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IMPRESSIONANTES ESCULTURAS DE LAMA

Um romance de Sandra Oswald


Dedico este livro à memória de meu adorado pai,
Sérgio Machado dos Santos

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Agradeço à minha mãe Magdalena e à minha irmã Solange, pelo amor e
apoio incondicional de todas as horas

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O título deste livro foi inspirado numa frase da canção “Rios, pontes e
overdrives” de Chico Science e Fred Zero Quatro

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Apresentação

Durante pelo menos 20 anos sonhei em escrever a história de meu pai.


De todos os personagens míticos que tomei conhecimento ao longo da vida,
era justamente a saga dele a que mais me chamava atenção. Por um lado, por
ser tão empapada de dramaticidade, como nos enredos do grande teatro
clássico. Por outro, dado o seu total e absoluto anonimato. Ninguém reuniu,
para mim, com tantas contradições, o melhor e o pior de nossa admirável
condição humana. E, em busca do humano em nós, decidi contar sua história.

Um dos capítulos deste livro foi escrito em 9 de junho de 2007. Outro em


12 de junho do mesmo ano. E todo o resto, praticamente, entre 29 de março e
23 de maio de 2008. Entraram, também, materiais de duas outras fontes: um
livro que conta a formação do bairro carioca da Barra da Tijuca, ditado por meu
pai três anos antes, e uma hora e meia de um depoimento gravado em áudio
feito em 24 de julho de 1994, quando eu já buscava reter aquelas memórias.

Neste livro, há essencialmente registros isolados da vida de meu pai,


lances nem de longe tão interessantes da minha vida e momentos de nossa
vida em comum. De minha parte, o estopim gerador foi uma esterectomia que
se consumou em dezembro de 2006. Do lado dele, a ocorrência foi mais
definitiva, configurada na própria morte, em novembro de 2007. A
impossibilidade da vida, tanto numa perspectiva de passado quanto de futuro,
foi o elemento gerador desta obra.

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Sumário

Capítulo 1 — Pequenos gestos, grandes pessoas 07


Capítulo 2 — Um pedaço de destino 10
Capítulo 3 — Fatalidades 13
Capítulo 4 — Nervos 16
Capítulo 5 — Cirurgia 19
Capítulo 6 — A voz de meu pai 27
Capítulo 7 — A infância de meu pai 32
Capítulo 8 — Mais memórias de meu pai 45
Capítulo 9 — Parentesco 51
Capítulo 10 — Alguns acidentes 54
Capítulo 11 — Dificuldades 59
Capítulo 12 — Choro 64
Capítulo 13 — Cabelos e tijolos 68
Capítulo 14 — O lado materno da família: meu avô José 73
Capítulo 15 — Mais sobre a mãe de minha mãe 78
Capítulo 16 — A promessa de minha avó 80
Capítulo 17 — Primeira infância 84
Capítulo 18 — O fantasma 92
Capítulo 19 — Visitação 94
Capítulo 20 — Anos de escola 96
Capítulo 21 — A origem dos problemas 101
Capítulo 22 — Preliminares do sexo 103
Capítulo 23 — Brincadeiras infantis 108
Capítulo 24 — Meninos 111
Capítulo 25 — Ereção Companhia Limitada 114
Capítulo 26 — O céu da minha infância 117
Capítulo 27 — Destino de bicicleta 119
Capítulo 28 — Medos e confusões infantis 121
Capítulo 29 — Cucarachas 126
Capítulo 30 — De cara nova 131
Capítulo 31 — Uma máquina incrível 133
Capítulo 32 — Folha corrida 137
Capítulo 33 — Uma jornalista investigativa totalmente sem noção 149
Capítulo 34 — Amizade com começo, meio e fim 156
Capítulo 35 — Ganha, mas não leva 168
Capítulo 36 — Doutorado? Ainda não... 171
Capítulo 37 — Dona Marta 176
Capítulo 38 — Dona Marta, 10 anos mais tarde... 182
Capítulo 39 — Quase um filme de terror 186
Capítulo 40 — A estante do Paulo Coelho 190
Capítulo 41 — O mistério do INSS 194
Capítulo 42 — Mãos ao alto! 197
Capítulo 43 — Jogos e brincadeiras 202
Capítulo 44 — Cenas finais 205

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Pequenos gestos, grandes pessoas

Toda vez que acendo um fósforo, não me lembro de ninguém. Mas toda
vez que apago um fósforo, me lembro do meu avô. O pai da minha mãe. Isso
porque, uma vez, ao me ver tentar apagar um fósforo sacudindo o palito (e a
chama) perto de minhas longas madeixas de menina, ele disse, calma e
convincentemente: “assim você acaba botando fogo em alguma coisa;
experimenta assoprar assim, ó, que é mais fácil”. Eu devia ter, sei lá, uns sete
anos, mas o momento foi tão impactante que eu jamais esqueci.

Ultimamente tenho andado numa fase da vida em que minhas mais


constantes companhias aqui em casa, além da música, têm sido as velas e os
incensos. Acesos invariavelmente com fósforos, desde que meu isqueirinho
branco sumiu junto com o bolo de chocolate que levei para a creche onde era
voluntária uma manhã por semana. A cada fósforo aceso, um pensamento para
meu avô. E um agradecimento por ter tentado me lembrar que, para tudo na
vida, existe uma maneira fácil e uma outra, difícil, de fazer, de resolver. Essa é
a parte de que eu geralmente me esqueço, pelo menos quando estou prestes a
me meter numa encrenca que poderia evitar, ao dizer: suavidade!

Meu sobrenome artístico — Oswald — é uma homenagem ao meu avô


paterno que se chamava Oswaldo, assim mesmo, com W. Quando fiquei na
iminência de publicar meu primeiro livro, Berlim, 40 Graus, e não queria
confundir o lado artista com o lado jornalista — eu sempre assinei Machado
como repórter — decidi prestar uma homenagem ao meu avô analfabeto e
enderecei ao Céu dos Vovôs um pedido especial: “ô, vô! Você, que era
analfabeto, dá aí uma força pra sua netinha ver se dessa vez o livro sai”. Não é
que saiu?

A foto de casamento dos pais do meu pai é uma das mais lindas que eu
já vi na vida. Parece que é do ano de 1930, ou 1931. Os noivos estão num
estúdio, com um fundo infinito, ela usa um vestido curto, até a canela,
elegantérrimo, um buquê de flores naturais (odeio flor artificial e mais adiante

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explico por quê) e ele um terno branco. Meus avós tinham cara de gringos,
principalmente ele, todo magro e esticado como um gafanhoto, há quem diga
que tinha sangue de ciganos da Romênia. Realmente, uma das minhas tias,
filha mais velha deles, sempre me pareceu uma cigana perfeita, principalmente
pelas pesadas argolas de ouro que costumava usar.

Sei muito pouco sobre a vida do meu avô e acho que menos ainda sobre
a vida de minha avó Ynaiá (a mãe dela, Dona Olympia, gostava de batizar as
crianças com nomes indígenas, como parece ter sido moda na época).

Mas o modo como a vida dele terminou já me diz tudo que eu precisaria
saber. Parece que ele tinha 42 anos (e seis filhos) quando morreu. Como não
sabia ler nem escrever (minha avó também não), sustentava a filharada com os
biscates que conseguia arranjar. Segundo relato do meu pai, Sérgio, o segundo
filho homem, e terceiro na “escadinha”, e que sempre era o assistente, já que
os irmãos mais velhos tinham vergonha do trabalho infantil compulsório, houve
uma época em que fabricavam guarda-chuvas. Iam ao centro da cidade de
bonde comprar o material — as capas pretas (só faziam o modelo masculino),
as armações — e depois costuravam as capas nas varetas, o que lhes valia
numerosos furos nos dedos. Hoje em dia, dada a concorrência da China, não
existe um único guarda-chuva vendido no país que seja produzido aqui.
Quando a situação apertava, Oswaldo vendia raspadinhas, que eram
essencialmente lascas de gelo recobertas por um xarope de groselha,
verdadeira delícia para a garotada do Morro do Pinto, onde moravam,
mormente porque na época as poucas geladeiras disponíveis na vizinhança
refrigeravam à base de gelo seco.

Numa ocasião, tentou ele mesmo fabricar croquetes de camarão, mas a


massa ficou tão dura e intragável que o jeito era recolher somente o recheio e
jogar o resto fora. Por isso, ganhava a vida, no mais das vezes, ou pegando no
pesado na resistência no cais do porto ali ao lado ou como operário nalguma
fábrica de tecidos, farinha ou biscoitos. Parece que foi no Moinho Inglês que
ele e minha avó se conheceram. E resistência eram os biscateiros que ficavam
dando ponto nos locais da estiva e, bem mais fracos, só entravam em cena

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quando por acaso o número de fortões não era o suficiente para dar conta de
descarregar um navio.

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Um pedaço de destino

Segunda metade da década de 1950, Zona Portuária do Rio de Janeiro.


Provavelmente 1957, noite de 4 para 5 de maio, e ele era um rei em seu
castelo, e estavam os dois vazios e abandonados. Castelo foi o nome que meu
pai deu à casa onde viveu com a família enquanto teve uma. Depois que ela se
dispersou, e isso aconteceu num período relativamente curto, ele continuou
vivendo sozinho ali. Pior que isso. Em má companhia. Havia os ratos, as
memórias tristes e, mais inconveniente, a fome.

Foi por causa dessa última que nessa referida noite meu pai estaria a
caminho de romper com Deus, pelo menos por um bom tempo. Embora tivesse
sido coroinha numa época em que os padres molestarem criancinhas ainda
não havia virado moda ou, então, em que os casos eram mais bem abafados,
ele não era um homem nada religioso. Mas sempre conservou muita fé em
Deus, uma enorme simpatia por São Judas Tadeu, já que é o santo das causas
impossíveis, e igualmente por Santa Rita de Cássia, especialista também em
casos graves. Mesmo não tendo ligação na idade adulta com uma igreja
organizada, conservou um lado místico e um tanto supersticioso.

Tudo isso num período de fim de adolescência provavelmente


potencializou suas expectativas naquela noite de quebra de contato com o
paraíso. À toa na rua — que era o único aspecto familiar da infância que havia
conseguido preservar, com a perda dos parentes — encontrou um vizinho,
mais velho, que deve ter percebido o quanto estava à deriva. “Quer ir comigo
ao centro espírita? Você anda numa maré ruim e o pai-de-santo de lá é muito
bom. Como fica no subúrbio, a gente pega o primeiro bonde, salta no caminho,
e janta....”

Jantar. O amigo havia pronunciado a palavra mágica. Não precisava


ouvir mais nada nem de nenhum outro argumento convincente. A comida
bastava. Faria praticamente qualquer coisa por uma refeição. Topou na hora.
Afinal, no dia seguinte era o seu aniversário e seria um ótimo presente não ter
que acordar com a barriga assim tão vazia como ultimamente.

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Depois da refeição, se sentia disposto e animado. Sua sorte poderia
estar para mudar, afinal. Calado e mal vestido, seu 1,83 m de altura fazia com
que parecesse ainda mais magro. A linda cabeleira, que era negra, lhe dava
ares de ainda mais pálido. Mas agora nada mais importava. Mesmo lembrando
de sua educação católica, achava que tinha valido à pena o sacrilégio de ir à
macumba em troca de poder matar a fome.

Bem mais tarde, quando finalmente chegaram ao barraquinho de


madeira onde morava o pai-de-santo, que parecia ainda mais pobre do que ele
mesmo, o velho pegou uma tabuinha de madeira e nela fez uns desenhos com
a pemba. Estava lá, estava tudo lá. Ele era filho de Ogum, tinha proteção
contra todo tipo de quizila e agora sua vida ia dar certo, depois da benzedura e
das baforadas do charuto do pai. Saiu dali renovado. Era véspera do seu
aniversário, sua vida não podia estar pior e, no entanto, o invisível dizia que ela
ia melhorar. Piorar era impossível. Foi para casa dormir em paz e sonhar com a
partida de futebol do dia seguinte.

Porque, naqueles dias, era esse esporte o grande amor da sua vida.
Não pensava em mulher, não queria casar, nem ter família, nada, depois do
que aconteceu com a sua. Melhor viver sozinho para o resto da vida, e quanto
mais curta ela fosse, bem também. Pelado — esse era o apelido de infância
que permaneceu no futebol — era um goleiro dos bons e já ia começar bem o
dia, fazendo o que mais gostava.

O pai-de-santo previu apenas sorte. O jogo estava empatado. O pai-de-


santo viu caminhos abertos. Veio um atacante feito louco e deu um bicão na
bola. O pai-de-santo prometeu que iria ser feliz. A bola, pesada da chuva, e
que mesmo seca era bem mais pesada do que as de hoje, acertou em cheio o
seu peito e o derrubou com estrondo no chão. O pai-de-santo fez um
descarrego bom nele. Teve que sair de campo carregado e horas mais tarde
uma linha redonda e vermelha ainda continuava como uma marca sobre a pele.
Mas o que ele não sabia e que os santos lhe imprimiram no corpo, como
um aviso, como um chamado, como um destino, era a grande dor que estava

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por transformar, não apenas sua vida, mas principalmente os seus sonhos.
Ficou doente do peito. Não seria jamais um jogador de futebol. Ao invés disso,
um hospital de campanha esperava por ele, dali a bem pouco tempo, para uma
cirurgia de risco e de ponta, para a época, a fim de extirpar do pulmão o
pedaço carcomido pela tuberculose...

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Fatalidades

Em termos de personalidade, sempre achei que eu era muito parecida com


meu pai. Em comum, esse respeito desmesurado e quase dependente do
trabalho. Um senso de justiça ou, mais certo, horror à injustiça que sempre nos
moveu, mesmo nos menores tropeços do cotidiano. O amor pela música e
pelos livros. O interesse pelas notícias do país e do mundo. A crítica política. A
tendência à anarquia. Tantos aspectos. Eu sempre ficava feliz quando alguém,
depois de conhecê-lo, me dizia: “nossa, como você é parecida com seu pai!” E
nem me importava em perguntar se essa semelhança seria física ou de outra
espécie. Bastava saber que eu me parecia com ele.

Da mesma maneira que eu me sentia bem ao ver as semelhanças com


meu pai — fisicamente, as mais flagrantes são as formas dos dedos, das mãos
e dos pés — acredito que meu pai sentisse, bem no fundo, um certo orgulho
em se parecer com o pai dele. Não tanto no corpo, já que meu pai era bem
mais alto, com 1,83m, e no meu entender bem bonito, enquanto meu avô, ali
na foto do casamento, tem a cara de um exótico cigano, vindo sabe-se lá de
que paragens da Europa Oriental, embora, oficialmente, fosse apenas mais um
descendente de portugueses. Até hoje não sei direito o que foi que aconteceu,
porque meu pai só comentava a morte do pai dele meio de passagem, e como
eu percebia que o assunto era meio delicado nunca fui de ficar investigando
muito. De qualquer maneira, se a vida de meu pai foi tão triste, porque
sabemos, pelo menos eu e minha irmã, que ele não foi um homem feliz, pior
ainda foi para meu avô.

Como meu pai contava, o pai dele havia crescido praticamente na rua e,
assim como os irmãos, vivia vagabundeando pelo bairro, vestido apenas com
um camisolão, descalço e sujo, até uma idade relativamente alta, ali pelos 12
anos, porque a família era tão pobre que não tinha sequer como vestir as
crianças. As dificuldades da vida também foram muito grandes para meu pai.
Teve praticamente todas as doenças infantis — pelo menos entre aquelas
conhecidas na época. O sarampo quase o deixou cego do olho direito. Teve
apendicite e hérnia — o que, aliás, o impediu de servir no exército, como era de

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seu desejo — na adolescência e, operado de ambas ao mesmo tempo, com
uma anestesia curta demais, acabou fugindo do hospital antes da hora,
pulando um muro e arrebentando os pontos. Já adulto, casado e pai de duas
crianças, foi operado das amídalas e da adenóide e, nos seus termos, “quase
que empacotou”, porque as amídalas foram arrancadas quase que na marra, o
que teria gerado uma certa hemorragia.

Agora, hemorragia pra valer veio mesmo com a extração dos dentes.
Naquele período do limbo em que meu pai viveu sozinho, entre a morte dos
pais e o casamento com minha mãe, ele teve sérios problemas dentários.
Como não podia pagar um tratamento decente e não agüentava mais tanta dor
de dente, um dia endoidou e procurou o dentista e carniceiro do Santo Cristo, o
lendário Doutor Bezerra. O pedido: que lhe arrancasse de uma vez todos os
dentes da arcada superior, já que a extração era barata. Agora não me lembro
ao certo se a carnificina foi feita num único dia ou se em dois, lado direito e
lado esquerdo de cada vez. De qualquer maneira, ele quase morreu. Desde
que me entendi por gente, meu pai sempre usou dentadura em cima e ainda
tinha alguns dentes da frente, não muito bons por causa do cigarro, na parte de
baixo da boca. Ainda assim, ele tinha um lindo sorriso. Já o pai dele, acho que
não tinha lá muitos motivos para ser um sujeito alegre.

As 24 horas do dia, Oswaldo tinha a única preocupação de se virar para


arranjar o sustento dos seis filhos. Quando o dinheiro sobrava, o que era raro,
chegava a contratar banda de música para tocar no batizado de um filho, como
fez com uma das crianças menores, não me lembro mais qual. Na maior parte
das vezes, no entanto, o que havia era um perrengue sem fim. Acredito que o
sustento deles viesse, essencialmente, do trabalho de meu avô nas fábricas,
quando havia, e vem daí, parece, a causa da morte dele. Em pleno Estado
Novo, na ditadura Vargas, eram terminantemente proibidas as manifestações
de simpatia por qualquer manifestação política de esquerda. Contava meu pai
que, entre os colegas de fábrica, circulavam clandestinamente revistas russas
coloridas, mostrando imagens de um mundo utópico, que eles podiam perceber
mais pela fantasia do que propriamente pelo entendimento. Analfabetos em
português, quanto mais em russo, haveria um quê de covardia em acusar

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esses pais de famílias numerosas de subversão. Para eles, não havia qualquer
vestígio de luta armada. Apenas o sonho de dias melhores para os seus. Uma
sociedade organizada, mais comida na mesa, a chance de estudo, justiça
social, esse artigo absolutamente inexistente no Brasil, ainda nos dias de hoje,
a despeito do discurso de qualquer presidente da república mais bem
articulado.

Meu avô teria pedido a um colega que lhe emprestasse as revistas.


Queria mostrar em casa, às crianças, como a vida podia ser diferente, passar
alguma esperança, que fosse além da necessidade do trabalho infantil. Foi
preso pela polícia política com as tais revistas. Ficou na cadeia dois meses e
pouco. O suficiente para que os maus-tratos, nas surras e falta de alimento, de
agasalho e de higiene, o levassem a contrair o bacilo de Koch. Quando foi
liberado para voltar para casa, acabou contaminando minha avó e três dos seis
filhos. O mais velho, Claudionor, que se tratou à base de remédios. Meu pai e o
irmão que vinha em seguida dele, cinco anos mais novo, e ambos extirparam a
doença na base da cirurgia de retirada de parte do pulmão, alguns anos mais
tarde. Num período bastante curto, morreu primeiro meu avô, em seguida
minha avó e, por fim, a mãe dela, madrinha e protetora de meu pai, esta com
câncer no útero.

Em ambos os casos, de pai e de mãe, o desenlace foi traumático para


meu pai. Embora Oswaldo estivesse morrendo no hospital e tivesse mandado
chamar o filho, para se despedir, não sei por quê motivo meu pai se recusou a
ir. Simplesmente não foi, não compareceu para esse adeus. Não sei se estava
magoado com a “traição” do pai e companheiro de batente a abandoná-lo,
assim, sem mais, solto no mundo, aos 16 anos, em meados de 1954. Já a
mãe, morta em janeiro de 1956, quando ele ainda não havia completado 18
anos, estava em coma e sobrevivia com respiração artificial. Meu pai foi vê-la
naquele estado e, simplesmente, sem falar com ninguém, desligou os
aparelhos. Acredito que nunca tenha se livrado do fantasma da eutanásia da
própria mãe.

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Nervos

Nunca soube se foi alguém que disse a ele, repetidamente, mas o fato é que
uma mesma informação, reafirmada várias vezes, ainda que improcedente,
acaba se tornando verdade. Assim foi que cresci ouvindo meu pai dizer o que,
provavelmente, ele também cresceu ouvindo: que ele sofria dos nervos. De
minha parte, nunca acreditei muito nisso. Certo que, a vida inteira, ele tomou
remédios para dormir, mas nas últimas décadas minha mãe também — aliás,
sem conseguir dormir direito — o que não prova nada, porque essa parece ser
mais uma das tantas dependências humanas na modernidade. Quando sofro
de insônia, eu prefiro ficar careta e o máximo que faço é não me levantar da
cama. Afinal, preciso colaborar minimamente com o processo de pegar no
sono. Numa fase em que meus pais brigavam muito e ele, já doente, partiu
para a agressão física, levei-o a um psiquiatra e pedi um laudo técnico. O
parecer foi de que ele era um sujeito centrado, com discurso coerente e que
sofria, no máximo, apenas de muito ciúme dela.

Um dos lances do passado que meu pai contava para ilustrar sua
suposta demência tinha acontecido em torno dos cinco anos de idade. Como
os garotos às vezes enrolavam a própria camiseta para usar como baliza na
pelada de rua, ele freqüentemente acordava no meio da noite querendo ir lá
fora procurar uma peça de roupa que não sabia mais se já tinha trazido para
casa ou não. O mais próximo de um tratamento que ele recebeu, sob a
chancela do aconselhamento médico, foram banhos de água fria, não sem nem
a que horas nem em qual estação do ano, sabidamente eficientes para
acalmar. Outro traço distintivo da sua personalidade em formação era um alto
grau de violência. Não era raro que qualquer desentendimento na rua
acabasse em agressão física, e geralmente ele era o agressor. Contava, aos
risos, histórias que estavam mais para assustar. Como no dia em que,
sentados no alto do morro, fazendo um frio de lascar, ele usava uma camisa
com zíper até a gola e, na hora de fechar, teria prendido a pele junto. Só
porque um outro garoto achou graça e riu dele foi sumariamente atirado
ribanceira abaixo com um chute nas costas e quebrou duas costelas.

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A folha corrida de meu delinqüente pai incluía pedradas sobre diversas
cabeças, todas posteriormente costuradas, braços quebrados e que tais. Volta
e meia, um meganha do posto policial ia procurá-lo em casa, para levar preso,
mas era apropriadamente recebido pela sua madrinha-avó, Dona Olympia, que
guardava para essas ocasiões um porrete tamanho família atrás da porta de
entrada. A velha não fazia a menor cerimônia ao receber um representante da
lei. “Procurando alguém? Sim, o Sérgio é meu neto. O que foi que ele fez? Ah,
esse fulaninho é o maior marginal e o senhor não vai levar meu neto preso. Só
se vier buscar aqui dentro...”, e, nessa hora, mostrava o porrete. Nunca
nenhum policial se atreveu a entrar.

Quando meu próprio pai se machucava, era a avó quem tratava dele,
com métodos nada ortodoxos. Como no dia em que meu pai, numa pelada,
chutou a bola que foi cair no quintal de uma vizinha, cujo portão tinha lanças de
ferro. Existia um código que obrigava o autor do chute a ir recuperar a valiosa
bola, não importa onde ela caísse, e meu pai não teve alternativa a não ser
escalar o portão e entrar. Aquela vizinha fazia parte do grupo anti-esportivo
que, se pegasse uma bola, só devolvia depois de furá-la com a faca. Quando
já estava voltando, com o brinquedo debaixo do braço, meu pai se distraiu e
escorregou. Ficou enganchado no alto do portão pelo joelho, cuja parte de trás
enfiou numa das lanças de ferro. Deixou a bola cair, que os garotos recolheram
e foram dar prosseguimento ao jogo. Ele ficou lá esperneando um pouco, como
se fosse um siri num pau, até que conseguiu, sozinho, soltar o joelho e
capengar até sua casa. Tratamento da vovó: ela aqueceu um pedaço de
toucinho na chama do fogareiro até ele ficar em brasa e usou para cauterizar a
ferida aberta. Assim, não corria-se o risco de infecção e, também, não era
preciso dar pontos, porque a hemorragia estancava imediatamente, diante da
violência da queimadura. Meu pai teve uma série de ossos quebrados, mas
nunca engessou nem imobilizou nenhum.

Problemas domésticos eram resolvidos igualmente por essa minha


ancestral com a mesma sutileza lusitana, embora ela se orgulhasse de ser
brasileira e tivesse incutido nos netos uma aversão aos portugueses.
Voluntariosa e independente, Dona Olympia teve vários maridos. Alguns

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morreram de morte natural. Em outros casos, creio que ela deu uma ajudinha.
Um deles, totalmente sem noção, teria se atrevido a levantar a mão para ela
durante uma discussão. Como era mais fraca, ela aguardou a ocasião de dar o
troco. Esperou que dormisse e, no meio da noite, colocou a chaleira d’água
para ferver e, quando estava no ponto, simplesmente despejou pelo ouvido
abaixo do marido que dormia, deitado de lado. Parece que, dali, ele não durou
muito mais tempo. Vai ver que ela pensou o seguinte: ele deve andar aí com a
cabeça meio entupida por maus pensamentos, a água deve ajudar a
desobstruir, como num encanamento.

Dotada de vários talentos, minha bisavó Olympia foi campeã num


dificílimo concurso de dança: o tango sobre uma tábua. Os casais
competidores tinham que se apresentar dançando, lá nos idos dos anos 1920,
sobre uma única tábua do piso, e ela e o parceiro conseguiram. Enquanto isso,
as duas meninas filhas dela eram deixadas trancadas dormindo em casa,
sozinhas, já que duvido que algum marido fosse ficar de babá, numa época
daquelas. Outro que foi vítima de Dona Olympia e da água, só que dessa vez
fria, foi seu próprio pai. Muito idoso e doente, ele vivia se sujando, porque não
controlava mais nem a urina nem as fezes, e naqueles dias ninguém pensaria
em fraldas geriátricas. Mesmo que houvesse, eram muito pobres para pagar
pelo luxo. Assim, uma noite, cansada de tanto cuidar dele e num acesso de
fúria, encheu a tina de água fria — todo mundo tomava banho, ou de tina, ou
de bacia — e jogou o velho dentro. No dia seguinte, ele amanheceu morto.
Dizem que morreu de banho.

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Cirurgia

De todos os capítulos tão tristes na vida de meu pai, esse deve ser um dos
mais tristes, senão o mais triste. Perdi a conta de quantas vezes ouvi este
relato, e não me restava nenhuma alternativa, a nenhuma de nós, quando ele
chegava ao fim, a não ser um sentimento de vazio intenso, um não saber o que
dizer, um desespero mudo.

Quando nós éramos meninas e perguntávamos o que teria causado


aquela cicatriz tão grande, papai respondia com uma história absolutamente
fantástica. Ele dizia que tinha sido atacado por um gorila imenso e que, por
causa de uma patada do bicho, sua unha longa teria feito aquele estrago. Eu
olhava a marca que ia desde logo abaixo do pescoço no meio das costas até
quase à altura do rim do lado direito, num formato de meia lua, e imaginava um
verdadeiro King Kong. Só mais tarde, numa versão verídica dos
acontecimentos, papai explicaria que, ali, deve ter tomado mais de 200 pontos.
Acredito, porque era um corte entre 80 cm e um metro de extensão, pelo qual
foi retirada uma parte inferior do seu pulmão direito.

Depois da contaminação pela tuberculose, o que primeiro aconteceu foi


a desagregação familiar. No Castelo, de repente, onde moravam nove
pessoas, ficou apenas uma, e essa uma era meu pai. No processo da morte de
pai, mãe e avó, o destino dos seis filhos foi diferente. Primeiro se casou minha
tia Leila e foi morar com o marido e a sogra e a mãe da sogra e a prima do
marido — que era minha mãe — numa casa que, em poucos anos, ficaria
ainda menor, com o nascimento de suas três filhas. Depois se casou o irmão
mais velho de meu pai, o Tio Nô, que foi morar com a família da esposa na Vila
Portuária, num apartamento em que já viviam os pais dela, Álvaro e Antonieta,
e mais não sei quantos parentes. Os três irmãos menores, Wilson, Sílvio e
Maria da Penha, já tinham sido repartidos entre a parentada mais próxima logo
após a morte da mãe. A menina, então com oito anos, foi quem mais sofreu,
com reflexos, inclusive, na vida escolar. Dali a alguns anos, após o casamento
dos meus pais, eles voltaram a se reunir sob o mesmo teto, na quitinete em
que o casal praticamente não teve direito nem a lua de mel.

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Meu pai contava que, nos primeiros meses, quando ainda morava
sozinho com o irmão, freqüentemente o encontrava na soleira da porta de
entrada, quando chegava em casa, tarde da noite. Cada filho teve uma reação
diferente. Enquanto meu tio morria de medo de tudo, inclusive de fantasmas, e
se recusava a ficar só, além de passar a ter uma vida regrada por causa da
doença, meu pai fazia justamente o contrário. A tendência a beber, que o
acompanhou pela vida toda, se exacerbou nesse período, e ele, que já estava
doente, só piorava a situação, pegando sereno, sem cuidado nenhum, e ainda
se alimentando mal.

Provavelmente por isso, o tratamento com remédios, no seu caso, não


surtiu efeito. Como ele mesmo dizia, sempre foi um rebelde. Pode ser até que
tenham acontecido eventos realmente suspeitos naquele Castelo. Como na
noite em que a luz da sala começou a acender sozinha. Os dois irmãos
estavam no quarto e meu tio ficava acordando meu pai. "Pelado, Pelado, olha
só: a luz acendeu sozinha de novo!" Meu pai teria se levantado várias vezes
para apagar a luz. Naquela época, um interruptor não era esse botãozinho que,
com um toque suave, faz acender a lâmpada. Era um botão relativamente duro,
que se girava para o lado, e fazia um estalo alto. Até que, xingando um monte
de palavrões, meu pai saiu ofendendo todos os fantasmas possíveis e
imaginários enquanto, simplesmente, desligava a chave geral. "Pronto. Quero
ver agora algum fantasma filho-da-puta ligar o disjuntor!" E voltou a dormir,
enquanto meu tio, apavorado no escuro, não pregou o olho até de manhã.

No tempo em que viveu absolutamente sozinho, meu pai definitivamente


estava na pior. Vivia de subempregos, tentava os últimos recursos para realizar
o sonho da carreira no futebol, mas como poderia ser atleta profissional, se
faltava tudo: carinho, atenção, incentivo e até comida na mesa? Por isso bebia.
A casa, completamente abandonada, foi se tornando um cenário de filme de
terror. As baratas foram tomando conta. Uma noite, ele acordou sentindo uma
dor aguda numa das axilas e descobriu que era uma ratazana enorme que, na
falta de outra coisa que comer, começou a roê-lo por baixo do braço. Ele
contava que não sentiu medo, mas uma fúria absoluta, que o fez atirar o bicho

20
longe. Não havia mais para onde descer. Aumentavam, também, a febre e as
crises de hemoptise. Assim, no auge do desespero, meu pai se voltou contra o
médico que tratava dele, cobrando uma decisão. "Não vou morrer aos poucos
desse jeito. Eu quero uma alternativa. Ou eu fico curado, ou morro de uma
vez." Diante da sua renitência, o médico lhe ofereceu, então, a oportunidade de
uma cirurgia experimental para extirpar a parte lesionada do pulmão. Meu pai
não pensou duas vezes e aceitou.

O processo inteiro levou quatro meses. A maior parte desse tempo de


internação foi um pré-operatório, já que meu pai precisou passar por uma
superalimentação, ou não teria resistido à cirurgia. Ele tinha 22 anos de idade
e, não sei se por sua têmpera, ou se por desespero, o certo é que ele foi tudo,
menos um paciente obediente. Pior: com a cobertura do Doutor Linandro, que
era seu médico e o cirurgião-chefe da junta que realizou a operação. Meu pai
criava caso por qualquer coisinha e o que não faltava eram motivos, já que foi
parar no Hospital da Gamboa, uma instituição criada para receber os militares
que voltaram feridos da Segunda Guerra Mundial. Conhecido como ferro-velho,
o hospital era famoso pela alta taxa de mortalidade. Não que o atendimento
fosse ruim. É que, para lá, só eram encaminhados mesmo os casos muito
graves, com baixa expectativa de sobrevivência, em geral pacientes de câncer
ou tuberculose. Cada enfermaria tinha três camas e era comum abrirem vagas
porque sempre morria alguém.

Talvez pela juventude, talvez pela teimosia, o certo é que meu pai
agüentou o tranco. Ali, naqueles ambientes sufocantes, porque o telhado era
improvisado, não sei se com telhas de zinco, ele reclamava até conseguir um
ventilador. Ao nos contar e recontar suas memórias, parece que expurgava
todo aquele sofrimento. Gostava de contar sobre os outros personagens. Como
o Matalana, um senhor nordestino que já tinha perdido totalmente um dos
pulmões, e cujo corpo tinha ficado deformado porque, para chegar a ele, eram
serradas também as costelas, de forma que um dos lados do peito havia
afundado, restando praticamente só a pele. Esse homem, que necessitava de
muitas transfusões de sangue, sempre surpreendia os companheiros, porque
comia com grande apetite o prato de comida fria, que o esperava ao lado, até

21
que a bolsa de sangue estivesse vazia. Outra figura interessante era o Três
Beicinho (assim, sem S mesmo), um rapaz em quem havia sido diagnosticada
tuberculose mas que, na verdade, estava esbanjando saúde. No entanto, como
sofria de lábio leporino, o médico aproveitou para lhe dar um bônus, fazendo a
cirurgia plástica que iria mandá-lo pra casa com um beicinho só...

