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Marília Pereira
Bueno Millan
Universidade
Paulista
Artigo
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A idéia e mesmo o nome do programa apontam Baudrillard (2001), em sua contundente crítica
na direção da busca da realidade in natura. Sendo sobre os “reality shows”, afirma que o homem
assim, a estratégia discursiva central é a criação moderno, sem um destino objetivo ou metas
de efeitos que mimetizem, ao máximo, a de vida, lança-se em uma experimentação sem
realidade (escolha de pessoas comuns, imagens limites de si mesmo. A reclusão voluntária é uma
espécie de laboratório de uma “sociedade
de atos cotidianos, linguagem coloquial, técnicas
telegeneticamente modificada”. Sugere que, a
de filmagem, etc).
partir do momento em que a TV e as mídias se
tornam incapazes de dar conta dos
Para atrair a atenção do público, enriquecer as
acontecimentos insuportáveis do mundo,
imagens e adequar-se à lógica televisiva, a
descobre-se a banalidade existencial como o fato
construção simbólica do programa é feita a partir
mais mortal, como a atualidade mais violenta,
de tarefas e desafios propostos aos participantes
como o lugar do crime perfeito. As pessoas
que desencadeiam reações, atitudes e conflitos ficam, ao mesmo tempo, fascinadas e
entre eles. aterrorizadas pela indiferença de sua própria
existência: não há nada a dizer nem nada a fazer.
Há, também, a presença de um apresentador
que tem a função de organizar o programa, Por outro lado, alguns autores questionam a
interagindo com os participantes, direcionando utilização do termo “reality”, uma vez que se
os julgamentos e opiniões dos telespectadores trata de uma representação fora do contexto de
vida dos participantes, ou seja, são pessoas que atividade do viver. A suspensão da atividade
se encontram em um ambiente artificialmente permite o descanso necessário à elaboração das
criado e, portanto, não existe a autenticidade experiências vividas. No entanto, à aparente
propalada (Hill, 2002; Kujundzic; Dorrell, 2002). passividade do espectador, corresponde a
atividade de observação de si mesmo no outro,
Vê-se, portanto, a relevância do tema aqui o movimento afetivo-cognitivo de compreensão
proposto, pois, sendo os “reality shows” um da essência humana.
fenômeno contemporâneo mundial, é mister
que seja analisado criticamente do ponto de vista A lembrança do caráter fictício da encenação
psicossocial, com o objetivo de aprofundar o tranqüiliza o espectador, oferecendo-lhe
conhecimento sobre o existir humano na pós- condições de experimentar emoções e
modernidade. sentimentos, mantendo-o sob controle, além de
poder pensar a respeito do que vê e sente. Do
O objetivo deste artigo é analisar, do ponto de ponto de vista psicológico, podemos dizer que
vista psicológico e social, o significado dos o quantum de energia psíquica mantém-se em
programas televisivos denominados “reality um nível suportável, permitindo ao ego colocar
shows”, mais especificamente o Big Brother seus recursos a serviço da percepção, A aceleração de
Brasil. conscientização, rememoração e elaboração das giro na produção
experiências vividas. e no consumo
vem influenciando
O sentido da encenação a forma de pensar
Além de todos os processos psíquicos envolvidos, e agir do indivíduo.
Os processos de identificação parecem estar na a encenação promove a reunião de pessoas que
base do sucesso das representações da vida real, compartilham o mesmo espaço-tempo da
ou seja, a possibilidade de encontrar eco para as representação. A convivência une e configura
próprias experiências pode ser um meio de sentir- um fenômeno social que propicia, por um lapso
se incluído no mundo dos humanos, de encontrar de tempo, certo sentimento de cumplicidade
elementos que auxiliem na elaboração de capaz de mover os espectadores em
vivências e de amenizar a solidão intrínseca à manifestações coletivas, que vão do êxtase à
própria existência humana. decepção, da alegria esfuziante à profunda
tristeza, do riso aberto ao choro incontido. Mais
Buscamos, nas manifestações artísticas, o familiar, do que um movimento catártico, há aqui a
aquilo que nos conecta com a subjetividade, com possibilidade de tornar público o privado, de
experiências emocionais que se reatualizam e socializar o individual, dando-lhe novo sentido.
