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O
trabalho que ora apresentamos se desenvolveu durante três encontros,
como parte do seminário de Psicanálise com crianças, que teve como tema
inicial, a transferência.
Dividimos o assunto em três subtítulos, cujos temas foram apresentados, um a
um, em nossos encontros.
Isto acontece também na psicanálise com crianças que é, da mesma forma que com
o adulto, trabalho da transferência. Em se tratando de crianças, porém, há di-
ferenças em relação à análise com adultos e, portanto, em relação à transferência.
Um adulto, bem ou mal, busca análise. Uma criança é levada à análise—a demanda
inicial vem dos pais. Esta diferença é fundamental, inclusive no que se refere a este
tempo prévio à consolidação da transferência.
Falar de tempo prévio, preliminar ao início do trabalho analítico, é falar das
entrevistas preliminares. Em 1971,0 saber do psicanalista, dizia Lacan: "não há
entrada possível em análise sem entrevistas preliminares". Como pensar esta frase
de Lacan e pensá-la também em termos da psicanálise com crianças?
Em primeiro lugar, se é pela via do desejo que um sujeito chega à análise,
sabemos também que é pelo fato de estar sofrendo que ele busca análise. E o que
p faz sofrer, senão seu sintoma? Acontece que este mesmo sintoma que o faz sofrer
é sentido como um corpo estranho, como um sofrimento que lhe é infligido de fora,
por um outro, seja ele quem for. Assim, tal sofrimento poderia ser-lhe também
extirpado por um outro — sempre pequeno outro — que, no caso, seria o analista.
A expectativa é, pois, de uma relação dual, imaginária, deixando-nos perceber
claramente que este sintoma nada tem ainda de analítico, uma vez que o sujeito
não se reconhece no mesmo.
O sintoma a ser escutado em análise é aquele que tem valor de mensagem —
"o sujeito recebe a sua própria mensagem, sob a forma invertida, do campo do
Outro", diz-nos Lacan. Para que um sintoma tenha valor de mensagem a ser
decifrada será preciso, antes de mais nada, que o sujeito nele se reconheça, que
nele se sinta implicado. Só então poderá o sintoma se constituir em verdadeira
demanda que, ao ser dirigida ao campo do Outro, no qual inicialmente se situa o
analista, retornará ao sujeito sob a forma de uma pergunta. O sujeito se questiona,
então, sobre o seu sintoma (Por que faço isso? Por que sinto isso? Sou normal?),
sobre o que ele é (Quem sou eu?), sobre o que o Outro quer — é o Che Vuoi? —
testemunha da divisão do sujeito e de sua alienação fundamental ao desejo do
Outro, na medida em que, ao questionar o desejo do Outro, é sobre o seu próprio
desejo que se interroga.
Este é o momento da demanda de análise, em que o analista é posto no lugar
do sujeito suposto saber, do saber suposto como podendo responder a pergunta do
sujeito. O analista sustenta a função de sujeito suposto saber, embora sabendo que
não tem o saber que lhe é demandado. Não se deixando enganar, sustenta o engano,
possibilitando assim & fixação da transferência. Sustentar o engano, porém, não
LETRA FREUDIANA-Ano X - n 8 9 19
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
De que demanda e de que transferência se trata no que diz respeito aos pais?
Quanto à demanda, não se trata, é claro, da demanda em que o sintoma se
constitui e que, ao se dirigir ao campo do Outro, retorna ao sujeito como pergunta
sobre o seu desejo. Pergunta que, ao ser relançada ao analista e ficando sem
resposta, permitira o surgimento do desejo. Esta é a demanda na qual o desejo
alienado se articula e que, só em análise, pode ser escutada. É a demanda que o
sujeito, adulto ou criança, terá que formular. A demanda dos pais, é, pois, outra
coisa. A questão é escutar de que ordem ela é, já que se trata de uma demanda para
a análise de outro sujeito — o filho.