A enfermagem era um capítulo à parte. Os doentes tanto eram cuidados


por irmãs de caridade quanto por enfermeiros. Meu pai falava com muito
carinho especialmente do Seu Hermínio e, mais ainda, do Doutor Célio. Esse
Doutor Célio era um negro alto e de sorriso largo, no dizer de meu pai "muito
boa praça" — que era o máximo de elogio que ele era capaz de fazer a outro
homem, assim como chamar de "simpático" significava que o homem era
bonito, mas, para ele, homem que é homem não chama outro de bonito — e
que sofreu todo tipo de problema como conseqüência do seu mais
indisciplinado paciente. Não havia um plantão dele em que meu pai não
arrumasse confusão. Como, por exemplo, numa noite depois da cirurgia em
que, com muita dor, resolveu ir passear numa espécie de jardim interno
abandonado daquela ala, e fez acreditar que fosse um fantasma, assustando
os outros pacientes. Realmente: ele havia pedido para ocupar a cama de
Gabriel, bem melhor que a sua, e que havia morrido naquele dia mesmo. Ou
num Dia de Finados, desesperado de dor, quando simplesmente arrombou um
armário de medicamentos e despejou goela abaixo um frasco inteiro de
analgésico, enquanto pensava: "agora, ou essa dor passa, ou eu vou acordar
no outro mundo, e de qualquer maneira saio no lucro". Quando Doutor Célio foi
cobrar dele uma satisfação sobre o roubo, ele teria xingado e dito todos os
impropérios ao suposto amigo, para só mais adiante vir a se desculpar. Meu
pai dizia que, no pós-operatório, era colocado um saco de areia sobre o peito
do paciente, e que ele era instruído a respirar profundamente, justamente para
forçar a movimentação do aparelho respiratório. Depois do arrombamento,
roubo e tentativa de suicídio, claro que meu pai entrou em coma profundo e
quase conseguiu seu intento, que era se livrar em definitivo de tanto
sofrimento. Mas cada um de nós tem hora certa para deixar esse mundo e ele
sobreviveu, embora quase tenha sido expulso do hospital. Sempre terminava o
relato com a mesma frase. "Quando eu saí do hospital, depois de quatro meses

22
lá dentro, até os postes da rua me pareciam bonitos!" Talvez já fosse influência
de uma outra mudança, até mais significativa do que a recuperação da saúde,
e que havia se operado ao longo daquele período. A importância de minha mãe
na vida dele.

Na verdade, minha mãe tinha sido colega de colégio de minha Tia Leila.
Embora de família um pouco menos pobre, ela cresceu numa área próxima
àquela em que vivia meu pai. Quando não estavam em aula, as garotas
gostavam de ir ao Castelo ouvir os discos, em especial os da Ângela Maria. Só
que vitrola e discos eram todos de meu pai! Que dava verdadeiros ataques
quando aquelas enxeridas chegavam fazendo barulho, dançando e mexendo
no que era dele. Minha mãe dizia: "Ih, Leila. Esse seu irmão é tão esquisito...
Acho que ele é bicha!" Naquela época, não passava na cabeça de ninguém
que, um dia, os dois fossem se apaixonar, porque eles se odiavam. Mas, às
vezes, esses ódios inexplicáveis são, na verdade, indícios de amor ou coisa
parecida. Mamãe conta que viu meu avô Oswaldo apenas uma vez, mas nunca
falou com ele. Diz que minha avó Ynaiá também era quieta e parecia um
bibelô, de tão frágil, já que tinha problemas de coração. Mas Dona Olympia, a
avó e madrinha de meu pai, era um furacão: alegre, viva, barulhenta — várias
bisnetas puxaram a ela — e adorava receber minha mãe lá. Se já pressentia
que aquela menina iria ser quem o destino escolheu para cuidar do seu neto
preferido? Certo é que, se alguém se queixava de dor de cabeça, ela se saía
sempre com o mesmo diagnóstico: "Isso é fome!" E servia logo alguma comida
gostosa. "E não é que a dor passava mesmo?", lembra, divertida, minha mãe.

No período de internação de meu pai, minha mãe passou a acompanhar


a amiga nos dias de visita e, daí, os dois se aproximaram. Minha mãe conta
que sentia muita pena dele, por ser tão abandonado, por ser tão revoltado.
Acredito que ela, muito sensível como sempre foi, via ali, na verdade, um
pedido desesperado de socorro, uma carência desesperada de amor. E ela
tinha em si, a despeito de toda a história familiar turbulenta, sim, esse amor
para ele e por ele. A pretexto de ir visitar as sobrinhas pequenas, meu pai
intensificou as visitas à casa de minha tia, e passou a levar pés-de-moleque
para minha mãe, e parece que, assim, de uma doçura dura como o próprio

23
agrado, conquistou seu coração. Lembro que, um dia, perguntei ao meu pai o
que haveria levado os dois ao casamento, já que ele nunca escondeu que tinha
se casado contra a vontade. Ele, então, me explicou o seguinte. "Na verdade, o
que eu sentia era muita pena da sua mãe. Ela sempre tinha sido quase que
como uma empregada da família. Ela não era totalmente reconhecida por
ninguém, nem mesmo pela avó ou pela tia. Primeiro porque era uma mulata no
meio de uma família de brancos. Isso era comum naquela época. Um filho
bastardo, assim, fruto de um deslize, era o que se chamava de agregado, e
passava a ser tolerado no convívio, mas sempre numa situação subalterna."
Acredito que ele tivesse razão. Minha tia teve uma menina atrás da outra e não
dava conta de cuidar dos bebês. Minha mãe foi quase mãe daquelas meninas
e batizou, inclusive, a segunda, junto com meu pai, ainda antes de se casarem.

Não sei por quanto tempo namoraram. Mas o noivado dos dois levou um
ano. Nesse meio tempo, meu pai teria desconfiado da fidelidade de minha mãe.
Fenômeno que, aliás, se repetiu no final da vida. Depois da cirurgia de
próstata, que o deixou impotente, ele passou a imaginar que minha mãe
tivesse casos extraconjugais, o que gerou uma série de conflitos graves e
difíceis de administrar. Como era um jovem com pouco a oferecer, detalhe
permanentemente lembrado por minha bisavó Amélia, acredito que ele tivesse
também algum tipo de complexo de inferioridade. Fosse por um motivo ou por
outro, o certo é que ele desistiu do casamento. Se não me engano, eles tinham
tido uma briga comum e meu pai encontrou minha mãe saindo com outro
homem, bem mais velho e com melhor situação financeira. Era o que faltava.
Totalmente traumatizado com o desmoronamento da própria família, ele não
desejava repetir a dose, então, não queria se casar. "Se não tivesse me
casado, eu já teria morrido há muito tempo", dizia sempre, como quem tivesse
perdido alguma coisa. No entanto, a influência de meu pai na vida de minha
mãe já tinha se dado num nível bem mais complexo, ela já tinha feito suas
escolhas, e ele não iria se livrar do comprometimento tão fácil assim...

Além da cor da pele, uma herança espiritual caiu sobre minha mãe.
Quando ela tinha 16 anos e entrou pela primeira vez na casa onde viria a morar
com sua família na época — a avó Amélia, que a criou, sua tia Celina, ou

24
Filhinha, como a chamavam, mais o marido dela Messias, mais o filho dela e
primo de minha mãe, Adyr, e a mulher dele, minha tia Leila, e não sei mais
quem — se deparou com a imagem de um homem enforcado, dependurado
numa viga sobre uma das portas. Desmaiou imediatamente. Levada a um
centro de umbanda, foi descoberta sua mediunidade, tão comum de se
manifestar justamente na adolescência. O que ela tinha visto, se descobriu
mais tarde, foi uma espécie de reminiscência espiritual, já que, efetivamente,
um antigo morador da casa havia, sim, se enforcado no lugar onde ela teve a
visão. Seu padrinho de batismo, junto com a avó Amélia, era um médium negro
mais conhecido pelo sobrenome — ele se chamava Paixão — e que a
encaminhou para o centro espírita do Seu Bráulio, outro médium, que minha
mãe admirava e meu pai odiava. Minha mãe passou a desenvolver a
mediunidade e trabalhava no centro, acredito, duas vezes por semana.
Recebia entidades de muita luz, como Seu Pena Branca, um caboclo com
poderes de cura, que fez o bem e tratou de muitos doentes. Mas, à certa altura,
meu pai deu a decisão em minha mãe. "Você vai ter que escolher: o centro ou
eu."

Com uma religiosidade católica muito arraigada, ele não acreditava em


nada daquilo. Era muito enciumado e via como agravante o fato de que, em
véspera de sessão, os médiuns terem que cumprir uma série de preceitos para
manter a elevação espiritual apropriada, como não poderem ter relações
sexuais. Ele achava isso impossível e, aliás, é um dos motivos de muitos
homens, no Brasil, serem contra a participação de suas mulheres nos centros
kardecistas, de umbanda ou de candomblé. Dividida entre o mundo espiritual e
o mundo material, entre a obrigação de fazer a caridade assumida antes de
encarnar e a perspectiva da felicidade de construir finalmente sua própria
família, minha mãe tomou sua decisão.

Ela conta que não foi nada fácil fechar a mediunidade para poder sair do
centro. Entre uma série de trabalhos e obrigações que teve que cumprir, e nem
todas ela pode revelar, uma das mais difíceis teria sido ir a sete cemitérios no
mesmo dia, para assentar oferendas, sem poder dar uma palavra com quem
quer que fosse. Sua avó e fiel escudeira Amélia foi quem a acompanhou nessa

25
e em outras maratonas. No entanto, apesar de fazer o que lhe foi instruído e
proposto pelo mundo espiritual, minha mãe acredita que teve que pagar um
preço alto pela sua escolha. Meu pai pediu exclusividade. Ela deixou o centro.
Mas quando parecia que tudo estava se encaminhando, meu pai simplesmente
disse a ela que não queria mais se casar e ela entrou em desespero. Numa
noite, tomou uma caixa inteira de tranqüilizantes, entrou em coma e só veio a
ser socorrida na manhã seguinte, quando já não restava muito o que fazer. Foi
por causa disso que meu avô, o pai dela, ameaçou meu pai de morte,
obrigando a que se casasse com minha mãe com um revólver apontado para
ele, acho que ainda na emergência do hospital para onde ela foi levada.

Dessa maneira tumultuada e nada harmoniosa foi que começou a minha


família. É claro que isso não poderia dar certo... Para piorar, meu pai
descobriu, na noite de núpcias, que minha mãe não era virgem, o que era bem
grave em 1961. Ela alegou que, provavelmente, havia sido deflorada durante o
atendimento, enquanto estava em coma, mas ele nunca acreditou nessa
versão dos fatos. Conhecendo meu pai como eu conheci, é de surpreender que
ele não tivesse anulado o casamento. Talvez existisse, sim, um sentimento
muito forte entre os dois. Não sei se era amor verdadeiro. Acho que fossem
duas almas perdidas — ele com 24 anos de idade, ela com 21 — tentando
construir uma base familiar que, na verdade, nunca tiveram. Para minha mãe,
ela quase morreu por uma vingança dos santos, que quiseram lhe dar uma
lição por ter renegado suas obrigações. Como uma forma de compensar a falta
de prestar essa caridade, como havia assumido, minha mãe sempre procurou
ser uma pessoa muito caridosa. Mas às vezes eu me pergunto qual a validade
disso, já que tudo na vida, até a ajuda que a gente presta ao próximo, e
principalmente isso, tem que vir espontaneamente do coração. Ela diz: “sempre
que alguém me pede ajuda na rua, eu tenho que ajudar”. É um processo meio
atravessado. Mas como bondade com qualquer criatura de Deus é uma coisa
que não lhe falta, sei que minha mãe ajudaria quem pudesse, ainda que seu
passado tivesse sido diferente.

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A voz de meu pai

Na tentativa de salvar alguns registros importantes em audiovisual, que fariam


parte do acervo da família, se eu tivesse uma, encontro também materiais
gravados em fitas cassete. É bastante emocionante. Dentre elas, estão duas
com a voz de meu pai, que não ouço há quase cinco meses.

Na primeira, anuncio a data da gravação: 24 de julho de 1994. Faz,


portanto, 14 anos. Eu ainda não tinha ido morar na Alemanha, nem ido
trabalhar na tv daqui, mas já devia ter escrito ou estar escrevendo O
Almanaque Espúrio. Eu estava com 30 anos e ele com 57. Peço para que me
conte como foi a sua infância.

Logo de cara, ele diz que foi muito boa, apesar da pobreza e de que
vivesse no Morro do Pinto. Desse morro, que fica na região central da cidade,
perto do cais do porto, mesmo hoje em dia muito pouco se ouve falar, apesar
de todas as questões que envolvem marginalidade, exclusão, violência. Na
própria música popular brasileira, a única referência de que me lembro vem da
música “Escurinho”, com a célebre frase: “já foi no Morro do Pinto acabar com
o samba”. No relato, meu pai dizia que morar naquele morro era como morar,
hoje, em Santa Tereza. Essa é outra região especial do Rio de Janeiro:
montanhosa, em que foi preservado o bonde como meio de transporte, com
famílias de classe média baixa e um certo estilo de vida meio bicho grilo.

Sua memória imediata é falar de trabalho. Começou com cinco anos de


idade. Ia com o pai e o irmão mais velho para a feira livre vender lã de aço,
importada dos Estados Unidos, comprada na Rua Leandro Martins, numa
época em que o Bombril ainda não existia. Segundo me explicava, eles
cortavam dois pedacinhos da lã e faziam um pacotinho em que colocavam
também, como brinde, um pequeno pedaço de sabão de côco, e que era
vendido a mil e quinhentos réis. Com o negócio dos esfregões, faturava cinco
mil réis e tinha que reinvestir dois para comprar uma bobina de lã de aço.

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Cada um ficava numa ponta da feira e outro no meio. Ele ficava no
início, por ser o menor, e contava sempre com a cobertura das donas-de-casa,
que deixavam sua porta aberta, caso o rapa passasse e ele precisasse se
esconder correndo. Seu apelido era Fala Grosso, porque berrava bastante, a
fim de vender tudo o mais depressa possível. Uma única vez, levaram a
menina Leila para ajudar, mas o resultado não poderia ter sido mais
desastroso. Louca por paçoca, ele não fez nada a manhã inteira a não ser se
empanturrar daquela gostosura, e lá pelo fim da manhã teve uma terrível dor
de barriga. Sem lugar apropriado para se aliviar, minha tia acabou fazendo
cocô dentro de uma caixa grande onde o vendedor de pintos tinha transportado
os bichinhos. Ela não foi surpreendida no meio da infração, mas mais tarde a
família adivinhou quem tinha sido a culpada, quando o homem começou a
berrar, furioso, em plena feira, que alguém tinha cagado a caixa de pinto toda!
Já a carga de lã de aço era transportada no que eles chamavam de pára-
quedas: um saco de farinha de trigo cujas pontas eram atadas e, no meio,
ficavam as lãs de aço. Era mais fácil para transportar e para expor a
mercadoria. O motivo da pressa de meu pai era vender tudo entre as 7h e as
11h, porque aí chegava a hora de ir para casa, tomar banho e ir para o colégio.
Ele dizia que nunca voltava com sobras para casa.

Realmente, as mulheres da família pelo meu lado paterno têm um quê


de enroladas. Meu pai adorava contar alguns lances bastante engraçados. O
primeiro envolvia seu pai e sua mãe. Moravam num sobrado e, quando ele
chegou tarde, uma noite, estava sem a chave. Ficou chamando da rua, para
que ela jogasse a chave pela janela, mas as chaves não eram pequenas e
delicadas como as de hoje. Eram do comprimento de uma escova de dentes e
bem mais largas e pesadas, feitas de ferro. Minha avó Ynaiá não apenas jogou
a chave, mas literalmente atirou em cima do marido, acertando direto num
ponto que meu pai chamada de “pau do nariz”, que é onde ele se encontra com
a face, na parte de cima. O golpe foi tão forte que abriu uma brecha e meu avô
ficou com uma cicatriz daquelas. Outro evento em torno de chaves aconteceu
com minha tia Leila e seu marido. Eles haviam saído e gostavam muito de ir à
Praça Saenz Peña, assistir aos filmes do Tom e Jerry, e depois iam ao Café
Palheta tomar um tal de leite ófico, que soltava o intestino. Só que meu tio Adyr

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sempre foi meio esganado e não se contentava em beber só uma garrafinha.
Na volta para casa, a rua escura, quando já iam destrancar a porta, meu tio ia
apressando a mulher: “anda, Leila, que eu estou quase fazendo!” , quando ela,
com a calma que lhe é peculiar, apenas disse: “ih! Deixei a chave cair...”
Naquela escuridão toda? Não ia dar tempo de procurar. Meu tio, desesperado,
fez cocô “pelas pernas abaixo” na mesma hora.

Quando meu pai já havia parado de trabalhar e, freqüentemente, estava


deprimido, fosse pela inatividade, pelo que repassava mentalmente e via de
desperdício que tinha sido a própria vida, pelos desentendimentos com a minha
mãe ou pela própria doença, eu tentava encontrar uma maneira de ajudar. Foi
assim que, já trabalhando como professora e, portanto, com um horário mais
flexível, e recém-separada, passei a convidar meu pai para vir, toda terça-feira,
ao meu apartamento alugado na época, a fim de escrevermos um livro. Do qual
ele seria o autor e eu mera redatora. Minha intenção era deixá-lo ocupado e
também fazê-lo ver que sua vida era, em si, um tesouro. Os relatos se
concentraram sobre o bairro da Barra da Tijuca, que ele viu nascer e crescer.
Nunca publicamos o livro. Mas vou reproduzir, aqui, o discurso dele mesmo a
respeito de sua vida, sempre que tiver encontrado um trecho relatado em
primeira pessoa. Como o que se segue.

“Sempre gostei de fazer as coisas bem feitas. Tanto que não era de
faltar dia de serviço. Não faltei nenhuma vez. Não tirava férias porque preferia
trabalhar e receber o dinheiro. Ia ficar em casa fazendo o quê, se eu gostava
de trabalhar? Tem a ver com a minha formação. Aos cinco anos eu já
trabalhava na feira com meu pai, vendendo lã de aço. Ele também fabricava
guarda-chuvas, consertava, era sempre ligado ao comércio. Eu tinha um tio
que trabalhava na Brahma e era torneiro mecânico. Ele fez uma raspadeira
para fazer sorvete. A partir da pedra de gelo, a gente raspava e colocava
groselha ou licor de chocolate, e vendia na banquinha durante os dias de
carnaval. Meu pai também vendia bolas de gás. E eu tinha sempre meu
dinheirinho no bolso. Nunca faltava para ir ver o jogo do Flamengo.

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Meu primeiro emprego foi na Madex, uma empresa que vendia madeira
dentro e fora do país. Saí porque era novo e não tinha malícia. Ficava
encarregado de pagar os fretes e pegar dinheiro para pagar capatazias,
desembaraço de mercadoria e, para isso, assinava vales. À medida que os
vendedores fossem trazendo aqueles papéis de recebimento, eu resgatava os
vales emitidos em meu nome. Cheguei à conclusão de que, querendo
aprender, me dei mal. No livro só tinha saídas, nenhuma entrada de dinheiro.
Um espertinho me devolvia os vales mas não dava baixa no caixa. Fui falar
com o diretor tesoureiro, afilhado de casamento do presidente da firma.
Trabalhava com dois primos, mas nenhum resolvia nada. O tesoureiro
percebeu que eu era esperto, e eu pensando que estava prestando um serviço,
fui falar que não tinha entrada de capital.

Para se ver livre de mim, já que era ele quem estava aplicando o golpe,
ele me mandou trabalhar no escritório da fábrica de tintas do grupo, num
subúrbio, onde o cheiro de solvente e tinta era insuportável. Minha função era
só tirar notas fiscais. Trabalhei de segunda à sexta-feira e pedi as contas. O
Mangi teve a cara de pau de ainda me dar uma carta de recomendação. Nesse
período em que fiquei sem trabalhar, fiz um concurso para a Companhia
Nacional de Navegação Costeira. Passei, mas dependia de sair a nomeação
no Diário Oficial. Como o Lloyd era próximo da Rua do Mercado e eu estava
muito satisfeito com a minha sorte aquele dia, passei no escritório da Madex.
Foi justamente quando o balanço de final de ano tinha estourado a fraude! Eu
nem sabia do caso, já que não tinha dinheiro para comprar jornal. O presidente
me recebeu bem, aliás, como todos. Eles me chamaram para tomar conta do
escritório, já que os primos foram mandados embora e o tesoureiro tinha
fugido. Ele foi condenado no final de 1956. Como não compareceu, foi julgado
à revelia e condenado a oito anos de prisão. De minha parte, já que eu não
sabia quando ia sair a nomeação no Diário Oficial, deixei a coisa em aberto.
Nunca fui nomeado para o tal cargo público, já que, na época, ali já tinha
muitos “peixinhos”. Da mesma foram nos anos 1960, mandei uma carta ao
então presidente da república, João Goulart, pedindo um emprego, e recebi um
telegrama me indicando para o IAPB -Instituto de Aposentadoria e Pensão dos

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Bancários. Contudo, mais uma vez, o Golpe Militar impossibilitou que eu fosse
nomeado para o cargo.”

A função de meu pai na Madex era, basicamente, ir verificar a qualidade


da madeira que chegava ao porto do Rio de Janeiro. Ele aprendeu a
reconhecer tanto os tipos (cedro, cerejeira etc) quanto o estado do
carregamento (se tinha muitos nós nas ripas) na prática. Podia dizer que
madeira era aquela, num móvel ou numa porta, só de olhar para os desenhos
no lenho e, caso ainda não tivesse sido tratada, apenas pelo cheiro. Da mesma
forma, ao longo de mais de 30 anos trabalhando com material de construção,
conhecia detalhadamente todos os formatos e tipos de ferragens, hidráulicos e
acabamentos de dezenas de milhares de produtos, como se fosse um
verdadeiro banco de dados ambulante. Mas ele não via valor naquele
conhecimento nem o entendia como uma forma de qualificação. Sobre o longo
período de trabalho na Barra da Tijuca, seu relato parecia ainda mais
amargurado.

“Num sábado, dia 1o de fevereiro de 1964, comecei definitivamente


minha longa trajetória na Barra da Tijuca. Meu compromisso era estar no
Barrinha na hora de abrir. Mais tarde, fiquei com o encargo de abrir e fechar a
loja. O primeiro dia de trabalho foi muito difícil para mim. No dia seguinte, o
domingo, falei para minha mulher que estava pensando em não voltar para
trabalhar no dia seguinte. O trajeto era muito cansativo, tinha que ficar em pé o
dia inteiro, não havia nem um banquinho para eu me sentar. Não dava tanto
movimento e por isso eu me entendiava, porque estava acostumado ao ritmo
do escritório em que trabalhava antes, no centro da cidade. Passei o domingo
chateado, pensativo. Minha filha mais velha, Solange, ia fazer um ano. A
esposa estava no final da gravidez da segunda filha, batizada de Sandra. Eu
precisava do dinheiro para pagar aluguel, casa de saúde. Na segunda-feira,
mesmo a contragosto, tive que voltar. Se soubesse que meu último dia de
trabalho, antes da aposentadoria, seria naquele mesmo endereço, dali a quase
36 anos, no dia 22 de janeiro de 2000, acho que teria realmente me
desesperado... “

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A infância de meu pai

Cinqüenta anos depois, ele ainda era capaz de se lembrar em que dia
da semana cada feira ficava. Segunda-feira em Santo Cristo, terça na Tijuca,
quarta em São Cristóvão, quinta no Mangue, sexta na Rua Camerino, sábado
em São Francisco Xavier, bairro Riachuelo, e domingo novamente em São
Cristóvão. Vender esfregões de lã de aço foi uma idéia de um casal de
alemães que se afeiçoou ao meu pai na sua primeira infância. Naquela fase,
ele morava com os pais, a avó materna e os dois irmãos mais velhos,
Claudionor e Leila, numa casa de cômodos na Rua da Gamboa. Os outros três
irmãos nasceriam depois, quando a família já estava instalada numa casa de
verdade, no Morro do Pinto.

Todos os adultos da família eram originariamente tecelãos. Pouco antes


de 1943, quando ele estava com seis para sete anos, disse que queria
trabalhar. “Eu via a dificuldade que estávamos passando em casa, todo mundo
trabalhava, eu não queria me sentir um inútil.” Como só existiam fogão a lenha
e a carvão de coque, e que sujavam muito as panelas, o alemão disse:
“compra uma bobina de lã de aço para fazer esfregão que você vai vender
muito bem”. E vendia mesmo. Foi o que ajudou a sustentar a família por uns
cinco anos.

Sobre o tal casal de alemães, meu pai se lembrava de muito pouco. A


esposa se chamava Eva e não trabalhava. Por isso mesmo, ficava tomando
conta dele. O marido teria um nome parecido com Braun e conviveram durante
três ou quatro anos. De uma hora para outra, no auge da Segunda Guerra
Mundial, em 1944, eles sumiram. Eram os vizinhos de porta na casa de
cômodos onde viviam mais de 20 famílias. Só havia um banheiro por andar e
eram três andares. Na sua casa o que existia era uma sala grande, e da janela
ele gostava de assistir à chuva cair. Como a rua enchia, ficava se distraindo
vendo a enchente e como os garotos colocavam cachorros dentro de caixotes
para navegar na água que corria.

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Meu pai entrou no colégio com oito anos de idade. Era o Sagrado
Coração de Jesus, da professora Maria Esther de Aquino e Castro, particular, e
funcionava na sala da casa dela. Mineira de Barbacena, era professora por
vocação, como dizia meu pai. Estudou ali durante quatro anos, porque fez o
primário bem mais rápido do que os colegas que, em geral, levavam cinco.
Papai assistia à aula sentado num banquinho de madeira, perto da porta, e às
vezes tumultuava a sala, mas não por indisciplina. Quando Dona Esther fazia
uma pergunta para algum colega e ele não sabia responder, meu pai não
conseguia se conter e gritava a resposta lá do fundo. Uma vez, chegou a ser
suspenso, já que a professora havia chamado sua atenção várias vezes pelo
mesmo motivo: ele tinha que deixar os colegas responderem também.

No primário, teve aulas de matemática, português, história, geografia, e


usava um livro famoso chamado Meu Tesouro. Depois, fez o curso de
admissão e o curso básico da Suesc — Sociedade Universitária Superior de
Comércio, que funciona até hoje na Praça da República, no Centro do Rio, por
quatro anos, até os 15. Daí para a frente teve que parar porque o pai, a mãe e
a avó faleceram e ele tinha que escolher entre trabalhar ou estudar. “Tive que
trabalhar para não morrer de fome”, ele me disse.

Sua primeira pasta escolar tinha sido feita pelo padrinho, marido de sua
avó materna, que era marceneiro, e estava mais para um maleta de madeira
envernizada, com as iniciais do seu nome gravadas — SMS. Os colegas
levavam o material debaixo do braço e, logo no primeiro dia, ele se sentiu
deslocado e nunca mais usou a pasta. Estudava de 12h às 16h e mesmo que
se atrasasse 10 ou 15 minutos Dona Esther dava tolerância porque sabia que
ele estava trabalhando. Das cerca de 30 crianças na turma, só ele trabalhava.
Não tinham uniforme para o colégio, apenas um para ir à missa ou alguma
procissão. Era de cor cáqui com um emblema no peito que trazia o nome do
colégio.

Para acompanhar a professora, que já era idosa, naquele sobe e desce


das ladeiras do Morro do Pinto, meu pai passou a freqüentar a igreja. O ponto
alto era em maio, mês de Maria, e em junho, quando se celebrava o Sagrado

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Coração de Jesus. Naqueles anos, ele ia à missa todo domingo e chegou a
ser coroinha e depois sacristão. Seus pais não iam à igreja e meu avô não
tinha religião nem acreditava em Deus, mas não se opunha. Papai freqüentou a
igreja por muitos anos, quase até se casar. Aos domingos, se tivesse ladainha,
ajudava nos preparativos. A igreja dava toda a roupa de que os meninos
precisavam.

Ninguém fazia piada com isso. Embora fosse católico praticante, meu
pai sempre foi rebelde. “Nunca deixei que ninguém me humilhasse nem fizesse
chacota.” Gostava de roubar, ou melhor, surrupiar vinho do padre. Só ele,
porque os outros seis meninos não tinham coragem. Entre eles, havia uma
verdadeira disputa. Porque, quando necessário, um garoto poderia ir ajudar à
celebração de uma missa na Candelária e o retorno financeiro era
compensador, já que eles ganhavam dinheiro da cúria ou do padre. Na
paróquia de Santo Cristo, onde ele estava sempre, não havia pagamento. Já
na capela de Nossa Senhora de Montserrat, aquela que parece uma nave,
plantada entre o Morro do Pinto e o Morro da Providência, e que se avista da
Avenida Presidente Vargas, ele nunca ajudou na missa.

Ganhavam também um trocado quando falecia alguém e solicitavam


candelabros para colocar as velas no velório feito em casa. A igreja
emprestava e os garotos recebiam da família do morto alguma recompensa.
Como a pobreza era grande, as crianças viviam inventando alguma maneira de
ganhar algum dinheiro. Meu pai contava que carregava água nos fins de
semana, principalmente no verão, quando faltava muito no Morro do Pinto. Era
uma lata de banha vazia de 20 kg, apoiada sobre uma rodilha de pano na
cabeça, que ele equilibrava carregando mais duas de 10 kg de manteiga. Por
essa época ele já tinha uns 12 anos e estava acostumado. Mesmo as
brincadeiras não tinham nada de leves ou sedentárias. Como a de rodar um
pneu de carro até o final do morro e subir de novo, várias vezes por dia. Ou a
de jogar futebol na ladeira por horas a fio, no chão de paralelepípedo, ora
morro acima, hora morro abaixo, quando se mudava de lado no “campo”, para
depois começar na próxima partida. Ele dizia que, nas solas dos pés, se
formavam grandes bolhas de sangue pisado, porque as pedras ficavam

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incrivelmente quentes, e não era raro algum garoto perder parte da “cabeça” do
dedo num chute mal aplicado. Mais um jogo divertido era aquele chamado
frontão e meu pai o descrevia como uma espécie de squash sem raquete: a
garotada ficava jogando uma bola num paredão e rebatendo de volta, sem
deixar cair no chão, com toda a força.

Quando alguma das vizinhas precisava comprar alguma coisa que não
tinha no morro, dizia: “venha cá, vai lá na Rua Nabuco de Freitas comprar um
litro de leite pra mim”. Ele morava na Rua Saldanha Marinho e dizia que, no
Morro, só morou nessa rua, no número 80. Não sabemos se a fachada ainda
está lá. Em cima da casa, ficava a escola de Dona Esther. Para sair do morro e
ir fazer as compras para as vizinhas, um garoto tinha que andar cerca de um
quilômetro e meio. “Qualquer garoto ia. Não era pelo dinheiro. Se na volta ela
desse um tostão, estava bom. Se não, tudo bem. Éramos obrigados.” Existia
uma espécie de pacto na comunidade, aquela senhora não podia ficar subindo
e descendo morro. Como crianças, eles tinham o dever de ajudar. Se
recusassem e a vizinha comunicasse à família, quando o garoto chegasse em
casa iria receber uma reprimenda. “Mas nós fazíamos com muito boa vontade.”

Mas, o que a garotada fazia, afinal, com aquele dinheiro? Dava para
comprar dois cigarrinhos para fumar escondido. Meu pai, por exemplo,
começou a fumar com oito anos, porque seu avô, que também era seu
padrinho, fumava toda noite quando voltava da Light, a empresa inglesa que
fornecia luz elétrica para a cidade, e que depois foi nacionalizada. Esse avô,
Manuel Vaz Repolho — chamado de Vagem Repolho para fazer troça — não
era o avô biológico de meu pai, detalhe que ele sempre lembrava ao velho no
caso de alguma desavença, mas parece que os dois se davam bem. Contava
que o português era um marceneiro de mão cheia, a ponto de ter feito até um
violão, mesmo sem ser luthier, e uma geladeira.

Então, ele ficava enrolando o fumo no papel colomi, meu pai via aquilo,
até que, um dia, resolveu furtar três ou quatro cigarrinhos daqueles. “Cheguei
na rua, junto dos garotos, acendi um e era muito forte. Eu não estava
acostumado, fiquei tonto e deu vontade de vomitar. Os outros colegas pediam

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para eu dar a ‘vinte’ (guimba), eu estava doido para me livrar, aquilo estava me
fazendo mal. Foi daí que começou.” Segundo meu pai, dinheiro era muito difícil
de conseguir no pós-guerra. As marcas, como a Rodeio ou a Caporal
Amarelinho, eram nacionais, vendidas em embalagens importadas com que,
depois, os meninos jogavam bafo-bafo.

Um dia, ele conseguiu vender duas latas de carvão de coque e estava


fumando um cigarro chamado Liberty qualquer coisa, que tinha no maço a
imagem da Estátua da Liberdade. Do lado, havia um colega pedindo uma
“vinte” e ele dizendo que não ia dar. Naquela época, ele já tinha o apelido de
Pelado, que o acompanhou por muitos anos e permaneceu entre os irmãos,
por causa de um corte de cabelo em que raspava toda a cabeça e deixava
apenas um tufo na parte da frente. O colega disse: “teu pai ‘tá aí atrás”. Era
normal esse tipo de blefe, justamente para um obrigar o outro a jogar o cigarro
no chão, que seria resgatado de imediato pelo concorrente. “Quando ele falou,
eu me virei e disse uns impropérios.” Que impropérios?, eu quis saber. “Vai
você e o meu pai pra puta-que-o-pariu!” Depois disso, ele conta que só sentiu o
tapa no beiço e o cigarro queimando o rosto. Meu avô Oswaldo não fumava,
não bebia e não jogava, mas meu pai começou cedo. “Eu fazia tudo isso.” Meu
pai teve, a vida inteira, problemas com a bebida, e minha mãe conta que foi
com o pai dele que o vício começou. Diz que, depois do trabalho, eles iam a
um boteco, meu avô bebia uma coca-cola e me pai pedia uma cerveja, e ele
deixava.

A família morava em frente à Estação de São Diogo, uma espécie de


oficina da Central do Brasil onde ficavam os trens quando chegavam de São
Paulo. A molecada sabia os dias em que os trens chegavam e ia para lá,
brincar nos vagões, e pegava as sobras. No vagão-restaurante, muita gente
esquecia cigarro, isqueiro, até bolsa com algum dinheiro. Ali era feito o
descarregamento da maria-fumaça, e o carvão que sobrava na fornalha não
era reaproveitado. Era isso o que os meninos recolhiam e vendiam. Mas, antes,
amassavam a lata de 20 kg de banha para caber menos carvão. Outra lata de
banha vazia era revestida de barro por dentro e o carvão era colocado ali e a
lata usada para cozinhar. Com lenha saía uma fumaceira danada, mas com

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carvão não, já que ele virava brasa. O fornecimento de carvão para cozinhar
custava cinco tostões cada lata. Com essa quantia, um menino comprava um
ingresso para o Cinema Poeira. Daria também para pagar cinco passagens de
bonde, caso eles fossem pagar. Mas eles preferiam viajar dependurados e
saiam mudando de um lado para o outro com o cobrador atrás. Na verdade,
meu pai dizia que nem ele nem os outros garotos vendiam água. O que eles
cobravam era pelo transporte. Afinal, caminhar dois quilômetros morro acima
carregando tanto peso tinha algum valor. Para eles, a água saía de graça.
Existia uma instalação na Central do Brasil que servia para abastecer os
tanques de cada maria-fumaça. A água fervia na caldeira, depois de ser
esquentada com o carvão que queimava na fornalha e o vapor movimentava o
trem. Quando não havia nenhum lá, bastava chegar e puxar uma cordinha para
deixar a água encher a lata.

