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A LITERATURA INFANTIL COMO MEDIAÇÃO AO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA:

CONTRIBUIÇÕES DA ESCOLA DE VIGOTSKI


(The Child Literature as an intervention in the child development: contributions of Vigotski’s
School)

Michelle de Freitas BISSOLI (FAFID/Dracena)

ABSTRACT: This article makes to think about the importance of child’s literature for the child’s
development, pointed out in Vigotski’s School studies about the relationship between cultural productions
and psycho-childhood development. The child book is considered to be a kind of cultural artistic
production, with educational function.

KEYWORDS: child’s literature; development; Vigotski’s School; pedagogical practice.

A questão da leitura tem assumido, nos últimos anos, de forma cada vez mais evidente, uma
posição central nos debates que se referem à educação (Perrotti, 1990). É passível de observação a
preocupação generalizada entre os educadores quando o assunto é a criação da prática de leitura entre
crianças. Busca-se, continuamente, atribuir a não-leitura a outras modalidades de produção cultural para a
infância ou com as quais a criança toma contato — programação da televisão, histórias em quadrinhos,
filmes, jogos eletrônicos, INTERNET — o que, à medida que eleva a literatura infantil a um status
privilegiado, tendo em vista a preferência que desperta quando se trata de optar por um produto cultural
mais “adequado” à criança, sob o ponto de vista dos educadores — pais e professores —, diminui a
importância atribuída aos demais.
Na escola, é bastante comum a valorização do trabalho com livros de literatura infantil, em meio
à diversidade de textos a serem explorados. Entretanto, uma ressalva se faz necessária: é importante
salientar que, apesar de o trabalho docente já ter incorporado algumas das contribuições teóricas de
autores que tratam da exploração de diversos tipos de texto, em seu uso social — como é o caso dos
estudos realizados por Jolibert (1994a,1994b) e seus colaboradores, Emilia Ferreiro
(1985,1986,1988,1990), Ana Teberosky (1989,1994,1996), dentre tantos outros —, este uso de textos
diversificados tem se dado mais por intermédio da nova configuração dos livros didáticos do que por
opção embasada num necessário aprofundamento teórico. E, nesse sentido, infelizmente, a literatura
infantil, de maneira particular, ainda encontra-se à mercê de uma prática bem pouco efetiva e consciente,
se o que se deseja é que o aluno torne-se um leitor desta modalidade literária.
A literatura infantil tem sido alvo de inúmeras campanhas de promoção de leitura, de simpósios,
de conferências, de trabalhos científicos, principalmente, no Brasil, a partir da década de 70. A escola,
entretanto, tem alterado muito pouco sua prática em relação ao livro para crianças. Predomina um
despreparo dos professores, muitos não-leitores, para a implementação de práticas efetivas de
leiturização1[1]. Despreparo este que já tem seu início tanto na formação do profissional docente como na
própria caracterização da literatura infantil como objeto produzido para educar, tarefa que remonta sua
criação na Europa dos séculos XVII e XVIII.
São exemplos desse empenho pela formação do hábito de leitura a criação da Fundação Nacional
do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), em 1968, integrada à International Board on Books for Young
People, fundada em 1953 e ligada à UNESCO e, mais recentemente o Projeto Pró-Leitura na Formação
do Professor, que constitui um programa de cooperação educacional entre Brasil e França, implementado
desde 1998 pela Secretaria de Educação Fundamental, órgão vinculado ao Ministério da Educação e do
Desporto.
É possível perceber, portanto, através dos exemplos citados, que as iniciativas ligadas à
formação do hábito de leitura entre a população infantil são relativas não só ao Brasil, mas ao mundo. Os
objetivos que nortearam e norteiam os movimentos em prol da leitura referem-se, de maneira geral, ao
1[1]
O termo leiturização foi extraído da obra de Jean Foucambert (1994) e refere-se à capacidade de uso
da leitura como forma de comunicação social, superando o resultado do processo de alfabetização, muitas
vezes caracterizado pela prática de decodificação, pela preocupação com a questão da oralização e pela
não compreensão do material lido. Assim, leiturizar-se corresponde a formar em si competências sociais
de leitura e escrita, ou seja, utilizar-se da leitura e da escrita como formas de interação entre sujeitos,
mediadas pelos signos lingüísticos.
encorajamento da difusão da literatura infantil, de modo unificado entre os países partícipes, bem como à
promoção de investigações científicas e formação de profissionais ligados a ações educativas de
promoção do livro para crianças. No entanto, segundo Perrotti (1990), a crença na imagem-mito do livro,
como objeto de transcendência, gera, nas práticas de promoção da leitura, uma série de medidas
“assistencialistas”, que pretendem outorgar às crianças, através da Escola e da Biblioteca, o hábito de
leitura. Para que seja realizado um trabalho pedagógico capaz de formar leitores, é essencial que exista,
entre os educadores, a compreensão das especificidades de cada modalidade textual. A literatura infantil
deve ser, portanto, objeto de reflexão docente para que possa efetivamente contribuir para a formação do
aluno.
De acordo com o dicionário Aurélio (1994), literatura significa “qualquer um dos usos estéticos
da linguagem.” Assim, literatura infantil pode significar o uso estético da linguagem, voltado para a
apreciação do público infantil, o que implica a necessidade de considerar que o livro para crianças tem
especificidade artística. Sua contribuição para o desenvolvimento do psiquismo infantil está, pois,
relacionada à contribuição que toda forma de arte pode trazer para a humanização da sociedade:
possibilita a ampliação de referências sobre a realidade, a fantasia, a complexificação da compreensão do
mundo, a vivência de emoções especificamente humanas, a capacidade de criação.
Deste modo, parte-se da concepção de que a literatura infantil é uma forma de produção cultural
que porta em si toda uma confluência de linguagens, possibilitando, para além do desenvolvimento
intelectual, também o desenvolvimento emocional e do imaginário da criança. De acordo com Vigotski
(1995), o desenvolvimento lingüístico, intelectual e emocional da criança são diretamente influenciados
pela linguagem.
Neste sentido, a literatura infantil, assumindo sua posição de forma de linguagem artística que
possibilita a interação entre autor e leitor, mediada pela escrita e pela imagem  considerando que o livro
é constituído por um todo que reúne linguagem verbal e não verbal com significados complementares ,
desempenha uma função particular para o desenvolvimento psíquico da criança. Tal forma de produção
cultural

