You are on page 1of 6

Para pensar a temporalidade nos novos tempos

Julio Pinto

Resumo

Faz-se, aqui, uma pergunta: em que medida a noção do tempo como


construto semiósico convencional, ligado a uma narrativa seqüencial
linearizante, se desarticula no ambiente digital, i.e., perde sua
referencialidade (tanto catafórica quanto anafórica) ou, em termos
especificamente semióticos, perde sua representatividade no interpretante
e sua referencialidade ao objeto. A pergunta se motiva por uma analogia
ao discurso, tal como tipicamente registrado em Virilio, que vem sendo
feito com relação à imagem em sua objetivação ou perda de caráter
representativo para se tornar unicamente um objeto fático ou, ainda, sua
assunção de um aspecto puramente presentativo no contexto digitalizado.

Palavras-chave: ambiente digital, narrativa, semiótica

Em sua já clássica abordagem à automação da percepção da imagem


pelas novas tecnologias, Virilio (1993:128) toca a questão da
temporalidade em termos da persistência mental da imagem, na medida
em que a persistência não é efeito apenas da retina, mas também da
memória das percepções oculares. Já que não há imagem fixa (da
perspectiva da fisiologia do olhar), não há garantia de univocidade
temporal, de vez que “a visão ... é um “travelling”, atividade perceptiva
que começou no passado para iluminar o presente, enfocar o objeto de
percepção imediata” (Virilio, 1993:129). O argumento de Virilio é o de que
esse objeto fático que captura o olhar não é mais o que ele chama de
“imagem potente”, mas um clichê que procura, através do olhar de quem
o vê, ganhar profundidade e preencher-se vicariamente de sentido. Dito
de outra forma, essa potência (=capacidade de referenciar e ser
interpretável) se esvazia, e sua percepção é puramente presente (ainda
que seja possível assimilar a sedução dessa imagem-clichê a uma
prospecção, i.e., a um lançar para o futuro).
www.intermidias.com
Para pensar a temporalidade nos novos tempos Intermídias 5 e 6

Assim, talvez seja possível a analogia sugerida acima, no sentido que uma
imagem (pelo menos a tradicional) é uma narrativa, se pensarmos a
narrativa mínima como a referência a pelo menos um antes e um depois
(1). Desse modo, o hipertexto deixaria de ser um símbolo potente na

medida em que sua narratividade se dissolve na imprevisibilidade dos


links que se podem associativamente acessar ao acaso, vale dizer, perde-
se justamente a anáfora a uma pré-existência significativa em nome de
uma sucessão de bits de presentidade (2).

O paradoxo está naquilo que provisoriamente chamaremos “tempo real”,


que parece destruir a estrutura mesmo daquilo que se pretende como
narrativa. Falo aqui, por exemplo, da fragmentação e da aparente perda
de narratividade da notícia, ou melhor, das inserções noticiosas que se
fazem a cada minuto nos jornais on line. Há, como lamenta Virilio (1993:
130) para a imagem, uma superficialidade que evidencia a decadência do
pleno e do atual num mundo de transparência e virtualidade.

E, para levar eu mesmo o raciocínio à frente, a dependência da


presentidade faz dessa imagem impotente, que precisa seduzir o olhar
para se encher de sentido (alguma semelhança com a histeria?), algo
especular, no sentido que U. Eco (1984: 202 e seguintes) dá à imagem do
espelho em termos de sua necessidade do presente (tanto do ser quanto
do estar presente). Mesmo tendo em mente a objeção que, no caso dos
espelhos, a presentidade da imagem necessita da presentidade do objeto
que é causa e referência dela, enquanto que, no caso da imagem técnica,
a presentidade do objeto não se afigura necessária, ainda assim temos
uma conexão em termos temporais: se a imagem digital é objeto, tal
como argumentam Virilio e outros, ela é signo de si mesma, e, portanto,
objeto de si mesma como signo. Tudo no presente, na medida em que ela
é clichê e esse tipo de signo pertence a uma sincronia por ser atemporal.
Daí talvez sua percepção como puramente presente. A discussão da
imagem no ambiente digital teria, portanto, o condão de explicitar a

www.intermidias.com 2
Julio Pinto Intermídias 5 e 6

presentidade que parece destruir aquilo de narrativa que estaria por baixo
(ou por dentro) da imagem no contexto extradigital.