Meio de transporte era só o bonde e o ônibus movido a gasogênio. O


carro apareceu depois da Segunda Guerra e, mesmo assim, só importado. No
Morro do Pinto passava o carro da lingüiça, o da cerveja preta apelidada de
barriguda (por causa do formato da garrafa) e o carro da laranja. Na verdade,
era um caminhão. O da lingüiça era um furgão pequeno, que subia para vender
o produto nobre no Armazém do Seu Flor. Havia dois armazéns lá em cima e
apenas uma quitanda, a do Seu Otávio. Só se vendia o essencial: feijão e
arroz. O resto, tinha que descer até a Rua Nabuco de Freitas ou a Rua Pedro
Alves. Na área não tinha açougue nem padaria. Quem vendia pão era o
Botequim do Galego e a padaria da Nabuco de Freitas. Dali é que mandavam
levar o pão pro morro, tarefa de que era encarregado o escurinho Moleza. Uma
bisnaga era barata e não chegava a um tostão. Quando chovia forte, os
garotos diziam: “ih, está chovendo 400 réis”, em referência a uma moeda neste
valor, que tinha um diâmetro grande e, em teoria, equivaleria a cada pingo de
chuva.

Um dos passatempos preferidos dos garotos, depois do futebol, era ir ao


cinema. Os filmes passavam em série e mudavam às quintas-feiras e aos
domingos. “Um filme nunca terminava no mesmo dia”, explicava meu pai, já
que cada sessão tinha apenas uma hora de duração. Geralmente, ele gostava

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de ir às terças-feiras à noite, porque durante o dia estava ocupando com o
trabalho e a escola, e aos domingos. Ele gostava dos filmes de terror, com
Boris Karloff, e também do Jim das Selvas. Os assentos não poderiam ser
piores, já que eram meras poltronas de madeira sem estofo, e no ambiente
também fazia muito calor, principalmente no verão. Vai ver que era isso que
justificava as sessões tão curtas. Segundo meu pai, também havia muitas
pulgas.

A minha vida inteira escutei o meu pai brincar, toda vez que estava
quente, dizendo: “ai, o calore, o calore”, imitando um sotaque português. Mas
foi só nos seus últimos dias de vida que ele me contou a totalidade dessa
história. Foi num domingo, no fim de novembro de 2007, último dia em que ele
esteve totalmente lúcido, já que morreu, completamente drogado de morfina,
na quinta-feira seguinte. Aquele mês inteiro eu passei praticamente, senão
direto lá, indo e voltando todos os dias, embora meus pais tivessem me dito
que ficasse em casa para descansar. Mas eu respondi que papai estava indo
embora e eu queria passar com ele todo o tempo que restava.

Parece que estou vendo a cena novamente. Minha mãe estava


preparando o almoço e eu me ofereci para ajudar. Ela disse: “não, fica aí com o
pai, faz companhia pra ele”, e foi o que eu fiz. Ele só se levantava da cama,
com a maior dificuldade, para ir ao banheiro e para comer, sentado conosco à
mesa. Peguei uma cadeira e coloquei ao lado da cama dele e ele contou, com
o mesmo prazer de sempre, suas velhas histórias de infância. A tal do “calore”
teria acontecido quando ele já era pré-adolescente. Os garotos descobriram
que havia uma espécie de tarado freqüentando o mesmo cinema que eles e
resolveram preparar uma armadilha. Meu pai foi a isca. Depois que se sentou
ao lado do gajo, ele repetia incessantemente a queixa contra o calor e quando
esticou a mão para tocar na genitália do garoto ele deu o alarme e todos os
colegas começaram um ataque ao mesmo tempo, na base de socos e
pontapés. Até que o lanterninha chegou e salvou sua pele.

O único cinema que tinha uma cortina na frente da tela era o cinema
Ideal, que ficava na Rua da Carioca, no Centro da cidade. No intervalo de

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alguns minutos, no meio da exibição, os funcionários acionavam um
mecanismo que abria o teto do teatro, como se fosse uma espécie de janela,
para renovar o ar. Só que, pelo luxo, o ingresso era mais caro. A lotação
máxima ficava em torno de 50 pessoas. Já no Morro do Pinto, havia também
um único cinema, chamado de Poeira ou Barnabé, que era também o nome do
dono. Havia outros, como o Primor, na esquina da Avenida Marechal Floriano
com Rua Camerino, quase em frente ao Colégio Pedro II, e o Popular, que
ficava em frente ao mesmo col. Na Tijuca, ficavam cinemas melhores, como o
Metro e o Olinda, para grandes públicos, mas esse ele não freqüentava, porque
eram para uma classe social mais alta. Na Cinelândia existiam, ainda, o Rex, o
Plaza, o Pathé e o Odeon, sendo que esses dois últimos conseguiram
sobreviver até o século XXI. Meu pai ficava circunscrito mesmo aos cinemas
Popular e ao Poeira...

Mas o Morro do Pinto tinha lá outras atrações. Como o Clube Dramático,


visitado todo sábado de carnaval pelo Rei Momo em pessoa. Ou a Corrida
Rústica, realizada sempre no primeiro domingo de junho, e que atraía
cobertura de periódicos como o Jornal dos Sports e tinha o apoio de
personalidades como o então presidente do Clube de Regatas do Flamengo,
Gilberto Cardoso. Participavam alguns atletas profissionais, como Sebastian e
Caetano, jogadores do Flamengo, ou Janssen, do Vasco da Gama, sem contar
corredores do exército e da marinha. O trajeto começava na Rua Sara,
passava pela Saldanha Marinho, depois pela Nabuco de Freitas, Carlos Gomes
e voltava à Rua Sara. Ganhava quem completasse três voltas na frente dos
concorrentes. Isso na prova de adultos. Na disputa mirim, bastava completar
uma volta do circuito. Candidatos em campanha eleitoral, como Edgar de
Carvalho, costumavam contribuir para premiar os vencedores. Os jornais
também patrocinavam um prêmio em dinheiro para os primeiros colocados e,
curiosamente, para quem chegasse em último também. Um dos irmãos de meu
pai, na única vez que concorreu, sem se ligar nesse detalhe, chegou em
penúltimo, e perdeu o tal prêmio de consolação. Que poderia ser, por exemplo,
uma basqueta, o correspondente a um par de tênis na época. Não havia tênis
como se conhece hoje e o modelo, embora parecido, tinha o cano mais alto.

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Roupas e sapatos eram um capítulo à parte na história daquela
comunidade pobre, como de tantas outras naqueles dias. Os meninos
circulavam pelo morro vestidos num calção feito de saco de farinha de trigo da
padaria. Na rua, estavam sempre descalços. Basqueta só se calçava para ir à
missa no domingo ou ao cinema. Para ir à aula ou trabalhar, o calçado era um
par de tamancos, comprado no armazém, que se usava também para marcar o
lugar das balizas sobre o calçamento de paralelepípedos, na hora de jogar uma
pelada. Servia também, em dias mais frios, se alguém estivesse vestindo uma
camiseta ou camisa, quando a peça era enrolada e colocada no chão.

As mulheres usavam sandálias baratas e vestidos de chita. Os homens


calças de brim (mas não existia jeans) ou uma espécie de lona de cor cáqui,
que lembrava um uniforme, já que a maioria eram operários. Quem tinha um
pouco mais de recursos e trabalhava numa multinacional, como a Light, ou no
Banco do Brasil, usava calças de um tecido riscadinho em preto e branco e,
geralmente, gravata. De 7 às 16h, os operários trabalhavam ali nas
redondezas. Ou na fábrica de farinha de trigo e biscoitos, chamada de Moinho
Inglês ou, ironicamente, nas diversas fábricas de sapatos que só eram
consumidos pelos grã-finos, como a Fox, a maior e a melhor, que ficava no
bairro de Santo Cristo, ou a Danuzzi, na Rua Júlio do Carmo. “Os próprios
empregados não tinham direito a usar os sapatos de lá, nem os filhos deles,
porque não ganhavam o suficiente para comprar.” Mas o pessoal também
gostava muito de sombrinhas e guarda-chuvas, o que era um ótimo negócio
familiar.

Seu tio João, casado com uma das irmãs de seu pai, tinha uma pequena
fábrica de guarda-chuvas, que ficava na Rua Bento Ribeiro, próxima ao Túnel
João Ricardo, atrás da Central do Brasil. Então, meu avô Oswaldo pegava
carregamentos de três dúzias de armações de cada vez, mais as capas e os
cabos para terminar de montar em casa, teoricamente com a ajuda dos dois
filhos mais velhos — meu pai e seu irmão Claudionor. “Eu carregava mais do
que trabalhava. Não gostava de fazer aquilo. Nunca tive habilidade manual. Já
meu irmão sempre dava um jeito de fugir do serviço...” O modelo masculino era
o típico, na cor preta, e o feminino era sempre azul, sem estampa, e só variava

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o tom, mais claro ou mais escuro. “Ficava bom. Depois de pronto, a gente tinha
que passar cada peça por cima de uma panela de água fervendo porque o
vapor deixava o pano esticadinho e dava pra ver se tinha ficado algum defeito.”
Meu pai começou na atividade com 14 para 15 anos e trabalhou nisso até os
17, quando seu pai morreu.

Mas sua grande paixão sempre foi o futebol. Coisa que ele nunca soube
explicar. Sempre jogou como goleiro. Começou com as peladas na rua, aos
sete anos. A bola era de meia recheada com papel e ficava do tamanho de
uma manga grande. “Mas nós fazíamos com tanto carinho, ficava tão bem-
feita, que chegava a quicar!” Aos 13 já estava jogando no clube do São
Cristóvão — onde, décadas mais tarde, iniciaria sua carreira um outro craque,
conhecido como Ronaldo, o Fenômeno. O campo, ainda hoje na Rua Figueira
de Melo, era chamado de galinheiro, porque ali tudo era pequeno. No ano de
1954, aos 17 anos, portanto, meu pai foi vice-campeão pelo time na categoria
juvenil numa final contra o Vasco da Gama, que tinha uma infra-estrutura muito
melhor. “Na véspera, ficamos concentrados na sede. Jantamos macarrão com
almôndegas na pensão do diretor do São Cristóvão, que tinha um açougue no
Santo Cristo. Antes da partida, foi servido café com leite e pão doce.” Segundo
explicou, no Vasco os jogadores tinham preparação física, enquanto que eles
só treinavam quando dava. A maioria trabalhava nas fábricas e, normalmente,
só chegava na hora do jogo, trazendo a chuteira debaixo do braço. O modelo
era nacional, comprado na loja Superball, e o clube oferecia só a camisa e o
meião. A chuteira tinha travas fixas de couro presas com pregos e não tinha
como substituir em dia de chuva.

Meu pai ficou no São Cristóvão de 1954 a 1956. Depois foi para o clube
da Portuguesa, já como jogador profissional, justamente numa fase em que o
time tinha passado para a primeira divisão. A sede ficava na Rua Barão de São
Félix, mas depois que o Jóquei Clube acabou com o hipódromo que existia na
Ilha do Governador a Portuguesa construiu um estádio lá. Jogou no time de
1956 a 1957. Depois, nunca mais, por causa da reviravolta na vida e,
principalmente, da sua doença. Meu avô Oswaldo tinha, ele mesmo, sido
goleiro reserva do titular Jaguaré no time do Vasco da Gama, mas nunca quis

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que os filhos jogassem, porque naqueles dias o esporte não dava dinheiro. Por
isso, não incentivou os filhos e ficava contrariado quando meu pai dizia que
queria investir no futebol.

Naquele meio, todo mundo tinha apelido. “Era uma forma de a gente se
livrar dos meganhas, como chamávamos os policiais militares, que ficavam
numa força policial instalada no Morro do Pinto.” Jogar futebol era proibido,
porque a bola podia bater numa daquelas senhoras ou quebrar a vidraça do
armazém. Por isso, os codinomes eram Dondoca (um negro que perdeu um gol
alegando que o cabelo “lhe caiu no olho”), Doquinha e o dele, Pelado, como
era conhecido até 20 e poucos anos. “Quando sua mãe me conheceu, todo
mundo ainda me chamava de Pelado.” A origem tinha a ver não só com o corte
exótico de cabelo, como também com um programa da Rádio Nacional. “Eu
sempre fui fanático pelo Flamengo!” No tal programa, um personagem
chamado Peladinho dizia: “Doutor Rube, você é o maior!”, em referência a um
meia direita do time.

O cabelo curto também era para não ter trabalho. “Sempre gostei muito
de limpeza. Chegava no barbeiro e mandava raspar.” Só ele usava esse corte.
Chegava em casa e, conforme dizia, era mais fácil, porque depois do banho
não precisava pentear. Já o irmão mais velho costumava sofrer na mão do pai,
que o pegava para arrumar o cabelo comprido, e doía bastante tirar os nós.
“Meu pai dizia que ia pentear as melenas dele. Já eu nunca fui vaidoso.”

Naqueles anos de vida mais dura e, ainda assim, mais leve, o carnaval
era o ponto alto do ano, em especial junto aos mais pobres. Meus avós
paternos adoravam se fantasiar e há lindas fotos de família, com todos
paramentados. Já na geração de meu pai, com a filharada e a grana mais
curta, o mais comum eram os homens saírem vestidos de mulher. Meu Tio Nô,
por exemplo, arrumava uma camisola qualquer e saía pela rua. Papai conta
que só se arriscou uma vez e, mal chegou na esquina, se sentiu tão ridículo
que voltou resmungando para casa. Mas se no nível pessoal ele não tinha lá
muito entusiasmo pela festa da alegria, certamente colecionava histórias vistas
e vividas junto à coletividade. Como aquela que aconteceu num bonde. Em

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alguns trechos da cidade, os trilhos das linhas de bonde passavam bem perto
um do outro. E ele contava que, num carnaval, viu que um sujeito todo vestido
de mulher, usando peruca, era o folião mais doido de um bonde daqueles. Só
que, assim como nas partidas do Maracanã, era comum que alguns rapazes
mais extremistas levassem consigo para dentro do bonde um barril cheinho de
urina, coletada pacientemente nos dias que antecediam a festa de rua. Pois
não é que, assim que os bondes se cruzaram, e o folião modelo, acompanhado
de um sobrinho, berrava uma marchinha a plenos pulmões, acabou levando
uma carga direta de mijo pela cara, e engoliu um bocado, chegando inclusive a
se engasgar? Meu pai dizia que o garoto só chamava: “titio, titio!” Esse era o
espírito lúdico do carioca na primeira metade do século XX.

Um outro evento de bonde que passou a fazer parte de nosso


anedotário familiar tinha a ver com um garotinho chamado Hugo. Meu pai
estava no bonde e havia um moleque que simplesmente não sentava e estava
deixando a mãe louca. Ela repetia: “Huuuuugo (assim mesmo, esticando o U),
Huuuuugo, fica quietinho que mamãe te dá uma pêra!” Se hoje uma pêra custa
caro, naqueles dias mais ainda. Parece que a tentativa de corromper o
pequeno Hugo não foi bem sucedida. Mas valeu a piada. A minha vida inteira,
quando alguém estava fazendo bagunça demais dentro de casa, e geralmente
era meu pai, sempre tinha alguém para se lembrar de mandar aquele Hugo
ficar quietinho pra poder ganhar a pêra.

Os personagens que passaram pela vida de meu pai, em especial pela


sua infância, são figuras encantadoras. Como a “flor do meu bairro”, cujo nome
não me lembro, mas que era a garota mais feia de todo o Morro do Pinto. Ou o
Bibiu, cuja única canção que sabia tocar no inseparável violão era feliz
aniversário. Ou o Tetraldo que, numa quarta-feira de cinzas, “para animar”,
começou a cantar “ninguém me ama, ninguém me quer...” e quase foi linchado.
Ou o vendedor de ping-ling, ou ting-ling, chamado ainda, mais modernamente,
de biju, que são aqueles canudinhos ocos feitos de massa. Hoje eles ainda são
vendidos em alguns sinais de trânsito, industrialmente empacotados em sacos
plásticos, mas na minha infância e na de meu pai eram vendidos em grupos de
cinco unidades, enfiados numa espécie de copo feito de papel enrolado, que

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era transportado num outro canudo gigante, esse de metal, que o vendedor
carregava nas costas. Sua chegada era devidamente anunciada pela matraca:
uma espécie de taco de madeira onde era presa dos lados, ali pelo meio da
largura, uma trava de metal, e que fazia o maior barulhão quando ele sacudia o
instrumento. Em dias de sorte, o ping-ling poderia ser adquirido junto com uma
chupetinha. Esse era um doce ingênuo, feito basicamente com açúcar
queimado que era moldado em forma de chupeta e um verdadeiro buquê
daquele vermelho translúcido vinha fincado no topo do canudão de metal.

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Mais memórias de meu pai

Nem todo mundo que morava no Morro do Pinto era assim tão pobre. O Rafael,
por exemplo, era dono de uma joalheria na Rua da Carioca e, todo dia, subia
com embrulho de queijo Palmira, chamado também de queijo de cuia, presunto
e outras iguarias. Quando ele parava para tomar uma no Bar do Galego, a
galera ficava pedindo: ”dá aí um pedacinho de queijo para a gente comer com
a cerveja!” E ele dizia que não, que era para a família dele. Quando a situação
econômica piorou para todo mundo, ele passou a embrulhar pedras e levar o
embrulho como sempre, para não perder o status. Até que, um dia, deixou no
balcão, a rapaziada abriu, viu o conteúdo, mas ele não perdeu a pose. “Podem
se servir.” Ele também explorava a cantina do Clube Dramático, que era mais
um clube de futebol. Teve um dia que um freguês pediu um churrasquinho mas
reclamou porque estava duro. Rafael levou de volta para a cozinha, jogou a
carne no chão, sapateou bastante em cima, cuspiu, colocou de volta na grelha
e trouxe com uma cerveja. A reação do cliente: “agora sim! Por que você não
trouxe logo desse jeito?” De certa forma, se poderia dizer que meu pai cresceu
praticamente dentro de um livro, que era cheio de personagens dramatúrgicos
e situações-limite.

Meu pai jogou em diversos times. Como o Canadá, que ficava na área
do Canal do Mangue e do baixo meretrício. Ou o Ouro Verde, com sede na
Rua Nabuco de Freitas, ou o Rui Barbosa, que ficava no Estácio. No Atília, de
Santo Cristo, no entanto, não jogou alegando que “santo de casa não faz
milagre”.

Papai foi morar no morro aos oito anos e ficou até mais ou menos uns
13. Depois que seu Tio João — o mesmo da fábrica de guarda-chuvas —
ganhou pela terceira vez na loteria federal e se mudou para uma mansão no
Grajaú, a família de papai foi morar na casa dele, no chamado Castelo, porque
era a casa mais bonita da Rua da América, no bairro de Santo Cristo. Mas ele
dizia que todo dia subia o morro, até se casar e ir para a Tijuca, porque era lá
que estavam seus amigos. No dia 2 de novembro de 1956, feriado de finados,
fundou o time de futebol Americano e participou, inclusive, do primeiro jogo,

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realizado no campo de um quartel do Corpo de Bombeiros que existia onde,
hoje, fica a Rodoviária Novo Rio. O Americano começou bem, ganhando contra
um outro time lá da área mesmo. Segundo meu pai, era muito comum existir
times pequenos e era onde se formavam os grandes jogadores.

Como o Jorginho, ponta esquerda do América e da seleção brasileira,


que era morador do Morro do Pinto. Ou o Lenine, que antes de ficar louco e
virar mendigo jogou no América e no Bonsucesso. “A gente estava lá,
disputando uma pelada, chegava ele com um terno de linho 120, tirava o
paletó, arregaçava as calças e a camisa e entrava no jogo. Ele só queria jogar.
Depois se casou com uma mulher que não valia nada, ficou desgostoso e
começou a beber, e deu no que deu.” Assim como o Heleno de Freitas,
centroavante da seleção brasileira e do Botafogo, que terminou louco num
sanatório em Barbacena, de acordo com a memória de papai.

Houve algumas oportunidades para ele no futebol, mas não foram


suficientes. Um roupeiro do Fluminense quis levar meu pai para jogar nas
Laranjeiras, mas ele não achou que a idéia fosse boa. Aquele era um clube de
elite, que não admitia gente de cor e, embora meu pai fosse branco, achou que
ficaria deslocado, porque era pobre. Para ele, foi só a partir dos anos 1960 que
os salários começaram a aumentar. E gostava de citar um exemplo. “Em 1952,
a seleção ia disputar o campeonato panamericano no Chile e o Zezé Moreira
era o treinador. O Didi, então, pediu uns trocados ao presidente Getúlio Vargas,
para que os jogadores pudessem trazer umas lembrancinhas da viagem para a
família. Getúlio deu 300 dólares para cada um.”

Da mesma forma que não havia os contratos milionários, também não


havia glamour em torno do esporte. Tanto que os jogos de preparação para a
próxima copa do mundo podiam ser feitos até mesmo contra times pequenos.
E foi assim que meu pai chegou a jogar no Maracanã contra a seleção
brasileira, em 1954, antes da copa. Naquele ano, a seleção fez um jogo de
treino contra um time chamado Torres Homem, em que ele era goleiro, numa
quarta-feira de manhã. Enquanto hoje se organizam partidas amistosas,
geralmente na Europa, na época se treinava contra um time como esse, da

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segunda divisão, do chamado departamento autônomo. A partida terminou
empatada em um a um e a imprensa criticou bastante a seleção. Historiadores
do esporte, vale à pena conferir.

A seleção era composta por um time com o goleiro Castilho, Djalma


Santos, Pinheiro, Newton Santos — aqui entra um nome que, na gravação, não
consegui identificar — Bauer, Juninho, Didi, Baltazar, Pinga e Rodrigues. Do
lado de cá do campo, havia outro Djalma, Bandolim, e um goleiro menos
ilustre, que acabou tomando um gol de Didi. “Ele cobrou uma falta por cima da
barreira e não deu pra ver. Quando olhei, a bola já estava no barbante.”

A trajetória incluiu também uma passagem pelo Coríntians em 1954.


Existia um exportador de madeira chamado Benedito Rodrigues Coura (?) que
era prefeito de Presidente Prudente e organizava o time. O contato teria sido
Cabeção, nascido no Morro do Pinto e jogador do Coríntians. Num torneio Rio-
São Paulo, meu pai chegou a jogar contra o Flamengo. Ficou dois ou três
meses lá, mas não gostou. Dizia que não sabia ficar fora de casa. Foi assim
também quando jogou no Serrano. Passou dois meses em Petrópolis e voltou
para o Rio. “Eu tinha muita deficiência física, não tinha porte atlético, a
preparação física era deficiente e eu não tinha família. Ficava deslocado.”
Naquele ano decisivo, meu pai tinha 17 anos.

Pelo São Cristóvão, chegavam a entrar em campo para disputar uma


partida até com a camisa rasgada. Os jogos aconteciam no campo do Vasco,
do Fluminense, do Olaria, na Rua Bariri... Era uma buraqueira só e a torcida
ficava bem perto do gol, xingando e atirando o que via pela frente em cima do
goleiro adversário. “Mas fazia parte do espetáculo!” Ao Maracanã ele também
ia sempre, geralmente sozinho, geralmente de geral, que era o ingresso mais
barato, e que eu também cheguei a conhecer, olhando lá do alto, já que
quando ele nos levava, a mim e a minha irmã, ainda meninas, era sempre de
arquibancada. Mas, na sua juventude, ele não ia assistir apenas aos jogos do
Flamengo. Em 1950, por exemplo, dizia ele que o time do Flamengo estava
horrível e não ganhava de ninguém. Naquele ano, ele torceu pelo América, que
é o segundo time de todo mundo e estava com um ótimo time. "O Flamengo

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tinha um péssimo treinador, um português chamado Cândido de Oliveira." No
América havia também um jogador do Morro do Pinto, Jorginho. Então, todo
domingo ele estava lá. Em relação às torcidas organizadas, a situação era bem
diferente. "Só havia uma charanga do Jaime de Almeida, do Flamengo. Depois
um torcedor chamado Ramalho apareceu com uma torcida para o Vasco."

Como ardoroso fã de futebol, assistir ao "Canal 100" também era uma


excelente oportunidade de rever os gols. Geralmente, ele via no Cineac
Trianon, que ficava quase em frente ao Edifício Avenida Central, ou no
Capitólio, outro cinema perto do Bar Amarelinho. "Matei muita aula na Suesc
para assistir ao Canal 100 e ver desenho animado!"

No curso comercial básico da Suesc, que fez até a quarta série, as aulas
iam das 8h ao meio-dia. Ali, foi suspenso duas vezes. A primeira, por uma
semana, porque se recusou a assistir às aulas de Inglês com uma professora
portuguesa chamada Dona Alda, que insistia na fonética. Pensava poder
conseguir, com seu protesto, o retorno da professora anterior, Dona Ione, mas
a tática não deu certo. Da segunda vez, se envolveu numa briga dentro de sala
de aula, para defender um colega que apanhava de outro garoto mais forte.
Filho de uma família tão pobre, a explicação para conseguir estudar, ainda que
por pouco tempo, numa escola profissionalizante vinha de relações familiares.
O professor Ademir Sampaio, que trabalhava na Suesc e havia sido também
diretor do tradicional Colégio Pedro II, era casado com a irmã de seu avô
materno, o legítimo. Esse, chamado Armando Rodrigues da Silva, nem mesmo
sua mãe, filha dele, chegou a conhecer direito. Ela nasceu em 1911 e ele, que
era trocador de bonde, deve ter morrido por volta de 1915, de tuberculose
pulmonar. Minha avó Ynaiá era a filha mais velha e depois nasceu Yara.

Embora eu não esteja certa de que grau de parentesco existia entre


eles, meu pai também falava com muita admiração de um outro tio, chamado
Charutão, porque estava sempre fumando um fedorento charuto, a ponto de
ficar com o rosto meio deformado. A boca havia entortado no canto em que ele
prendia o charuto e o olho do mesmo lado teria ficado meio encolhido, de tanto
tentar mantê-lo meio fechado, para proteger da copiosa fumaça. Parece que

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eram parentes pelo lado da minha avó. Certo é que esse homem, professor e,
se não me engano, também ex-diretor do Colégio Pedro II, além de dono de
um colégio no Méier, freqüentemente socorria a família em horas de aperto
financeiro. Meu pai dizia que ele fazia isso com muita elegância. Ninguém
abusava, justamente porque ele era sempre tão generoso, e todo mundo ficava
constrangido de ficar incomodando. Mas ele chamava a visita na biblioteca,
colocava o dinheiro dentro de um envelope e entregava ao familiar. Foi assim
que meu pai se safou de algumas crises. Parece que esse homem bom morreu
cedo e não deixou descendentes. Acho que ele era casado com a Tia Olga,
uma velhinha simpática e elegante, que conheci quando criança, ou com uma
irmã dela, não sei mais. Alguém da casa tinha batizado minha madrinha, a irmã
mais nova de meu pai, e foi para lá que ela foi encaminhada, quando minha
avó morreu.

O Tio João, outro poderoso da família, era casado com Miloca, irmã de
seu pai Oswaldo. Ele tinha carro importado, geladeira e, segundo meu pai,
parecia um alemão, sempre vermelho e careca, mas era um bom sujeito, pai de
duas filhas. Foi graças a esse tio que foram para o Castelo. Ele ficava em
frente ao Morro da Favela, o primeiro que jamais existiu no Rio de Janeiro.
Mais tarde, esse morro foi dividido ao meio: uma parte foi rebatizada de Morro
da Providência e existe, até hoje, considerado como a favela mais antiga da
cidade, e na outra metade foi construída a Vila Portuária, para alojar as famílias
dos trabalhadores do Cais do Porto. Tenho ainda parte da família do irmão
mais velho de meu pai que vive na Vila Portuária. Mas quem morava no Morro
da Favela era sua tia Gieta, que também tinha dinheiro mas, no dizer dele, era
"miserável", porque só queria guardar e nunca gastava nada. Para alimentar
sua criação de porcos, andava pela rua de restaurante em restaurante
coletando restos de comida numa lata enorme que carregava na cabeça,
enquanto o chorume lhe escorria pela testa abaixo. Como sua figura era
constrangedora, apesar de rica, os sobrinhos se escondiam quando a viam,
para não passar vergonha na frente dos colegas, e ela reagia aos gritos.
"Venham cá falar comigo. Vou fazer queixa ao seu pai!" Quando achou que já
tinha juntado dinheiro bastante, comprou terras — uma fazenda, segundo meu
pai — no bairro de Rocha Miranda e sumiu da favela. A diferença entre o Morro

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da Favela e o Morro do Pinto, segundo ele, é que na primeira havia casas de
tábua e, logo, ninguém pagava aluguel. No Morro do Pinto, moravam os
operários em casas de alvenaria. Havia mais uma ou duas questões
importantíssimas para distinguir os muito pobres dos mais pobres ainda. "Se no
Morro do Pinto uma família tinha seis filhos, no Morro da Favela ela tinha 12,
13, 14... Quando o chefe da família recebia o pagamento, geralmente às
sextas-feiras, ele ia direto para o boteco tomar cerveja e metade do salário
ficava ali, na mesa do bar."

Faltou falar, ainda, da única tia materna de meu pai, a Yara. Ela era
muito gorda, barulhenta como a mãe dela, Olympia, e adorava gatos. Tudo na
casa dela lembrava o animal. Eram diversos objetos de decoração, como
almofadas bordadas com cara de gato. E, se não me engano, assim como sua
mãe, também mantinha o marido na rédea curta. O coitado tinha dois
empregos, um de dia e outro de noite, para dar à esposa do bom e do melhor,
já que era totalmente louco por ela. Tiveram três filhos, meninos, e meu pai
dizia que os garotos eram verdadeiros capetas. Do tipo que maltrata animais.
Uma vez, meu pai chegou a ver um dos primos pegar alguns pregos, um
pedaço de tábua e crucificar um pintinho!

Yara era bem maior — mais alta e mais forte, para não dizer pesada —
do que o marido. Acho que o nome dele também era João. Mas morria de
ciúmes dele. Meu pai dizia que ela era bem feia e, ele, um homem bonito, de
olhos azuis, que havia nascido numa boa família, extremamente bem educado,
e cuja mãe sofria de desgosto e chorava ao vê-lo se casar com uma mulher do
povo, ir morar no morro, trabalhar como um escravo e ainda sofrer na sua
integridade física. Porque se o pobre João chegasse em casa um pouquinho
mais tarde, por qualquer atraso na condução, Yara já o esperava na porta
pronta para “cobrí-lo de porradas”. Era comum que desse surras nele. Ele
jamais revidava. Quando ela morreu, subitamente, de um enfarte, não levou
muitos dias e ele morreu também, de pura tristeza...

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Parentesco

Meu pai era pelo menos dois. Um quando acordava de manhã, descansado e
bem disposto, barba feita, e saía cedo para o trabalho. O outro era aquele que
voltava à noite, cansado, desesperançado e, na maioria absoluta das vezes,
bêbado. Parecia que ele era duas pessoas diferentes. O primeiro tinha uma
leveza, uma alegria, um jeito positivo de ser, divertido, adorável. O segundo
cheirava a suor, falava com a língua enrolada, piscava com dificuldade,
tombava para os lados e, desse, eu só queria distância.

Entender quem foi meu pai passa por entender sua trajetória
profissional. Filho de famílias portuguesas ou, pelo menos, de quase
portugueses nascidos no Brasil, parecia que trabalho era uma das poucas
palavras que fazia sentido para ele. Ou, pior: que davam sentido à sua vida.
Meu pai era do tipo de homem que odiava os feriados, principalmente o
carnaval, porque era longo, já que seu pior castigo era não poder sair para
trabalhar. Durante muitos anos ele trabalhou de segunda a sábado e, alguns
anos, quando já era sócio minoritário da loja de material de construção em que
terminou sua vida útil, até mesmo aos domingos abriam até o meio-dia.

Uma passagem ilustra bastante bem o fanatismo com que meu pai
encarava o dever de trabalhar. No ano de 1966, houve uma tremenda enchente
no Rio de Janeiro e ele já trabalhava na mesma lojinha em que se aposentou
na Barra da Tijuca. Dentre os prejuízos à cidade, contava-se uma espécie de
avalanche em toda a extensão de acesso ao bairro no trajeto feito a partir da
Zona Sul, livre apenas para pedestres, e uma estrada destruída pelas árvores
que desabaram no acesso pela serra a partir da Tijuca. Pois meu pai, que já
era gerente da loja, acompanhado de seu irmão mais novo, também
funcionário, tomou um ônibus até o Leblon e dali seguiu a pé por não sei
quantos quilômetros no meio da lama até chegar à Barra da Tijuca. A loja, em
frente à igreja de São Franscisco de Paula, está lá até hoje. Os dois levaram
muitas horas para ir e tiveram que repetir a aventura para voltar. Como almoço,
houve apenas uma dúzia de bananas. Mas meu pai dizia não ter se
arrependido da empreitada, já que, por causa dos estragos da chuva, a

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comunidade precisava de tudo, pás, vassouras, pequenos bujões de gás, e
aquela era a única loja de material de construção na época.

A seguir, o relato que ele mesmo fez sobre o tal evento da ida a pé para
o trabalho, daquele nosso livro sobre a Barra da Tijuca.

“No ano de 1966, o Governador Negrão de Lima cassou o feriado de


São Sebastião. Logo depois do dia 20 de janeiro, caiu um senhor temporal, que
causou inclusive muitas mortes, e a Barra ficou ilhada. Eu estava em casa
quando o temporal começou, numa segunda-feira, anoitecendo, choveu forte a
noite toda. Na terça pela manhã, quando tentamos chegar à Barra da Tijuca,
estava praticamente inacessível. Tanto que o deputado Mauro Magalhães me
ligou, morávamos em cima de uma padaria na Rua Pedro Alves, no Bairro do
Santo Cristo — como não tínhamos telefone, quem quisesse falar com a família
tinha que ligar pra lá ou para o bar da esquina — me perguntando de que
maneira podia fazer para abrir a loja e atender ao pessoal carente da Favela da
Ponte Nova, atual Favela do Marapendi, que ia da Ponte Nova até o Canal de
Marapendi, onde hoje tem o viaduto, do lado direito.

