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Cada vez mais vêm se intensificando, dentro da ampla gama de assuntos que
tratam do tema biodiversidade, os trabalhos que relacionam o papel das práticas de
manejo (pretéritas e atuais) utilizadas pelos mais diferentes povos na conservação e
geração da diversidade de recursos fitogenéticos.
Estudos3 realizados na região Amazônica já apontam que vários ambientes,
classificados em função de sua estrutura e composição florística como “primários”, podem
ser herança de um sistema manejado durante séculos e séculos por práticas como a
agricultura de corte e queima, coleta e remanejamento de espécies nativas, entre outras.
Assim como a região Amazônica, as áreas pertencentes ao que chamamos hoje
de domínio Mata Atlântica também foram habitat original de diversos grupos indígenas
que há muito ocupavam e modificavam ambientes através de suas práticas de
subsistências.
Evidências etnohistóricas e arqueológicas a este respeito podem ser observadas
em estudos e registros relacionados, especialmente, aos povos de filiação lingüística
Tupi-Guarani e seu vasto domínio por todo leste da América do Sul.
Na arqueologia, trabalhos como os de Schmitz (1991) e Scatamacchia (1984;
1993-1995) discutem a hipótese da existência de duas rotas migratórias ligadas à tradição
Tupi (com distribuição mais para o Norte do País, baseando sua subsistência no cultivo
da mandioca) e à tradição Guarani (ocupando uma posição meridional, cultivadores de
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Edição deste artigo foi publicada em ”Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza
– o desafio das sobreposições”. ISA – Instituto Socioambiental, novembro de 2004.
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Engenheira Agrônoma do CTI - Centro de Trabalho Indigenista / Programa Guarani. Mestre em Ciências
Florestais pela ESALQ/USP.
Nota: As informações contidas neste texto são provenientes de trabalhos contínuos realizados em áreas
Guarani do litoral Sul do Rio de Janeiro, litoral Sul de São Paulo e Vale do Ribeira; participações em GTs de
estudo e identificação de Terras Indígenas pela FUNAI – Fundação Nacional do Índio em áreas Guarani do
Litoral Norte e Sul de São Paulo e Litoral Norte de Santa Catarina e, ainda, de todo um acervo produzido pelo
CTI em mais de vinte anos de trabalho junto aos Guarani Mbyá.
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Balée (1989a; 1989b)
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milho) que vieram a se encontrar na costa atlântica brasileira num tempo muito anterior à
chegada dos colonizadores europeus.
Documentos produzidos nos séculos XVI e XVII, como por exemplo os de José de
Anchieta, Jean de Léry, Hans Staden, Nunez Cabeza de Vaca, apontam para as práticas
agrícolas autóctones desses povos, diversidade de plantas domesticadas cultivadas e
espécies nativas de uso indígena em áreas de Domínio Atlântico.
Se é possível, nesses estudos e registros, reconstruir um pouco do passado
histórico e pré-histórico e verificar indícios de que este ambiente tenha sido manejado, é
praticamente impossível elencar com precisão quais seriam, de fato, os grupos indígenas
de filiação lingüística Tupi-Guarani que foram objeto dessas descrições.
No caso específico dos “Guarani”, o fato destes terem sido descobertos em
épocas, circunstâncias e localidades totalmente adversas, dificultou, por muito tempo, a
possibilidade de se fazer uma distinção clara, com base em dados históricos, de “todos
àqueles pertencentes a este grupo indígena”, de seus “locais ocupados e manejados”,
bem como de seu real “território” (Meliá, 1997).
De uma maneira geral, os falantes da língua Guarani se apresentavam
identificados nas fontes documentárias históricas com diferentes nomes que lhes eram
atribuídos, principalmente, em função dos diferentes locais onde tinham sido descobertos
(Meliá, 1997). Aranchãs, Chandris ou Chandules, Carios ou Carijós, Tapes, Tobatí,
Guarambaré, Itatí, Chiriguaná, Mbyasá, são alguns desses nomes (Scatamacchia, 1984;
Schmitz, 1991; Meliá,1997).
No Brasil, em meados do século XX, a nação Guarani contemporânea presente
em território brasileiro passa a ser classificada em 03 grandes grupos: Mbyá, Nhandeva e
Kaiowá (Schaden, 1974). As diferenças que geraram a classificação apontada por
Schaden se viam notadas no dialeto, costumes e práticas rituais de cada grupo Guarani.
Posteriormente, em função de outros trabalhos etnográficos como os de Ladeira (1992;
2001), pôde ser notado que as diferenças entre os pertencentes da nação Guarani
também se expressavam na forma de ocupação e apreensão territorial.
Nos dias de hoje, com o auxílio dessas e outras produções bibliográficas, já é
possível abordar sobre as formas de manejo do ambiente de um determinado grupo
Guarani, fazendo uma correlação entre seus “locais e formas de ocupação”, “espaços
territoriais” e “organização sócio-cultural” - aspectos indissociáveis para um entendimento
mais amplo dos processos que agem sobre a biodiversidade.