ganham forma através da representação do
artista. O cenário contemporâneo
A imitação da vida nos permite compartilhar a As últimas décadas vêm sendo caracterizadas
essência humana com os outros: o estritamente por profundas mudanças no campo das ciências
pessoal ganha o terreno social. Já não somos os e das artes, cujas sementes já haviam sido
únicos; é possível compreender as situações lançadas no final do século XIX e início do século
humanas à luz da esfera cultural. Não estamos XX. Tais transformações caracterizam o que se
completamente sós, pois os outros participam denomina pós-modernidade, que, para alguns
do drama que julgávamos exclusivamente nosso. autores, é a amplificação do paradigma moderno
em nossos dias. Sua marca registrada é a
Por outro lado, assistir a um espetáculo cênico revolução tecno-eletrônica, que vem alterando
significa ausentar-se da própria vida, sensivelmente o modo de produção do
abandonando provisoriamente o lugar ativo de conhecimento e as relações humanas. Tais
gerir a própria existência. O ator passa a avanços tecnológicos têm como ícone a
representar a cena real na ficção, assumindo a velocidade que está a serviço da otimização das
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Reality Shows – uma Abordagem Psicossocial
justamente pela indiferença e pela monotonia, sua própria banalidade. É uma farsa integral, uma
é a forma mais sutil de exterminação. Vivemos imagem reflexa de sua própria realidade. Para o
hoje numa sociedade que mistura todos em um autor, a audiência é grande graças à debilidade
imenso ser indivisível, em total promiscuidade . e nulidade do espetáculo: ou as pessoas assistem
porque ali se reconhecem e/ ou assistem para
É possível relacionar tal banalização à quantidade se sentirem menos idiotas que os protagonistas.
de estimulação sensorial a que somos expostos
de maneira ininterrupta, sem oportunidade de Reafirmando essas colocações, pode-se dizer
processar, elaborar e pensar criticamente sobre que, em um estilo “fast food”, engolimos as
o que nosso aparato perceptivo é capaz de ações-reações de personagens vazios, que lutam
absorver. Há, então, um empobrecimento do cegamente por sua sobrevivência individual.
contato com nossa própria subjetividade e a
concomitante alienação das experiências Consumimos a exposição de pessoas que, ávidas
cognitivas e afetivo-emocionais. Permanecemos por exibirem-se e ganharem fama, ainda que
no nível mais superficial da senso-percepção, fugaz, submetem-se à superexposição. O
abdicando das sofisticadas potencialidades de narcisismo explícito promove o aparecimento de
nosso aparato psíquico. relações imaturas, permeadas pela escotomização
e pela negação das experiências emocionais mais
Assolado pela angústia frente à perda de contato profundas.
com sua própria subjetividade, pressionado pela
velocidade do mundo da produção, destituído Enquanto espectadores, também retornamos a
de seu lugar de agente nas relações sociais sem um funcionamento psíquico primitivo, na medida
contrato, sem regras ou sistema de valores em que ter acesso à vida de outras pessoas em
definido e impelido ao consumo desenfreado, tempo integral confere-nos a realização da
o ser humano busca eco para suas vivências em onipresença, da onipotência e da onisciência,
“reality shows”. qualidades essas inerentes às experiências
emocionais dos bebês e que mimetizam os
Como disse Novaes (1996), somos atraídos pelo atributos imanentes dos deuses. Se, na infância,
fútil, pela curiosidade ávida de sensacionalismo encarnamos os super-heróis com seus ilimitados
e pela excitação banal, deixando de lado nossa poderes, nesse momento, tornamo-nos os
potência de pensar e agir. Os “reality shows” “super-espectadores”, que realizam o desejo de
nos proporcionam tudo isso, adormecendo nossa participar de tudo, negando a exclusão e o limite.
capacidade crítica já tão abalada pela alienação
de nossas consciências. Por outro lado, assistir a tais programas confere-
nos a ilusão de que estamos vendo a vida real,
A versão pós-moderna do teatro grego aparece tal qual a vivemos. Como vimos anteriormente,
destituída da profundidade do drama e do toda a técnica está a serviço de tornar o programa
impacto da tragédia. As experiências humanas o mais real possível. O “como se”, que inclui o
ficam reduzidas a uma gama de pequenos simbólico e a abstração, dá lugar ao “é agora”,
conflitos que retratam a superficialidade e o numa tentativa de substituir o personagem da
caráter fugidio das relações sociais. O que se vê ficção pelo indivíduo real. O hiato entre
é a pulverização dos relacionamentos em atitudes personagem e ator desaparece, numa busca
impulsivas, intrigas e falas desarticuladas, desenfreada pela verdade última das experiências
denotando manifestações emocionais caricatas humanas.
e previsíveis.