A Lagoa de Marapendi havia transbordado, inundando a praça, inclusive


a pista. Então, na quarta-feira, fui forçado a tentar chegar à Barra pelo Leblon.
Apesar de que tinha caído uma barreira na Avenida Niemeyer, que destruiu
uma casa e matou quatro pessoas. Pela Tijuca também não havia acesso
porque uma pedra havia rolado do alto da montanha e destruído um viaduto
que tem até hoje na Edson Passos, aquele do retorno para o Montanha Clube.
O deslizamento quase destruiu a casa do Sr. Lobarinhas, que era o proprietário
da União Fabril Exportadora, mais conhecido como o Sabão Português, mas
que também fabricava a Cera Tabu, e que por muitos anos foi ponto de
referência na Avenida Brasil. Por Jacarepaguá também não dava, porque a
lagoa transbordou e a água chegou à altura do Clube dos Médicos, na Estrada
Velha de Jacarepaguá. Esses eram os acessos que tínhamos.

Então, na quarta-feira, consegui chegar à Barra indo a pé do antigo


Hotel Leblon, na Rua Visconde de Albuquerque, em frente ao Mirante do

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Leblon, subindo a Avenida Niemeyer e passando por cima da barreira. Levei,
junto com o Eli, duas horas e meia até chegar à Praça Euvaldo Lodi.
Almoçamos uma dúzia de bananas prata que compramos na quitanda do Xico,
quando finalmente alcançamos o Largo da Barra. Voltamos da mesma maneira
que nós fomos: a pé. Caminhamos da Avenida Niemeyer até a Praça Antero de
Quental, onde ficava o ponto final do ônibus 172, Rodoviária-Leblon.

Se por causa dos estragos ou não, o certo e que, a partir do ano


seguinte, o feriado do padroeiro retornou ao calendário oficial da Cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro para nunca mais sair...”

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Alguns acidentes

“Assim que a loja maior ficou pronta, eu tinha em mente instalar uma
serra circular para desdobrar madeira. O pessoal que freqüentava a antiga loja
tinha como hobby aproveitar o fim de semana para fazer trabalhos de
marcenaria e carpintaria. Naquela época, não tinha muita coisa para fazer na
Barra. Levavam, geralmente, uma relação que pedia sarrafos de 5 m x 2 m
aparelhados — a madeira é bruta e um sarrafo aparelhado é quando se deixa a
madeira lisinha. Falei com o Elias, dono da loja, e fui ali no Castelo, no Centro
da cidade, e encomendei uma serra circular de 7,5 cavalos de força. Passamos
a comprar a madeira aplainada e só desdobrar de acordo com a largura que o
freguês quisesse. Ninguém mais vendia madeira assim, só tabuado bruto para
construção, para fazer fôrmas e receber concreto. Um certo dia, houve um
caso interessante com um professor que morava no Recreio dos Bandeirantes.
Era boa pessoa, mas muito exigente, metódico, trazia a relação de material e
ficava ao lado, observando. Eu estava desdobrando um pranchão de três
polegadas por 12 polegadas. A serra circular ficava um pouco à frente da
fossa. Estou eu lá empurrando aquele pranchão pesado de peroba rosa. Tinha
4,5 m de comprimento, 7,5 polegadas de espessura e 30 polegadas de largura.
Também trabalhávamos muito com pinho e canela. Nós tínhamos um cavalete
e pousávamos a peça em cima dele. Havia um tubo galvanizado que ia girando
à medida que fosse cortando a peça. Precisava ter muita atenção no serviço,
porque em caso de descuido se estava sujeito a perder os dedos. Eu ficava
sempre na testa e o Louro na outra ponta, puxando. Mas eu me descuidei, pisei
na ponta da tampa da fossa, que não estava bem cimentada, sem caixilho, e
ela suspendeu e eu cai até a cintura. Não fui direto porque ela tem um
travessão no centro e bati ali. Pegou entre as pernas. Fui ralando as pernas
dentro daquela sujeira de banheiro. Por sorte, eu morava lá bem perto. Fui ao
consultório do Dr. Hélio, no mesmo prédio, e ele disse: ‘vou ter que fazer
curativo, você vai para casa, lava com bastante sabão as pernas, vai tomar
antibiótico’. Eu olhei e não fiz nada disso. Fui ao Bar do Gaúcho e tomei dois
conhaques Dreher. Graças a Deus, não tive nada. Só tive que agüentar a
gozação do pessoal.

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Mais uma ocorrência interessante foi a seguinte. O Louro (um negro que
trabalhava na loja) tinha acabado de vender parafina, que vinha em tabletes
grandes de cerca de cinco quilos de peso cada uma. A gente vendia por
gramas, 100, 200, batia com a marreta para partir. Era uma hora em que não
tinha freguês e o Louro ficou me desafiando. ‘Pôxa, você precisa de marreta
para quebrar isso aí, quebro na mão!’ Eu respondi: ‘se tu quebra, quebro
também’. Ele era lutador de boxe e muito mais forte que eu. Eu disse: ‘segura
essa placa aí, inteirinha’. Tomei distância e.. ‘há!’. Dei uma porrada com a parte
de baixo da mão e começou a inchar perto do osso do pulso na hora. Cheguei
em casa e avisei que ia ao pronto socorro. Minha filha caçula, Sandra,
começou a chorar, se lamentando: ‘mas eu só tenho esse pai!’. No Hospital
Municipal Souza Aguiar, puseram uma atadura com água vegeto-mineral, que
ficou uma semana. Nesse período, eu não podia tirar nota fiscal porque não
conseguia escrever.

Outro acidente de percurso aconteceu na loja Texas, quando abri a


cabeça. Existia um corredor no depósito onde guardávamos a Kombi que fazia
entregas. Havia uma divisão no centro, onde fizemos dois girais para colocar
mercadoria. Eu tinha ido apanhar algum material no jirau à esquerda de quem
entrava, mas o que eu estava procurando estava, na verdade, à direita. Para
não ter trabalho de descer e subir de novo, e como o vão era estreito, eu disse:
“vou pular para o lado de lá”. Mas como tenho mais de 1,80 m de altura e me
esqueci da viga de sustentação da laje, o plano não deu certo. Saltei de um
jirau para o outro, mas não me abaixei o suficiente e dei com a cabeça na viga,
caindo sobre um monte de rolos de tela de arame. No Hospital Lourenço Jorge,
precisei levar cinco pontos bem no centro da cabeça. Tiveram, inclusive, que
raspar para costurar. Eu tinha em torno de uns 40 anos, na época.

Mas o principal acidente que sofri na Barra da Tijuca acabou sendo um


acidente coletivo, que aconteceu dia 17 de novembro de 1973. Eu retornava
com minha mulher, as duas filhas e uma sobrinha do Clube Marapendi pela
Estrada da Barra, mais ou menos em frente ao Itanhangá. A direção do
fusquinha trancou na curva próxima à Rua Philadelpho de Azevedo e o carro
ficou desgovernado. Começou a cantar pneu e eu fiquei com medo de pisar no

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freio e capotar de frente. No entanto, o carro bateu o pneu dianteiro direito no
meio-fio e capotou de lado. Ficou com as rodas para o ar. Foi bem em frente à
residência do Dr. Rubens Porto, que era Procurador da República e me
conhecia da loja Barrinha. A família dele nos socorreu, ajudou a tirar as
crianças do carro e nos levaram para a sua casa.”

Embora no seu relato para o livro sobre a Barra papai tenha sido
bastante sucinto e discreto, minhas memórias vão um pouco além. Aquele dia,
pela nossa própria ida juntos ao clube, o que nunca acontecia, já era, em si,
extraordinário. Que levássemos nossa prima Rita conosco tornava a coisa
ainda mais extraordinária. Passamos a manhã e o início da tarde lá, na piscina,
tiramos fotos, era quase um sonho de tão incrivelmente bom. Na volta para
casa, iam meus pais nos bancos da frente e as três meninas (eu dormindo) no
banco de trás. Eu cheguei a pensar que era um pesadelo e, portanto, nem abri
os olhos, quando comecei a ouvir o barulho dos pneus cantando e minha mãe,
que perguntava ao meu pai, o tempo todo: “o que é isso, o que é isso?” Depois,
veio um barulhão e a nítida sensação de estarmos todos dentro de um
liquidificador gigante. O carro capotou umas três ou quatro vezes, e foi tudo
muito rápido.

Eu tinha nove anos, mas me lembro como se fosse hoje. Quem viu o
carro dizia que não tinha escapado ninguém vivo. Com a força do impacto, meu
pai foi cuspido pelo vidro da frente. Ficamos dentro e minha mãe segurava com
o braço o assento, para que ele não caísse em cima da gente. A gasolina
começou a escapar e havia risco de explosão. Lembro do contato do meu rosto
com o asfalto e de cacos de vidro por todos os lados. Em questão de
segundos, uma multidão, na rua até então quase deserta, se formou em torno
do carro. Eu ouvia vozes dizendo que era para tirar a gente correndo. Saímos
pela janela lateral de trás, que era mínima. A última a sair foi minha mãe e,
quando a colocaram de pé, ela simplesmente desmaiou. Eu achei que ela tinha
morrido e comecei a gritar. Meu joelhos estavam bastante ralados. Meu pai
tinha perdido partes do ombro e do braço direitos, que saíram ralando no
asfalto quando ele foi parar longe. Minha mãe teve, na verdade, uma espécie
de trauma na coluna cervical, mas nada grave. Minha prima machucou a

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orelha, superficialmente, Dias depois, se descobriu que eu tinha sofrido uma
fissura no braço direito, o que me custou duas semanas de gesso. Minha irmã
não sofreu um arranhão. Embora que, nos dias subseqüentes, todos nós
víamos sair de dentro das orelhas um bocado de cacos de vidro, toda vez que
dávamos leves batidinhas logo acima na cabeça.

Mas o traumático nem foram os ferimentos, nem o susto, porque aqueles


amigos do papai nos acudiram com o maior carinho. Logo apareceu, também,
um policial militar que alertou: “Sérgio, tenta tirar esse carro daí o mais rápido
que você puder. Se o pessoal da delegacia chegar você está perdido!” E foi
justamente o que aconteceu. De um momento para o outro, apareceu um
camburão e nos colocaram lá dentro. Tocaram com a gente para um matagal, e
havia muitos na Barra naquela época. Nos deixaram, à minha mãe, e às três
meninas, de nove, dez e doze anos, sentadas no meio-fio, e sumiram com meu
pai. Eram uns três policiais civis, que ficaram rodando com meu pai, a fim de
extorquir dinheiro dele. Volta e meia, perguntavam à gente: “o que foi que o seu
pai bebeu?” O mais louco é que meu pai, que sempre bebia, não tinha tomado
nada além de refrigerante, talvez porque tivesse sob sua guarda a filha do
irmão mais velho. A gente explicava isso, mas aqueles homens maus não
queriam saber. Só devolveram meu pai quando já estava anoitecendo e depois
que ele deu um cheque (sem fundos, porque não tinha o dinheiro que eles
pediram) para que eles não abrissem um boletim de ocorrência e
responsabilizassem meu pai criminalmente por ter provocado um crime contra
a própria família. Cheguei a penar que meu pai não ia voltar. A imaginar que
aquela gente ia matá-lo. Senti um medo muito grande, e via o desespero no
rosto de minha mãe, que ainda era muito jovem, já que estava com 33 anos.
Acho que a gente poderia ter morrido mesmo, todo mundo, naquela
capotagem, ou pelo menos meu pai, se tivesse deixado seu lado explosivo falar
mais alto, diante de uma situação tão revoltante. Aqueles homens não
pensaram em nos levar para um hospital, não pensaram em nos socorrer.
Eram como abutres, tentando levar vantagem sobre a desgraça alheia. E hoje,
passados 35 anos daquele dia, lamento dizer que nada mudou.

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Verdade que meu pai sempre foi um péssimo motorista. O tal fusquinha
azul, que depois de recuperado do acidente virou vermelho, era propriedade de
meu pai e de meu tio mais novo, que ficava com o carro durante a semana e,
nós, no sábado e domingo. Meu pai dizia que não tinha a menor habilidade
manual. Realmente. Quem consertava tudo lá em casa era sempre a minha
mãe. Volta e meia, quando saía dirigindo, meu pai voltava contando alguma
estripulia. Como no dia em que, sem conseguir desviar de um gari com sua
carrocinha – nos anos 1970 elas eram bem grandes, com uns 2m por 1,5 m, de
madeira — passou tão perto que o sujeito acabou caindo com a carroça dentro
do Rio Maracanã. Fazer meia embreagem naquelas ladeiras do Alto da Boa
Vista era uma possibilidade muito além do que meu pobre pai poderia imaginar
e qualquer interrupção no tráfego à frente nos fazia engolir em seco, porque já
antevíamos que ele iria esbarrar no carro logo atrás, sob os protestos sempre
veementes dos outros motoristas.

Aquela mesma prima que viveu conosco a capotagem, aproveitando a


péssima fama de meu pai como motorista junto aos familiares, apelidou meu
pai de Meu Tio Fittipaldi, numa ironia com o então campeão brasileiro da
Fórmula I, Émerson Fittipaldi, o mais famoso da geração anterior a Ayrton
Senna. Por tudo isso é que nós só faltamos fazer festa no dia em que ele
chegou em casa e anunciou para a família: “aposentei a carteira! Não dirijo
nunca mais!” Foi recebido com a mais sincera salva de palmas e nosso alívio
geral.

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Dificuldades

Meu pai nunca tirou férias na vida. Trabalhou desde a infância até depois da
aposentadoria e mais além, e só se retirou de vez no fim de 2000, quando já
estava com 63 anos. Foi aí que ele fez algumas descobertas importantes: a
primeira, que estava doente com câncer de próstata, doença que viria a matá-
lo em novembro de 2007. A segunda que não se entendia tão bem com minha
mãe, apesar dos cuidados dela, quanto tinha acreditado a vida inteira. O que,
para ele, se tornou um verdadeiro suplício, porque a convivência entre os dois
foi se desgastando muito no cotidiano, embora ele saísse todos os dias, com
os pretextos de sempre: fazer um joguinho — geralmente do bicho ou nas
corridas de cavalo — comprar cigarro e, embora não admitisse claramente,
beber.

Quando já estava fraco e tão doente, minha mãe foi a melhor enfermeira
que Deus já colocou na Terra. Cuidava dele com tanto carinho, firme ali no
posto, 24 horas por dia, cansada à exaustão, mas sem jamais se queixar. Nos
últimos anos, além do câncer e dos acidentes que ele teve em que quebrou
ambos os quadris, um de cada vez, e por último o braço direito, sendo que
duas dessas quedas foram causadas provavelmente por causa do álcool, o que
só fez piorar seus problemas de locomoção e movimentação, meu pai passou a
sofrer de incontinência urinária. Era como ter um bebê em casa. No final, nem
o fraldão noturno dava conta do volume de urina. E minha mãe ali, abnegada,
cuidando de um monte de roupas dele e de cama, num rodamoinho que não
tinha fim. Nada que eu faça por ela vai poder pagar a gratidão que eu sinto por
ter cuidado tão bem do meu pai. Talvez por isso me preocupe tanto com seu
bem-estar, embora nem sempre eu ache que ela entenda isso, já que
pensamos de formas tão diferentes. É aí que entra minha irmã, capaz de fazer
a ponte. O importante é a gente conseguir se amparar mutuamente. Sei que
temos, umas nas outras, verdadeiras amigas.

Meu pai tinha preferência por conhaque, mas acredito que, nos bares,
bebesse também cerveja e até cachaça. Em casa, havia sempre a cervejinha
e, em dias de festa, também uísque. Mas, na nossa vida adulta, minha irmã e

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eu descobrimos que papai chegou numa fase em que era capaz de beber
absolutamente qualquer bebida alcoólica que encontrasse pela frente, e o
quadro piorava quando ele se aborrecia com alguma coisa. Com qualquer
coisa. Era bem freqüente.

Quando éramos crianças, às vezes acompanhávamos meu pai no


domingo de manhã, quando ele ia à rua. O percurso era sempre o mesmo, até
a agência do Jóquei Clube Brasileiro mais próxima. Ele entrava enquanto
esperávamos na porta, porque ali não era lugar de criança. Ele comprava o
programa, estudava e apostava em quatro ou cinco páreos. Não lembro muito
bem, mas parece que às quartas-feiras também havia corridas e ele apostava.
Meu pai deve ter perdido muito dinheiro com isso, embora investisse quantias
pequenas, porque raramente ele ganhava e, quando acontecia, os prêmios
também eram proporcionalmente baixos. Mas, se ganhasse, ele sempre
repartia o dinheiro conosco, dando um pouquinho para minha mãe e dizendo
que comprasse alguma coisa para nós, mesmo quando já estávamos
crescidas. Não sei o que ele poderia ter comprado para nós ou para si mesmo
com todo aquele dinheiro que gastou no jogo, na bebida e no cigarro ao longo
de tantos anos. Pelo caminho, nós íamos parando em alguns bares. De novo,
as duas meninas tinham que ficar esperando na porta, enquanto ele tomava
uma dose. Pelo menos uma vez perguntava se tínhamos sede e oferecia uma
água mineral com gás. Uma vez, minha mãe nos orientou antes de sairmos,
dizendo: vejam quantas doses seu pai vai beber. Eu segui à risca a
recomendação. Toda vez que a gente parava e ele pedia uma, eu pegava um
papelzinho do bolso e anotava com o lápis, até que ele me viu e perguntou o
que eu estava fazendo. Expliquei calmamente, na minha inocência de criança.
Meio contrariado, ele disse que era pra deixar aquilo pra lá.

Ao longo de toda a minha vida me perguntei se meu pai era ou não


alcoólatra. Durante anos, não tinha como saber como ele suportaria uma crise
de abstinência simplesmente porque ele bebia todo santo dia. Já no final da
vida, quando estava gravemente doente, diversas internações o privaram do
cigarro e da bebida. O cigarro ele pedia insistentemente e retomava tão logo
saísse do hospital. Nos dias que antecederam sua morte, já semiconsciente

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por causa das doses de morfina, ele ainda conservava na mão uma posição
dos dedos de quem segura um cigarro, quando não perguntava, olhando a mão
vazia, se não estava fumando... Até o fim, o cigarro foi seu mais fiel
companheiro, e apesar de saber que ele deve ter ajudado a matar meu pai, não
consigo sentir raiva desse vício. Nos dias que antecederam a internação, ele
estava tão fraco que era eu quem tinha que acender os cigarros para ele, e
fazia com a maior boa vontade. Era como o banquete do condenado.

Só uma tarde, quando éramos crianças, meu pai nos levou à praia, na
Barra da Tijuca, perto de onde trabalhava. E foi a praia mais estranha de que
consigo me lembrar. Saímos da Tijuca, de ônibus, saltamos no então centro do
bairro, caminhamos pela Rua Euvaldo Lódi até a praia, entramos no mar, ele
deu umas braçadas e em menos de 20 minutos já estava nos chamando para
sair e voltar para casa. Não nos sentamos na areia, não conversamos, não
comemos nada, simplesmente saímos pingando água salgada para outro
trajeto de mais de uma hora de ônibus de volta até em casa. Com minha mãe
era bastante diferente, porque ela também sempre gostou muito de banho de
mar. Levávamos horas, sempre de manhã, no horário de melhor sol, e era uma
verdadeira farra, embora ela não fosse nenhuma exímia nadadora e sempre
tivesse ficado na beirada, tomando banho de baldinho. Mas minha irmã e eu
íamos até junto dos surfistas, nadávamos bem e não saíamos da água. Graças
à mamãe, nossa infância também foi repleta de consumo cultural, do tipo ir ao
teatro infantil, embora o forte mesmo tenha sido sempre a ida ao cinema.
Também foi ela quem nos incentivou e bancou os cursos de idiomas que
fizemos, desde cedo, e que nos serviram bastante na vida profissional.

Durante dois anos, entre 1967 e 1969, moramos no único prédio que
ficava em cima da loja de meu pai, quase na esquina da mesma Rua Euvaldo
Lódi. Eu acho simplesmente espantoso como é que meu pai consegui ficar ali
naquele endereço a maior parte do dia, durante cerca de 36 anos, com alguns
curtos intervalos, sem jamais ter tido a iniciativa de simplesmente andar até o
fim da rua, nem que fosse apenas para ver o mar. E, com isso, acalmar o
coração. E, com isso, lembrar que existe um Deus. E, talvez, assim, renovar
suas energias. Mas não. Meu pai parecia ter um trauma, uma frustração, tão

61
grandes que o tornavam quase um deficiente, mas de uma deficiência que não
era visível a olho nu, uma deficiência de alma, uma forma abstrata de invalidez,
que não o deixava nunca, e que era, possivelmente, o motivo que o fazia
beber. Então, nem na sua pausa do almoço, quando esquentava a marmita que
minha mãe preparava, nem na hora de ir embora, quando preferia ir até o
balcão do bar tomar a primeira da noite, passava por sua cabeça ir beber numa
fonte de esperança. Ele não se importava com o que nós três pensássemos
quando chegava em casa, lá não muito bem. Isso nunca pesou para ele. Fez o
que quis, à revelia dos nossos sentimentos. Só quando o porre era muito forte
ou quando ele fazia alguma confusão muito grande, ou caía na rua, e se
machucava, se lembrava de nos pedir desculpas, envergonhado na manhã
seguinte. O constrangimento era grande, porque a gente ficava sem saber o
que dizer. Não foram poucas as vezes que minha mãe foi recolhê-lo caído na
rua, mesmo quando já estava doente com o câncer.

Uma dessas cenas tristes jamais me saiu da cabeça. Foi no meu


aniversário de 15 anos. As meninas, em geral, debutavam, e só bem mais
tarde fui entender que aquele ritual significava que a família estava
apresentando a filha aos possíveis pretendentes diante da sociedade. Minha
irmã quis tudo a que tinha direito: foi rezada uma missa, na qual ela entrou
vestida de longo branco, acompanhada de meu pai, e depois houve uma festa
farta no salão da Igreja de São Camilo, na Usina, com bolo, champanhe,
bebidas, salgados, doces e baile para mais de cem pessoas. Eu sonhava em ir
conhecer o Havaí com meu pai e cheguei a dizer isso a ele algumas vezes,
meio de brincadeira, como eu sempre fazia quando o assunto era sério. Mas,
em vez do Havaí, almocei com minha mãe e minha irmã nas Lojas Americanas,
a velha loja de departamentos, na Rua das Laranjeiras e, dali, fizemos uma
passeio à tarde no Pão de Açúcar. Minhas fotos não tinham muita coisa para
mostrar. À noite, quando ele chegou mais bêbado do que de costume e me
pegou estudando matemática, arrancou o livro da minha mão e atirou no chão
com toda a força, dizendo uma besteira qualquer, até hoje não sei por quê. Ele
ficava bastante agressivo e provocava qualquer um que passasse pela frente
quando estava alcoolizado. Chegava a falar alto, coisa que sempre detestou
quando “estava bom”. Eu senti um desespero enorme naquela hora e só queria

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sair correndo dali, mas não tinha para onde, porque não tinha nem um quarto
só pra mim. Talvez eu deva ir conhecer o Havaí qualquer dia desses, só para
ter uma noção do que a gente perdeu...

Oportunidades perdidas fazem, aliás, parte da minha história familiar.


Conta minha mãe que meu avô, pai dela, diante de uma oferta tentadora para
comprar terrenos onde hoje fica a Avenida Atlântica, ou seja, em plena praia de
Copacabana, teria respondido ao seu interlocutor, por volta dos anos 1930:
“nem pensar, isso aqui é um charco, nunca vai ser coisa que preste!” Já meu
pai, 30 anos mais tarde, diante de uma proposta para comprar financiado
terrenos baratos na Barra da Tijuca, o bairro da maior expansão imobiliária
milionária do fim do século XX na cidade do Rio, simplesmente teria negado,
com a mesma falta de visão do sogro, sem botar fé no crescimento inevitável e
preferindo usar os caraminguás para apostar nos pangarés, que sempre o
decepcionavam. Meus pais foram casados durante 46 anos e sempre viveram
de aluguel. Depois de viúva, minha mãe desistiu da idéia de comprar um
imóvel, justamente quando tinha a melhor condição financeira para isso.

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Choro

Foram bem poucas as vezes que vi meu pai chorar. Tão poucas que fica até
difícil de lembrar. No auge da doença, meses atrás, quando ele mal suportava
as dores nos ossos por causa da metástase do câncer de próstata, e, nos
últimos dias, apesar das doses de morfina, ele nunca chorou. Nunca gritou.
Nunca pediu misericórdia. Os momentos mais difíceis eram quando ele se
deitava ou se levantava da cama. Tinha que ser tudo muito devagar, porque
doía muito. Ele apenas apertava os olhos e gemia baixinho. Às vezes, dizia, “ai,
meu Deus, meu Deus”, mais nada. Vou me lembrar disso se um dia estiver
gravemente doente. Vou querer ser valente como sempre foi o meu pai.

A segunda vez que vi meu pai chorar foi dia 8 de fevereiro de 1986. Eu
já estava com quase 22 anos. O motivo foi a morte do nosso cachorrinho
pequinês, que estava na família desde que eu tinha oito. O bichinho morreu de
enfarte, já estava velho, e ficamos todos muito abalados. Ele simplesmente foi
parando de comer, de beber água e, numa tarde de sábado, num táxi a
caminho da veterinária, estrebuchou. Entramos correndo, minha mãe e eu, na
veterinária, mas o doutor foi logo anunciando que ele estava morto. Dei um
grito igual a esses de novela e começar a chorar. Ele falou: “não tem problema,
aqui é lugar disso mesmo”. Quando meu pai morreu, levei bem uma semana
para conseguir chorar. E é claro que eu não gostava mais do cachorro do que
dele. Com o dobro da idade, mais sofrida e, espero, mais espiritualizada, vi no
desenlace da vida de meu pai muito mais uma libertação, o fim do seu
sofrimento, o que me deixou, de cara, bem mais aliviada do que triste.

Quando chegamos em casa com nosso cachorro numa caixa de papelão


e contamos a ele a notícia, meu pai entrou correndo para o quarto dele, aos
prantos. Fiquei surpresa, porque nunca pensei que ele fosse desmoronar por
causa de um animal, ainda que querido. O Rapha — batizei o cão de Raphael
por causa de uma novela da tv Globo, em que o ator Marcos Paulo, na sua
motoca, interpretava um personagem com esse nome — teve um sepultamento
num areal da Barra da Tijuca, numa área afastada, onde nos levaram de carro,
a mim e à minha mãe, a sobrinha e afilhada dela e seu marido. Já a primeira

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vez que vi meu pai chorar aconteceu alguns anos antes, provavelmente em
1976. Ele havia trabalhado como gerente de uma loja de material de
construção entre 1964 e 1973. Dali até 1976, quando foi convidado para
gerenciar outra loja também na Barra da Tijuca, o que conseguiu foi uma vaga
de vendedor de madeira sob as piores condições possíveis e que só fez mal a
ele e, indiretamente, a todos nós.

O choro aconteceu quando, retornando no final do dia, bastante bêbado,


já que a instabilidade financeira e a baixa auto-estima só fez agravar seu vício,
ele se sentou ao lado da minha mãe nos pés da cama deles. Começou a
resmungar baixinho, com a língua enrolada e o corpo encurvado, de cabeça
baixa. “Eu não consigo vender nada, mãe. Não consigo vender nada.” Dali
passou a soluçar e as lágrimas corriam pelo rosto, e ele se deixou cair de lado,
depositando a cabeça sobre o colo dela. Lembro que minha mãe não deu uma
palavra. Só ficou fazendo carinho no cabelo dele, até ele conseguir se acalmar,
mas com a cara mais triste do mundo. Nessa época, ela já recebia a pensão do
meu avô, e acredito que foi só por isso que nós não fomos, literalmente, ir
morar debaixo de alguma ponte.

Eu nunca tive uma boa relação com o dinheiro e acho que isso tem a ver
com os modelos da minha infância. Acho que meus pais, de origem muito
pobre, também não sabiam lidar muito bem com ele. De um lado, eu percebia
uma certa aversão católica à idéia de usura. Nossos pais nunca nos deram
mesada e costumavam dizer que dinheiro não era assunto para criança. Zero
de “A ética protestante e o espírito do capitalismo” de Weber. Durante anos, o
único dinheiro que nos caía nas mãos era o do lanche no recreio do colégio —
e, mesmo assim, só quando já estávamos grandinhas — e, mais tarde,
também, o da passagem do ônibus para ir e voltar do colégio. Nos anos em
que meu pai foi gerente da loja, e tinha um salário relativamente bom, nunca vi
ninguém guardar dinheiro para uma necessidade no futuro que, afinal, estava
por vir. Se alguém perguntar à minha mãe hoje, ela vai dizer que,
simplesmente, não sobrava nada para guardar. Mas não era bem assim.

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No bairro da Tijuca, onde crescemos, e onde ela vive até hoje, existia
uma loja de roupas infantis chamada A Mirim Boutique e, durante anos, toda
semana ela nos levava lá para comprar um vestido novo. Comprávamos
também sapatos combinando, em geral na sapataria Gambier ou na Polar, e
bolsas também, geralmente na Sloper. Nunca viajamos de férias antes dos
meus 17 anos, quando fomos passar um fim de semana (sem meu pai) na casa
de praia do chefe dele, em Saquarema. Mesmo nas piores crises, minha mãe
fazia, no máximo, alguns trabalhos manuais de crochê, como uns cachorrinhos
que cobriam o rolo de papel higiênico, para vender a outras donas-de-casa que
conhecia. Nunca vi meu pai nem minha mãe tocarem na palavra estudo para
eles mesmos. Diziam que não pensavam em realizar o sonho da casa própria
para não nos sacrificarem, já que teríamos que abrir mão, por exemplo, do
refrigerante no fim de semana.

Talvez eu tivesse discordado desse planejamento para o futuro familiar,


caso alguém tivesse me perguntado. Lembro um diálogo muito interessante
entre mim e minha mãe, quando eu tinha cinco anos de idade e, todo mês,
aparecia na nossa porta o Seu Carapito, dono do apartamento onde
morávamos, para cobrar o aluguel. “Mãe, quando é que a gente vai acabar de
pagar?” “Nunca.” “Nunca? Por quê?” “Porque a gente não está comprando o
apartamento. A gente paga só pelo mês em que está aqui.” “Mas isso é
injusto!” Em plena ditadura militar, se algum espia tivesse ouvido aquilo, talvez
tivesse me levado presa para algum calabouço como subversiva precoce.
Outro lance interessante foi quando eu, por volta da mesma época,
simplesmente tirei todas as jóias de ouro que estava usando — pulseira,
cordão com pingente, anel (brinco não usávamos, porque papai proibiu que
furassem nossas orelhas quando éramos bebês, dizendo que era coisa de
índio) — e deixei tudo em cima de um banco em pleno jardim do prédio em que
morávamos. Claro que, rapidamente, alguém passou e catou tudo. Minha irmã
conservou as coisinhas dela. Eu, a rebeldia em pessoa, devo ter tido impulsos
de me livrar daqueles “acessórios de ostentação burguesa”. Até hoje, prefiro
bijuterias.

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Naquele ano do primeiro choro de meu pai a que assisti, houve também
um outro lance memorável, algo traumático, e igualmente sem sentido para
mim. Até então, tínhamos estudado numa escola municipal, mas minha mãe
resolveu nos colocar num colégio particular para fazer o ginásio que, na rede
pública, era sabidamente fraco. Teve a infeliz idéia de escolher um colégio de
freiras, onde passei dois dos piores anos da minha vida. Era tudo tão rigoroso
que nem meninos eram autorizados de estudar lá. Feita a matrícula,
deveríamos ir conversar, pessoalmente, minha irmã e eu, para ficarem nos
conhecendo. Mas nesse dia ela não pode ir, porque não tinha roupa. Nessa
fase de vacas magras, tirando os shortinhos e camisetas com que brincávamos
no playground do nosso prédio ou o uniforme da escola, cada uma só tinha um
vestido e o dela era a chamada “frente única”, com as costas à mostra, um
modelo totalmente inapropriado para sua primeira visita a uma escola de
freiras.

67
Cabelos e tijolos

Sei perfeitamente a fase da minha vida em que mais me aproximei de meu pai.
Talvez porque ela não tenha acontecido lá muito cedo. Eu estava com 28 anos
e passando por algumas mudanças significativas. A mais flagrante, talvez,
fosse em relação ao meu cabelo. E se tratando eu de uma mulher, essa não é
uma informação secundária, mas absolutamente relevante. Cabelo. Taí uma
característica que eu gostaria de ter herdado do meu pai. Quando jovem, ele
tinha uma cabeleira preta linda e, com o envelhecimento, ela foi ficando
grisalha e, no fim da vida, era quase absolutamente branca, mas de um branco
prateado, sedoso e brilhante como eu nunca vi. Minha vida inteira ouvi as
pessoas elogiarem o cabelo de papai. Homens, principalmente os carecas, e
mesmo mulheres, tinham um único qualificativo para definir a cabeleira dele:
linda!

Já eu não tive a mesma sorte. Não que meu cabelo seja feio. Ele apenas
é parecido demais com o meu espírito mais rebelde. Quando eu era criança,
todo mundo elogiava sua cor. Era castanho bem claro e com um frisado bonito
como costuma ser, em geral, cabelo de criança. Até os nove anos, usávamos
minha irmã e eu uma cabeleira longa, mas que só podíamos manter presa por
determinação de minha mãe. Ou num rabo de cavalo, o mais comum, ou como
maria-chiquinha, que eu usava bastante entre os cinco e os sete anos. Minha
irmã não gostava dessa última variante. Para soltar os cabelos, tínhamos que
pedir quase que autorização à minha mãe. Ela alegava que os cabelos soltos
embaraçavam muito. Realmente. Toda vez que lavávamos a cabeça, e que
ninguém me pergunte por quê isso só acontecia uma vez por semana, era uma
choradeira danada na hora de desfazer os nós. Precisava muito creme rinse, o
equivalente, na época, ao condicionador contemporâneo. Minha bisavó Amélia,
avó de minha mãe, dona de uma longa cabeleira que usava presa num coque,
se solidarizava com nosso pleito e, se estivesse lá por casa, se oferecia para
pentear nosso cabelo, o que fazia sem nenhum estresse e com o maior
carinho.

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Houve até uma ocasião em que, de tanto se remexer na cadeira, minha
irmã acabou levando uma escovada na cara. Minha mãe perdeu a paciência e
deu com a escova do lado do rosto dela. Como a escova era de um plástico
duro e quebrou, acabou arranhando feio o rosto da menina, e aí ela ganhou
uma espécie de prêmio de consolação: passou uns dias podendo usar o cabelo
solto para encobrir o ferimento. Na época, havia uma novela na tv Globo em
que a protagonista, vivida por Regina Duarte, escapava de um acidente de
carro com uma cicatriz horrível no rosto e a situação ficou até um pouco
caricata. Acho que o nome era Selva de Pedra. Por tudo isso, mamãe ficou
bastante animada quando cheguei em casa contando que estava pensando em
cortar o cabelo. Uma colega de turma chamada Valéria tinha feito um corte do
tipo chanel e acreditei que seria boa uma mudança.

