU, Joana Cavalcanti. (2001), “Entre os símbo-
viagem. Artistas deliciosos de espontaneidade e es- los e a vida: poesia, educação e folclo-
pírito” (Andrade, 1976, p. 356). Na crônica do diá- re”, in Margarida Souza Neves et al.
rio relativa a esse dia (Idem, pp. 271-272), Mário de
(orgs.), Cecília Meireles: a poética da
Andrade descreve um engenho de banguê e o fa-
brico do açúcar. Embora outra anotação revele que, educação, Rio de Janeiro/São Paulo,
no dia seguinte, 10 de janeiro, ele tenha passado o Editora da PUC-Rio/Loyola, pp. 211-229.
dia trabalhando com os artistas desse boi, não há
ABREU, Martha. (1998), “Mello Moraes Filho: fes-
nenhuma elaboração acerca do assunto nas crôni-
tas, tradições populares e identidade
cas da viagem. Talvez o tema ficasse de alguma for-
ma guardado para elaborações posteriores. De todo nacional”, in S. Chaloub e L. M. Pereira
modo, vale observar que o encontro da “mais per- (orgs), A história contada, Rio de Janei-
feita dança dramática da viagem toda” será imedia- ro, Nova Fronteira, pp. 171-193.
tamente sucedido por outra “comoção formidável”,
a de seu encontro com o coqueiro Chico Antônio,
ANDRADE, Mário. (1934a), “Danças dramáticas, in-
ocorrido na noite do mesmo 10 de janeiro (Idem, p. trodução e primeira versão”. Arquivo
273). Mesmo o sentimento de “divinização” trazido Mário de Andrade, IEB/USP, 27 pp.
por esse encontro carrega um amargor de perda: “E
_________. (1934b), “Danças dramáticas, introdu-
terei de ir para São Paulo e terei de escutar as tem-
poradas líricas e as chiques dissonâncias dos mo- ção e primeira versão”. Arquivo Mário
dernos... Também Chico Antônio está se estragan- de Andrade, IEB/USP, 36 pp.
do... meio curvo, com os seus 27 anos esgotados na
_________. (1976), O turista aprendiz (estabeleci-
cachaça e noites inteiras a cantar...”(Idem, p. 277).
mento de texto, introdução e notas de
Vale notar que Chico Antônio teve vida longa, ten-
do falecido em 1993. Ver a respeito o documentário Telê Porto Ancona Lopez). São Paulo,
de Eduardo Escorel, Chico Antônio: um herói com Livraria Duas Cidades/Secretaria da Cul-
caráter (1983). tura, Ciência e Tecnologia.
76 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 54

_________. (1972), Ensaio sobre a música brasi- BYINGTON, Sílvia Ilg. (2000), Sentimentos moder-
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CULTURA POPULAR E SENSI- POPULAR CULTURE AND CULTURE POPULAIRE ET


BILIDADE ROMÂNTICA: AS ROMANTIC SENSIBILITY: THE SENSIBILITÉ ROMANTIQUE :
DANÇAS DRAMÁTICAS DE DRAMATIC DANCES OF LES DANSES DRAMATIQUES
MÁRIO DE ANDRADE MÁRIO DE ANDRADE DE MÁRIO DE ANDRADE

Maria Laura Viveiros de Castro Maria Laura Viveiros de Castro Maria Laura Viveiros de Castro
Cavalcanti Cavalcanti Cavalcanti

Palavras-chave Keywords: Mots-clés


Mário de Andrade; Etnografia; Mário de Andrade; Ethnography; Mário de Andrade;
Danças dramáticas; Dramatic dances; Romanticism; Ethnographie; Danses drama-
Romantismo; Bumba-meu-boi. Bumba-meu-boi. tiques; Romantisme; Bumba-
meu-boi.
Este texto examina a noção de The text examines the notion of dra-
danças dramáticas na obra de Mário matic dances in the work of Mário de Ce texte examine la notion de danses
de Andrade e investiga as razões da Andrade and investigates the reasons dramatiques dans l’œuvre de Mário
extrema valorização do bumba- bumba-meu-boi was extremely va- de Andrade et recherche les raisons
meu-boi por esse autor. Com base lued by the author. It analyzes the de la valorisation extrême de la
em uma perspectiva antropológica connections found in the use of an danse du bumba-meu-boi par cet
contemporânea, examinam-se as ethnographic perspective, a romantic auteur. Suivant une perspective
conexões existentes entre o uso da view on popular culture, and the anthropologique contemporaine,
perspectiva etnográfica, a visão pursuit of authenticity in constructing l’auteur examine les connexions
romântica da cultura popular e a aesthetical forms by the andradiano existantes entre l’usage de la pers-
busca de autenticidade na cons- modernism, based on a contempo- pective ethnographique, la percep-
trução de formas estéticas pelo rary anthropological perspective. tion romantique de la culture popu-
modernismo andradiano. laire et la recherche de l’authenticité
dans la construction de formes
esthétiques par le modernisme de
Mário de Andrade.

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