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viver segundo os fundamentos mítico-culturais Mbyá são necessários locais onde existam
condições ambientais e sociais mais favoráveis para tal .
De uma maneira geral, sejam quais forem as localidades onde “se encontraram” e
“se encontram” as ocupações Mbyá, podemos afirmar que estas envolvem áreas
“originalmente” representativas de, praticamente, todos os ambientes hoje classificados
como pertencentes ao Domínio Mata Atlântica: Floresta Ombrófila Densa, Floresta
Ombrófila Mista, Floresta Estacional Semidecidual, Floresta Estacional Decidual, e outras
de suas formações vegetais associadas.
Não é difícil, portanto, visualizarmos que existem famílias que integram este Grupo
indígena manejando (pelo menos por um certo período de tempo) cada um desses
diferentes ambientes e as espécies que aí se estabelecem, seja para atender suas
finalidades de alimentação, construção de casas, construção de armadilhas para caça,
medicinais, confecção de artesanato e peças utilitárias, entre outras.
Em qualquer uma das formações vegetais citadas, as atividades de manejo são
comumente organizadas em função das diferentes fases lunares e de duas estações do
ano reconhecidas pelos Guarani4: o Ara Pyau (tempos novos - coincide com nosso
calendário pelo período primavera/verão) e o Ara Yma (tempos antigos - coincide com o
período de outono/inverno). As atividades agrícolas, por exemplo, são iniciadas no
interior das aldeias por volta de junho e julho (meados de Ara Yma) e só devem ser
realizadas durante a lua minguante. As atividades de coleta (com exceção das espécies
extraídas para comércio direto), podem ser realizadas em Ara Pyau e Ara Yma,
entretanto, sua prática também deve ser realizada apenas durante a lua minguante. Em
linhas gerais, a sazonalidade das atividades vai atuar de forma a regular o período de
exploração dos recursos e assim também se sucede para as demais atividades de
subsistência Mbyá.
Além das crenças e regras que definem o calendário de manejo dos recursos e
ambientes, as formas com que as famílias Guarani Mbyá manejam os recursos
disponíveis no meio vão estar diretamente relacionadas: (1) ao sistema de classificação
empregado para determinar os diferentes ambientes e seus significados simbólico-
culturais e utilitários e; (2) a mobilidade entre aldeias. Em cada uma dessas, podemos
verificar algumas práticas empregadas por este grupo para acesso e conservação dos
recursos presentes no meio.
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Tema amplamente abordado nos trabalhos de Cadogan (1960); Garlet (1997) e Ladeira (1992;2001).
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espécie rara segundo Kageyama e Gandara (1994); Kageyama et alli. (1998).
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plantas cultivadas Guarani presentes em roças familiares das aldeias da região sudeste do Brasil : milho
Guarani (“avaxí ju”, “avaxí yuyï ou avaxí mitaï”, “avaxí xï”, “avaxí takuá”, “avaxí pytã”, “avaxí ou”, “avaxí hü”,
“avaxí parakau ou vaká”, “avaxí pichingá ou avaxí pororó” Quando o milho aparece segregado no caracter
coloração dos grãos, este recebe a denominação “Pará”); batata-doce (“jety pytã”, “jety kara ü”, “jety mandiô”,
“jety andaí”, “jety xï” “jety ropé”, “jety ju” e “jety mbykuraãï)”; amendoim (“manduvi pytã guasu”, “manduvi
jukexï guasu” e “manduvi xï ou mirï”); feijão “de corda (“kumandá xaï” e “kumandá ropé”); aipim/ mandioca
doce (“mandiô karapeí” e “mandiô xï”); Coix lacrima (“kapiá guasu” e “kapiá mirï”); cabaça/porunga rasteira
(“yakuá”); sorgo sacarino (“takuareë mirï” ou “takuareë avaxí”); tabaco (“petÿ”); melancia (“xanjau pororó”) e
um cultivar (bastante utilizado para artesanato) denominado de “yva ü”, possivelmente pertencente ao gênero
Cardiospermum sp. (Felipim, 2001)
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CTI – Centro de Trabalho Indigenista (2003). Relatório Interno.
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A quantidade de anos pode variar em função do ambiente em a área em pousio se localiza, graus de
degradação do solo, banco de semente do solo, presença ou não de vegetação no entorno, entre outros.
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seqüência de manejo que possa prever “área cultivada por um período inferior ao que a
mesma permanece em pousio”.
Nas aldeias da região Sul e Sudeste é possível observar duas situações opostas:
áreas manejadas intensivamente através da prática de corte e queima e que se
encontram tomadas por sapezais ou outras espécies resistentes ao fogo e áreas
manejadas através da prática de corte e queima com intensidade de uso para plantio
variando de 1 a 3 anos.