Ela, então, nos levou ao salão de uma portuguesa, cuja filha Ana Paula
estudava na mesma turma que eu, na Rua Pinto de Figueiredo. Não poderia ter
sido maior o desastre! Em vez de apenas tirar o comprimento do cabelo num
fio reto na altura do ombro, que era o que eu tinha em mente, a mulher
inventou de cortar nosso cabelo quase do tipo Joãzinho, que fica igual a cabelo
de homem. E chegou a usar navalha, o que, dependendo do tipo de cabelo,
pode eriçar totalmente as mechas. Como nós estávamos entrando na natação
no Tijuca Tênis Clube, com aulas duas vezes por semana, o cloro acabou de
destruir o que a navalha não tinha estragado. Talvez os hormônios tenham
dado o golpe final. Só sei que, durante anos, ninguém conseguia domar nosso
cabelo, nem o meu, nem o de minha irmã. Uma das irmãs mais novas de
minha mãe, numa visita, chegou a nos ensinar a fazer a chamada “touca” no
cabelo, nas palavras dela, “para elas ficarem mais com uma carinha de
menina(!)”. A touca era enrolar o cabelo em volta da própria cabeça como um
turbante usando grampos, de preferência quando estivessem molhados do
banho, e esperar secar, para depois virar tudo para o outro lado, digamos, no
sentido horário e anti-horário. Aquela era uma maneira de conseguir sair à rua,
porque no geral baixava e alisava, mas passar às vezes um dia inteiro com o
cabelo molhado preso acabava com os fios e o estrago era ainda maior. Foram
anos fazendo touca e usando bobs.

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No final da adolescência eu tinha desenvolvido um método relativamente
confortável de lidar com meu problema capilar. Simplesmente prendia a área
da franja para cima com algum prendedor e tchau. Não ficava nada bom e,
além disso, me dava um ar por demais austero, mas era isso ou o
descabelamento total. Só no fim da faculdade dei um corte diferente, que não
me liberava de trabalhos com secador, mas pelo menos a gente já estava
começando a se entender, meu cabelo e eu. A tão sonhada paz de espírito
chegou em torno dos 40 anos, quando finalmente descobri um salão onde as
pessoas são maravilhosas e amigas e onde todo mundo me entende, a mim e
ao meu cabelo. É impressionante o que um cabelo organizado pode fazer de
bom pela auto-estima da gente. Minha última crise capilar foi no final dos 30
anos, quando, extremamente insatisfeita com meu trabalho e com meu
casamento, fui voluntariamente a um salão desconhecido e mandei eu mesma
cortar meu cabelo Joãozinho, para nunca mais, apesar de que passou longe
daquele estrago da infância.

A todas essas, continuava lá o cabelo do meu pai, todo “impávido


colosso”, lindo de qualquer maneira. Até quando ele mandava passar a
máquina zero e chegava em casa como quem tivesse acabado de ser liberado
de algum manicômio ou presídio. Aí, seu cabelo se tornava uma verdadeira
camurça, e deslizar os dedos na sua cabeça branquinha era acariciar o mais
precioso veludo branco. Mesmo não tendo do que se queixar, pelo menos
nesse particular, meu pai — que como minha mãe não era nada vaidoso,
embora apreciasse sempre estrear uma roupa nova, pela novidade, ou usar
uma gostosa colônia ou perfume, dos quais fui fornecedora anos e anos —
durante uma fase voltava sempre reclamando do barbeiro. Dizia que estava
cansado e que demorava muito esperar sua vez de cortar no caminho de volta
para casa. Sendo assim, um dia, cansei daquela litania e lhe disse: “senta aqui
que eu vou cortar”. Não é que ele aprovou? Devo ter cortado o cabelo de papai
com tesoura durante bem uns 20 anos. Mas depois que deixei de morar com a
família, minha mãe providenciou uma máquina e assumiu a incumbência. Ele
estava sempre bonitinho e bem tratado.

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De volta à fase em que me aproximei de meu pai: eu estava recém-
formada, usando um penteado que, afinal, era naturalmente eu, encacheado e
livre, e demos de sair juntos. Nos fins de semana, sempre íamos a uma
exposição qualquer, de artes plásticas, de fotografias, mas o programa
preferido era a música. Sala Cecília Meirelles e Teatro Municipal eram nossos
destinos prediletos, já que meu pai adorava música clássica. Ele contava que
tinha muitos discos na juventude, ainda daqueles de 78 rotações, mas que
perdeu todos de uma vez graças a outra da muitas mancadas de seu irmão
mais velho que, depois da morte dos pais, simplesmente passou nos cobres
um armário com tudo dentro, inclusive os discos e livros de meu pai. Ele
gostava especialmente de Chopin e, na mpb, de Noel Rosa. Acredito que o fato
de ambos terem morrido de tuberculose tivesse um peso nesse processo de
identificação, já que a mesma doença marcou profundamente a vida de meu
pai.

Enquanto que, na infância, o programa preferido do quarteto era o Aterro


do Flamengo nos domingos de manhã, depois que crescemos não havia mais
nada que arregimentasse todo mundo. Por isso, nessa fase de descobrimento
mútuo entre meu pai e mim, minha mãe sempre preferia ficar em casa
cuidando de suas intermináveis tarefas enquanto minha irmã tinha lá sua vida
com algum namorado. Lembro com carinho especialmente de um dia de
manhã em que fomos ao Mam, o Museu de Arte Moderna. Na verdade, embora
morássemos na mesma casa, nos encontramos lá para ver uma exposição,
não sei mais qual, e marcamos por volta das 10 ou 11 horas, já que, antes, ele
tinha ido, invariavelmente, “fazer um joguinho”, o que significava apostar nos
cavalos. Como cheguei mais cedo — sempre fui extremamente pontual,
daquele tipo que chega uns minutinhos antes, porque detesto esperar e, mais
ainda, deixar alguém esperando — fiquei assistindo ao trabalho do Seu
Sebastião. Não, nós não nos conhecíamos e tampouco nos reencontramos
depois daquele dia.

Houve um período em que, ao lado do museu, existiu um espaço


chamado Galpão das Artes onde, aliás, nunca tive o prazer de entrar. E nem
terei, já que ele foi demolido para a construção de um monstrengo sem janelas

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que tem a marca de mais uma empresa de telefonia móvel onde se realizam
shows. No entanto, naquele mês de maio de 1992, estava lá aquele negro
construindo, sozinho, uma parede lateral do galpão. E eu assistindo. Não sei se
por causa da massa ou da colher de pedreiro, que me lembram meninas
brincando de casinha, eu sempre tive quase que um fetiche por esse negócio
de empilhar tijolos. Assim, depois de uns 10 minutos observando minha vítima,
que sequer tinha se dado conta de que estava ali, olhando deliciada, me
aproximei, numa abordagem de altíssima sedução que uso sempre que desejo
alguma coisa de alguém, seja lá o que for. Fiz uma rápida apresentação — e
foi assim que conheci o nome dele — expliquei que estava esperando meu pai
e, dali a pouco, já estava revelando meu segredo íntimo na vontade de, um dia,
quem sabe, assentar um tijolo. Satisfeito por encontrar uma jovem interlocutora
— e olha que eu não era mais tão jovem, mas a vida toda eu pareci ter de 10 a
15 anos menos — que apreciava sua arte e ofício, Seu Sebastião prontamente
passou a me explicar como é que se fazia e, pronto! De repente, recebi a honra
de assentar, também, minha humilde contribuição ali naquela construção que,
no momento, eu acreditava seria eterna. Dali para a frente, toda vez que
passava pelo trecho, pedalando em direção ao aeroporto, eu parava e, às
vezes, até tocava no “meu” tijolo”, que era, de baixo para cima, o da décima
sexta fileira e, da esquerda para a direita, o quarto, numa matemática curiosa,
já que o múltiplo entre um e outro dá 64, exatamente o ano do meu
nascimento.

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O lado materno da família: meu avô José

Dos meus antepassados diretos, o único que conheci pessoalmente foi o pai de
minha mãe. Ele morreu de diabete, depois de ter amputada uma perna, e
depois a segunda, internado na Ilha das Cobras, no Arsenal de Marinha do Rio
de Janeiro, no dia 23 de dezembro de 1973. Eu tinha nove anos de idade e
acompanhei meio à distância o que estava acontecendo, porque minha mãe
sempre acreditou que doença e morte não eram assuntos para criança, assim
como vestir preto — nem pensar!

Durante minha infância, com muita freqüência, nos dias de sábado,


quando meu pai sempre trabalhou, nós íamos visitar meu avô. A maior parte
desse período ele morou numa casa de altos e baixos numa espécie de
condomínio construído para os servidores militares da Marinha na periferia do
Rio de Janeiro, num bairro chamado Pavuna. Da casa dele a pé, coisa de uns
20 metros pra frente, a gente passava por uma espécie de portãozinho e já
estava em outro município, São João de Meriti, um dos mais importantes da
Baixada Fluminense, e que se hoje já é uma localidade meio que esquecida
por Deus e pelas autoridades, mais ainda no início dos anos 1970.

O objetivo de minha mãe nessas visitas era, primordialmente, cozinhar


para meu avô. Ele era um verdadeiro gourmet, gostava de comer bem e
entendia bastante também de bebidas. Cada refeição com ele levava, pelo
menos, duas horas. Até porque ele era daquele tipo de pessoa que não se
apressa para nada. Falava devagar, andava devagar, e certamente teria
chegado a 100 anos de idade se não tivesse cometido um erro: esqueceu que
era diabético.

Claro que álcool demais não faz bem à saúde, ainda mais num paciente
com esse perfil, mas até aí ele parecia não sofrer muito os efeitos desse hábito.
O problema foi que, pensando em cuidar da saúde, foi atrás de uma campanha
no rádio que anunciava os benefícios da geléia real e encomendou uma caixa,
da qual todo dia tomava uma dose. Uma pequena topada no boxe com o dedo

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mindinho do pé direito na saída do chuveiro se tornou uma ferida que nunca
cicatrizava e, daí, o enredo é sempre o mesmo. Meu avô foi sepultado no
Cemitério do Caju na véspera de Natal, talvez porque não houvesse quem se
lembrasse dele o suficiente, nem ele mesmo.

A gente levava cerca de duas horas em mais de um ônibus para


conseguir chegar à Pavuna. Vovô ficava sempre muito feliz em nos ver e fazia
todas as nossas vontades. Mandou botar um balanço daquele em que se
sentam quatro crianças de uma vez, embora fôssemos apenas duas meninas,
minha irmã e eu. Uma vez, na feira de Meriti, onde sempre íamos comprar os
ingredientes para o banquete que minha mãe preparava e que ele ia comendo,
cheio de satisfação, ao longo da semana, chegou a comprar para nós dois
patinhos, um macho e uma fêmea, que tínhamos que chamar de
“borrachudos”, e não patinhos, segundo minha mãe, ou eles morreriam cedo.
Crendices populares. Não me lembro mais qual foi o destino dos animaizinhos,
mas sei que não foi a panela nem o prato de meu avô.

Como o terreno em volta da casa era todo cimentado e algo inóspito


para crianças, a gente se servia das frutas que a goiabeira do vizinho nos
oferecia com seus galhos por cima do muro. Apesar de que fosse um
trombonista, segundo contavam, dos bons, nunca ouvi meu avô emitir uma
única nota. Seu instrumento, comprado no Texas nos anos 1960, está até hoje
como relíquia, guardado, na casa de minha mãe.

Apesar de que minha memória desse meu avô seja tão escassa,
conheço algumas histórias a seu respeito. Sei que ele viveu praticamente a
vida inteira mal instalado em pensões na Praça Tiradentes, reduto boêmio da
cidade, e que em vez da casa na Pavuna poderia ter comprado um
apartamento no Leblon, bairro nobre do Rio, sob as mesmas condições, com
vista, inclusive, para a sede do Flamengo, o clube de futebol mais popular do
país. Seu jeito de misantropo e uma verdadeira aversão à humanidade teria
sido o motivo de preferir o subúrbio. Não foram poucas as vezes que vi minha
mãe se lamentar pela escolha dele. Como nem meu pai nem minha mãe
consideravam a idéia de sair da Tijuca, na Zona Norte da cidade, ou, pelo

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menos, só aceitariam substituir o bairro por outro melhor, na visão
hierarquizada dos cariocas, como o Leblon, nós teríamos ido morar no tal
apartamento quando ele morreu mas, na casa, nunca.

O imóvel, então, foi vendido a baixo preço e pago em prestações pelo


novo dono durante anos. Mas minha mãe não tem do que se queixar: não
fosse pela pensão que, embora casada, herdou de meu avô — e ainda há
quem acredite que o militarismo diminui no Brasil! — não sei o que teria sido de
nós, principalmente na pior fase de emprego que meu pai passou, justamente a
partir do ano da morte do meu avô, em 1973, até 1976. Dizem que meu avô
precisou mergulhar de escafandro e viajar de submarino numa época em que
nem um nem outro eram lá muito confortáveis. Dizem que, se não chegou
propriamente a lutar na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, pelo
menos colaborou no patrulhamento da costa brasileira contra ataques do
inimigo. Não sei por quanto tempo ele esteve à disposição da Marinha antes de
se reformar e qual teria sido sua contribuição no que diz respeito a
recolhimento de qualquer tipo de impostos para sua própria previdência, mas o
certo é que, pelo tempo, minha mãe tem se beneficiado muito além do que ele
possa ter contribuído. Como única filha registrada, ela recebe sozinha os
proventos de um suboficial há 35 anos.

Na verdade, o destino existe e, da mesma forma, os golpes de sorte.


Quando minha mãe nasceu, dentro de todo o mal-estar que envolvia o fato de
ser fruto de uma relação não-conjugal, e ainda por cima mestiça, quem
registrou a criança foi minha avó, sozinha, com o nome de Maria Magdalena.
Foi só quando a menina tinha 12 anos de idade que, durante uma bebedeira,
junto com colegas que comemoravam o nascimento do filho de um deles, meu
avô teria se animado a registrar, também, aquela menina. Mudou seu nome,
oficialmente, para Magdalena apenas, e ainda beneficiou a garota diminuindo
um ano de idade, dando o nascimento como acontecido em 1941 e não 1940,
como deveria. Felizmente minha avó, que não era conhecida assim pelo seu
bom gênio, não deu uma louca e rasgou o documento, ou a gente estaria
perdido e eu, no mínimo, teria tido que começar a trabalhar bem mais cedo e

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sequer teria avançado tanto na minha educação e qualificação profissional, eu
imagino.

Mas se minha avó não deu cabo da certidão da filha, minha mãe não
teve a mesma calma e destruiu, num ataque de fúria, outros documentos da
família, e isso bem diante de nossos olhos, pouco depois da morte de meu avô.
Quando ele morreu, minha mãe não vendeu logo a casa, e minha bisavó, que
em 1974 teve o primeiro derrame e só veio a falecer no ano seguinte, depois
de uma temporada em que perdeu a fala, os movimentos e a consciência,
acabou sendo instalada lá, sob os cuidados da filha mais velha, a Tia Filhinha.
Ao separar os pertences do pai para doação, minha mãe encontrou caixas e
mais caixas com fotos de quando ele era jovem, fisiculturista, músico, e vivia
cercado de mulheres. Na maioria das imagens, ele aparecia satisfeito,
abraçado em alguma beldade. “Ele maltratou muito a pobre da minha mãe! Foi
por isso que ela não quis viver com ele”, dizia, enquanto rasgava as fotos e
chorava.

Ao longo de toda a vida, meu avô nunca deixou de dar assistência à


filha. Mensalmente ele fazia chegar a ela uma pensão em dinheiro e, segundo
conta minha mãe, não era raro que saíssem juntos, inclusive para bailes e
jantares. Meu avô era o tipo de homem generoso e, por ter tido uma origem
muito pobre, gostava de desfrutar os prazeres da vida. Quando ia receber o
pagamento no banco, parece que se vestia quase como um mendigo, a fim de
não chamar atenção, como que vislumbrando os altos níveis de violência a que
chegamos hoje. No entanto, tenho a impressão de que ele foi, no fundo, muito
incompreendido.

A primeira que odiava meu avô era minha bisavó Amélia, mãe de Nadir,
com quem ele teve minha mãe. Ela nunca apoiou o relacionamento entre eles
e, acredito, em parte, para tentar acobertar o “mau passo” da filha, para usar
uma formulação bem da época, assumiu a menina desde bebê, o que teve
outros reflexos de prejuízo pessoal para minha mãe. Meu pai era outro que
nunca suportou meu avô. No caso dele, existia um motivo ainda mais palpável:
é difícil gostar de alguém que já ameaçou matar você com um revólver em

76
punho. Foi a maneira que meu avô encontrou de convencer meu pai a se casar
com minha mãe quando ele desistiu do noivado. Certo é que os dois nunca se
deram e só começaram a conversar de verdade quando meu avô já estava
doente e meu pai, justamente nos anos de falta de trabalho, tinha tempo tanto
para acompanhar minha mãe nas visitas que ela fazia durante os meses em
que o pai esteve internado quanto ia, ele mesmo, levar alguma coisa de que o
doente precisasse. Não sei por quê, mas acredito que também aí houvesse
algum dedo de minha bisavó, como uma má influência. Ela também abominava
meu pai e foi totalmente contra o casamento dele com minha mãe.

Nessas ocasiões de últimos encontros, parece que conversaram, a


ponto de meu pai ter relatado: “ele disse que, se tivesse me conhecido antes e
soubesse que eu era um bom sujeito, teria se aproximado da gente”. Meu avô
teria expressado o desejo de ir morar com a gente, quando recebesse alta, o
que não aconteceu. Por ironia, foi justamente meu pai quem cuidou de vestir o
corpo de meu avô morto.

Aquele que eu chamava simplesmente de vovô recebeu, durante a vida,


uma série de outros codinomes. No meio da música, era conhecido como
Nicodemus. Já para a família de minha mãe, pelo lado materno, ele era o Seu
Cremogema, uma apelido recebido em referência a um mingau infantil servido
à filha mais velha de minha Tia Leila, irmã mais velha de meu pai, que era
casada com Tio Adyr, primo de minha mãe. Junto à Marinha, a julgar pelo seu
material escolar, que minha mãe guarda até hoje, meu avô aparecia como um
excelente aluno e militar dedicado. No ano de 1978, estivemos só nós quatro
— meu pai, minha mãe, minha irmã e eu — numa homenagem prestada pela
Banda dos Fuzileiros Navais, da qual foi regente durante muitos anos, para
assistir a uma cerimônia de homenagem pelos cinco anos do seu falecimento.
Apesar de todos os seus defeitos, eu admirava muito o meu avô e sei que ele
deve ter sido o cara mais proeminente da família.

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Mais sobre a mãe de minha mãe

Enquanto que sobre a mãe de meu pai não sei praticamente nada — era
cardiopata mas gerou seis filhos, morreu com menos de 45 anos, foi operária
de fábrica, gostava de se fantasiar no carnaval — tenho de minha avó materna
uma série de informações, passadas pela visão meio romanceada de minha
mãe. Um dos relatos mais interessante se deve a uma suposta capacidade
mediúnica de minha avó Nadir.

Conta minha mãe que, uma certa época, na casa em que Nadir morava
com o segundo marido e os cinco filhos deste casamento, começou a ter
visões. Num certo horário, recebia a visita de um frade, que aparecia na
cozinha, enquanto ela preparava o jantar. Ele contava que tinha deixado um
tesouro enterrado num dado local, o qual mostrava a ela por telepatia, e que
era facilmente identificável porque ele havia pintado sua mão direita numa
pedra que marcava o lugar. Não tinha como errar. O frade dizia que aquela era
a sorte dela e que sua alma só teria descanso no dia em que ela fosse lá para
desenterrar o dinheiro — parece que eram moedas de ouro. A cada aparição,
minha avó entrava em transe e, invariavelmente, desmaiava.

O problema é que ela não poderia falar sobre o assunto com ninguém,
mas falou. Uma certa vizinha teria ido ao lugar descrito e encontrado a fortuna
que estaria designada à minha avó. Depois disso, a mulher simplesmente
sumiu. O frade reapareceu, bastante desapontado, e foi categórico: disse à
minha avó que ela nunca mais teria sorte na vida. Como realmente não teve.

Não tem nada uma coisa a ver com a outra, mas minha mãe diz que a
mãe dela era chegada numa branquinha. Escondia as garrafas no meio de
cascos de refrigerante vazios para o marido não descobrir. Pela descrição de
meu pai, fiquei sabendo que minha avó era bastante barulhenta e desbocada.
E esfuziante, do tipo que ama a vida. Falava alto e, como gostava muito dele, é
motivo suficiente para que eu também goste dela.

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Uma outra história meio fantástica aconteceu comigo quando eu tinha
uns cinco anos. Tínhamos acabado de mudar para a Tijuca, vindos da Barra,
para o apartamento onde cresci. Minha mãe sempre gostou muito de
fotografias e de olhar velhos álbuns. Uma tarde, estava ela vendo fotos,
quando parou numa da minha avó. Eu me virei para ela e disse: “eu tô vendo
essa moça aí”. E ela: “que moça?” “Essa moça aí do retrato.“ “Onde?” “Ela ‘tá
em pé ali, ó” — e apontei para a janela. “O que ela está fazendo?”, perguntava
minha mãe, cada vez mais assustada, já que minha avó morreu atropelada
quando eu tinha poucos meses de vida. “Ah, ela ‘tá com a mão assim, ó, na
boca”, eu teria dito, cobrindo os lábios com a mão em concha. Minha mãe
estremeceu, porque esse era um gesto muito típico de minha avó. Dizem que
crianças até sete anos têm uma percepção muito forte do mundo espiritual. Eu
me lembro vagamente desse diálogo.

No meu sétimo ano de vida, comecei a ter um período de desmaios


freqüentes. A princípio, suspeitaram de diabetes. Fui submetida a todo tipo de
exame, inclusive alguns neurológicos com o Dr. Paulo Niemeyer, conhecido do
meu pai. Não se encontrou causa aparente, apesar de eu também ter sofrido a
vida inteira de pressão muito baixa. Aí, minha mãe resolveu nos levar à
rezadeira do prédio ao lado. Dona Ernestina era uma senhora baixinha,
descendente de italianos, que pouco falava. Mas nos rezava, a mim e à minha
irmã, numa reza longa, cujas palavras não entendíamos, porque ela apenas
sussurrava, e volta e meia fazia o sinal da cruz no ar, na nossa frente e às
nossas costas, agarrada num terço de contas brilhantes. Acho que usava
também, quando tinha, um galhinho de arruda. Mas o mais marcante era como
ela vertia grossas lágrimas e bocejava o tempo inteiro, o que, como me
explicaram, significava carga negativa das grandes. No fim, ela rezava também
um lencinho que mamãe havia trazido de casa e nós devíamos andar com ele
guardado conosco toda vez que fôssemos à rua. Ninguém duvidava de que nós
atraíamos muito olho gordo, já que éramos duas menininhas muito lindinhas e,
ainda por cima, ótimas alunas no colégio. Eu, então, era sempre a primeira da
turma e tantos elogios acabariam servindo para atrasar a vida...

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A promessa de minha avó

Não faz muito tempo, estive em Cachoeiro do Itapemirim, cidade natal da


minha avó materna, e embora eu tenha estado lá pouco mais de 24 horas,
posso quase garantir que essa foi uma experiência algo mística.

O motivo da correria foi o estado de saúde do meu pai, que já havia se


agravado muito, e que levou ao falecimento dele quatro meses depois. Como
fiz a viagem de ônibus, levei seis horas para chegar lá e acabei me
hospedando num hotel simples, embora com vista para o tal cachoeiro que dá
nome à cidade. Na verdade, é um rio largo que corre sobre um terreno
acidentado e predominantemente cheio de pedras, o que leva à formação de
pequenas quedas d’água e à produção do mais maravilhoso som,
ininterruptamente.

Não sei muito sobre a mãe de minha mãe porque ela morreu quando eu
tinha sete meses de idade. A imagem que tenho dela vem de uma foto em
preto e branco do seu rosto, dos relatos de minha mãe e da sua própria história
de vida. Na foto aparece um rosto sem qualquer traço de alegria, apesar de
todo mundo garantir que ela estava sempre bem-humorada e alegre. Não sei
por que motivo ela e os irmãos, de uma família de seis filhos, teriam nascido no
Espírito Santo, já que a mãe, minha bisavó, fosse de Santo Antônio de Pádua,
no norte fluminense. Convivi com minha bisavó Amélia até os onze anos,
quando ela morreu de derrame, aos 86. Não sei se mãe e filha tiveram vida
muito dura, só sei que nunca vi minha bisavó sorrir e, muito menos, rir.

Conta minha mãe que Nadir ficou viúva aos 19 anos quando seu marido,
filho de um fazendeiro rico, teve uma queda quando montava a cavalo. Como a
família do rapaz não gostava dela, alegando que se casara por interesse, ela
então resolveu vir tentar a vida no Rio de Janeiro e trouxe as duas filhas junto,
que morreram anos depois, numa epidemia de crupe. A partir da migração de
minha avó, todos os irmãos, irmãs e também seus pais seguiram para cá,
principalmente depois que meu bisavô Antônio começou a apresentar os

80
sintomas de um câncer que, além de matá-lo, acabou também com o último
dinheiro da família. Todos eram analfabetos e perderam suas terras,
enganados por um advogado.

Acho que a vida da minha avó se divide em duas partes: antes e depois
do meu avô. Diferente dela, que era branca e vinha de uma família estruturada
e unida, ele era mulato e tinha sido engajado à força na Marinha pelo próprio
pai, Saturnino, para desespero da mãe, Flora, depois que passou a integrar um
bando de arruaceiros mirins na cidade onde nasceu, Bonfim, interior da Bahia.
Parece que Nadir e José se conheceram num baile, pode até ter sido num
cassino, que na época não era proibido, e tiveram um envolvimento amoroso.
Dessa relação nasceu minha mãe, uma menina mestiça, fruto de um caso
entre uma jovem viúva e um solteiro inveterado — ele nunca se casou — o que
só complicou a vida da minha avó.

Segundo minha mãe, seu pai até tentou se assentar, mas não
conseguiu. Quando minha avó, que era operária da mesma fábrica de tecidos
cantada na canção de Noel Rosa, engravidou, ele montou casa para ela e
passaram a viver juntos no Méier, um bairro de classe média da Zona Norte.
Ele, por outro lado, tinha feito a própria vida na Marinha, viajara o mundo
inteiro, se tornou professor autodidata de inglês e francês, e chegou a sub-
oficial, apesar da cor da pele e da falta de sobrenome. Como também era
músico e dos bons, chegou a maestro da Banda dos Fuzileiros Navais e ainda
se apresentava na agitadíssima vida noturna carioca dos anos 1930 e 1940.

Suas atividades profissionais eram o álibi perfeito para noitadas e tão


logo a menina nasceu minha avó foi atrás dele num baile e chegou bem a
tempo de encontrá-lo agarrado numa loura. Parece que não sobrou nenhum
pedaço da roupa dele inteiro, tamanha a fúria de minha avó. Decidiram se
separar e minha bisavó Amélia e a filha mais velha dela, Celina, nossa Tia
Filinha, que só tinha dois meninos, assumiram a educação de minha mãe. A
gratidão de minha mãe pela avó dela era tão grande que, além de tê-la como
madrinha, pediu que batizasse também sua filha mais velha, minha irmã
Solange.

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Com o tempo, minha avó refez a vida, se casou de novo e, desse
casamento, nasceram mais cinco crianças louríssimas. O marido de minha avó,
que cheguei a conhecer quando era criança, não gostava nada da minha mãe.
Batalhadora, minha avó chegou a se aposentar pela fábrica e comprar sozinha
a casa em que a família morou. À exceção de minha mãe, que nasceu na Pró-
Matre, uma instituição muito antiga de amparo às mães solteiras, todos os
outros filhos nasceram em casa, nas mãos da parteira. Minha avó amava a
natureza, plantas e animais, e também era chegada numa boa pinga. Conta
minha mãe que, no casamento dela com meu pai, Nadir e José se paqueraram
mutuamente a cerimônia inteira, juntos no altar, para desgosto do marido dela.

Minha avó tinha menos de 50 anos quando morreu, atropelada por um


caminhão de bebida desgovernado, dirigido por um motorista bêbado, em
plena Avenida Brasil, uma importante via de ligação do subúrbio com o Centro
da cidade. Havia duas mães e dois pais de família esperando num ponto de
ônibus, uma tarde, quando o homem arremessou todo mundo para o alto e
depois ainda manobrou de ré para ter certeza de que não ia escapar ninguém.
Como seu corpo foi arremessado a uma distância grande, dizem que ela teve
fratura de praticamente todos os ossos. Curioso é que tinha saído de casa para
fazer uma consulta médica, já que estava para sofrer uma cirurgia para a
retirada da vesícula.

Todas essas e mais algumas histórias me passaram pela cabeça


quando eu, em silêncio e sozinha, olhava as águas do rio da janela do hotel e
tentava imaginar se minha avó costumava ficar admirando o cachoeiro
também. Costumo ouvir minha voz interior, que muita gente chama de intuição,
com cada vez mais atenção de uns anos para cá, e ela só tem me dado bons
conselhos. Esse foi o motivo que me levou à cidade.

Meu nascimento foi um mistério e meus primeiros anos de vida uma


sucessão de situações atropeladas. Elas deixaram marcas fundas na minha
constituição mental que eu só comecei a entender quando resolvi buscar ajuda
espiritual. Depois de um jogo de búzios muito revelador, minha intuição me

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orientou a procurar, em Cachoeiro de Itapemirim, uma dada igreja, que então
eu nem sabia qual era, a fim de cumprir uma promessa feita por minha avó de
quando minha mãe estava grávida de mim. Eu sentia que minha avó havia se
comprometido a visitar uma igreja e assistir a uma missa em ação de graças
pelo meu nascimento e pela minha saúde e que iria me levar, antes de que eu
completasse sete anos de idade, e que seu desejo só não se realizou por
causa do acidente. A pendência, portanto, havia ficado em aberto e agora era
urgente que eu fizesse a minha parte, por mim mesma e por ela.

Já no ônibus fui conversando, a partir de Campos de Goytacazes, com


uma senhora sentada do meu lado, e por sorte ela era uma católica fervorosa a
ponto de me sugerir diversas igrejas e descrever detalhadamente como era o
bispo que eu iria encontrar na catedral. Como minha avó havia saído da cidade
ainda nos anos 1930, não havia muitas opções de igrejas tão velhas e, assim,
minha busca ficou mais fácil. No sábado, quando cheguei, estive no Santuário
da Consolação e na igreja de Nosso Senhor dos Passos, ou Matriz Velha —
única da época de minha avó na cidade — além de assistir à missa na
Catedral, dos anos 1960, se não me engano, porque segundo a minha vizinha
de poltrona a catedral seria representativa de todas as igrejas da cidade e,
assim, a promessa estaria cumprida.

Quando voltei ao hotel e quis testar se havia dado conta do prometido,


peguei um exemplar do Novo Testamento, como é costume ter nos quartos
para hóspedes. Abri na página de Provérbios, capítulo 7, versículo 14:
“Sacrifícios pacíficos trago comigo: hoje cumpri os meus votos”.

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Primeira infância

Quando seu pai tem cinco irmãos e sua mãe tem mais cinco, isso significa que
a quantidade de tios e, conseqüentemente primos e primas, com seus
respectivos filhos e, atualmente, até netos, é enorme. Mas, no nosso caso, isso
nunca significou grandes festas de Natal ou qualquer reunião parecida. Sempre
foi, praticamente, cada um para o seu lado. Como, em geral, os filhos se
reúnem em torno dos pais e, em ambos os lados, não havia esses casais
aglutinadores, fica fácil de entender tanta desunião. E olha que a irmã mais
velha de meu pai era casada com um primo da minha mãe, com quem ela
cresceu, na mesma casa, já que meus avós maternos praticamente não
viveram juntos.

Pela própria afinidade entre meus pais e alguns de seus irmãos veio
também um relacionamento mais próximo comigo e minha irmã. Fui batizada
pela irmã mais nova de meu pai, Maria da Penha, e pelo único irmão de minha
mãe, Reinaldo Mauro, no dia em que completei um ano de idade, na igreja de
Santo Afonso, na Tijuca, onde morávamos. Para a época, o batizado até que
demorou muito, porque era costume tentar garantir que a alminha sem pecados
dos bebês, mas maculada pelo pecado original herdado de Adão e Eva por
toda a humanidade, conseguisse um lugarzinho no céu, em caso de morte
precoce. Se hoje em dia a taxa de mortalidade infantil no país continua alta,
meio século atrás ela era ainda pior. Tanto que pais e mães não se abalavam
muito quando confrontados com ter que responder sobre o número de filhos.
Contavam os vivos e os mortos com a mesma naturalidade. Havia casos
extremos: duas gerações antes, poucos eram os filhos que sobreviviam. Dos
18 filhos da avó materna de meu pai, Dona Olympia, apenas duas conseguiram
chegar à idade adulta — minha avó Ynaiá e sua irmã Yara. Ynaiá deu a luz a
dez filhos e nesta geração a sobrevida foi maior, de seis deles. A geração de
meus pais e seus irmãos teve, em média, dois filhos cada. A minha geração e
de meus primos ficou em torno de um filho por casal.

Há uma série de características sobre o meu nascimento que sempre


me parecem envolvidas numa espécie de névoa trevosa. Enquanto minha irmã

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foi logo batizada — pelo irmão mais velho de meu pai e pela avó materna de
minha mãe — e temos dela dezenas de fotos de bebê, como é comum
acontecer com os primogênitos, no meu caso tudo foi muito diferente. Eu fui um
acidente de percurso. Meus pais se casaram dia 1º de julho de 1961 e, no
Natal daquele ano, escreveram uma singela cartinha para Papai Noel pedindo
um filho de presente. A primeira gravidez só iria acontecer no ano seguinte,
mas minha mãe sofreu um aborto espontâneo depois de ter ficado nervosa
com uma pasta do trabalho que meu pai teria procurado, sem encontrar, por
todo o apartamento. Parece que era um menino. Quando minha irmã nasceu,
em fevereiro de 1963, eles não devem ter ficado lá muito satisfeitos porque,
como dizia a missiva, eles haviam pedido um menino. Meu pai havia sido
jogador de futebol e pretendia legar ao herdeiro tudo o que sabia sobre os
segredos da bola, na esperança de realizar nele tudo aquilo que não conseguiu
pessoalmente.