Em termos de tempo narrativo, poderíamos dizer que há três elementos


básicos nos quais se basearia uma percepção do desenrolar dos
acontecimentos. Seria possível estipular uma referência (R), um momento
de fala (F) e um evento narrado (E). Sem pretender elaborar aqui todo
um arcabouço teórico (3), pode-se postular rapidamente a seguinte regra
de configuração:

Para a associação de R, F e E, a vírgula indica co-temporaneidade e o travessão indica


afastamento temporal no passado se à esquerda de F e prospecção se à direita de F.

Um tempo verbal do tipo pretérito perfeito é descrito como E,R – F,


enquanto que o mais-que-perfeito é E – R – F, o futuro é F,R – E , e assim
por diante. Dessa forma, uma situação típica de narrativa seria aquela em
que teríamos a configuração E,R – F do ponto de vista de quem escreve e
E – R – F do ponto de vista de quem lê. Quem escreve pensa o narrado
como sendo imediatamente anterior à escrita e quem lê se depara agora
com um evento que teve lugar antes de uma referência passada qualquer.
Quem lê, entretanto, efetua uma operação de elipse temporal na medida
em que assume um lugar de narrador, isto é, pensa a narrativa como
anterior a seu presente, e não ao presente do narrador, a menos que o
narrador (homo- ou intradiegético) explicite estar narrando fato anterior a
algo também já passado.

De qualquer maneira, a narrativa (ou o desenrolar da história, no caso da


imagem em movimento), tem seus R’s caminhando junto com cada novo
evento narrado/mostrado, que se torna referência para o seguinte e o
anterior. Em “vim, vi e venci”, o R de vi é “vim” e o R de “venci” é “vi”.

Recolocando a pergunta inicial referente ao contexto digital, portanto,


indagaríamos qual seria esse R e onde se situaria o E. Seria o caso de um
permanente F,R,E com uma perene co-temporaneidade, especialmente no
caso já citado do jornalismo on line? Parece uma pergunta trivial, na
www.intermidias.com 3
Para pensar a temporalidade nos novos tempos Intermídias 5 e 6

medida em que sabemos que, por mínima que seja a distância temporal
entre um fato e seu registro como evento (mesmo que o registro seja
síncrono com sua recepção), há uma distância e, portanto, está
configurada uma narrativa. Haveria a mesma situação no caso da
imagem?

Certamente, o caso das imagens convencionais corrobora a postulação de


que há nelas uma narrativa. Peirce nos diz, a respeito das imagens, que

Um signo por primeireza é uma imagem de seu objeto, e, falando mais estritamente, só
pode ser uma idéia. Pois ele deve produzir uma idéia interpretante e um objeto externo
excita uma idéia por uma reação no cérebro. Mas, estritamente falando, mesmo uma
idéia, exceto no sentido de uma possibilidade, ou Primeireza, não pode ser um ícone.
Qualquer imagem material é grandemente convencional em seu modo de
representação.(4) (CP 2.276).