A primeira situação citada pode ser notada em aldeias que apresentam poucos
locais recobertos com formações florestais ou poucos locais passíveis de serem utilizados
para agricultura. Conforme já explicado anteriormente, dentro das praticas Mbyá, para
não reduzir áreas com cobertura florestal, reduz-se a abertura de áreas de roça,
intensificando as atividades agrícolas em um mesmo local. Esta situação pode ser vista
nas aldeias de São Paulo – cidade (aldeias: Jaraguá, Krukutu e Barragem), aldeia de
Itaoca (Mongaguá - SP), aldeia de Miracatu (Miracatu – SP) aldeia Rio Branquinho de
Cananéia (Cananéia – SP), aldeia de Parati-Mirim – RJ, aldeia de Piraí (Araquari – SC),
aldeia Tarumã (Araquari – SC), entre várias outras.
Convém contextualizar que este fato ocorre em aldeias Mbyá cujos limites físicos
estabelecidos (oficialmente demarcados ou delineados pela ocupação vizinha não
indígena) são insuficientes para suas atividades de subsistência; aldeias cujos Mbyá
ainda são obrigados a dividirem suas áreas com outros ocupantes não-índios; aldeias em
que os Mbyá sofrem pressões de terceiros (proprietários das áreas onde os Mbyá
encontram-se locados, órgãos governamentais, etc) para não expandirem suas áreas de
roça em outras localidades; aldeias estabelecidas em locais que já se encontravam
bastante alterados, etc.
Já a segunda situação, áreas manejadas com menor intensidade de uso para
plantio, estas podem ser observadas em locais (demarcados ou não) cuja disponibilidade
de áreas com formações florestais permite às famílias Mbyá praticarem suas atividades
agrícolas e reservarem ambientes para suas outras atividades que não implicam em
supressão de vegetação para roça e moradia. Esta situação pode ser observada em
aldeias como Rio Branco de Itanhaém (Itanhaém – SP), Ilha do Cardoso (Cananéia – SP),
Sete Barras (Sete Barras – SP), Araponga (Parati – RJ), e em poucas outras áreas
ocupadas por famílias Guarani Mbyá.
Coincidentes ou não com áreas declaradas Unidades de Conservação, são nessas
aldeias que a agricultura de corte e queima pode ser praticada o mais próximo possível de
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sua lógica original, ou seja, dentro de uma dinâmica espacial e temporal que não implique
em problemas no potencial de regeneração natural do ambiente e diversidade de
espécies.
O trabalho realizado por Oliveira et alli. (1984) na Ilha Grande, Rio de Janeiro,
ilustra claramente isto. Investigando a diversidade de espécies nativas em áreas
manejadas pela agricultura de corte e queima submetidas a diferentes períodos de pousio
os autores chegaram a seguinte conclusão: quanto maior o período de pousio, maior a
diversidade de espécies - até um limite onde a área submetida ao pousio é dominada por
espécies características de estágios avançados de regeneração, seguindo naturalmente
sua própria lógica sucessional.
É bom deixar salientado que, mesmo quando praticadas em localidades e
ambientes favoráveis, as áreas de roça Guarani são relativamente pequenas,
principalmente quando observado o número de famílias residentes no local e suas formas
de manejo que visam aproveitar o máximo possível dos espaços destinados à agricultura.
São vários os fatores que influenciam no tamanho das áreas de roça como o número de
integrantes da família, condições ambientais locais, força de trabalho para as áreas de
roça, quantidade de sementes disponíveis, disponibilidade de área para plantio, tempo de
ocupação no local, entre outros. Entretanto, estas muito raramente ultrapassam 1,0
hectare de área cultivada por família extensa/ano agrícola.
A fim de desconstruir a maneira superficial e equivocada com que esse assunto
vem sendo tratado nos argumentos em prol da “desintrusão” de comunidades tradicionais
e indígenas do interior de áreas protegidas, várias produções bibliográficas podem ser
consultadas. Trabalhos como o de Boserup (1987), Hernani et alli (1987) e os já citados
Oliveira et alli (1994), Uhl (1997) e Bandy, Garrity e Sanchez (1994) abordam aspectos
produtivos e/ou ambientais da relação de intensidade do uso de uma determinada área de
roça de corte e queima e os anos em que esta é submetida ao pousio. Trabalhos como os
de Posey (1997), Balée (1989a; 1989b), Gómez-Pompa (1971; 2001), Adams (1994)
exemplificam e/ou discorrem sobre o papel desse sistema agrícola na estrutura e
composição florística de formações florestais maduras. Ainda, Kerr & Clement (1980),
Chernela (1987), Posey (1987), Altieri & Merrick (1997), Cury (1993; 1998), Peroni (1998),
entre outros autores, enfocam as interações do manejo agrícola com os processos de
conservação e de geração de diversidade genética de plantas cultivadas e não cultivadas
no interior de áreas de roça.
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