Nem bem saiu do resguardo, minha mãe engravidou de mim, mas a


situação financeira da pequena família não era lá das melhores. Portanto,
minha mãe apelou para as prerrogativas de quem tem direito sobre o próprio
corpo: sem contar nada a ninguém, usou todos os métodos conhecidos para se
livrar da gravidez inoportuna. Injeções, comprimidos, meio litro de cachaça
curtida com folhas de arruda dentro de uma talagada só, nada parecia surtir
efeito sobre aquele embrião renitente. Cada vez mais desesperada e
começando a apresentar desvios de comportamento, foi pressionada por meu
pai e confessou o que andava fazendo. Atribuo a sua formação católica o fato
de meu pai ter se mostrado de cara totalmente contrário ao desejo de minha
mãe, e ele a convenceu a deixar a natureza tomar seu rumo. Talvez na
esperança de que, desta vez, fosse um menino. Como ele viria a nascer era
uma outra questão, já que não havia garantia nenhuma de que fosse saudável,
depois de tanta interferência externa.

Mas como alguns destinos não permitem negociação, em 7 de março de


1964, às 8h30 da manhã de um sábado, nos últimos dias antes do golpe militar
que instaurou uma ditadura de 21 anos no país, nascia a segunda menina. Era
a última cartada, já que dadas as condições de pobreza ninguém ali poderia

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sonhar com um terceiro filho. Muitas vezes ao longo da vida, quando meus pais
nos contavam sobre nosso nascimento, eu ouvia os dois contarem, divertidos,
o seguinte diálogo. “E então, o que é que foi?” “Outra menina.” “Menina? Mas
eu não quero outra menina!” “Então devolve!”, teria sido a resposta que minha
mãe deu ao meu pai, depois de um parto dificílimo em que eu quase morri
esganada com meu próprio cordão umbilical, que estava todo enrolado não
apenas em volta do pescoço como, também, sob o joelho direito.

Quem pagou o parto e a internação na mesma maternidade onde havia


nascido minha irmã foi o pai de minha mãe, porque meu pai não tinha dinheiro.
Minha irmã foi um bebê bastante problemático. Tinha complicações com a
dentição, o que levava a diversas consultas pagas, sem contar que não dormia,
“nem de dia, nem de noite”, para usar uma expressão de nossos pais, e
deixava todo mundo exausto. Quando nasci, meu pai tinha acabado de
conseguir um emprego, em fevereiro, na tal lojinha na Barra da Tijuca em que
iria passar praticamente toda sua vida. Foi ligando para o único telefone do
bairro, instalado no posto policial que ficava na ponte velha, que ela avisou ao
meu pai que estava sentindo as dores do parto, no final do expediente da
sexta-feira.

Minha mãe conta que eu passei da hora de nascer porque ela queria dar
uma tal mamadeira para minha irmã, em vez de deixar a tarefa para minha
madrinha, que morava com eles, além dos dois irmãos mais jovens de meu pai,
naquela época, num quitinete na Rua General Roca — como, nem imagino...
Ouvi dizer, também, que o cordão umbilical teria sido mal amarrado e que
demoraram a perceber uma perda substancial de sangue. Depois houve o
evento de que uma enfermeira preguiçosa estaria dando banho em todos os
recém-nascidos com a mesma água e a primeira na seqüência, que era eu,
acabava por isso mesmo pegando a água escalpelando, e voltava para o
quarto berrando e completamente vermelha — mas, pelo menos, limpinha; já
os outros, nem tanto. Eu também sofri uma série de quedas suspeitas nos dois
primeiros anos de vida, assim como queimaduras. Claro que não tem como eu
me lembrar, mas minha mãe sempre repetiu as mesmas histórias.

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Sobre as quedas, ela explica que fazia questão de casa muito bem
arrumada. Como eu era do tipo que fazia muito xixi na fralda toda hora, ela me
deixava trancada no berço, andando sobre o colchão, e eu não tinha firmeza
nas pernas. Quando me colocavam, finalmente, para curtos passeios sobre o
chão firme, era inevitável que caísse. E como a tal casa arrumada não poderia
dispensar mobiliário adequado, havia no meu percurso todo tipo de obstáculos
perigosos, como mesinhas com quinas pontiagudas, que não eram removidos
para não estragar a decoração. Foi assim que eu dei com a testa na ponta da
mesa da televisão três vezes seguidas no intervalo de uma semana e acabei
criando galo em cima de galo. A febre era tão alta que o pediatra ameaçou
minha mãe, dizendo que eram grandes as chances de que estivesse à beira de
uma meningite, se não fosse mais bem cuidada. Já as queimaduras, segundo
ela, se dariam ao fato de que eu, extremamente assustadiça, não queria
desgrudar dela um instante sequer, o que a obrigava a realizar todas as tarefas
domésticas comigo nos braços. Foi assim que acabei levando as sobras do
ferro de passar e de panelas fervendo. Mas nada tão grave que eu tenha ficado
com marcas. Em compensação, fui amamentada no peito até dois anos e dois
meses, quando, conta ela, num ataque de fúria, mordi primeiro um e, depois, o
segundo bico do peito, a ponto de quase arrancá-los fora, o que obrigou à
necessidade de tomar remédio para secar o leite. Graças à amamentação e,
talvez, também ao leite de cabra que nossa bisavó nos deu, nem eu nem
minha irmã tivemos qualquer doença infantil quando éramos crianças. Só
fomos pegar rubéola e, eu, ainda catapora, com mais de 20 anos de idade.

Não me lembro dessa relação turbulenta com minha própria família. Sei
que, até cerca de cinco anos, evitava contato com meu pai. Dizem que isso
começou quando ele me deixou cair no chão. Minha mãe teria ido ao
supermercado e ele me colocou no peniquinho, mas não no chão, sobre o
colchão do berço com a grade arriada. Não podia dar em outra coisa: eu caí de
cabeça e, quando minha mãe voltou, me encontrou aos gritos, coberta de cocô,
em estado de choque. Minha memória mais antiga vem dos meus dois anos,
quando moramos uma temporada curta no primeiro andar do prédio onde iria
crescer, depois dos dois anos morando na Barra. Na porta ao lado moravam
duas meninas judias: Regina, então com seis para sete anos, e Elaine, da

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mesma idade que eu, que usava chupeta. Nem minha irmã nem eu
gostávamos do acessório e, nesse dia, Elaine, parada na porta de casa, e eu
na minha, com a chupeta na boca, repetia sem parar: “a Sandra chupa
chupeta!” e eu, totalmente indignada, reagia, dizendo que não, que quem
estava de chupeta era ela. Acho que aquele foi meu primeiro contato com a
idéia de injustiça... Nenhum adulto interferiu.

Talvez por conta de toda essa falta de transparência em nossas relações


familiares, vez por outra eu fazia perguntas estranhas à minha mãe como, por
exemplo, querendo saber de onde eu vim. Ela respondia, convincente: “achei
você no lixo!” E eu acreditava. Até porque só havia uma suposta foto de mim
bebê. Minha origem no lixo explicaria perfeitamente a falta de fotografias! Mas
havia uma única foto, obviamente em preto e branco, em que minha mãe
segurava um bebê, parada no portão da casa da mãe dela, em Guadalupe. Ao
fundo, uma de minhas primas observava a cena. Durante muitos anos me
repetiram que aquele bebê de colo era eu. Até que, um dia, minha tia Leila, a
irmã de meu pai casada com o primo de minha mãe, que chamávamos de Tio
Adyr, e que havia sido colega de escola de minha mãe, desde que ambas eram
solteiras, diante da foto, esclareceu. “Não, Magdalena: esse neném aí não é a
Sandra não, é a Solange.” E minha mãe, constrangida: “mas como é que você
sabe?” “Por causa do seu vestido! Não se lembra? Compramos o mesmo
tecido estampado, cor tal e tal etc...” Foi o suficiente para comprovar a fraude e
minha mãe teve que admitir que não havia mesmo nenhuma foto minha de
bebê. O que existe de mais antigo são poucas fotos tiradas num estúdio, de
mim e minha irmã, quando eu já tinha dois e, ela, três anos. Da mesma fase,
há também uma espécie de lunetas pequenas com uma lente de aumento que
permitem ver fotos cromo de nós duas em casa, que esqueci como se
chamam. A justificativa para a falta de fotos minhas é a seguinte. Meu tio Adyr
teria tirado vários rolos de filme e, negligente, os teria guardado numa gaveta
do escritório trancada a chave por meses a fio. Como ele teria dado sumiço na
chave, até que a encontrasse, as películas teriam se estragado. Qualquer que
tenha sido a verdade, parece que não havia ninguém lá muito interessado em
guardar minha carinha para a posteridade.

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Para ser bem sincera, eu acredito que não era muito parecida nem com
meu pai nem com minha mãe quando criança. Não que minha irmã fosse. Ela
era bem cabeçuda e tinha orelhas de abano que só foram corrigidas por uma
cirurgia estética na idade adulta. Bastante dentuça, era bem alegre e
comunicativa, adorava brincar, embora detestasse qualquer tipo de jogo de
tabuleiro. Não dava trabalho, a não ser por uma certa preguiça de ler e,
também, porque fosse gulosa, o que lhe rendeu não poucas alergias
alimentares. Sua grande queixa era que, gordinha, nunca encontrava entre os
coleguinhas quem fosse forte o suficiente para levá-la na garupa da bicicleta.
Já eu era uma enjoada de marca maior. Até quando minha mãe ia tomar
banho, ficava sentada na soleira da porta, geralmente com a mamadeira na
boca, resmungando, até que ela saísse, enquanto meu pai dizia: “nunca
reparou que sua mãe é bruxa? Ela vive com a vassoura na mão, varrendo a
casa! Ela vai pegar aquela vassoura e sair voando pelo basculante!” E eu
acreditava.

Foi numa dessas sessões de tortura, aliás, que minha irmã acabou
levando a única palmada de meu pai que tomou na vida — em mim ele nunca
bateu — por minha culpa. Ela se irritou com meus mugidos incessantes
chamando minha mãe com o bico da mamadeira de mingau na boca e
começou a me mandar parar, bastante impaciente e bem mais ruidosa. Meu
pai se levantou da cama e deu-lhe uma palmada na bunda. Morávamos na
Barra e minhas memórias daquele endereço são um tanto quanto violentas. Do
tipo: tivemos duas rolinhas presas, que achamos filhotes, caídas do ninho na
árvore, numa gaiola durante meses. Foi nesse endereço que ouvi minha bisavó
dizer, num dia em que minha mãe havia pedido uma galinha ao molho pardo
para o almoço: “não fiquem com pena da galinha, senão ela demora mais a
morrer”. Aviso feito, só me lembro de minha bisavó Amélia correndo pela área
de serviço com um facão na mão, atrás de uma galinha com a cabeça já
decepada, e que espalhava tanto sangue que mal ia sobrando algum para o
molho. Acho que foi ali, também, que ela preparou o único coelho frito que vi na
vida, e no qual nós duas não tocamos.

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Mas as lembranças desse mundo inóspito no qual vivi entre meus três e
meus cinco anos também estão relacionadas ao meio ambiente. A Barra da
Tijuca era uma verdadeira selva, em que topávamos nas ruas não asfaltadas
com cobras e cavalos soltos praticamente a cada esquina. Mas o pior eram os
mosquitos, e nós morávamos praticamente de frente para a lagoa, de maneira
que a única forma de sobreviver era usar a famosa espiral, um tipo de incenso
que fazia uma fumaça quase tão mortal quanto os mosquitos e que tinha o
agravante de só ficar de pé, queimando, espetada num grampo de metal. Não
foram poucos os casos de gente que levantava no meio da noite para fazer um
xixi ou beber um copo d’água e que, meio tonta de sono, acabava pisando na
maldita armadilha, e até pegando tétano — quando não se morria de uma
coisa, morria-se de outra...

Foi nessa casa que sentei num alfinete, depois de uma tarde de costura
com minha tia Geisa, a mais jovem das irmãs de minha mãe que, na época,
devia ter uns 12 anos. Nossas bonequinhas ficaram satisfeitas com o guarda-
roupa novo, mas meu pai não ficou nem um pouco, diante da minha gritaria e
falta de cuidado de minha pequena tia. Lembro que, depois de arrancarem o
alfinete, que entrou até a cabeça, puseram mertiolate no meu bumbum. Foi ali,
também, o acidente com o “quase cotonete”. Minha mãe limpava nossas
orelhas com palitos de dente enrolados em algodão e eu, cosquenta, me mexia
muito. Lá pelas tantas, minha mãe cravou a mini-lança pontiaguda no meu
ouvido direito e saiu um bocado de sangue. Nenhum exame na idade adulta
indicou qualquer tipo de lesão. Mas, até hoje, só consigo falar ao telefone, por
mais longa que seja a ligação, usando o ouvido esquerdo.

Agora, campeã mesmo foi uma briga entre meu pai e minha mãe.
Crescemos vendo os dois discutindo por causa de dinheiro, isso é certo. Meu
pai reclamava sempre que minha mãe gastava demais. Nessa noite, no
entanto, o motivo foi outro. Não faço idéia de que horas eram. Só sei que a
gritaria era tanta que acordamos e nos encolhemos no cantinho da porta aberta
de nosso quarto, logo atrás de meu pai, para tentar entender o que estava
acontecendo. De um momento para o outro, só deu tempo de a gente se
abaixar, porque alguma coisa passou voando pelas nossas cabeças. Era um

90
vaso de vidro incolor horroroso que ficava na sala, cheio de areia e flores de
plástico. Pois foi ele o que minha mãe alcançou mais rápido para atirar no meu
pai, furiosa que estava. E olha que era super pesado. Deve ser por isso que,
até hoje, detesto flores artificiais. E poucas coisas me tiram tão do sério como
flores de plástico.

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O fantasma

Vamos ao fantasma.

Não sei se alguém mais já se deu conta, mas é possível existir o


fantasma de alguém que nunca foi vivo, que a bem da verdade nem chegou a
nascer, e nem vai. Explico. Há cerca de seis meses, foi confirmada, da pior
maneira possível (uma mutilação interna, que não faz de mim visivelmente uma
aleijada, do tipo que recebe a condescendência e, talvez, até a solidariedade
da sociedade civil organizada) que não poderia ter um filho. Digo filho (e me
desculpem as companheiras feministas, mas nunca fui uma delas) porque era
um filho o que sempre sonhei ter, já que éramos em casa três mulheres e um
homem relativamente ausente. Minha mãe, minha irmã mais velha e eu, meu
pai que nunca tirava férias e que eu só via na hora de jantar e aos domingos.
Isso sem falar que ele nunca pareceu muito atuante na nossa educação.

Então, descobri (como se em anos tentando engravidar eu já não


soubesse) que jamais poderia ser mãe. Desse dia em diante, o número de
grávidas que cruzam meu caminho pareceu triplicar em questão de horas, isso
sem falar na quantidade de carrinhos de bebê ocupados pelos mais sublimes e
bochechudos anjinhos, fora as crianças em geral, sempre tão “discretas”, onde
quer que vão.

A idéia de ter um filho sempre me pareceu simpática não


necessariamente por eu ter sido adestrada no melhor modelo “mulherzinha”,
pelo contrário. Minha mãe nunca foi do tipo vaidosa nem especialmente
feminina. É que eu acho bonito poder continuar no mundo, geneticamente
falando. Mas aí, diante da minha situação, me vi obrigada a pensar nos casos
dos pais que perdem primeiro seus filhos, sem que esses tenham tido tempo
de deixar filhos. A família acaba. Ou nos pais de homossexuais que não
querem ter filhos. A família também acaba. Ter um filho não significa a sua
perpetuação no mundo. No entanto, há outras formas de continuar. Através de
tudo aquilo que você cria, por exemplo. Seja por meio de um espremedor de

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cítricos com design espacial, como Phillipe Starck, ou com uma receita de
sequilhos que vai ficar, vai ficar, bem, na família dos outros, já que você não
pôde deixar a sua.

Outro dia, eu usei O mito do Superman do Umberto Eco numa das aulas
de Teorias da Comunicação e, embora ele esteja vivo e atuante, e espero que
ainda por muitos anos, vi que, ali, ele iria continuar. E pensei em todos os
outros livros, sejam eles técnicos, acadêmicos ou de entretenimento, não
importa, e em todos os autores que já morreram faz décadas, como Foucault, e
de como eles estão tão presentes (e vivem, ou revivem) cada vez que os cito
ou recomendo sua leitura para meus alunos, assim como acontece com tantos
outros autores, cantores, artistas por aí, diariamente, não há como admitir a
morte sob essas circunstâncias. Sendo assim, decidi viver. Ou melhor,
continuar a viver. Porque já escrevia antes, há muito tempo, uma coisinha ou
outra. E até que o meu seleto público não tem reclamado — pelo contrário.

93
Visitação

Minha mãe morria de medo que alguém trocasse seu bebê na maternidade.
Acredito que esse tenha sido um dos motivos que a levou a escolher a casa de
saúde e maternidade de Nossa Senhora de Lourdes, que ficava ao lado da
igreja de mesmo nome, no único boulevard da cidade, no bairro de Vila Isabel,
uma das referências do samba carioca: o Boulevard 28 de Setembro. Naquele
lugar, as crianças recém-nascidas não iam para o berçário e, em vez disso,
eram instaladas em bercinhos no próprio quarto de onde a mãe podia ficar de
olho neles.

Por isso mesmo, minha mãe pôde ser testemunha de uma sucessão
de eventos no mínimo insólitos que cercaram o meu nascimento, mas de uma
forma, pelo menos ao meu ver, bastante positiva. Cada vez que nascia uma
criança na família, a avó dela, minha bisavó Amélia, acompanhava a
parturiente e dava todo o suporte até que a mãe aprendesse a cuidar do bebê.
Um dos rituais que minha avó fazia — dizem que temos sangue de índios
misturado ao francês por esse lado da família — era pegar a criança, levar até
à janela e consagrar à lua, repetindo certas palavras mágicas, em que ela
pedia à lua para “ajudar a criar” aquele recém-chegado. Do alto, a lua ficaria
vigiando, como uma madrinha zelosa, e livrando a criança de todo mal, até que
chegasse à idade adulta.

Foi essa mesma ancestral que socorreu minha mãe diante das
inusitadas visitas que me foram feitas no quarto da maternidade na manhã do
meu nascimento. Não sei direito a seqüência, mas parece que a primeira a
chegar foi Dona Aranha. Minha mãe diz que, sem mais nem menos, apareceu
andando pela parede uma aranha imensa, que ia em direção ao berço. Ela,
então, teria começado a gritar, ao que minha bisavó interferiu. Como nenhuma
das duas gostava de matar nenhum bicho à toa, Amélia teria espantado a
aranha, dando tapinhas na parede junto dela, indicando a saída pela janela.

Nem bem recobrada do susto, minha mãe começava nova gritaria. A


visitante, desta vez, era uma cigarra, que entrou zunindo e cantando, batendo

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pelo quarto, e mais uma vez minha bisavó foi encarregada de se livrar da
intrusa. Quando ela pousou, pegou com a mão e jogou pela janela. Minha mãe
só gritava: “vai cair na minha filha!”. Mas parece que a cigarra sabia o que
estava fazendo.

A velha Amélia mal se sentara, quando entrou o último bicho no


quarto. Um passarinho azulão. Mais gritos e a advertência da minha bisavó:
“pára de gritar e não se assusta, para não assustar o bebê e para não secar o
leite!” Ela também cuidou rapidamente de mostrar ao pássaro onde era a
saída. Certo que aquele era um sábado quente de alto verão, mas não deixa
de ser estranho que a natureza tenha enviado esses amiguinhos, talvez como
algum presente, como uma dádiva de boas-vindas. Pelo menos, é assim que
eu vejo. Que eles tenham vindo me presentear com algum dom.

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Anos de escola

Fiz todo o primário num colégio público, a Escola Municipal Laudímia Trotta.
Até hoje me lembro do hino: “Nossa escola é exímia, em fazer gente feliz, com
o nome de Laudímia, fará grande este país...” No ano de 1988, houve uma das
mais recentes enchentes na cidade do Rio de Janeiro e a escola, como várias
outras da área da Tijuca, acabou recebendo, em princípio em caráter
emergencial, alguns dos flagelados dessa mesma enchente. Só que eles não
foram embora e, nos meses que se seguiram, ao passar pela porta, na Rua
Antônio Basílio (há uma outra entrada pela Avenida Maracanã) era possível ver
roupas penduradas para secar por tudo quanto era canto, ouvir o rádio tocando
sempre muito alto algum tipo de batidão e, assim, meu sentimento acabou
sendo o de ter visto profanado um lugar que, para mim, era quase sagrado.
Justamente por ter sido onde eu vivi algumas das mais marcantes experiências
da infância. Entre os sete e os onze anos, foi detrás daqueles muros que
desenvolvi noções que me acompanharam pelo resto da vida, como qual o
limite do companheirismo, minha feminilidade, minha relação com os meninos.

Estudei na Laudímia Trotta entre 1971 e 1975. No último ano, bem no


início do semestre, como deveria ser, já que meu aniversário é em março, tive
minha primeira menstruação. Sem dores — eu nunca sofri das cólicas que
adoeciam todos os meses durante anos minhas amigas e minha irmã mais
velha — nem traumas, apenas o susto e, aí sim, o estranhamento inicial à
inadaptação de ter que lidar com aquilo da forma mais discreta possível, o que
nem sempre era fácil.

A escola, como era comum, durante os anos do regime militar, prezava


por dois aspectos. O primeiro era a nossa “educação moral e cívica”, que
incluía no programa uma disciplina de mesmo nome, com uma aula semanal
de uma professora diferente da nossa tia de todo dia (assim como acontecia
também com a aula de música e a de religião, únicas ocasiões em que se fugia
do script). Tínhamos também, uma vez por semana, uma cerimônia de
hasteamento da bandeira, com crianças perfiladas, meninas usando luvas para

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tocar no “pavilhão” verde-amarelo, hinos de toda sorte e, às vezes,
chegávamos mesmo a cantar algumas canções da moda, populares, de
propaganda, como os versos: “esse é um país que vai pra frente, ou ou ou ou
ou (deveria eu escrever ô ô ô ô ô ou wow wow wow wow wow?)

Como que para dar sustentação àquele devocionismo patriótico, havia


também a realização freqüente de eventos religiosos, mas unicamente de
cunho católico, que era também o adotado pelo regime. Tudo se celebrava com
uma missa, invariavelmente na nossa paróquia, a velha Igreja dos Sagrados
Corações, na Rua Conde de Bonfim: Dia das Mães, tinha missa. Dia do Mestre,
missa. Essa geralmente era junto com a do Dia das Crianças, pela proximidade
da data. Natal, missa. Como a igreja ficava perto, íamos uniformizados, numa
dada altura da aula, e dali as mães, convidadas que eram, porque o espaço era
enorme e a demanda de adesão maior ainda, em princípio assistiam ao culto
postadas nos bancos mais atrás e, no fim, recolhiam seus filhos para levá-los
para casa.

Foi numa dessas missas que passei (ou voluntariamente me forcei) a


um dos grandes constrangimentos por causa da menstruação. Pelo recente da
coisa e minha inabilidade de lidar com um absorvente entre as pernas infantis,
deve ter sido por ocasião do Dia das Mães, celebrado em maio. Lidar com o
sangramento mensal, por mínimo que fosse, era definitivamente um problema
para qualquer criança em meados da década de 1970. Quando eu comecei a
menstruar, ainda não existiam no Rio de Janeiro os absorventes internos e o
primeiro a aparecer foi o O.B., alguns meses depois. Lembro bem porque
distribuíram amostras grátis no prédio onde eu morava e um dos porteiros,
diante de nossa curiosidade infantil, reagiu com certa impaciência (como era
comum a todos os adultos, uns reprimidos, da época, sem exceção!), dizendo
que aquilo não era coisa pra criança. Meu único pensamento foi a vontade de
dizer para ele, que felizmente eu refreei, que eu “já usava, sim, absorvente”,
assim como já usava sutiã desde os nove anos quando meus seios começaram
efetivamente a crescer, sendo que aos 12 eu já tinha alcançado todas as
curvas e formas da minha idade adulta numa altura de 1,68m e 54 kg, que

97
conservei, diga-se de passagem, sem qualquer esforço e em total
sedentarismo pelos 20 anos seguintes, pelo menos.

A palavra modess (uma marca de absorvente) era sinônimo de produto


de higiene, assim como gilete ainda é sinônimo de lâmina de barbear. O motivo
é sempre o mesmo: praticamente não havia concorrente no mercado. Depois
começaram a surgir absorventes mais finos, como o Serena — e, a despeito do
nome, era tudo o que a gente não ficava quando tinha que usar aquelas
porcarias, porque elas invariavelmente vazavam.

Vamos descrever um modess para ver se a geração feminina do século


XXI consegue se dar conta da sorte que tem: o modess era uma tira
acolchoada de algodão recoberta de uma espécie de papel absorvente, em
princípio com uma extensão curta demais. Era comum, principalmente na hora
de dormir, que o sangue vazasse pela parte de trás, como se a gente
estivesse, desculpem a má palavra, sangrando pelo cú. O papel se prolongava
nos dois sentidos numa tira longa e fina que, na verdade, servia para prender o
danado do modess. Agora, vocês me perguntem, prender aonde? Porque essa
moda de autocolante, assim como no caso dos álbuns de figurinhas, só surgiu
muito depois. O que existia era uma espécie de cinta-liga feita de elásticos
(imagine uma calcinha que você veste, só que sem pano, só com a cintura e
dois elásticos pendurados no meio, na extremidade dos quais havia uma
presilha de plástico). A tira de papel se encaixava na presilha e, quando você
colocava o modess, era uma operação relativamente simples. Agora, na hora
de tirar, muitas vezes todo encharcado de sangue, aquilo era tudo, menos
higiênico. E não dava a comodidade do absorvente fixo, colado na calcinha,
não: a gente andava vestida e sangrando em cima de uma espécie de rede de
dormir em miniatura, presa pelas pontas, cuja tendência natural é balançar de
um lado para o outro, e os desastres eram inevitáveis. Nos anos 1970, era
muito comum você andar pela rua e ver uma mulher, de qualquer idade, com
manchas na roupa denunciando a menstruação. E era a vergonha das
vergonhas! Logo surgiram umas calcinhas, se não me engano do mesmo
fabricante, que além de terem um forro de plástico (que esquentava horrores!)

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vinham com as tais presilhas fixas nos fundilhos mesmo. Mas elas também não
eram muito higiênicas, nem seguras.

Agora, o pior dos terrores era um outro recurso que, francamente,


rebaixava qualquer uma aos limites mínimos aceitáveis de dignidade. Era a
chamada toalhinha. Toalhinha era um pedaço de toalha cortado e dobrado que
se introduzia entre o corpo e a calcinha a fim de aparar o sangue. A toalha
rapidamente encharcava e o resultado é o que se sabe. O pior de tudo é que
as toalhinhas eram “reaproveitáveis”, ou seja: depois de usadas, ficavam de
molho numa bacia com sabão em pó, eram esfregadas e, depois de secas,
reutilizadas. Hábito muito comum entre a população de baixa renda. E eu
cheguei a usar toalhinhas.

Ao descrever um modess à moda antiga, fiquei imaginando que seria


muito mais fácil mostrar um daquele tempo por uma fotografia, por exemplo.
Será que alguém se lembrou de guardar um modess para a posteridade? Se
eu tivesse pensado nisso... Só muitos anos mais tarde, inclusive depois de
financeiramente emancipada, é que ousei começar a usar O.B. — que
diferença! Mas, quando eu era garota, não consigo imaginar quem quer que
fosse, muito menos minha mãe, capaz de ensinar uma criança a introduzir o
absorvente na vagina. Garanto que ia ficar todo mundo com medo de que, com
o dedo e o O.B., a gente acabasse atingindo — ó, fim do mundo! — o cabaço
(desculpe não usar a expressão mais razoável de “romper o hímen”, mas é
uma questão de convencimento mesmo. A expressão que eu usei me
convence muito mais e tem muito mais fidelidade até ao grupo social que eu
estou querendo representar. Minhas desculpas se tiver chocado o(a) amigo(a)
leitor(a)).

Mas ainda estamos longe do que eu desejava contar. Então, naquela


missa do Dia das Mães realizada na Igreja dos Sagrados Corações da Tijuca,
em 1975, eu estava menstruada. Muito menstruada, já que eram os primeiros
dias. E, como sabe todo aquele que tenha tido o mínimo contato com a liturgia
católica, toda missa é um verdadeiro ritual do “senta-e-levanta”. Como sentar e,
pior, levantar, se a cada movimento mais brusco eu sentia o fluxo de sangue

99
saindo aos borbotões, e imaginava minha vergonha diante das meninas (a
maioria ainda não menstruava) e, mais ainda, diante dos meninos, algozes tão
cruéis? Eu simplesmente, nos momentos de ficar de pé, mantinha as mãos
dadas com os coleguinhas ao lado, mas continuava sentada em segurança no
longo banco de madeira, enquanto a igreja inteira cumpria os procedimentos.

De onde eu estava, podia ver minha mãe, esbravejando, ainda que num
sussurro, fazendo gestos violentos que me comandavam a ficar de pé, que
ignorei todos, diante da conveniência de meu próprio julgamento. É bem
verdade que depois tive que acertar as contas com ela pela minha
desobediência, e acabei aceitando o argumento de que, naquela igreja lotada,
com certeza deveria haver mais não sei quantas mulheres menstruadas, que
nem por isso deixavam o desconforto superar suas obrigações confessionais.
No entanto, ao longo da missa, eu olhava para o altar e para o Sagrado
Coração de Jesus e, mais abaixo, para o Sagrado Coração de Maria e,
principalmente dela, podia esperar uma certa solidariedade, para não dizer, seu
sagrado perdão.

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A origem dos problemas

De meu pai eu jamais iria saber. De minha mãe também não recebi a
informação que alguns orifícios do corpo precisam ser lavados diariamente com
água e sabão. No meu caso em criança, significava que eu não sabia fazer
nem a higiene do nariz nem a da vagina, essencial depois que comecei a
menstruar. Não lembro que eu tivesse qualquer odor desagradável, nem tão
pouco que pudesse passar pela minha cabeça que era necessário ensaboar as
mãos e me lavar por dentro. Aquele era um território tabu no meu corpo com o
qual eu tinha minhas relações secretas que, lamentavelmente, não incluíam
certos cuidados de limpeza porque isso é um hábito que alguém tem que
ensinar. Quem me ensinou foi um médico. O Dr. Ricardo, durante o
acompanhamento que fez depois de ter me operado de apendicite aguda. Ele
me disse: “todo dia você tem que lavar, quando tomar banho, a parte mais
íntima sua”. Eu entendi o recado e aprendi a lição, dali pra frente, não de minha
mãe, que simplesmente ouviu, calada, parada ao lado do doutor. Nesse
mesmo encontro, ele me perguntou se eu “não tinha corrimento” e como
responder se eu não fazia idéia do que é que ele estava falando? De uma certa
maneira, aquele homem salvou minha vida. Conseguiu diagnosticar uma
apendicite praticamente assintomática (eu não sentia qualquer dor abdominal)
em 1976, numa época com bem menos recursos de exames, principalmente de
imagem, que poderia facilmente ter sido confundida com uma gripe forte ou
uma amidalite, apesar da minha febre de 41º C.

Eu tinha sim, corrimentos, tive corrimentos durante todo o ano letivo,


mas precisei conviver com isso da pior maneira possível por uma negligência
familiar. Num processo de 30 anos, povoado de muitos médicos sem qualquer
noção de realidade, aquela apendicite me custou uma esterilidade que hoje é
irreversível. A causa dos meus problemas ginecológicos, segundo um médico,
foi a tal da apendicite. Esta é uma história bastante original. (Agora, mais de
seis meses depois e ainda tudo muito confuso, outro médico me disse que a
causa de minhas cirurgias, infertilidade e posterior esterilidade foi a
endometriose, vai saber...)

101
Como eu havia dito, ao longo de todo o ano escolar de 1976 sofri um
verdadeiro calvário. Eu estava com 12 anos e só me lembro de chegar em casa
todo dia, por volta do horário do almoço, porque estudava de manhã, com a
saia molhada e cheirando mal. Lembrava xixi e minha sensação, no final das
aulas diárias, era realmente de estar fazendo xixi nas calças, porque eu sentia
sair um líquido, só não sabia o que era.

Todo dia minha mãe lavava a parte afetada da saia, pendurava pra
secar, e eu vestia no dia seguinte. Durante dois anos, e aquele foi o primeiro,
estudamos minha irmã e eu numa escola de freiras chamada Colégio dos
Santos Anjos, particular, na Muda. E, naquela época, embora a escola fosse só
de meninas (ou talvez por isso mesmo) não se permitia o uso de calças
compridas. Como eu era muito boa aluna, quando sentia que a enxurrada ia
começar, eu geralmente pedia à professora que estivesse dando aula (era meu
primeiro ano no ginásio e agora todas as disciplinas eram separadas) para me
deixar assistir ao fim da aula em pé, alegando uma inexistente dor na coluna.
Nunca ninguém negou o pedido, assim como também nunca ninguém
desconfiou de nada.

A uma certa altura do processo, quando a situação estava insustentável,


eu passei a usar o único short que tinha, um verdinho, de helanca, por baixo da
saia, como uma espécie de anteparo. Usava todo dia a ponto de o zíper dar
defeito, e eu, desesperada, continuar usando assim mesmo. Teve um dia — aí,
fui surpreendida — em que fomos levadas para um exame com uma médica e
uma colega chamada Vânia me perguntou por que é que eu usava aquele
“short debaixo da saia”, ao que eu repliquei que não usava não, apenas estaria
usando porque sabia do exame médico e queria facilitar. O pior é que a tal da
médica, num exame superficial, não identificou nada do processo inflamatório
que já ia adiantado. Isso foi por volta do mês de junho. Dia 11 de dezembro,
assim que entrei de férias, precisei ser operada.

102
Preliminares do sexo

Toda essa memória sobre as primeiras menstruações não aparece hoje sem
uma razão de ser. Talvez ela seja o melhor exemplo do que opera a passagem
do tempo sobre a personalidade de uma pessoa — no caso, a pessoa sou eu.
Se um dia eu concluir esse livro, e mais, se ele for publicado (e lido!) alguém se
pergunte como é que eu estou tendo a coragem de contar, em primeira pessoa,
tudo isso, coisas tão íntimas, mas eu explico.