abre novas perspectivas ao leitor, não apenas no âmbito da experiência estética, mas
da existência como ela ainda pode ser vivida. O prazer estético nasce, pois, da
compreensão do sujeito com respeito à prática que vive e envolve participação e
apropriação. Na atitude estética, o leitor deleita-se com o objeto que lhe é exterior.
Descobre-se apropriando-se de uma experiência do sentido do mundo. Diante da
obra percebe sua própria atividade criativa de recepção da vivência alheia. É a
consciência desse processo que gera o prazer estético, equilibrando entre a
contemplação desinteressada e a participação interessada. Se o texto literário só se
realiza no ato da leitura é porque sua estrutura exige a função do leitor como foro
decodificador indispensável às múltiplas concretizações da estrutura textual.
Tendo em vista esses aspectos, é papel do professor motivar o prazer e
facilitar a recepção do texto pelos alunos por meio de um trabalho que vai reduzir a
distância entre o texto e o leitor real que tem muitas vezes de ampliar seus
horizontes de expectativas. (Brasil, 1998:41-2)

A sociedade contemporânea, marcada por uma visão estritamente utilitária do saber e do próprio
homem, tem valorizado de maneira contínua a formação cognitiva da criança, em detrimento das funções
que promovem uma maior autonomia de pensamento e ação.

