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Breves reflexões sobre a Justiça Penal Restaurativa

Elaborado em 02/2010.

Por muito tempo a racionalidade penal esteve associada à lógica conflitual. Diz-
se que a Justiça Punitiva (espaço do conflito) contenta-se em condenar ou absolver
alguém, mas não almeja resolver o problema criminal, sendo-lhe indiferente aspectos de
extremo relevo, como a situação da vítima, e a do próprio infrator, além de não atender
às expectativas da comunidade.

Conforme anotado por Raffaella da Porciuncula Pallamolla, este sistema de


justiça conflitiva se submete ao postulado simplista segundo o qual se alguém comete
um crime, merece ser punido. Desconsidera-se, portanto, o contexto e a complexidade
do crime enquanto fato social, socorrendo-se de um "dualismo fundamental", que
[01]
dicotomiza culpa/inocência, bem/mal, sociedade/delinquente . Na feliz expressão de
Luiz Flávio Gomes, o modelo clássico "atua guiado mais por critérios de eficiência
administrativa do que de justiça e equidade" [02].

Embora os problemas da Justiça Punitiva possam ser largamente apontados,


ainda mais ante a constatação prática da falência do sistema prisional, o elemento
psicológico de atemorização ante a possível sanção penal não pode ser desconsiderado.
Ademais, a própria noção de devido processo legal (com os postulados que dela
decorrem) é, ao que me parece, melhor trabalhada no contexto da Justiça Conflitiva, até
mesmo porque cunhada sob essa perspectiva de resolução dos litígios.

Como uma alternativa – ou um complemento – a este sistema, tem ganhado


força o modelo consensual de Justiça Penal (espaço do consenso – conciliação,
transação, acordo, mediação ou negociação), em que se destacam dois sub-modelos,
quais sejam o modelo pacificador ou restaurativo e o modelo da Justiça Criminal
negociada (plea bargaining) [03].

No modelo restaurativo, as principais formas de resolução dos conflitos são a


conciliação, típica dos Juizados Criminais (Lei 9.099/1995) e apropriados aos crimes de
menor potencial ofensivo, e a mediação, a ser conduzida por mediadores profissionais
(terceiros imparciais) e que se destina, normalmente, a delitos de média gravidade,
visando à integração social de todos os envolvidos no fato [04].
Neste modelo, avulta de importância o diálogo (e não a intimidação), o qual,
conforme sustentam Raye e Roberts são tão ou mais importantes que o próprio
resultado da intervenção, favorecendo soluções não violentas ou não adversariais [05].

Já no modelo da plea bargaining, de inspiração norte-americana, a pedra de


toque é a negociação direta entre acusação e defesa, a ser homologada judicialmente, e
que "permite acordo sobre todos os aspectos penais (sobre pena, sobre a definição do
[06]
delito, perda de bens, forma de execução da pena etc.)." . Este sub-modelo é
duramente criticado por parte da doutrina, em razão de incentivar a assunção da culpa
pelo acusado, violando, assim, o princípio da presunção da inocência, já que se impõe
pena sem um devido processo penal da forma como concebido modernamente, com
todas as garantias e ele inerentes. Além do mais, "somente o promotor dispõe de poder
real de negociar e estabelecer as condições e o preço do negócio. Não existe, pois,
contradição nem igualdade de armas" [07].

De referência às vantagens do modelo restaurativo, cabe trazer à baila a


percuciente observação de Luiz Flávio Gomes, para quem

"os sistemas de mediação-conciliação (como ainda pondera Garcia-Pablos) são


mais exigentes com o infrator, de quem reclamam uma sincera mudança de atitudes,
mediante o processo de comunicação e interação com sua vítima. Não basta, pois, o
cumprimento do castigo, nem a reparação do dano causado: pretende-se uma
mudança qualitativa no infrator, de tal modo a implicá-lo ativamente na solução
do conflito que ele ocasionou" [08]

Acrescente-se também a dinamização do papel da vítima, que passa a ter suas


necessidades levadas em consideração, ao contrário do que acontece na Justiça Penal
clássica, em que, no final das contas, a vítima é tragada pelo pernicioso sistema penal,
sendo caracterizada por sua passividade. Como bem notou Lode Walgrave, no modelo
pacificador, "o ofendido está envolvido não porque alguma coisa deve ser feita com ele,
mas porque isto promoverá restauração" [09].

Ressalte-se, contudo, que o próprio modelo consensual de solução dos conflitos


penais não é indene de críticas. A precipitação dos operadores do direito pode
descambar num quadro de privatização total da justiça criminal e de mercantilização do
conflito. É preciso cautela.

A esse respeito, e para finalizar, vale a pena trazer à baila a observação de Luiz
Flávio Gomes, para quem

"Mediação e conciliação oferecem um balanço positivo quando, sem


pretensões utópicas de universalidade, circunscrevem seu objeto a conflitos
concretos (ex. de jovens e menores, infrações de escassa importância etc.), que
envolvem infratores primários. Mas correm o risco de se transformar em perversas e
nocivas expressões de um tratamento privatizador inadmissível do conflito
criminal, quando aspiram a operar como alternativa global do sistema - leia-se: da
resposta pública e institucional ao delito -, alternativa externa, iludindo o controle
jurisdicional e as garantias do cidadão que as instâncias do controle social devem
respeitar."

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GOMES, Luiz Flávio. Justiça Conciliatória, restaurativa e negociada. Material da 1ª


aula da Disciplina Novos Temas do Direito Processual Penal, ministrada no Curso de
Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtutal em Direito Processual – Anhanguera -
UNIDERP/REDE LFG.

GOMES, Luiz Flávio. Justiça Penal Restaurativa: Perspectivas e Críticas. Disponível


em: http://www.blogdolfg.com.br. 27 junho. 2007. Material da 1ª aula da Disciplina
Novos Temas do Direito Processual Penal, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato
Sensu TeleVirtutal em Direito Processual – Anhanguera - UNIDERP/REDE LFG.

PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: da teoria à prática.


São Paulo: IBCCRIM, 2009 (Monografias/IBCCRIM; n. 52).

Notas

1. PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: da teoria à


prática. São Paulo: IBCCRIM, 2009 (Monografias/IBCCRIM; n. 52), p. 70.
2. GOMES, Luiz Flávio. Justiça Conciliatória, restaurativa e negociada.
Material da 1ª aula da Disciplina Novos Temas do Direito Processual Penal,
ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtutal em Direito
Processual – Anhanguera - UNIDERP/REDE LFG, p. 14.
3. GOMES, Luiz Flávio. Ob. Cit., p. 13.
4. Anote-se, por oportuno, que a mediação, enquanto modalidade de resolução dos
conflitos penais, não encontra guarida no ordenamento brasileiro, embora não
faltem opiniões pela sua implementação, de lege ferenda.
5. RAYE, B. E.; ROBERTS. A. W. apud PALLAMOLLA, Raffaella da
Porciuncula. Ob. Cit., p. 106.
6. GOMES, Luiz Flávio. Ob. Cit. p. 14.
7. GOMES, Luiz Flávio. Ob. Cit. p. 16.
8. GOMES, Luiz Flávio. Ob. Cit. p. 13.
9. WALGRAVE, Lode apud PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Ob. Cit.,
p. 74.

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