Segundo Gullo (2004), os “reality shows” são a
Segundo Baudrillard (2001), o Big Brother é o versão moderna dos grandes circos romanos.
espelho e o desastre de toda uma sociedade Exploram a necessidade do ser humano de ver
presa da insignificância que se curva diante de e participar dos problemas alheios, movido por
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Reality Shows – uma Abordagem Psicossocial
sua incessante curiosidade, muitas vezes o programa provoca tristeza nos concorrentes
mórbida. Para o autor, quando o cotidiano é que ficam e alegria na torcida uniformizada que
retratado nesses programas, torna-se uma farsa, os espera do lado de fora. O “non sense” da
porque tudo é programado, planejado e situação é patente: quem está ganhando chora
racionalizado: “o reality show” é o mais baixo e quem perde comemora – uma clara inversão
nível do cotidiano, mostrado com tecnologia de valores que desloca afetos, turva consciências
altamente elaborada com o objetivo de captar e banaliza a experiência humana. O herói
o telespectador para interesses da produção que perdedor sai triunfante, com ares de celebridade,
visam ao lucro”(Gullo, 2004, p. 1). é entrevistado pelo apresentador e conversa com
os telespectadores via internet, com o intuito
Do mesmo ponto de vista, Couldry (2002) e Jones de relatar sua grande aventura. É lamentável que
(2003) afirmam que o espectador é iludido ao acreditar essa espécie de Dom Quixote pós-moderno não
que está vendo a realidade, o que lhe confere uma traga consigo qualquer indagação ou pensamento
sensação prazerosa. Porém, na verdade, o que se vê profundo e, ao contrário do original, nada busque
O “non sense” da a não ser o exibicionismo e a fama.
situação é
é o resultado do desenvolvimento de estratégias da
patente: quem técnica televisiva, que visam a mimetizar o real,
está ganhando produzindo um programa repleto de ambigüidades, Mais surpreendente ainda é que as pessoas em
chora e quem geral não questionam, simplesmente assistem e
perde comemora
que mais se aproxima dos mitos e da novela-
consomem com voracidade, esperando sempre
– uma clara documentário (“docu-soap”).
inversão de valores a próxima versão do programa porque o anterior
que desloca já foi esquecido, como um dos tantos objetos
afetos, turva Diante disso, parece que já não somos capazes
descartáveis que usamos e dispensamos.
consciências e de mergulhar na fantasia, no jogo de sombra e
banaliza a luz da ficção e que vai demandar a ação do
experiência Concluindo, mencionamos a necessidade de o
humana. pensamento enquanto abstração, análise e indivíduo representar suas vivências como meio
síntese. Assim, não há o que pensar, há apenas de elaboração e desenvolvimento psicossocial.
o que consumir. Consideramos os “reality shows” como uma das
versões pós-modernas do teatro grego, surgidas a
Os brinquedos ganharam vida pela magia partir do crescente desenvolvimento tecnológico
sedutora das câmeras escondidas do Big Brother. e das transformações ocorridas no cenário
Além de todos os artefatos tecnológicos, socioeconômico mundial desde o século passado.
desejamos agora brincar com “gente de verdade”.
Diante do que foi dito, tais programas são retratos
O prazer de assistir também advém da crença fiéis do mundo em que vivemos. A morte do
de que o outro vive o drama da sobrevivência sujeito, a fugacidade das experiências, a
em nosso lugar: tornamo-nos ingênuos e pueris, desvalorização da história e o culto à imagem
por um lado, e sádicos e triunfantes, por outro. são difundidos sem crítica ou reflexão.
outros, nem atores e nem personagens, vivam se poderoso e capaz de decidir o destino dos
por nós, hipomaniacamente, o que restou do participantes, o público deixa-se levar pela
verdadeiro e profundo sentido de nossa imagem narcísica refletida na tela. O prazer
existência. advém do triunfo e da onipotência, o que acaba
criando um círculo vicioso de consumo e
A subjetividade desvalorizada e satirizada é audiência.
substituída pela superficialidade do real in natura,
em que a imagem é soberana. Apesar de considerações pouco promissoras
sobre os espectadores do presente, podemos
Portanto, a função desse tipo de programa é ainda, como expectadores, antever novos
aprofundar a alienação, impedindo os processos estudos sobre esse tema que visem ao
de pensamento crítico. Para isso, mobilizam-se aprofundamento e à reflexão crítica, contribuindo
aspectos primitivos do psiquismo humano através para a conscientização de todos nós.
da sedução do espectador, ou seja, acreditando-
HILL, A. Big Brother: the Real Audience. Riverside:Television & New TOURAINE, A. Poderemos Viver Juntos? Iguais e Diferentes.
Media, v.3, n.3, 2002. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
JONES, J. M. Show your Real Face. Chicago: New Media & Society,
v. 5, n.3, 2003.