Não é, portanto, de se admirar que a imaginação nas nossas escolas, ainda


seja tratada como a parente pobre, em desvantagem com a atenção e com a
memória; que escutar pacientemente e recordar escrupulosamente constituem até
agora as características do modelo escolar, o mais cômodo e maleável. (Rodari,
1982:137)

Assim, não se permite à criança uma aproximação do livro de modo descomprometido, uma
leitura que seja em si mesma uma atividade. E, neste bojo, desvaloriza-se a possibilidade que a criança
tem de dialogar com o texto, de atribuir seus próprios sentidos à obra, de fazer interagir as suas vivências,
a sua leitura de mundo com a leitura de mundo do autor.
É importante, pois, para que possa assumir sua função educativa, que a literatura infantil seja
concebida como um apelo ao desenvolvimento do imaginário, de importância capital para a própria
compreensão da realidade pela criança. Há, todavia, uma desvalorização da imaginação, considerada uma
função de importância menor por não resultar diretamente em produtos valorizados pela sociedade,
marcada pela visão utilitarista. E, conseqüentemente, desvaloriza-se a literatura infantil.
Com efeito, a literatura passa a ser utilizada como meio para se chegar a aprendizagens de
conteúdos escolares afastados de seu objetivo artístico. É como se a literatura infantil, tratada sob uma
abordagem estética, constituísse uma forma de afastamento entre a criança e a realidade. É como se a
imaginação fosse uma função meramente infantil, relegada ao desaparecimento com o passar do tempo.
De acordo com Vigotski, entretanto,

todas as nossas vivências fantásticas e irreais transcorrem, no fundo, numa base


emocional absolutamente real. Deste modo, vemos que o sentimento e a fantasia não
são dois processos separados entre si, mas, essencialmente, o mesmo processo, e
estamos autorizados a considerar a fantasia como expressão central da reação
emocional. (Vigotski, 1999:264)

Assim, a fantasia, o jogo, a brincadeira são consideradas neste artigo como formas possíveis e
eficazes de compreensão da realidade.

A brincadeira, o jogo, não são uma simples recordação de impressões


vividas, mas uma reelaboração criativa delas, um processo através do qual a criança
combina entre si os dados da experiência no sentido de construir uma nova
realidade, correspondente às suas curiosidades e necessidades. Todavia, exatamente
porque a imaginação trabalha apenas com materiais colhidos na realidade (e por isso
pode ser maior no adulto), é preciso que a criança, para nutrir sua imaginação e
aplicá-la em atividades adequadas que lhe reforçam as estruturas e alongam os
horizontes, possa crescer em um ambiente rico de impulsos e estímulos, em todas as
direções. (Rodari, 1982:139)

Daí a importância da literatura infantil. Trabalhando a fantasia, a imaginação, a criatividade, a


dialogicidade, ela permite à criança “tornar-se mais lúcida e mais flexível em sua própria manipulação do
real e do imaginário” (Held,1980:50).
Para que a literatura infantil possa contribuir efetivamente para o desenvolvimento amplo da
criança, para a elaboração de sua capacidade criativa e de compreensão do mundo, é importante
considerar que a criança apenas atingirá um elevado nível de expressão pessoal se tiver a possibilidade de
se familiarizar com a linguagem em suas mais diversas e ricas formas de manifestação. Somente assim
“descobrirá a linguagem como liberdade, como possibilidade de tudo dizer” (Held, 1980:215), não tendo
restringida a sua criatividade ao uso de uma única linguagem-norma.
Evidencia-se, assim, a importância de uma mediação docente intencional e sistematizada,
pautada em um profundo conhecimento do psiquismo infantil, de suas funções e do como desenvolvê-las
de modo a potencializar as múltiplas capacidades da criança. Cabe ao professor possibilitar a
aproximação entre a criança e as linguagens do livro, buscando enfatizar a ludicidade, a capacidade
criativa, a fantasia  funções que precisam ser desenvolvidas se o que se busca é a formação de um
indivíduo consciente e capaz de dominar sua própria conduta. O professor, neste sentido,

