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A DERRISÃO DA ESFERA

FÓRMULAS DA SEXUAÇÃO

Gustavo Capobianco Volaco.

“Toda panela tem uma tampa”

“Existe sempre um chinelo


velho para um pé cansado”

Ditos populares.

A coisa começa mais ou menos dessa maneira: ao mesmo tempo em

que Lacan introduz a idéia de ato analítico, produz a enunciação de que,

metonimicamente, o ato sexual não existe. Passam-se alguns anos e, no lugar

do ato que falta, metonimicamente vem a inexistência da relação entre os

sexos e um esboço do que se formulará em termos lógicos: há um

homenosum, a mulher não existe, se há o todo há também o não-todo ou não-

toda e, na esteira do quadrado de Apuleio e das categorias aristotélicas, a

escrita enigmática Φ de x que na hora ainda fala muito pouco1.

Será numa aula de 13 de Março de 1973 – que Jacques Alain Miller

inventou de chamar de Letra de Uma Carta de Almor – que Lacan, pela

primeira vez até para ele, escreve no quadro esse mais, desenvolvendo o que

daí por diante atenderá pelo nome de fórmulas da sexuação. Na lousa negra

estava e no papel branco ficou, assim:

1
À guisa de norte, ao menos momentâneo, específico que esse período corresponde ao início
de 1967 – Abril – a meados de junho de 1971, ou seja, do seminário A Lógica do Fantasma ao
De Um Discurso Que Não Seria do Semblante. Sei que no seminário Ou Pior, Lacan articulará
mais alguns elementos, mas como ainda está inédito, nada posso falar dele.
FÓRMULAS DA SEXUAÇÃO

Escrita para produzir mal-entendido, essas cifras precisam de

deciframento e tal como os quatro ou cinco discursos, implicam que cada um

que as lê produza algo ao moldes daquilo que Laporte enfatizava quando lia

Proust ou Blanchot. É o que agora pretendo fazer, por em movimento aquilo

que tende a estase ou, o que é ainda pior, ao aniquilamento pela terceira

grande paixão humana.

Temos do lado esquerdo o campo dito do Homem, que tem duas

inscrições específicas: e . O E invertido quer dizer existe. O x

– e isso serve para todas essas fórmulas, sejam as da esquerda ou as da

direita, as de baixo ou as de cima – deve ser lido como na matemática, isto é,

está aí para ser substituído por outro elemento como, por exemplo, se verifica

numa regra tão simples como a regra de três:

100 % de minhas maçãs são 10 caixas. Quanto são 10% - o x da questão – do

meu total? Multiplico em cruz e depois divido chegando ao resultado 1 caixa.


Portanto, o valor do x é 1. Mas se fosse 20% o que me interessase saber, o x

teria valor 2 e assim por diante.

Φ, a letra grega maíscula fi, é o que designa na álgebra psicanalítica o

falo simbólico, que é por excelência o significante que não tem significado, mas

é produtor de significação porque reenvia – exige isso – a outros significantes

(S1 → S2). A barra que se vê ora em cima de , ora em cima de e outra

sobre , simboliza uma negação, e esse A de cabeça para baixo diz: para

todo e portanto, se tem sobre si a barra diz: para não todo.

Então, : existe um x para qual a função Φ (falo) de x é negada.

Trocando em miúdos: existe um homem para quem a lei fálica, a lei da

interdição, a lei da castração, não se escreve. Esse é o lugar do pai da horda

primitiva que Freud, inspirado em Darwin, descreveu, vale lembrar: havia um

macho que gozava de todas as fêmeas do bando proibindo aos outros qualquer

acesso a elas. Certo dia, eles se rebelam e decidem matar seu algoz. Mas,

como a liberdade em excesso é opressiva e desnorteadora, erigem em seu

lugar um totem que lhes servirá daí em diante como baliza, indicando a

exogamia como regra. Mais do que mito que pode tender a anedota, o que se

verifica aqui é a verdade avançando sobre um fundo de ficção e estabelecendo

a exceção fazendo a regra e por isso mesmo organizando um conjunto. Daqui

a pouco volto a isso. Antes é necessário decifrar : lê-se, para todo x a

função Φ (falo) de x é verdadeira, ou seja, para todo sujeito é verdadeiro que a

lei –chamemo-la de castrativa ou interditora – funciona. Ou ainda, todo homem

está submetido a impossibilidade de cometer o incesto.


Aparentemente contraditórias, essas fórmulas, são, na verdade,

complementares, devem ser lidas sincronicamente porque uma convoca a

outra: se todos são iguais só o são perante deus , esse

ser onipresente, onisciente, onipotente, em suma, não castrado.

