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A Transferência como condição fundamental pra o

atendimento do toxicomano
No seminário XI de 1964, Lacan fala que um dos conceitos fundamentais da psicanálise
é a transferência. Esse conceito se refere a algo que se passa na relação entre o analista e
o analisando. Vamos situar alguns aspectos da construção deste conceito.

O primeiro aspecto é o seguinte: a transferência positiva e negativa não tem a ver com
ambivalência afetiva, amor e ódio. O valor positivo desse conceito é o paciente ter o
analista em boa consideração. Por outro lado, o valor negativo, é o paciente estar de
olho no analista, ou seja, desejar ter um relacionamento erótico com o mesmo.

Outro aspecto é a presença do analista, que é de fundamental importância para o


estabelecimento de um vínculo que possa atestar o valor do conceito de transferência.
Essa presença é peculiar, pois não é uma presença como outra qualquer, mas deve ser
incluída no conceito de inconsciente. “Ele justifica a manutenção, no interior da análise,
de uma posição conflitual, necessária a existência mesma da análise” (LACAN, 2008, p.
127). Deve ser incluída, portanto, nos efeitos da fala sobre o sujeito, no discurso do
Outro.

Essa posição do analista pode engendrar algumas dificuldades na condução dos casos e
esse é o paradoxo do conceito de transferência: ela pode facilitar ou ser o maior entrave
na direção do tratamento: “[...] a transferência é a atualização da realidade do
inconsciente” (LACAN, 2008, p. 144).

Se a transferência atualiza algo estruturado como uma linguagem, resta saber em que
medida isso acontece e é favorável à análise. Como demonstrado no primeiro capítulo, o
resto que se produz com a inscrição da metáfora paterna, e concomitantemente a
instauração de um sujeito dividido, é um objeto causa do desejo. “A função do desejo é
resíduo último do efeito do significante no sujeito. Desidero é o cogito freudiano”
(LACAN, 2008, p. 152).

Nesse sentido, outro aspecto importante na transferência é o laço que se estabelece entre
o desejo do analista e o desejo do analisando. Essa asserção nos faz admitir a presença
da sexualidade em ação na transferência. Porém, ela só é manifestada em alguns
momentos em forma de amor. “Se estamos certos de que a sexualidade está presente em
ação na transferência, é na medida em que certos momentos ela se manifesta a
descoberto em forma de amor” (LACAN, 2008, p. 172).

Para Lacan, o amor está intimamente ligado ao narcisismo e à dimensão de tapeação.


Essa é a face da resistência na clínica e a transferência é nesse sentido um dos maiores
entraves. Lacan propõe, então, em um dos seminários de 1964 algo na clínica da ordem
de uma passagem do amor à libido.
O amor é querer o bem daquele que nos é necessário, querer seu bem para si mesmo. Na
dimensão da libido, no entanto, “o sujeito se aperceberá de que seu desejo é apenas vão
contorno da pesca, do fisgamento do gozo do outro – tanto que, o outro intervindo, ele
se aperceberá de que há um gozo mais além do princípio do prazer” (LACAN, 2008, p.
180).

De qualquer forma a transferência está ligada ao desejo, o que leva Lacan a


correlacionar o desejo do analista com o aspecto mais importante da transferência: o
sujeito suposto saber. Esse conceito é o pivô da transferência. O analista representa o
Sujeito suposto saber para o paciente. “Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto
saber, há transferência” (LACAN, 2008, p. 226).

Os pacientes, de um modo geral, se dirigem aos analistas como se estes soubessem algo
sobre eles, possuíssem um saber a priori sobre seu desejo. É assim que o analista é
alçado a uma posição de grande Outro para o paciente. Mas, nesse momento o analista
deve ter ciência de que não se pode encarnar essa posição, mas fazer semblante do
objeto a, causa do desejo do paciente. A interpretação do analista, a nível simbólico, é
que vai apontar os rumos do desejo do paciente: “é só no nível do desejo do Outro que o
homem pode reconhecer seu desejo” (LACAN, 2008, p. 229). Dialetizar o significante
não-senso, como proposto no primeiro capítulo, é intervir no intervalo onde se situa o
desejo do Outro, entre S1 e S2.

Nessa direção, o amor pode se instalar e o efeito de transferência pode ser referenciado
ao campo do narcisismo. “Amar é, essencialmente, querer ser amado. O amor, sem
dúvida, é um efeito de transferência, mas em sua face de resistência” (LACAN, 2008, p.
245-246). O paciente pode ir às sessões apenas para marcar um lugar no mundo, obter
reconhecimento, amar o analista, ou seja, visar ser amado. “O ponto do ideal do eu é de
onde o sujeito se verá, como se diz, como visto pelo outro” (LACAN, 2008, p. 259).

O manejo da transferência, por parte do analista, é de suma importância, uma vez que
esse manejo pode mudar a direção do tratamento.

Isto quer dizer que a transferência não é, por sua natureza, a sombra de algo que tenha
sido vivido antigamente. Muito ao contrário, o sujeito enquanto assujeitado ao desejo do
analista, deseja engana-lo dessa sujeição, fazendo-se amar por ele, propondo por si
mesmo essa falsidade essencial que é o amor. O efeito de transferência é esse efeito de
tapeação no que ele se repete presentemente aqui e agora (LACAN, 2008, p. 246).

Esse é um dos perigos da análise: ser tapeado pelo paciente. Uma escuta sensível a esse
aspecto considera que por trás do amor de transferência há a afirmação do laço do
desejo do analista com o desejo do paciente. O paciente diz ao analista: “eu te amo,
mas, inexplicavelmente amo em ti mais do que tu – o objeto a minúsculo, eu te mutilo”
(LACAN, 2008, p. 260).

Há algo para além da pessoa do analista, algo que o analista faz apenas o semblante,
algo que pode ser a causa o desejo do paciente ou a causa de uma tapeação. Duas
vertentes fundamentais da transferência. Mas e o desejo do analista?

O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta,


aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem,
pela primeira vez, à posição de ser assujeitar a ele. Só aí pode surgir a significação de
um amor sem limite, porque fora dos limites da lei, somente onde ele pode viver
(LACAN, 2008, p. 267).

Nesse ponto, pode surgir algo de fundamental na clínica com os toxicômanos: a


produção de uma questão, de um problema, de um sintoma, de uma neurose. Esse
momento vai permitir que o sujeito se reposicione frente ao desejo do Outro, o que
poderá produzir uma guinada em sua ética, como demonstrado no caso Marcos.

Somente a partir da produção de um sintoma nos moldes tradicionais, que tem a ver
com o retorno do recalcado, é que se insinua a condição de possibilidade do sujeito
entrar efetivamente em análise. Frisemos que a entrada em análise se articula não com a
produção de sintoma, mas com certo bem-estar subjetivo que vai possibilitar ao sujeito
construir algo em torno da sua fantasia fundamental, construção mais conhecida, na
concepção de Lacan, como a travessia da fantasia.

Psicológa Fernanda Nogueira,CRP- 04/31778 graduada pela Universidade


Estadual de Minas Gerais, FUNED-UEMG. Psicoterapeuta de Orientação Lacaniana.
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