É um adulto em meio às crianças, pronto a exprimir o melhor de si mesmo, a


desenvolver em si mesmo os hábitos da criação, da imaginação, do empenho
construtivo em uma série de atividades que são enfim consideradas semelhantes: a
produção pictórica, plástica, dramática, musical, afetiva, moral (valores, normas de
convivência), cognoscitiva (científica, lingüística, sociológica), técnico-construtiva,
lúdica, nenhuma das quais deve ser tomada como entretenimento ou distração em
confronto com outras consideradas mais dignas. (...) No fundo, uma única matéria: a
realidade, abordada por todos os pontos de vista. Em uma escola desse tipo, a
criança não é mais uma “consumidora” de cultura e de valores, mas uma criadora e
produtora de valores e de cultura (...). É como se nela não existissem “escolares” e
“professores”, mas homens inteiros.(Rodari, 1982:142-3)

A literatura infantil tem, portanto, a função de, através da palavra e da imagem, favorecer um
enriquecimento do psiquismo infantil tanto em termos de aquisição de significados  no processo de
formação de conceitos  e informações, quanto em termos de vivências pessoais, de atribuição de
sentidos, de uma mais complexa forma de relação com a realidade.
Vale mencionar ainda que, de acordo com os estudos de Vigotski (1991), pode-se interpretar a
leitura dos livros infantis como uma forma de apropriação da linguagem do outro que, sendo
internalizada, passa a contribuir para a elaboração da linguagem interna e do pensamento do leitor,
influenciando, neste sentido, a formação dos motivos que caracterizam a personalidade de cada indivíduo.
Tal apropriação ainda possibilita, como resultado do processo de elaboração da fala do autor pelo leitor,
uma objetivação cada vez mais complexa, mediada pela palavra: a formação do escritor. Em suma,

A literatura fantástica e poética é, antes de tudo e indissociavelmente, fonte


de maravilhamento e de reflexão pessoal, fonte de espírito crítico porque toda
descoberta de beleza nos torna exigentes e, pois, mais críticos diante do mundo. E
porque quebra clichês e estereótipos, porque é essa criação que desbloqueia e
fertiliza o imaginário pessoal do leitor, é que é indispensável para a construção de
uma criança que, amanhã, saiba inventar o homem. (Held, 1980:234)

Em suma, a literatura infantil é considerada nesta reflexão como uma forma artística de
desnudamento da realidade e de ampliação de referências, essencial para uma prática pedagógica que
tenha por objetivo o desenvolvimento psíquico da criança. Destaca-se também a importância de esta
modalidade literária tornar-se objeto de reflexão por parte do professor, a fim de que possa ser utilizada
em todo o seu potencial formativo, superando o utilitarismo pragmático que marca o seu uso escolar.

RESUMO: Este artigo busca refletir sobre a importância da literatura infantil para o desenvolvimento da
criança, pautada nos estudos da Escola de Vigotski acerca da relação entre a apropriação dos elementos
culturais e o desenvolvimento do psiquismo. O livro infantil é considerado uma forma de produção
cultural artística, com função educativa.

PALAVRAS-CHAVE: literatura infantil; desenvolvimento; Escola de Vigotski; prática pedagógica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Projeto Pró-


Leitura na Formação do Professor. Brasília: MEC/SEF, 1998.
FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1995.
FOUCAMBERT, J. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
GERALDI, J. W. (Org.) O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel, PR: Assoeste,1984.
HELD, J. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São Paulo: Summus, 1980.
PERROTTI, E. Confinamento Cultural, Infância e Leitura. São Paulo: Summus, 1990.
RODARI, G. Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus,1982.
VYGOTSKI, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
VYGOTSKI. Obras escogidas III. Madrid: Visor, 1995.

http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/volumes/31/htm/comunica/CiII35a.htm

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