Figurativamente – no sentido de produção de uma figura – pode-se

representar utilizando um conjunto como esse:

Todos os elementos que pertencem a esse conjunto – esses 4x – estão

assujeitados àquela lei que é representada e imposta – não necessariamente

de foma ditatorial – por esse X que está fora do conjunto, esse ao-menos-um –

eis o sentido daquele neologismo lacaniano homenosum – que não está

momentaneamente sob essa juridição, que proíbe Édipo de deitar-se com

Jocasta. Ele é o lider desse grupo, é aquele que pode tudo, que come a sua

mãe, mas porque todos os homens estão submetidos a Φx, não pode comer a

dele e um novo ao-menos-um entra em seu lugar num processo que tende ao

infinito: mata-se o pai, constrói-se um totem. Derruba-se o totem, levanta-se

outro...
Mas, no campo da Mulher, as coisas se passam bastante diferente. Se

temos no lado esquerdo o campo do Um, aqui, à direita, temos o Outro – como

em todos os esquemas de Lacan onde isso aparece –, com a particularidade

de que, de imediato, ele é barrado, ou seja, não-todo.

Primeiro; : não existe nenhum x que não seja função de falo

de x, em outras palavras: não há nenhuma mulher que não esteja assujeitada a

castração, ao falo. Todas as mulheres estão submetidas a lei, pois naquilo que

seria o grupo delas, falta Uma que esteja de fora e as organize. Daí Lacan

enfatizar que as mulheres não fazem classe e Freud dizer que só há libido

masculina. Como escreveu jocosamente Joyce, Madam, tu és Adam.

Mas, isso não é tudo pois, se não existe uma mãe totêmica que escapa

a lei da castração, se não existe um sexo que não tenha como referência o

falo, a Mulher está não-toda submetida, não-toda assujeitada a essa lei. Ela

está relacionada a essa única bedeutung mas, o falo, falha em dizê-la toda, só

o falo não indica aquilo que ela é, por isso: para não todo x, existe a função de

Φ de x: .

Se lá, na esquerda, tinhamos um conjunto coeso – contável aos

magotes, se necessário – pela exceção de Um x, aqui, como não há Uma,

todos os x estão fora e são contados um a um.


E, no lugar da onipotência de Φ, está o Ǿ, o conjunto vazio, conjunto

habitado por nenhum elemento.

Tudo isso, Freud, em 1931, diz mais ou menos nos seguintes termos: a

feminilidade têm tres formas de constituição. Uma é a homossexualidade, a

superenfatização da masculinidade: – Sou toda Φ e Ǿ não é da minha alçada.

A segunda é: – Não quero estar lá Φ nem cá Ǿ, e ele chama essa saída de

abandono da sexualidade, de cessação de toda vida sexual, em suma e não

tão peremptório, digo, a neurose, que mesmo que se mascare de sexo, não é

uma mulher. A terceira, a da feminilidade propriamente dita, é essa que Lacan

escreve na parte inferior das fómulas quânticas, nos

dando assim azo para decifrar o que podem querer dizer essas letras e essas

setas. Ao contrário de antes, irei do Leste ao Oeste.


Durante um tempo relativamente longo, Lacan, inspirado no Curso de

Saussure, elabora o conceito de Outro (A) como o lugar do tesouro dos

significantes, um espaço para além do sujeito, que se confunde com a

linguagem propriamente falando e, por consequência, com o simbólico de uma

forma geral. Para ficar em apenas um exemplo, esse Outro é aquele que Freud

destaca como condiçao necessária a formação de um chiste, esse terceiro ao

par dialógico que, ao escutar o que se formula afiança um Outro sentido na

frase e consequentemente autoriza o riso, como no clássico: Um rapaz alemão

pergunta a outro: – Voce se masturba? E o interrogado responde: – O na, nie!

(Oh não, nunca!) mas ao mesmo tempo: – Onanie! (Onanismo!)

Acontece que, tesouro, dá a idéia de que esse lugar – que articula O na,

nie e Onanie – seria pleno, que realizaria o que Borges chamou certa vez de

Biblioteca Total e, como isso é impossível, como um significante sempre

reenvia a outro num processo constante e nunca, em si, conclusivo, tal como o

sujeito, efeito dessa articulação, o Outro é também barrado. Falta-lhe O

Significante e por isso está aqui do lado da Mulher e não do do Homem. Esse

, não se pode dizer todo e não pode dizer o todo, pois se é certo que nosso

jovem rapaz tentando negar suas práticas masturbatórias as confirma, não

existe nenhum índice que garanta tal verdade ou, ainda Borges: voce, que me

lê, está seguro de entender o que digo?