No que se refere à transferência dos pais, não podemos vê-la como a trans-
ferência que é escrita no materna, no qual o significante da transferência é o agente
da instauração transferenciai e de um primeiro surgimento do sujeito. Esta é
reservada apenas e justamente ao sujeito que surge para a análise e que, no caso,
é revestido pelo corpo da criança. Algo há, porém, de transferência, em se tratando
dos pais, pois, de outra forma, seria praticamente impossível a análise com a
criança. Talvez possamos falar, em relação aos pais, numa transferência afetiva,
mas considerando sempre que afeto, em Lacan, não tem nada a ver com sentimento
e sim com um corpo que é afetado pelo significante. Este significante poderia ser,
num primeiro momento, "psicanálise", depois o nome do analista, em relação ao
qual haverá uma certa suposição de saber, sem, no entanto, haver a instituição do
sujeito suposto saber. No caso dos pais, no que diz respeito à transferência, faltaria
sobretudo o próprio significante da transferência, uma vez que não haveria o sujeito
sintomático, aquele que é representado por seu sintoma enquanto significante e
que, como tal, dirige-se ao analista para ser escutado.
Assim, as entrevistas preliminares com os pais são fundamentais, também no
sentido de que permitem que apareça ou não a transferência afetiva com a
psicanálise, substituindo-se esta por um particular analista qualquer—aquele que
tem um nome que o marca e que poderá vir a ser o analista de seu filho. Seja como
for, a transferência dos pais fica mais como vínculo intersubjetivo e, portanto, no
nível imaginário.
Foi Lacan que atraiu a atenção sobre a importância das entrevistas preliminares,
já um tanto tardiamente, em O saber do psicanalista, no qual faz a teorização sobre
as mesmas. É, pois, na clínica lacaniana que elas adquirem uma importância
específica.
Na clínica kleiniana não há entrevistas preliminares como tempo de instauração
da transferência, o que fica explicado quando M. Klein diz textualmente que, nas
Que "a transferência pode se definir como amor" é também o que diz Lacan no
Seminário VIII, onde vamos ouvi-lo dizer ainda: "o problema do amor nos
interessa, na medida em que vai nos permitir entender o que ocorre na transferência,
e diria, até um certo ponto, na causa da transferência". O amor está pois, na causa
da transferência, na causa deste "fenômeno em que estão incluídos juntos o sujeito
e o psicanalista", como coloca também Lacan, em 1964, no Seminário XI. "É —
continua ele—um fenômeno essencial ligado ao desejo como fenômeno nodal do
ser humano e que foi perfeitamente articulado no Banquete, de Platão—um texto
em que se debate sobre o amor". Diz ainda Lacan que "o momento essencial, inicial,
ao qual se deve reportar a questão que temos que nos colocar, da ação do analista,
é aquele em que é dito que Sócrates jamais pretendeu nada saber, senão o que diz
respeito a Eros, quer dizer, o desejo... Platão não pode fazer mais que nos indicar
o lugar da transferência".
Vemos, então, claramente apontado por Lacan que o lugar da transferência é o
amor e que, em um texto em que Platão estabelece um debate sobre o amor, o de
que se trata é também do desejo. "Sócrates pretende não saber nada, salvo saber
reconhecer o que é o amor (o Eros), quer dizer—afirma Lacan—o desejo". Iguala,
assim, o amor ao desejo, na medida em que o percurso de um é o percurso do outro,
na busca de algo que nunca vai se completar. "Na análise—diz Lacan—o sujeito
vai em busca do que tem e que não conhece, o que vai encontrar é isso que lhe
Salta". E ainda:wé nesse tempo, nessa eclosão do amor de transferência que deve-se
ler esta inversão de posição que, desde a busca de um bem, faz a realização do
desejo". Entendamos aqui realização do desejo como "emergência à realidade do
desejo como tal". A pergunta de Sócrates a Agatão é: "pode alguém desejar o que
já tem?"
Temos já agora um pouco mais de clareza quanto ao que significa dizer que a
estrutura da transferência é a do amor e a do desejo, que apontam para a falta e,
portanto, para o objeto. Vejamos, então, qual é afinal, esta estrutura.