Em primeiro lugar, eu sempre poderia dizer, apenas: “mas é claro que


nem tudo é verdade! Eu estou incrementando a narrativa com minha
criatividade...” Mas, provavelmente, do jeito como eu me conheço, vou
simplesmente dizer: “mas é claro que é tudo verdade — como é! Só que eu
não tenho do que me envergonhar: nem da minha origem, nem dos meus
pecados, nem dos meus erros ou embaraços. Afinal, somos todos apenas
humanos.” Meu livro poderia significar, para os outros, um libelo em prol da
autenticidade. Do reconhecimento de nossa pobre (mas bela) condição
humana. Para mim, tem um outro significado, e já é absolutamente terapêutico
apenas por ser escrito. Ele significa uma imensa expressão de liberdade.

Outro dia, conversando com minha terapeuta (e grande amiga, se é que


pode — pode?), e tentando fazer um balanço, num momento de crise, sobre o
que, afinal, de bom eu tenho na minha vida, ela enunciou (e, aliás, parou quase
por aí) a minha liberdade. Ela tem toda razão. Sou uma das pessoas mais
livres que eu conheço. Mas não me peçam para explicar agora. Mais adiante,
talvez.

Agora quero fechar o círculo que me levou ao relato sobre como lidar
com a menstruação durante a infância. Tenho, hoje, 43 anos e, como já disse,
há pouco mais de seis meses foi sentenciada minha esterilidade a partir da
retirada de meu segundo ovário. Mas esse foi um processo longo e doloroso,
no corpo e na alma, e que tem suas origens muito bem explicadas e claras na
minha cabeça. Embora nem os médicos, entre eles um dos melhores

103
especialistas da cidade, sejam capazes de explicar objetivamente o que está
se passando comigo hoje.

Como eu disse, o início da minha maturidade sexual parecia indicar um


futuro saudável, pelo menos sob o ponto de vista físico. A propósito de
informação, o cenário sempre foi bem diferente. A única aula de educação
sexual que recebi de minha mãe foi quando eu tinha oito anos. Ela nos chamou
(não sei se minha irmã se lembra disso, mas como esquecer?, se pelo menos
para mim foi traumatizante!) com uma revista ilustrada na mão, tipo uma
história em quadrinhos, uma espécie de fascículo de uma coleção maior, a qual
nós nunca tivemos acesso e disse o seguinte: “Estão vendo isso aqui? É o
nascimento de uma criança. A mulher está de perna aberta. Ah, e tem outra
coisa. Daqui a algum tempo, vocês vão começar a sangrar todo mês por aí.” E
foi só isso: curto e grosso. Sem explicar como é que a criança ia parar lá dentro
nem por quê o sangue tinha que, toda hora, vir parar aqui fora, ou qual a
relação entre uma coisa e outra. Ainda completou, no final, diante do nosso
pasmo — nenhuma das duas meninas conseguiu dizer uma palavra — e,
provavelmente, olhos arregalados: “Não se assustem!”. Jamais, em qualquer
outro momento da nossa vida, recebemos qualquer outra explicação sobre
qualquer assunto nem que indiretamente relacionado à vida sexual, como o
surgimento dos pêlos pubianos, por exemplo. Com meu pai, absolutamente
ausente, as conversas sobre sexo se limitavam às piadas de sacanagem,
quando já éramos adultas, ou então à discussão, geralmente iniciada por mim,
sobre assuntos de terceiros, em geral motivados por qualquer evento de um
noticiário. Descobri o que era um ato sexual lá pelos meus 14 anos, graças a
uma ou outra frase solta vinda da ousadia de uma coleguinha e também aos
filmes do James Bond. Não devo ter sido a única a ter essa dívida com o
personagem de ficção. Estão vendo só por quê ele era o cara? Isso, somado
aos meus já avançados conhecimentos de inglês e a canção Nobody does it
better, does o quê? Aquilo mesmo, fora outras canções contemporâneas, como
Do that to me one more time.

Ah, sim, justiça seja feita: devo, na verdade, à imprensa, impressa e


televisionada, os rudimentos de minha educação sexual. Porque lá naquele

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prédio onde eu morava havia umas tampas de concreto armado que,
devidamente arrastadas por três ou quatro crianças fazendo força ao mesmo
tempo, revelavam tesouros ocultos no subsolo da garagem. Jornais e revistas
velhos! Nos jornais, nada demais. Mas devia haver algum tarado (ou vários) no
prédio (maneira de dizer, porque todo mundo sabe que não é preciso ter uma
patologia para gostar de revistas masculinas, pelo contrário, acho que é típico
— até certo ponto — de um cara normal) que apreciava a Playboy (ou seria a
Ele ela?). Nos dias em que estávamos mais atacados, quando não íamos
invadir nenhum carro ou nenhuma casa abandonada para quebrar-lhes as
vidraças, a gente resolvia dar um “confere” ali na nossa coleção de pornografia
particular.

Nem mesmo as baratas, enormes e em profusão (minhas relações com


as baratas vão render, ainda, pelo menos um ou dois capítulos neste livro)
impediam que o Fernando, o capeta do prédio, mergulhasse no fosso escuro
para ir nos passando as revistas, que estudávamos ali mesmo, ao redor do
local do crime, para não despertar suspeitas, a maioria esmagadora de
meninas que moravam no prédio, todas na faixa, aí, entre seis e doze anos. De
meninos mesmo só existiam, no prédio, o Fernando e o Luís que, apesar de
filho caçula do chefe dos porteiros, nunca nos dedurou ao Seu Severino.

Era dessa maneira, obscura e recalcada, que a gente podia ter uma
idéia, mais ou menos, de como seriam nossos corpos dali a alguns anos, se
tivéssemos alguma sorte e a carga genética e os hábitos alimentares nos
fossem favoráveis. Mas um dos nossos problemas era saber a configuração
final do corpo masculino crescido. Na época da ditadura, a censura era feroz,
em especial sobre o conteúdo da televisão. Certo que fosse o auge da
pornografia e, “nunca antes nesse país”, para fazer referência a um dos mais
ilustres pornógrafos do momento, se consumisse e produzisse tanta
pornochanchada no cinema nacional — e isso também tinha sua função
política. Mas, numa novela, por exemplo, qualquer cena que lembrasse ao
longe uma situação de violência ou qualquer conotação sexual levava o
episódio a uma excepcional exibição num horário mais tarde, como o que
aconteceu algumas vezes com a novela Irmãos Coragem, de Janete Clair,

105
exibida em 1970/71, se não me engano. Os pais, pelo menos os meus,
deixavam a gente ver esses capítulos também, como os de várias outras
crianças. Dava a eles uma espécie de revanchismo, como quem diz: “nos meus
filhos mando eu!” (e a discussão não está de todo ultrapassada, uma vez que o
tema da censura televisiva e o controle dos pais voltou atualmente à baila).
Meus pais não tinham nada contra a exposição do sexo, contanto que a
iniciativa não tivesse que partir deles, porque aí ficavam constrangidos.
Imagino o tipo de educação sexual que teriam recebido, se é que receberam
(?). Pais de duas meninas e com uma vida sexual, como alguns indícios
mostraram já estando ambos na terceira idade, das mais satisfatórias de que
eu já tive conhecimento, era compreensível, embora não aceitável, que eles
tentassem reservar esse espaço como algo proibido para menores, só do
mundo dos adultos. Como se isso fosse capaz de postergar nosso
amadurecimento e, com ele, todos os problemas advindos da iniciação ao
sexo, no caso de meninas (como a gravidez precoce, para falar do menor dos
problemas). Mais sobre os meus prejuízos nessa esfera oportunamente.

De qualquer forma, nós encontramos uma maneira, a meu ver, bacana,


embora com um ranço de “divisão de classes” e sem respectiva exploração,
para driblar a falta que nós tínhamos de ver um corpo masculino adulto nu.
Enquanto que as mulheres apareciam nas fotografias editadas, vimos o homem
nu a poucos metros de distância, em toda a sua beleza e esplendor, e me
pergunto se estávamos realmente tão incólumes como acreditávamos então,
se não teríamos sido percebidos pelo homem então, e se aquelas crianças se
lembram tão bem quanto eu do que vimos e da impressão que nos causou,
ainda hoje.

Muito diferente do Seu Severino, um negro troncudo, baixinho e


circunspecto, foi trabalhar no prédio um novo porteiro, em princípio, faxineiro.
Paulo Sérgio era um negro de quase 2m de altura, em ótima forma, jovem e
forte, com traços belíssimos e um sorriso perfeito, sempre bem-humorado e de
bem com a vida. Não passou muito tempo, Paulo Sérgio cumpriu o destino que
lhe era reservado e atingiu o ápice (lamentavelmente) do que a sociedade e do
que suas próprias expectativas e ambições lhe permitiam, ao se tornar ele

106
mesmo o sucessor de Severino como chefe dos porteiros, casar-se e ter três
filhos, todos invariavelmente machos (como não poderia [?] deixar de ser) —
estou sendo irônica e badalando alguns clichês, por favor, não me entendam
mal! Paulo ainda trabalha no mesmo edifício.

Mas, naquele dia mágico, e digo dia porque, se não foi nas nossas
férias, foi no período da tarde, à luz do sol, portanto, que tivemos a experiência
mística de ver o novo faxineiro nu. Não sei dizer mais onde é que aquele
homem estava tomando banho, era ali pela garagem, perto da lixeira e da casa
do porteiro, é só do que me lembro (preciso perguntar à minha irmã, que hoje
mora na Alemanha, ela há de dar boas risadas). Nem sei descrever a que
distância estávamos, mas o suficiente em segurança para observá-lo durante
uns minutos, nu, debaixo do chuveiro, de costas para nós, de maneira que
pudemos olhar detidamente toda a extensão das costas, das longas pernas, a
firmeza da bunda e, às vezes, até de relance, o pênis visto de um ou outro lado
das coxas quando ele mais ou menos se virava. Era escuro e grande, embora
não estivesse teso. Por isso mesmo, e pelo tipo de caráter que era Paulo
Sérgio, acredito que ele não fosse nenhum exibicionista e, provavelmente, teria
pedido demissão se soubesse de nossa travessura.

107
Brincadeiras infantis

No prédio em que cresci, na Rua Henry Ford, éramos um bando de meninas e


apenas dois meninos. O Fernando, irmão da Jussara, e o Luís, filho do porteiro.
Do outro lado da calçada, havia duas casas, uma do lado da outra, onde
moravam dois amigos: Lélio, primo da Leila, vizinha do terceiro andar, e
Francisco, mas eles raramente vinham brincar com a gente.

O pelotão feminino era composto pela Leila — já que a Jussara não


brincava com a gente, porque não brincava mais e era precocemente
interessada em brincadeiras de adultos — as irmãs meio judias Regina e
Elaine, minha irmã e eu e, finalmente, as garotas riquinhas da cobertura, cujo
pai era médico: Flávia, Letícia e Ana Elisa. Mais tarde, nasceu o irmãozinho
delas, Camilo, mas nós não aceitávamos bebês na nossa gangue... Às vezes,
nas férias, aparecia também a Isabel, neta da nossa vizinha e amiga, quase
avó, Dona Adelaide, e que também era prima do trio de irmãs.

Decididamente nossas brincadeiras não eram nada ortodoxas. Uma das


preferidas era “brincar de monstro”. Numa situação fictícia e sempre repetida,
simulávamos um grupo de estudantes que fossem em visita a um museu e,
chegando lá, começassem a zombar de uma dada múmia que, estranhamente,
aguardasse de pé, e que se aborrecia tão profundamente com as críticas à sua
cara feia que retornava à vida apenas para correr atrás dessas crianças tão
malcriadas... Gozado é que a múmia dava sinais de que estava ficando irritada,
como num desenho animado, porque começava a rosnar baixinho e o rosnado
com o tempo ia aumentado. Era o sinal para todo mundo desatar a correria.
Qualquer um de nossos jogos, invariavelmente, terminava em correria, mesmo
aqueles que, em princípio, nem teriam realmente esse objetivo. Como os jogos
de invasão, por exemplo.

Dessa categoria, me lembro particularmente de dois. O primeiro quando


nós invadimos uma casa abandonada, que pertencia à família de Francisco, ou
melhor, à avó dele, e que ficou vazia quando a família se mudou para a casa
nova, de três andares, coisa de vinte metros à esquerda da casa velha. Não sei

108
mais quem foi que deu a idéia. O fato é que, uma manhã, sem que ninguém
nos visse e, mais difícil, sem que nenhum dos porteiros ou vigias desse com a
língua nos dentes, conseguimos entrar na casa pelos fundos e até hoje me
lembro da nossa emoção. A construção ia ser derrubada, acho até que os
operários já haviam começado, parcialmente, a demolição, e nós cuidamos
para que tivessem menos trabalho. Porque... nosso único intuito ali dentro era
destruir tudo o que passasse pela frente!

Parecia filme. Um da Família Monstro! O cenário era perfeito, já que


tínhamos apelidado a mãe de Francisco de Lili, em referência à esposa de
Hermann, só porque ela tinha um cabelão liso e escorrido até a altura da
bunda, com umas mechas grisalhas na frente. Era ela passar na rua e a gente
começar a gritar: Lili, Lili, Lili. Se o Francisco estava junto, ele baixava a cabeça
e resmungava, baixinho: “poxa, gente, é minha mãe...” Mas ninguém perdoava.
Não deve ter sobrado nenhuma vidraça inteira dentro da casa. Quando
terminamos a inspeção no térreo, subimos para o andar de cima e as tábuas
da escadaria rangiam sob nossos pés. Por fora, a casa tinha paredes pintadas
de um rosa velho, e por dentro era papel de parede florido. Estava muito suja e
fazia eco a nossa voz naquele espaço. Do nada, alguém achou que havia
algum tipo de perigo, ou viu um rato, não sei o quê. Só sei que saímos todos
juntos, numa desabalada corrida escada abaixo, ao mesmo tempo, e depois
voados porta da rua afora, em questão de segundos. A gente precisava
daquela adrenalina!

Outra vez foi a Kombi de um vizinho que era alcoólatra o que decidimos
invadir. Ela já estava parada lá embaixo na garagem do térreo fazia tempo, não
rodava mais, com sua placa de dois alfas e seis numéricos, ela estava nos
chamando! Não foi difícil arrombar a porta. O carro era tão velho e
despedaçado que as portas estavam amarradas com um arame grosso, nada
que teimosia de criança, mesmo sem um bom alicate — cada um ajudava a
desatar um pouquinho e era prontamente substituído pelo próximo da fila
quando o braço ficava cansado — não pudesse resolver. Abrimos, enchemos a
Kombi e só não fizemos ligação direta porque ali ninguém ainda sabia dirigir.
Ou porque estava sem combustível, já que a gente aprendia rápido. Imagine-se

109
uma Kombi velha e imunda estacionada numa garagem lotada de crianças
simulando uma perseguição e dirigindo sem sair do lugar: como nós nos
divertimos!!! Só não foi engraçado quando, já não tendo mais onde mexer,
inventei de abrir uma das janelas, sentada num dos bancos de trás, e era só
uma espécie de ventoinha, que abria quando se esticava uma espécie de micro
braço mecânico e, pronto! Acabei prendendo o fofo da mão, abaixo do polegar
direito, ali. Nossa, como doeu! Aí eu já estava querendo saltar de qualquer
maneira, sem me importar porque teria que desalojar toda a criançada nos
bancos da frente. Tive que empurrar um ou outro. Mas, nesse dia, fomos
descobertos!

O porteiro-chefe, percebendo a movimentação, foi logo chamar o dono


do carro e a gente sabia que ia dar confusão na certa. Saiu criança correndo
pra todo lado. Minha irmã, muito esperta, me segurou pela mão, quando eu
também já ia sair à toda, e se sentou tranqüilamente comigo logo no banco
mais perto da entrada do hall. Ela disse: “fica quieta aqui”. Vimos o vizinho
chegar bufando, o porteiro acusando, que olhou pra gente, e minha irmã
explicou: “se a gente estivesse no meio, não ia ficar sentada aqui, ia?” Parece
que a mentira convenceu aqueles dois adultos, não muito brilhantes. Mas a
encrenca aumentou para o lado das outras crianças, repreendidas pelos pais,
que tinham levado bronca de um vizinho tão desqualificado. Aí foi a hora de a
gente ter que acertar as contas com as outras crianças. Minha irmã continuou
firme: “ninguém mandou vocês correrem, acabaram se entregando!” Duvido
que minha mãe não soubesse que a gente fez aquela arte. Mas não
recebemos nenhum carão oficial. Foi uma das minhas primeiras lições de que,
nem sempre, falar a verdade é a melhor política... Pena que, essa lição, eu não
aprendi.

110
Meninos

O primeiro menino que chamou minha atenção tinha um forte sotaque


nordestino, apesar do nome alemão, cinco anos de idade e me seguia onde
quer que eu fosse no parquinho. Eu também tinha cinco anos e bastava me
virar que dava de cara com ele. Mesmo nas poucas fotos em preto e branco
daquele jardim da infância, é possível vê-lo aqui e ali, como uma sombra. Eu
usava franja, maria-chiquinha e não era de muitos amigos. O garotinho até
poderia ter tido melhores chances se não fosse por um outro, que quase me
fez desistir de ir à escola. Bastou que ele me perguntasse um dia: “seu pai tem
casa?” “Não.” “Seu pai tem carro?” “Não.” “Então seu pai é pobre?” “Acho que
é...” Depois desse diálogo, tudo o que eu queria na vida era ficar longe do
garoto. E do escorrega, que também me metia medo. Foi preciso semanas
para que uma das tias descobrisse a causa do problema. Ela também me
ajudou, com a maior paciência, a descobrir que o escorrega não era tão alto
assim. Já os garotos, ao longo da vida, iriam me dar uma série de sucessivos
tombos.

O segundo garotinho de que me lembro devia ter uns sete anos, como
eu, também era lourinho e foi exceção porque tinha um sobrenome português.
Era meu vizinho de rua. No nosso aniversário — como minha irmã e eu
nascemos com um ano e uma semana de diferença, acabamos crescendo
usando roupas idênticas e festejávamos em algum dia entre o aniversário dela
e o meu — ele veio à festa e, no final, inventou de me dar um beijo. Como eu
não sabia que beijo era aquele e sempre fui tímida pra essas coisas
românticas, pensei em sair correndo. Mas outras meninas maiores me
seguraram e ele me deu uma singela beijoca na bochecha. Que eu adorei!
Depois que ele saiu, fiquei acompanhando ele ir até seu prédio da janela da
minha casa. Mas ficou só nisso mesmo.

O terceiro e o quarto meninos tinham também nomes totalmente


alemães e me vigiavam e adulavam toda aula. Nunca se declararam. Foi um no
primário e outro no ginásio. Quando eu tinha lá meus 16 anos e uma silhueta
de fazer inveja começaram a aparecer alguns garotos mais incisivos, do tipo

111
que só faltava mergulhar dentro dos meus decotes, mas eu achava todo mundo
muito bobo. No último ano do Ensino Médio, quando eu já estava com 18 anos,
teve um garoto que me chamou bastante atenção. Era tudo de bom e bem do
meu tipo, discreto e educado, mas eu nunca fui muito boa na arte da sedução e
duvido que ele sequer tenha notado a minha existência como mulher, embora
ele soubesse quem eu era e a gente conversasse de vez em quando, numa
sala com 200 alunos que falavam ao mesmo tempo. Ainda nesse ano, um
colega de turma me chamou para sair, mas eu não estava interessada nele,
apesar da torcida declarada da minha mãe, e disse a ele logo no primeiro
encontro que estava a fim de outro cara.

Aos 19 anos, num curso profissionalizante, um colega de turma também


me chamou para sair, mas minha mãe disse que era má idéia porque ele
morava no subúrbio e eu não fui. Aos 21, no primeiro ano de faculdade, um
colega lindinho me convidou para uma coca-cola no intervalo e eu não deixei
ele pagar porque não entendi que era uma cantada. Eu me sentia tão
deslocada na turma que jamais iria passar pela minha cabeça que algum
daqueles rapazes pudesse me achar atraente.

Só comecei a me envolver com os homens quando já era


financeiramente independente. De alguma maneira, eu vinculava uma coisa à
outra, poder mandar no próprio nariz tinha a ver com poder me bancar. Meus
envolvimentos amorosos foram um desastre atrás do outro, todos muito
rápidos, às vezes até com homens casados, e quando chegavam a três meses
era muito. Aos 29 anos fiquei noiva de um cara que eu mal conhecia e também
não levou muito tempo. Só fui me apaixonar de verdade com mais de 30 anos,
mas também não deu certo. Meu casamento, que para muita gente nem isso
foi, porque nunca assinamos papel nenhum, durou seis anos e não deveria ter
passado de dois, que foi quando houve a primeira crise grave. Aos 40 decidi
que era melhor ir cada um para o seu lado e meu ex-marido adorou a idéia.
Quatro anos mais tarde, tenho minhas dúvidas se ainda saberia conviver com
alguém, porque a gente se acostuma a viver sozinho. Ver tv quando quiser,
ouvir música quando quiser, e o quê quiser, o que vale também para outros
aspectos do cotidiano, como a hora de ir dormir e de acordar, as refeições...

112
Mas é uma vida sem sentido. Não ter com quem compartilhar é doloroso.
Minha terapeuta diz, com base nos meus relatos detalhados, que eu nunca tive
um namorado de verdade, e talvez ela tenha razão. O que eu vivi foi outra
coisa...

Curioso como alguns desses homens que passaram pela minha vida
tenham sido alemães, o que reforça aquele dado da infância dos primeiros
admiradores. Claro que, na adolescência, minha irmã e eu começamos a
aprender o idioma, mais tarde trabalhei em empresas alemãs, estive no país
diversas vezes fazendo cursos e turismo, então seria uma decorrência quase
que natural. Mas não deixa de ser interessante. Quem sabe eu não tenha tido o
interesse de aprender a língua justamente porque, lá no fundo, fizesse alguma
espécie de associação entre aquele país e relações amorosas? Poderia ser um
atalho para o amor. Outra coincidência estranha é que eu tenha comprado meu
primeiro apartamento não apenas na mesma rua, mas do mesmo lado da
calçada, em que também tive minha primeira relação, num outro prédio cerca
de uns cem números à frente, muitos anos antes. A Cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro não é tão pequena assim.

113
Ereção Companhia Limitada

Talvez a maior virtude desse meu apartamentinho no Flamengo não seja nem
o fato de ser bem iluminado ou arejado, nem que, todo carnaval, passe aqui na
rua o memorável Bloco do Cachorro Cansado. Pode ser que seja a localização,
digamos, a vista, e olhe que eu não tenho a menor vocação para voyeur. Num
dos prédios do outro lado da calçada mora um grupo de rapazes — não
saberia dizer quantos — que transformaram mesmo a sala numa espécie de
alojamento. Dá pra ver, pela abertura da porta da varanda, que tem cama
espalhada por todo o lugar. Eu não sei o que eles fazem, porque saem
vestidinhos num estilo dead head attirement, ou seja, calça escura e camisa
social branca, embora de mangas curtas, como assim o exige o calor, e
gravata. No peito, uma plaquinha dourada com o nome de cada um — e que só
vi cruzando com alguns quando saía para uma caminhada, porque nunca me
atrevi a chegar muito perto de um desses exemplares. Não depois do que eu
tenho visto...

Fato é que, no fim de 2005, percebi que, toda vez que eu chegava na
minha janela — eu adoro olhar para o céu! — um desses garotos (esqueci de
dizer que são muito jovens e que jamais vi um homem adulto entre eles? Pois
é. Mulher por lá, então, nem pensar...) simplesmente chegou num cantinho de
onde sabia que eu podia vê-lo, arreou as calças e teve a ereção mais
instantânea e aprumada que meus olhos puderam contemplar. Na hora fiquei
meio embasbacada, me deu uma crise de riso e eu saí do camarote, sem saber
o que esperar do espetáculo. Mas, à medida que o tempo passava, aquele
show passava a ter várias sessões por dia e eu comecei a me aborrecer. Se
estivessem em casa, era chegar na janela e... tcharam!

Talvez ajude ao meu leitor — ou será que, a esta altura do texto, só


estarão ainda interessadas as leitoras? — a visualizar a cena se eu descrever
o cara. Alto, loiro, corpo escultural, e que, freqüentemente, sabedor de a que
horas acordo pela manhã e que, portanto, abro a janela, ficava me esperando
de tocaia. De início acreditei que ele estivesse mesmo saindo do banho, mas
depois passei a considerar que talvez fosse uma simulação. Com sua infalível

114
toalha de banho enrolada na cintura, ele fazia um movimento rápido para
arrancá-la e, vamos lá de novo, taí ó, pra você!!! Permanecia de perfil, seu
melhor ângulo! E não fazia mais nada. Só ficava ali, me mostrando... Acredito
que o jogo tenha outros ingredientes de tensão que deveriam excitá-lo. Como o
fato de que os outros rapazes aparecessem na hora e dessem um flagra (se é
que não viam e entravam na onda) ou que ele pudesse ser visto por outros
moradores deste lado da rua.

A esse respeito, e para tirar a prova de que as ereções eram mesmo em


minha homenagem, e não das múltiplas velhinhas que moram no prédio ao
lado, tratei de conseguir testemunhas para o evento. Como no dia em que pedi
a minha faxineira que chegasse de surpresa e ficasse assistindo ao meu lado.
Ou um amigo de visita que veio se esgueirando abaixadinho e apareceu de pé
do meu lado. E até mesmo a minha mãe eu convoquei para o cineminha. Sem
exceção, todas as vezes, ele pegava a toalha ou as calças, se cobria e saía de
cena, com a mesma rapidez com que me exibia sua virilidade.

Meses depois, o garanhão sumiu, porque são grupos de rapazes que


vêm e vão. Eles acordam muito cedo e estão sempre lendo ou estudando,
poderia até dizer que eles fazem parte de alguma religião ou seita — e que
seita! — já que, tirando a sacanagem, eles parecem muito bem
comportadinhos. Vai ver que a brincadeira é só pra relaxar mesmo. Fiquei mais
tranqüila, sabendo que podia chegar na minha janela sem ter que dar de cara
com um vocês-sabem-o-quê duro e devo dizer que, até então, eu tinha as
reações mais loucas. No início achava graça, depois passei a ignorar, e no fim
já estava me sentindo vítima de violência, porque eu não estava querendo mais
ver o cara e em dias de mau humor só faltava querer ligar pro 190 e chamar a
polícia. Aí, fechava a cortina demonstrando raiva. E antes que alguém pense
que a culpa era minha, gostaria de lembrar que eu não sou do tipo que desfila
pela casa em trajes sumários.

Há pouco tempo, não é que me apareceu um outro exibicionista, só que


esse é moreno e mais baixo, embora não menos jovem e lindo, que faz igual
ao outro??? Parece até que foi ensinado! Mas, como diz o I Ching, derivado do

115
Taoísmo, que apregoa a mesma sabedoria, viva o poder da inação! No jardim
do prédio à esquerda do meu, uma árvore imensa estica os seus galhos e já
está quase cobrindo nossa linha de visão. Aí, acabou-se a farra.

116
O céu da minha infância

Minhas lembranças mais fortes de infância estão relacionadas a um certo


endereço na Tijuca, bairro de classe média da Zona Norte do Rio, por causa do
apartamento em que morei dos cinco aos 14 anos. Um dos aspectos mais
marcantes nem estava, na verdade, na rua, mais bastante acima dela. Foi
nessa casa que aprendi a olhar o céu.

Havia um andar de garagem e, assim, se poderia dizer que o 208 ficava,


na prática, num terceiro andar. E como do outro lado da rua só havia casas, a
vista ficava relativamente livre. Mas além, a cerca de uns 50m, já se alcançava
as quadras do Tijuca Tênis Clube, o barro vermelho contrastando com
uniformes branquinhos. Uns metros para trás, dava para ver não propriamente
a piscina, mas como as pessoas e, em especial, as crianças mergulhavam. A
perspectiva, como vim a descobrir mais tarde, era da piscina olímpica, que
ficava aos pés do prédio social, e além dela havia ainda uma de 25m e outra,
apelidada de feijão, pelo seu formato arredondado.

Nesses tempos de mera observação, nem passava em nossa cabeça


um dia entrar no clube, de classe média alta. Anos depois, como sócios
contribuintes, chegamos a fazer aulas de natação, minha irmã e eu, por cerca
de dois anos. Nos áureos anos do clube, o mais perto que chegávamos dele
era até onde a vista podia alcançar e também os ouvidos: os bailes de
carnaval, e as matinês infantis, que nem sempre pudemos freqüentar; os
shows no andar nobre, em que se apresentavam artistas como Johnny Mathis,
no auge do sucesso, assim como Roberto Carlos.

Mas, talvez pelo olhar treinado em várias profundidades — as casas do


outro lado da rua, as quadras, a piscina, a sede do clube, um perfilado após o
outro — eu tenha meio que concluído, na minha mente infantil, que levar o
olhar para mais longe significasse necessariamente um enriquecimento, uma
nova perspectiva, uma abertura de mundo. Por isso, um dos meus
passatempos preferidos era acenar de longe para os prédios que ficavam ainda

117
mais distante, lá na principal rua do bairro, toda vez que via alguém numa
janela, melhor se houvesse mais de uma pessoa.

Eu, então, uma menininha de franjinha, cabelo comprido e olhos


sorridentes, ficava ali, dando tchauzinho, querendo um contato, e ficava tão
feliz toda vez que alguém acenava de volta! Minha irmã, que me acompanhava
animada toda vez que a brincadeira era apenas anotar as placas dos carros
que passavam — e olha que, na época, eram duas letras e seis algarismos! —
por muito tempo ainda sem os postes com lâmpadas de mercúrio, se o jogo
fosse à noite, nem pensava em fazer parte desse aceno gratuito.

Naquele apartamento pequeno, de quarto e sala, em que dormíamos em


todo tipo de caminhas, sofás e outros improvisos durante anos, porque o quarto
era dos nossos pais, talvez o que houvesse de melhor fossem realmente as
janelas. Ou, a janela da sala! Dali se podia viajar. A qualquer hora que o sono
fugisse, bastava se levantar e olhar para cima e, imediatamente, se sentir bem.
Nunca mais vi um céu como aquele... As cores quando amanhecia, ou quando
o dia terminava, tudo visto daquele meu posto de observação, daquele ponto
estratégico no universo em que eu percebia e desejava o mundo e, ao me
sentir parte dele, estava feliz.

Hoje o céu da minha janela é bem mais limitado, cerceado pelos prédios
altos em frente, não vejo mais a ida e a vinda do sol, sobraram apenas as
estrelas e, com sorte, a lua, se eu chegar na hora certa. Sinto falta de ver o
céu.

118
Destino de bicicleta

Junto com o guarda-chuva, que também já nasceu pronto, a bicicleta é uma


das invenções mais perfeitas que eu conheço. Assim como a fotografia, ela tem
um lado racional e outro que é pura emoção. Há quem viva da fotografia e há
quem fotografe por prazer. Já a bicicleta tanto é meio de transporte quanto de
lazer. Diante de um cenário planetário de crise de energia, já era hora de a
gente poder circular pelas cidades simplesmente pedalando e, com isso, se
divertindo e, com isso, fazendo bem à saúde e, com isso, preservando os
recursos naturais e, com isso, poluindo menos. Quer solução mais perfeita? E,
no entanto, não é nada disso que acontece. Não acontece pelo simples motivo
de que hoje, pelo menos no Rio de Janeiro, é perigoso andar de bicicleta.
Salvo os entregadores de farmácia e afins, que não raro tentam — de forma
errada e irresponsável — fugir para cima das calçadas, ninguém em sã
consciência se arrisca a pedalar em meio ao tráfego pesado. Ciclovias são
poucas e também desrespeitadas por corredores e pedestres. Pobre da
bicicleta!

A bicicleta, enquanto símbolo, ilustra bem o momento pelo qual


passamos hoje. Ela é tudo de bom e, no entanto, não tem o lugar que merece
no mundo. Nós nos tornamos selvagens demais para o selim. Indolentes
demais para os pedais. Falta-nos o equilíbrio (mental? emocional?) para ficar
em cima de uma bicicleta. Apesar de que, em algum momento da vida, ricos e
pobres, mesmo nos mais profundos grotões do mundo, sempre tiveram algum
tipo de contato com ela.

Tive três bicicletas na vida. A primeira, azul, era compartilhada com


minha irmã porque não havia dinheiro para comprar uma para cada menina. A
segunda, em Berlim, tinha sido repintada de preto e pintalgada de bolinhas
coloridas. Esta me serviu muitas vezes para locomoção e sei que seu destino
foi o ferro-velho. Sua dona, minha vizinha, já tinha um modelo mais novo e por
isso me cedeu a anterior. Por fim, a bicicleta que tenho hoje, não sei por quanto
tempo, e que na verdade é uma viúva. Ela está, até, apropriadamente vestida
de roxo. Compramos juntos, meu ex-marido e eu, porque viemos morar

119
próximo ao Parque do Flamengo e nosso lazer de domingo, durante anos, era
pedalar até o Aeroporto Santos Dumont. Quando nos separamos, ele levou sua
bicicleta e, pelo que vi, na época, ela rapidamente foi sucateada na área
comum do prédio. Ele também já não andava mais. Uma bicicleta morre
quando fica abandonada.

Para mim, aquele par de bicicletas representava meu próprio


casamento. Tinha a leveza das horas felizes, despreocupadas, em que não
estávamos quebrando a cabeça para tentar esticar o dinheiro e apenas
sentíamos o carinho do sol na nossa pele. Andar de bicicleta, ali, era voltar a
ser criança, era uma forma de dizer “eu te amo”, era uma brecha de alegria
num cotidiano duro.

Levei tempo para voltar ao aeroporto depois da separação, mas


consegui. Mantive o hábito de pedalar aos domingos até o ano passado, mas
dois fatores me afastaram da minha bicicleta e eu sinto muito. O primeiro foi
uma bursite no fêmur e depois problemas de coluna, tratados hoje com Pilates,
mas de qualquer maneira o acesso ao local onde fica a bicicleta — tenho que
subir e descer escadas carregando e ela não é de alumínio! — não é muito
fácil. O segundo complicador é que todo domingo de manhã, de uns tempos
para cá, tem sempre alguma corrida nas pistas justamente no horário em que
eu gosto de pedalar e a preferência é deles.

Se existe um sinônimo concreto para a idéia de ingratidão, esse


sinônimo é o abandono a que a grande maioria das bicicletas do mundo está
destinada. Uma bicicleta só nos faz bem, mas acaba esquecida num canto,
mais cedo ou mais tarde.