Desse partem duas setas. Uma que vai na direção de que entre

outras coisas está aí para indicar que não se trata de um ser consistente que

realizaria o sonho de Descartes. Que aí, se trata da imanência de um menos

um no conjunto dos significantes, em outras palavras, Ǿ. E, como a mulher

exige sempre uma volta a mais – que se leia Freud quando teorizava acerca do

Édipo feminino – em se representa o buraco impreenxível pelo que quer

que seja. Não há Outro do Outro como o totem circulante pode deixar pensar.

Mulher não existe, não existe um significante que diga o que é a mulher e

quando ela, em seu próprio campo ( ) pergunta Was will das weib? encontra o

conjunto vazio que, por não aceitar nenhum elemento, deixa um resto, algo que

cai, e é por essa razão que esse a, objeto parcial, que marca a parcialidade

das respostas, está aí. E que ela, enquanto mulher, não tem acesso – por isso

nenhuma seta o indica – a não ser quando o representa para alguém que está

do lado Homem – o que não é o mesmo que dizer para um homem, pois todo

ser falante pode estar a esquerda ou a direita, independentemente de ter ou

não atributos de masculinidade ou feminilidade.

A outra seta que parte de vai na direção de Φ, pois não há x que não

seja função de Φ de x, e está aí para indicar essa tomada que, por exemplo, a

histérica protagoniza tantas vezes ao se dirigir a um Pai, pedindo-lhe que lhe

dê a chave do enigma que a habita – com a particularidade de que tão logo se

esboçe uma resposta, lhe solta na cara: não é isso2. Ou, no que até então se

2
Para as militantes de plantão, que tal como os estudantes de 68, ignoram o que pedem pelo
ar de revolução que adotam, vale bem ler a novela Buriti, de Guimarães Rosa, principalmente
no que se refere a La linha, e ver que aquilo que lhes passa na alma, mesmo que com a bela
indiferença, está escrito.
configurou como algo culturalmente aceito nos matrimônios: – Os declaro

marido e Mulher!, e de agora em diante serás Sra. sobrenome do marido.

E já que fui para Oeste pela via fálica, vejamos o que nos reserva esse

Φ. Se note que, tal como não se liga a a, não se liga a Φ, e nem poderia

pois, esse significante, quem o tem, é o pai da horda, o Príapo que se louva, ao

menos a partir do século XVIII. Falei da histérica, falo agora do obsessivo, que

se faz castrar, se faz foder de n formas para manter no Olimpo – e assim se

curvar, daí o se foder – poderoso e inalcançável, perfeito, para dizer numa só

palavra3 – e que não se esqueça que essa neurose só apareceu depois do

advento do cristianismo pois, essa religião, teve e tem a particularidade única

na história de estabelecer um deus-fora-do-sexo, ou seja, sem sequer uma

mácula em seu curriculum.

Volto ao – pois como a histérica não é uma mulher, o obsessivo não

é um homem, ele se furta a isso, ele se retira da cena tantas vezes quanto

puder – do sujeito parte uma seta que se direciona a a e torna o homem um

fetichista, esse que ama, mas por amar muito mais do que aquilo que diz amar,

o objeto a, mutila – vide Joyce e sua cara Nora convocada frequentemente a

ser apenas cú e cona sujos –. Quer dizer, toda vez que um homem tenta atingir

sua parceira sexual, que é o Outro sexo por excelência, só o consegue fazer

montando seu fantasma a, erigindo sua amada à condição de ser causa

de seu desejo – por isso as mulheres são tão afeitas a elogios pois, desse a,

3
Aos belicosos defensivos uma sugestão: leiam Kafka e se perguntem: porque K se ferra tanto
e nunca descobre qual é o Processo ou nunca acede ao Castelo e mirem-se. Talvez vejam
mais do que sombras.
como disse, ela só tem acesso por essa investidura – de ser sua mulher

quando na verdade não passa de uma-mulher-entre-outras.

E nesse sua, ela passa a ser a, mas como mulher não existe, o ciclo

se reinicia, seja cá, seja lá, que, com aparencia de orgia, não cessa de não se

inscrever a relação sexual, eis, diz, Lacan, a única verdade que conta, o

fundamento próprio à psicanálise: a tampa da panela não é ela, o pé no chinelo

não é dele.

Equívoco ainda? Mas é com isso que a psicanálise tem a ver!

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