Quando Lacan toma o Banquete — um texto de discursos—para aí mostrar a
estrutura do amor de transferência, podemos pensar que não é por acaso: falar de
discurso é falar do simbólico. De saída, pois, Lacan está colocando o amor de
transferência dentro de uma estrutura simbólica e que, como tal, obedece às
mesmas leis que regem a linguagem—a metáfora ea metonímia. Estas são também
as leis segundo as quais trabalha o inconsciente, na medida em que é estruturado
como uma linguagem, isto é, formado por significantes que trabalham. A trans-
então, como causa, o desejo do analista, que deve ser apenas, e nada mais, o de ser
causa do desejo.
Sq
s (Si, S 2 ... Sn)
Sendo:
S — significante que representa o sujeito
S q — significante qualquer, frente ao qual o sujeito é represen-
tado sobre a barra
s (Si, S2... Sn) — saber não sabido do inconsciente (S2), formado pela cadeia
de significantes articulados.
Na primeira linha está o significante (S) da transferência que representa o sujeito
para outro significante; neste caso o significante qualquer (Sq). O sujeito é
representado por seu sintoma enquanto significante, que se dirige a um particular
analista qualquer. O analista é, pois, colocado no lugar do significante qualquer
(Sq), mas que, sendo qualquer, supõe uma particularidade do lado do analista e da
análise. O paciente diz: "meu analista".
Na Proposição, Lacan se refere a esta particularidade "no sentido de Aristóteles",
ou seja, da lógica aristotélica que implica a lógica de classe. Se se diz — "meu
analista", "um analista"—é porque há constituída a classe dos analistas.
Nesta primeira linha do materna da transferência, vemos bem precisado o caráter
binário do significante, uma vez que não há um significante sem outro significante.
A respeito da segunda linha, diz Lacan: "sob a barra, o s representa o sujeito,
implicando no parêntese o saber, suposto presente, dos significantes no incons-
ciente, significação que ocupa o lugar do referente ainda latente nesta relação
terceira que o junta ao par significante/significado".
Tentemos ler o que está sendo dito. Em primeiro lugar, o sujeito, para Lacan,
não é uma subjetividade e, pela formulação que faz do sujeito suposto saber,
podemos dizer que o sujeito é só a suposição de trabalho inconsciente. O sujeito é
qual aponta todo o trabalho da transferência, mas que ainda não está lá. É o referente
latente, em cujo lugar está o saber sob a forma de significação encobridora.
O sujeito, em análise, dirige-se ao analista, que ele coloca no lugar do sujeito
suposto saber, demandando-lhe um saber que este não tem. Coloca, portanto, o
saber no lugar de objeto de desejo. O objeto está, então, do lado do Outro e,
recoberto pelo saber, sustenta a demanda na transferência. Ao não responder à
demanda, o analista, na sua função de causa, faz aparecer o desejo, permitindo que
se realize o trabalho da transferência, ao mesmo tempo, em que é, de certa forma,
deslocado do lugar de sujeito suposto saber. Ocupando o lugar de objeto causa de
desejo, sai do campo do Outro, permanecendo nele apenas como falta.
Por outro lado, o sujeito em análise, que busca o objeto de seu desejo, objeto
que nada mais é que saber o lugar que ele ocupa no desejo do Outro, esse sujeito,
pela via da associação livre, irá construindo tal saber, até chegar à descoberta final
— a de que, no desejo do Outro, ele é apenas objeto a causa do desejo. Esse é o
momento final de análise em que, do lugar que ocupava de semblante de objeto a
o analista cai definitivamente como resto.
Vemos então que o objeto a esteve aí o tempo todo, ainda que recoberto pelo
saber e que, em torno dele, se faz o trabalho de análise.
Quando se disse a princípio que a análise é o trabalho da transferência, vemos
que isto fica confirmado no final de análise. Foi o amor de transferência que
permitiu que o sujeito, de sua posição de objeto amado, de objeto de desejo do
Outro, passasse finalmente a objeto causa de desejo. E este é todo o trabalho de
uma análise...
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