Há muita coisa nessa caracterização do signo primeiro. Em primeiro lugar,


a curiosa frase “um objeto externo excita uma idéia por uma reação no
cérebro” já, de maneira implícita, temporaliza a relação de representação.
Em segundo lugar, fala de imagem como idéia, isto é, algo que é a partir
de algo (ou algo no tempo, novamente). Em terceiro lugar, não existe
representação puramente icônica, isto é, puramente analógica, já que
“qualquer imagem material é grandemente convencional em seu modo de
representação”. O termo “convencional” é utilizado aqui de maneira
inequívoca para se referir àquilo que Peirce chama de “thirdness”, que é
da ordem da previsão e, portanto, do futuro. A previsão consiste no
cotejamento de repetições passadas de um evento a fim de produzir uma
projeção com razoável grau de certeza que o evento provavelmente
ocorrerá. O que seria uma imagem digital senão um interpretante
numérico destinado a fazer ocorrer futuras manifestações da imagem? A
imagem digital é, claramente, uma convenção e seria, portanto, também
uma previsão, na medida em que também se inscreve na terceireza,
assim como qualquer outra imagem técnica vinda de qualquer outro meio.
Em um certo sentido, aliás, ela é muito mais previsível que as imagens
analógicas no sentido de sua manifestação e talvez também no sentido de
sua interpretação, já que, como diz o próprio Virilio, são clichês.
www.intermidias.com 4
Julio Pinto Intermídias 5 e 6

Mas as imagens são signos primeiros. Isso quer dizer que outros signos
são segundos e terceiros. Temporalmente, os signos em segundeza (os
famosos ícones, índices e símbolos) são aqueles que são pensados como
referentes a um objeto, um “it” anterior a eles. Dizendo de outra forma,
são signos para (e de) um passado. Ao produzirem interpretantes, esses
signos mudam de categoria e passam para a terceireza (tornando-se,
assim, remas, dicissignos, argumentos), experiência que joga o passado
para o futuro em uma operação preditiva. Os signos primeiros, voltando a
eles, são só vistos como signos, sem referência e sem interpretação, e
são, por essa mesma razão, justamente pensados como signos de puro
presente que, parece, não podem existir (já que não existem ícones
puros).

Teríamos aí uma aporia? Segundo os profetas da hecatombe, essas


imagens digitais são puro clichê (portanto, previsão totalizante de
interpretação) e, em termos semióticos, convencionais e terceiras. Mas,
dizem eles, são imagens do eterno presente e, em termos semióticos,
pré-reflexivas e primeiras. Ora, primeiras ou terceiras?

Semioticamente, ambas. Narrativamente, ambas. Em um hipertexto, não


aconteceria o mesmo deslocamento contínuo de R, de forma que o E
anterior sempre se torna R do seguinte, assim como em qualquer conto
de fadas? Ou será que existe o efeito da imprevisibilidade, realmente
tornando cada link um presente absoluto? Entretanto, já sabemos que um
presente absoluto não pode ser, porque vai se referir imediatamente ao
node anterior como seu R, constituindo, no mínimo, uma relação indicial
(que é o que basta para configurar narrativa, já que o que são o antes e o
depois senão índices um do outro, até nos anúncios de chás
emagrecedores?)

De qualquer maneira, perguntas.

www.intermidias.com 5
Para pensar a temporalidade nos novos tempos Intermídias 5 e 6

Notas

1 Ver, a esse respeito, comentário em PINTO, 1989, cap. I.

2 O conceito de hipertexto que está a informar essa afirmativa é o de LEVY,


1999.

3 A teoria é explicada em detalhe em PINTO, 1989.

4 CP 2.276 (de acordo com a forma de citação tradicional em estudos


peirceanos, com a sigla CP – relativa a Collected Papers, o número do volume e o
número do parágrafo).

Referências Bibliográficas

ECO, Umberto. Semiotics and the Philosophy of Language. Bloomington, IN:


Indiana University Press, 1984.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999.

PEIRCE, Charles S. Collected Papers. Vol. II. Elements of Logic. Cambridge:


Harvard University Press, 1960.

PINTO, Julio. The Reading of Time. Berlin: Mouton de Gruyter, 1989.

--------------. 1, 2, 3 da Semiótica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995.

VIRILIO, Paul. A imagem virtual mental e instrumental. In: PARENTE, André


(org.). Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed.
34, 1993, p. 127-132.

Júlio Pinto é PhD., Professor de Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de


Minas Gerais. juliopinto@pucminas.br

www.intermidias.com 6

You might also like