120
Medos e confusões infantis

O medo que as crianças sentem e que, muitas vezes, é aprendido — como o


de barata: algum adulto (dizem) deu um chilique na sua frente e você registrou
a informação — tem reflexos sobre a vida adulta. Quando a gente consegue
saber a origem de algum deles, pois em geral são vários, isso ajuda bastante a
lidar com aquela deficiência. No meu caso específico, há dois medos que são
bem coerentes, porque me lembro exatamente do dia em que começaram.

O mais antigo deve ter acontecido lá pelos meus cinco anos. Minha mãe
foi à feira livre que ficava quase na esquina de casa e nos levou, a mim e a
minha irmã. Apesar do empurra-empurra, já que feira costuma ser um local
concorrido, das senhoras que não tinham habilitação apropriada para dirigirem
os carrinhos de feira e que, portanto, não poupavam nossos pés e do pregão
dos feirantes (meu pavor de voz alta é ainda mais ancestral do que a dupla de
medos que estou identificando agora) eu até que gostava de bater ponto
naquela experiência colorida toda terça-feira.

Era tão bom porque, naquela época, havia paçoca moída na hora. Às
vezes, com o amendoim recém-torrado, que fazia aquela delícia enfarinhada
chegar freqüentemente ainda quente às nossas mãos. Ninguém, nem os
adultos, esperava até em casa, no nosso caso, a bem poucos metros, e a
paçoca era devorada ali mesmo, com o tempero da rua. Mas era preciso tomar
cuidado: de tão boa, a gente sempre queria uma, duas, três, sempre queria
mais, sob o risco de uma bela dor de barriga naquela mesma tarde...

Meu medo de feira livre começou no dia em que, inadvertidamente, um


feirante encostou seu cigarro aceso no meu braço. No lugar da queimadura
ficou a marquinha redonda e dolorida. Acredito que minha mãe tenha
esbravejado um pouco, mas o que ficou mesmo foi a lembrança da dor —
quem já foi queimado sabe que é uma coisa diferente. Dali em diante a
pequena Sandrinha, que já não era lá tão fã do tumulto da feira, passou a sentir
verdadeiro pavor. Feira havia virado sinônimo de lugar perigoso.

121
A mesma associação aconteceu também com o circo. Só que, nesse
caso, a agressão, felizmente, não foi comigo. Afinal, eu era muito jovem para
dar motivos a alguém de me dar uma garrafada. E foi justamente isso que
aconteceu. No intervalo de um espetáculo no circo do Orlando Orfei, se não me
engano, saímos da tenda para beber alguma coisa e, numa discussão entre
dois funcionários bem perto de nós, um homem acertou a cabeça do outro com
uma garrafa. Sangue pra todo lado foi o suficiente para me deixar petrificada.
Nem retornamos para o segundo ato.

Com o tempo, esses medos foram se diluindo. Já adulta e casada,


redescobri o prazer de ir à feira escolher a mercadoria fresquinha. O
estranhamento ao sangue, por exemplo, é uma questão que se resolve quase
que naturalmente no caso de uma mulher, por conta da menstruação — a
gente meio que se acostuma a vê-lo. Agora, a antipatia ao circo, essa acredito
que ainda esteja resistindo. Também por conta dos filmes hollywoodianos em
que o trapezista se espatifava na arena depois de um salto mal feito e o
palhaço era algum tipo de celerado, sem falar na sacanagem configurada no
adestramento e confinamento dos animais, eu já não curtia muito o “maior
espetáculo da Terra”. Ressalva feita ao Cirque du Soleil, versão modernizada
das artes circenses, para a qual eu tiro o chapéu.

Quando eu era criança, também havia coisas que eu costumava


confundir. Por exemplo, a Itália e a Espanha. Para mim, aos sete, oito anos de
idade, era o mesmo país. Levei tempo para perceber que um não tinha nada a
ver com o outro. Mas ambos me pareciam tão semelhantes, tão sem distinção,
e ainda por cima com uma língua sonoramente tão parecida que eu não
atinava o sacrilégio diplomático em que estava incorrendo. De qualquer
maneira, quando a gente brincava lá de um jogo em que cada um representava
um país — alguém se lembra como se chamava? — eu sempre queria ser a
França. Mas eu detesto a França! Nem consegui aprender a língua deles,
tamanha a antipatia! Mon Dieu, onde é que eu estava com a cabeça...

Da mesma forma, eu às vezes misturava salsicha e lingüiça, palmeiras e


coqueiros, as bandas norte-americanas America e Chicago, e sempre achei um

122
certo tio meu muito parecido com o Altemar Dutra, a não ser pela voz rouca
(Altemar Dutra era um cantor, de boleros, se não me engano...) Algumas
confusões eu efetivamente só consegui desfazer na vida adulta.

De qualquer maneira, há pouco, no caminho de volta para casa, tive um


verdadeiro insight: um lampejo esclarecedor de um sentimento que me
acompanha desde a mais tenra idade e que, só há menos de duas horas,
consegui esclarecer. Foi quando o taxista que me trazia mudou no rádio de um
programa de debate para a programação musical. Estaria eu, graças à terapia,
no caminho da auto-iluminação??? Gente, descobri por que odeio rádio. Eu
realmente odeio rádio! Pra mim rádio só serve para ouvir música. Botou alguém
falando, se não for num anúncio bem ligeiro, já começa a me irritar. Detesto
qualquer tipo de locução em rádio. E olha que fui repórter de rádio lá em
Berlim...

Acontece que, quando as pessoas falam no rádio, justamente por


saberem que não têm o apoio da imagem nesse nosso mundo dominado pelo
audiovisual, elas exageram no tom, que acaba ficando forçado. E esse como
que “ponto acima” cria uma certa tensão na voz, muito sutil, que nem todo
mundo percebe. O cúmulo dessa síndrome está bem representado pela
narração de uma partida de futebol, coisa que desde a infância me provoca
verdadeiros arrepios. O que para muitos ouvintes é apenas um discurso
eletrizante, para mim soa como uma agressão às orelhas.

Eu sempre soube que sou uma pessoa extremamente sensível


auditivamente falando. Talvez seja esse o meu sentido mais frágil ou
fragilizado. Raciocínios, conhecimento e aprendizagem eu deixo para os olhos.
Afinal, eles são dois e, se ficarem míopes, há o velho recurso dos óculos. E...
eles podem ser fechados. Já as orelhas não. Embora haja duas. Os ouvidos
não têm como se proteger! Para os meus ouvidos, eu quero só o prazer, a
beleza da música, o tesão de uma voz masculina gostosa, nenhum estresse.
Ainda que ele venha de um jogo que vai decidir o campeonato (futebol é o
único esporte que me interessa).

123
Ontem me lembrei de outro rolo mental da minha infância, desta vez
mais grave, e que poderia ter, inclusive, comprometido minhas reais chances
de salvação eterna ou, então, ter me feito virar uma contestadora política
radical, quiçá da esquerda.

Não foi pouco tempo que eu não sabia dizer quem era Tiradentes, quem
era Jesus Cristo. Para mim, menina dispersa e alvoroçada, a imagem sempre
pesou muito e eu só sabia que se tratava de um cara que foi assassinado, era
jovem, tinha barba e cabelo escuro e comprido. Só. Tramaram um complô
contra ele. Foi isso mesmo, em ambos os casos. Só que, num, o objetivo era
salvar a humanidade e, no outro, as finanças de Minas Gerais.

Para desfazer essa embrulhada histórica, eu precisei recompor alguns


detalhes de uma e outra saga. E me perguntava, por exemplo: mas, não
picaram Jesus Cristo em pedacinhos. Ele foi enterrado e ressuscitou, meio
amarrotado e ferido, é certo, mas inteiro. Já o outro cara barbudo teve as
partes do corpo penduradas por aí, no Centro do Rio de Janeiro, como que
num varal macabro, então, não podia ser o mesmo.

Mais tarde, nas aulas de História, veio o detalhe para o esclarecimento


definitivo da minha questão. Como qualquer condenado, o alferes Tiradentes
tinha tido a cabeça e barba raspadas antes da execução na forca. Logo, as tais
ilustrações dele despedaçado, ainda com cabelo, devem ter mesmo sido
intencionais para confundir mocinhas incautas como eu.

Acredito que Joaquim José da Silva Xavier deva ter sido um grande
cara. Pelo menos, ele não era dedo-duro. Jesus, então, nem se fala. Mas
embora eu tenha construído na minha cabeça e no meu coração um discurso a
respeito dele, muito com base nas representações que a gente vê ao longo da
vida, assim como de Deus, de quem consigo imaginar um perfil de
personalidade, confesso que sempre tive minhas dificuldades com Nossa
Senhora. Para mim, ela é a figura cujos contornos são os menos bem
delineados da igreja.

124
A começar porque há mínimas passagens sobre ela ou em que ela se
manifesta nos textos sagrados. Como conseqüência, até hoje tenho muito mais
dificuldade de rezar a Ave Maria do que o Pai Nosso, de maneira que minha
mente sempre escapole para outro lugar, logo depois das primeiras frases. Em
compensação, na idade adulta, não sei bem por quê, desenvolvi uma sincera
simpatia e real devoção pelo Divino Espírito Santo. É uma das orações que
rezo com o maior fervor. E me sinto ao mesmo tempo confortada e encantada
pelo mistério da Santíssima Trindade. Vai entender.

125
Cucarachas

Minha infância foi um período lúdico cercado de baratas por todos os lados.
Credito ao fato de o edifício em que cresci incinerar o próprio lixo o fato de
haver tantas delas por perto. Na parte de trás do prédio, em paralelo ao hall, na
reta grande de um corredor amplo que era ladeado por um muro e levava ao
grande pátio com as vagas de garagem, ficava a lixeira. Numa área de,
digamos, 3 x 3 m, cujas paredes e teto eram completamente negros de fuligem
e não tinha porta, ficava um incinerador, usado de três a quatro vezes por
semana. O lixo ensacado acumulado se amontoava pelo espaço até a próxima
incineração. Claro que devia atrair uma vizinhança nada higiênica e que
circulava por onde bem entendesse.

Nós morávamos no segundo andar, e o que são dois andares de vôo


para quem tem asas? Volta e meia a gente acordava de noite, em especial se
fosse quente, com algum visitante caminhando sobre alguma parte do corpo.
Gritos, escândalos, correria para acordar meu pai, o destemido matador de
baratas, que nunca recebia essas convocações alvoroçadas de boa vontade.

Eu chegava a sentir pena da barata, tamanha a fúria com que ele a


agarrava com a mão, atirava no chão, e se encaminhava para o banheiro, para
tirar o cheiro característico na base do sabonete. Até parecia que havia um
complô universal muito bem sincronizado para perturbar seu sono. Ele
resmungava uns 10 minutos e depois voltava a dormir quase que
instantaneamente. Nós, crianças, num misto de culpa e sobressalto,
demorávamos um pouco mais. E mesmo hoje ainda sou capaz de farejar a
passagem recente de uma barata onde eu estiver, tão viva a memória olfativa
daqueles eventos.

Houve um outro evento marcante que deve ter acontecido entre os anos
de 1988 e 1991, quando cursei a faculdade. Sei disso porque estava
acompanhada de uma colega de turma. Nessa tarde, acompanhamos minha
mãe ao supermercado que funciona nas antigas instalações de uma velha
fábrica da Zona Norte, no bairro de Vila Isabel.

126
Nós já estávamos empacotando as compras na saída do caixa quando,
não sei por que motivo, o pessoal da manutenção removeu uma espécie de
proteção de madeira sob a qual se escondia uma parede. Foi a única parede
viva que eu vi até o presente momento. E eu digo que ela estava viva porque
estava tão coberta de baratas, de todas as cores, tamanhos e formatos que se
mexia como numa onda independente. Imaginem quantas baratas conseguem
se acumular, umas passando por cima das outras, numa extensão de,
digamos, 4 x 10 m. Imaginaram? Pois tinha o triplo!

A impressão que dava é que elas viviam escondidas ali durante o


expediente mas, quando as portas fechavam, iam tomar um fartão de tudo
quanto é comida boa que havia no supermercado. Pra ser sincera, elas
realmente pareciam bem tratadas, mais lustrosas do que o normal. Talvez
fizessem uso de algum amaciante, condicionador para cabelo ou lustra-móveis.
Era de graça mesmo...

Não permanecemos tempo suficiente para indagar a respeito. Saímos


batidas e, ao descarregar as compras no elevador, descobrimos uma baratinha
noiva — vocês conhecem? aquelas branquinhas — que, embora pequena, nos
lembrou do paredão de filme de terror e foi debelada a vassouradas e gritos
histéricos tão logo chegamos ao nosso andar. Vai ver que foi por isso. Mas eu
nunca mais coloquei os pés naquele super.

Medo de barata por quê? Barata não morde... Toda mulher, no meio de
um chilique nervoso, já ouviu isso, pelo menos uma vez na vida. No entanto...
Dia desses, remexendo numas receitas médicas guardadas, encontrei uma da
Sociedade Portuguesa de Beneficência de Niterói, na qual fui atendida de
emergência em 12 de abril do ano passado. O medicamento prescrito foi contra
intoxicação. Depois de passar mais de cinco horas respirando uma boa dose
de naftalina numa sala sem ventilação, eu estava a ponto de cair de barriga pra
cima, espernear as meras duas pernas que nós, os humanos, temos, e
sucumbir tal qual uma barata envenenada.

127
Já tenho problemas suficientes na vida pra não querer receber um
processo por difamação. Então, preciso privá-los de citar nominalmente em que
instituição de Ensino Superior eu fui tão cruelmente dedetizada. Se eu não
estava mais agradando, bastava me demitir! — o que, aliás, a mesma intituição
acabou fazendo no fim do mesmo semestre, a pretexto de corte de pessoal...
Mas os amigos próximos sabem de quem estou falando.

Lamento dizer que, ao longo da vida, venho colecionando tantas


histórias inacreditáveis, embora reais, sobre as baratas que até estou
pensando em criar sobre elas uma página na internet ou um blog, bastante
interativo. Com convocações do tipo: “Conte aqui o caso mais nojento
envolvendo baratas que já aconteceu com você!”, garanto que ia ser recordista
de visitação.

Naquela universidade lá, eu já havia passado alguns perrengues num


campus central, o mais antigo, onde volta e meia aparecia alguma barata
agarrada no alto da parede, mas lá eu saía correndo da sala e o pessoal da
limpeza sempre se encarregava de dar uma mãozinha e liquidar com aquela
aluna ouvinte inadimplente. Chato era quando me mandavam atender
orientandos de monografia numa sala toda pintada de preto, refúgio ideal para
esses insetos urbanos. De onde menos se esperava, parecia que um pedaço
da parede de repente tinha ganhado vida e eu era, de novo, a primeira a sair
gritando e correndo, geralmente seguida pelos alunos um tanto amuados. Perdi
a conta de quantas vezes pedi para trocar de sala.

No entanto, depois de ter pedido para deixar de dar aulas naquele


campus — assustava que andava com balas perdidas, baratas perdidas e
orientandos de monografia perdidos — mal sabia eu que o pior me aguardava
do outro lado da baía. Alunos antigos dizem que estudaram naquele mesmo
prédio anos antes, onde funcionava uma escola, mas pra mim o que tinha ali
devia ser mesmo um cemitério... Parecia que brotava barata do chão! E no piso
dos laboratórios de informática, lacrados e ventilados à base de ar refrigerado,
num subsolo que fedia a barata e onde não havia uma janela sequer, toda
manhã, antes das 7h, me aguardava uma turma de baratas das mais

128
abusadas, do tipo que sobe pelo diário de classe, curiosas, talvez pensando
em fofocar mais tarde sobre a nota dos alunos... Certo é que devo muito aos
rapazes da informática, que me socorriam porque ali havia poucos funcionários
de limpeza, e mesmo alguns alunos, valorosos trucidadores de insetos. Valeu,
galera!

Uma última história deve ter acontecido em algum momento entre os


anos de 1989 e 1992, único período em que tive meu próprio carro. O mês eu
sei que foi dezembro, e pode ter sido no dia 2 porque essa é a data do
aniversário de minha tia Nurimar (eu sei que o nome é estranho e, dizem, que
minha avó tirou de um filme que viu no cinema?!?!?!?). Estávamos indo minha
mãe, que é irmã dela, e minha irmã (que é filha da minha mãe – por que o riso?
Poderia não ser...) para a casa da aniversariante, em Guadalupe, subúrbio do
Rio, na minha Marajó que eu carinhosamente havia apelidado de Jane Foda,
em homenagem à atriz, mas sem o N no sobrenome, porque ela tinha assim o
mesmo charme descontraído da Barbarella.

Eu dirigia pela Avenida Brasil, próximo à Ceasa do Irajá, num trecho


bastante congestionado em que o motorista dirigia e parava o tempo todo.
Percebi uma movimentação no banco de trás e pude ver, pelo retrovisor que
minha irmã Solange (felizmente a predileção por nomes exóticos não vem na
carga genética), ao mesmo tempo que segurava um bolo redondo e pesado
com cobertura de chocolate derretido com ambas as mãos, se esforçava para
passar as pernas sobre o encosto do banco e, assim, se instalar acocorada e
encolhidinha na mala espaçosa que o carro oferecia. Como a operação era
relativamente complicada por causa do uso permanente do freio, só depois que
estava a salvo ela anunciou suas intenções.

“Tem uma barata aqui atrás e eu tô fugindo dela!” Barata. Nenhuma


outra palavra no mundo tem tamanho poder sobre mim. É trauma de infância.
Barata. Nenhum outro conjunto de fonemas me desconecta da realidade e do
bom senso como esse. Tive um ímpeto de saltar do carro em movimento,
deixando minha santa mãezinha, minha única irmã e aquele precioso bolo de
chocolate abandonados à própria sorte em plena Avenida Brasil. Cheguei a

129
meter a mão na aldrava para abrir a porta, mas recolhi a perna e tentei me
controlar. Ao meu lado, minha mãe repetia, sabedora que é desse meu fraco
por insetos: “Filhinha, filhinha, fica calma, mamãe mata. Mamãe mata...”

Só que mamãe não foi tão rápida quanto a barata, porque aquela
resolveu usar as asas, e adivinhem onde decidiu pousar? Bem no meio do
meu peito, de onde veio subindo, lépida, firmemente decidida que estava a me
dar um beijo na boca! Quem sabe, não se tratasse de uma barata, mas de um
“barato”?!?!?!

Contrariando tudo o que é mais sagrado, fui obrigada a agarrá-la (lo?)


com a mão direita e atirá-la (lo) janela afora, para depois tentar subir o vidro à
manivela — não existia ainda carro com tranca automática nem vidro elétrico, e
mesmo que existisse eu não ia poder pagar por um desses. Como num filme
de terror, aquele besouro degenerado não queria desistir fácil, porque se
agarrou com aquelas perninhas cheias de espinhos no vidro pelo lado de fora e
começou comigo uma disputa para ver quem chegava primeiro. Se era eu com
o vidro até o topo da janela ou ele, para alcançar a abertura e vir pousar em
mim de novo! Tudo isso assistido às gargalhadas por dois marmanjos que
estavam no carro do lado esquerdo do meu e devem ter sacaneado a classe
feminina sem a menor piedade, em vez de vir me ajudar. Felizmente, venci.

Soube de um acidente horroroso no Alto da Boa Vista, que aconteceu


com a amiga de um amigo meu, justamente quando uma barata começou a
voar dentro do carro dela, até que ela deu com a cara numa árvore e sofreu
diversos cortes, inclusive no rosto. Acredito que, no meu caso, o pior que
poderia ter acontecido era o acréscimo de um enfeite extra na cobertura do
bolo, talvez com as perninhas viradas para cima... Mas sei dizer que, até o
presente momento, essa foi a única vez em que eu coloquei, deliberadamente,
minha mão nesse bicho, embora não tenha sido a única em que elas puseram
a mão (barata tem mão?) em mim, brrrrr.

130
De cara nova

Para alguém que ainda não completou meio século de vida, até que eu já sofri
por muitas cirurgias. Até agora, seis, e espero ficar por aqui. Nisso devo ter
puxado ao meu pai que quando morreu, aos 70 anos, já tinha entrado 13 vezes
por centros cirúrgicos, pelas nossas contas... Talvez a operação que para mim
tenha sido a mais marcante foi a que passei dos 17 para os 18 anos, no osso
maxilar inferior. Eu cresci com uma má formação que é herança de família, do
lado paterno, claro, e lançava meu queixo para a frente e também um pouco
para o lado esquerdo. Se eu tivesse usado aparelho mais cedo talvez a coisa
tivesse se resolvido mais fácil. Mas como não tínhamos dinheiro e só pude
começar um tratamento ortodôntico quando já tinha 15 anos completos não
havia muito que se pudesse fazer por mim.

O uso do aparelho quase não surtiu efeito e fui encaminhada para um


cirurgião. Fui operada no mesmo dia da morte de Elis Regina, em janeiro de
1982. A cirurgia, que começou às 18h, levou mais de seis horas, porque ainda
tiveram que retirar dois sisos, enquanto que outros dois já haviam sido
removidos no consultório. A complicação se deveu ao fato de que demoraram
mais tempo do que o previsto. Sendo assim, o efeito da anestesia geral expirou
antes do término do trabalho. De todos os pesadelos que tive, dormindo ou
acordada, esse foi um daqueles com os maiores requintes de crueldade.

Imagine-se então, você, meu caro leitor, sob o efeito de um sonho do


qual não consegue despertar ou, melhor, já está desperto, mas apenas não
consegue comunicar ao mundo esse seu estado de vigília. Não há como mover
sequer um dedo. Todo o seu corpo pesa toneladas e a única faculdade que
ainda parece demonstrar algum funcionamento é a audição. A visão também
poderia estar funcionando, se apenas você conseguisse abrir os olhos, o que
não foi o meu caso. Por isso mesmo, a costura que foi feita dos dois lados do
meu pescoço — uma perfeição, diga-se de passagem! porque nem foi preciso
qualquer outra cirurgia plástica — realizou-se totalmente a sangue frio. Tomei

131
11 pontos do lado direito e mais 13 do esquerdo da cara sem anestesia
nenhuma.

Eu só sabia que ainda estava viva e que não tinha morrido porque ouvia
a equipe trocar elogios mútuos. “Nossa, mas ficou uma beleza mesmo!” Ou:
“Puxa, que trabalho bem feito!” A cada novo ponto, eu sentia um dor aguda
acompanhada de um clique, como se alguém estivesse grampeando a minha
pele com um gigantesco grampeador de papel, e depois sentia a linha
corrrendo quando a dor se tornava ainda mais intensa. Doía, doía, como doía!
Mas nem havia tempo de sentir que aquela dor diminuía, uma vez que já vinha
o próximo clique, a próxima grampeada, a próxima dor lancinante, ai que dor,
que dor... Isso se repetiu por um bom tempo, mais ou menos pela duração dos
24 pontos. Quando eu já não sabia mais o que pensar, consegui levantar um
dedo, ou um pouquinho da mão direita. Por sorte, alguém viu!

“Olha só como ela acordou calminha!” Depois de alguns gentis tapinhas


nas bochechas, que realizaram a façanha de me fazer conseguir abrir os olhos,
ainda ouvi alguém dizer. “Geralmente todo mundo acorda se debatendo!” Não
era para menos. Eu teria me debatido, se tivesse tido força, ou pelo menos
tentado me defender daquele maldito grampeador. Vieram com uma máscara e
depois de umas poucas inspirações do gás voltei a apagar. Anos mais tarde,
conversando com um amigo estrangeiro, ele disse que, num país civilizado, eu
teria direito a uma polpuda indenização pelo erro médico.

Naquele ano, não comi bolo pelo meu aniversário, que é em março, uma
vez que fiquei 66 dias com ferros e elásticos que amarravam uma arcada
dentária a outra, e só me deixavam me alimentar tomando qualquer coisa
líquida. Fiz algumas descobertas interessantes. Como a da vitamina de batata
inglesa. Intragável... Que é quando se adiciona mais leite a um purê de batata,
de maneira a tentar fazê-lo subir por um canudinho. Quando, enfim, os ferros
foram retirados, meus dentes estavam completamente moles, o que não me
impediu de me atracar com um bife, esturricado do jeito que eu gostava,
quando ainda comia carne, muitos anos atrás.

132
Uma máquina incrível

Um dos primeiros empregos que tive naquele intervalo entre o Ensino Médio e
a faculdade foi na representação de dois bancos alemães no Rio de Janeiro.
Havia um escritório bonito e bem localizado na Praça Pio X, em frente à Igreja
da Candelária, onde funcionava o setor administrativo do Deutsch-
Südamerikanische Bank e do Dresdner Bank na cidade. Fui parar lá por
recomendação do marido de minha professora de alemão, que era húngaro e
muito bem relacionado com o então diretor-presidente do escritório.

Havia figuras as mais exóticas naquele endereço. A começar pelo


diretor-presidente, uma pessoa de bom coração, mas que sofria de mal-humor
crônico. Casado com uma brasileira, esse alemão montou para a esposa uma
butique como, descobri mais tarde, parecia ser a saída menos dispendiosa de
alemães-ricos-casados-com-brasileiras a fim de mantê-las ocupadas e longe
do telefone. O segundo na hierarquia da casa era bastante moreno e poderia
passar por brasileiro contanto que não abrisse a boca. Claro que a genética
ajudava, já que ele tinha olhos e cabelos castanhos, mas aquele bronzeado era
resultado de constantemente ir se banhar na Bahia de Todos os Santos, já que
qualquer dia livre significava, para ele, uma corridinha até Salvador onde, dizia-
se, ele teria um caso amoroso. O terceiro na hierarquia já não deixava dúvida
quanto sua ascendência teutônica e, embora fosse um sujeito cordial, diferente
do colega quase-soteropolitano e irreversivelmente desbocado, não teve a
mesma sorte em matéria de amor. Pai de duas pestinhas louras, diversas
vezes por dia recebia chamadas da sua consorte que sempre se apresentava
ao telefone como “Oi, aqui é Graça, quero falar com meu marido Fulano”.
Como se a gente não soubesse que eles eram casados, ela costumava nos
lembrar. Pelo pouco que conseguíamos perceber daquele relacionamento e
pelas freqüentes confusões que o marido era convocado a resolver ficava
patente o quanto a mulher era subnutrida em matéria de neurônios.

Outra personagem bastante caricata era a secretária do diretor-


presidente, a primeira polonesa que conheci na vida, e que era o desastre em
forma de gente. Falava um português muito correto, apesar do sotaque, mas

133
era insegura e vivia sendo chamada à atenção. Tanto que o bordão pelo qual
era conhecida tinha a ver com a frase que sempre repetia, depois da mais nova
bronca dada pelo seu chefe: “eu só levo fora!” Havia ainda uma secretária
viúva, mãe de dois adolescentes, em cuja vida tudo parecida dar errado —
viuvez precoce, filhos problemáticos e cachorro com leishmaniose — e a
tesoureira, também alemã, que tinha um marido com metade da sua idade e
que não se cansava de elogiar os atributos sexuais e o desempenho do pai de
suas duas filhas. Para completar a equipe, havia um rapaz descendente direto
da nobreza germânica que vivia às voltas com sua namorada interesseira e
uma recepcionista que, embora jovem, estava há 13 anos no escritório, o que
parecia já haver sugado de sua alma toda esperança de melhorar de vida, e
cujo traço distintivo era conservar o feitio de garota do interior a qualquer custo,
como se isso fosse um mérito.

Faltou falar de um rapaz belíssimo que, indiretamente, foi o que me


levou a sair da empresa — basta ler até o final do capítulo para saber por quê
— e que era totalmente apaixonado pela beleza da Luíza Brunet, na época
uma quase adolescente, já que isso foi no ano de 1984. Eu, que sou um ano
mais jovem que ela, também estava aí na flor da idade e se tivesse tido um
pouco mais de paciência, atributo com o qual Nosso Senhor decididamente
nunca me premiou, e permanecido na empresa algum tempo além dos quatro
meses que fiquei, provavelmente num futuro próximo iria fazer parte do seleto
clube das felizes proprietárias de butique. Mas eu tinha outros planos e saí dali
assim que soube que tinha sido aprovada para o curso de jornalismo na UFRJ,
em 1985, embora no segundo semestre...

De todas as idiossincrasias, fofocas, firulas e tudo o mais que se


encontrava sobre aquele chão verde e acarpetado, talvez o que mais me alegre
a lembrança tenham sido duas máquinas de telex. Sim, sou do tempo do telex,
quando ele representava o máximo de tecnologia à distância, e uma de minhas
funções como secretária júnior na empresa era justamente enviar telex. O
combinado era a gente usar a que estivesse disponível e todo mundo preferia o
modelo mais novo, um aparelho branquinho e pequeno, bem parecido com as
recém-chegadas máquinas de escrever elétricas. Para quem nunca viu um

134
telex e não sabe como ele funciona, explico que era um aparelho que enviava,
por linha telefônica, uma mensagem contida numa fita de papel perfurada. Eu
tinha algumas guardadas, mas já não tenho mais. O esquema era simples.
Primeiro a gente digitava o texto a ser enviado num teclado que ia produzindo
duas versões: a primeira datilografada numa bobina com várias cópias com
carbono entre si e a segunda que era a perfuração da fita, que podia ter vários
metros, dependendo do tamanho da mensagem.

Era comum acontecerem acidentes de percurso. Como, por exemplo, a


gente digitar a mensagem inteira para só depois perceber que a perfuradora
estava desligada e ter que começar tudo de novo. Nesses casos, sempre
aparecia alguma colega, quando você já estava no final do texto, com a mesma
velha piadinha: “treinando datilografia?” Ou deixar a perfuradora ligada quando
estava apenas enviando uma mensagem, o que só fazia gastar a fita numa
segunda cópia de que você não precisava e, aí, ficava mais fácil: era só meter
o dedo no botão e desligar o mecanismo gerador de perfuração. Como na
verdade enviar um telex para, digamos, São Paulo ou pior, para a matriz na
Alemanha, equivalia a fazer chamadas telefônicas interurbanas e internacionais
caríssimas na época, o desastre absoluto era quando a gente não colocava a
fita perfurada direitinho na leitora e ela simplesmente embolava durante a
transmissão!

Nossa vida seria bela se existisse apenas a máquina moderna e


branquinha da Siemens. O problema era a avó dela! Pensando bem, o outro
modelo tinha idade para ser sua bisavó. Na sala de telex, tínhamos que usar,
caso a outra estivesse ocupada, às vezes recebendo mensagem de fora,
porque cada uma tinha seu número de discagem e uma linha telefônica
diferente, um brutamontes com nada menos de 100 anos de idade! Isso
mesmo. A máquina de telex mais velha, também da Siemens, já tinha 100 anos
de uso. Era como tocar o órgão na Catedral de Notre Dame. Existia todo um
processo complexo para o uso dos tremas, comuns em Alemão, mas o que
acabava conosco era mesmo uma única tecla, que fazia a mudança de parte
do teclado que ora servia para o alfabético, ora para o numérico. Cada tecla de
metal pesado pesava uma tonelada e custava um certo esforço físico para

135
digitar ali. A peça de museu era marrom e fazia bastante barulho quando
recebia algum telex, tanto para digitar o texto quanto para perfurar a fita. Ali
dentro, diante daquela máquina, a gente sabia que alguma coisa importante
estava acontecendo, a gente sentia no corpo que era um ambiente de trabalho,
coisa que a comedida feição do computador mais ou menos deixou para trás.
Gostaria muito de saber que destino teve essa linda máquina e, mais ainda, de
vê-la e operá-la novamente.

Quanto a mim, encurtamos nossa convivência justamente por causa de


um rostinho bonito. Quando o tal rapaz anunciou que estava às vésperas de
uma transferência para a Colômbia, preferi deixar de vez o escritório, alegando
o início em breve da faculdade, para não ter que vê-lo partir. Eu nunca fui muito
boa em assuntos do coração.

136
Folha Corrida

Dezembro de 1984 — Pedi demissão do trabalho. Quatro meses de burocracia


bancária alemã me bastam. Eles estão aceitando qualquer um pra trabalhar
aqui. Até eu. Estou livre de novo e o melhor é que eu ainda tenho 20 anos.

Setembro de 1985 — Tranquei a matrícula na UFRJ. Dois meses de


jornalismo chegaram. Não tenho nada a ver com essa turma - eles vêm de
carro novo e tomam coca-cola em vez de assistir à aula. A culpa não é deles,
os professores é que não estão com nada.

Outubro de 1986 — Consegui esta vaga de secretária bilíngüe alemão, o


expediente é longo e o salário é curto, mas ainda acho que devo comemorar.
No escritório tudo está caindo aos pedaços, principalmente o meu chefe
angolano, mas faço o que posso para ele não se agitar e piorar aquele suor
insuportável.

Outubro de 1987 — 1ª semana: Eu já tinha pedido demissão quando


essa maldita catapora apareceu. E eu com viagem marcada para a Alemanha!
Agora temos dois problemas: eu não posso ajudar a ver quem vai ficar no meu
lugar e nem sei se vão me deixar entrar no país. Emprego lá só se for numa
fábrica de máscaras de carnaval.

Março de 1988 — Nem acredito que estou estudando jornalismo de


novo. Bom que o curso na UERJ é noturno, todo mundo trabalha e até os
professores são de embromar pouco. Se Deus quiser, desta vez eu me formo.

Março de 1989 — Não foi mesmo boa idéia ter vindo aqui para Miami
fazer o curso de comissária de bordo na Pan Am. Os funcionários agem de
forma suspeita, como se o mundo fosse acabar amanhã. E ainda mais essa:
dobraram a duração de um para dois meses. Eu estou voltando. Não quero
perder o semestre na faculdade.

137
Maio de 1989 — Agora eu sossego. Bom emprego de secretária trilíngüe
no escritório da Adidas. Um chefe é divertido e o outro é bonitão. Fico aqui pelo
menos até me formar. A vista do Pão de Açúcar é a melhor parte.

Novembro de 1990 — Estou desempregada de novo. O presidente


bonitão se demitiu e o chefe engraçado mora em São Paulo. Mês passado
levaram o escritório para lá. Não dá pra transferir a faculdade no meio do sexto
período.

Fevereiro de 1991 — Detesto meu trabalho aqui. A empresa é de


controle de qualidade, mas não passa os seus executivos pela verificação. O
chefe menor escreve errado até em português, que dirá em espanhol. A mulher
é bem mais alta do que ele. O grande chefe alemão está deserto de
sentimentos e idéias. Se eu não pedir as contas pulo daqui da Torre do Rio Sul.
Vai ser uma operação difícil, porque as janelas, pra prevenir, não abrem.

Dezembro de 1991 — É a minha formatura e eu devia estar alegre, mas


não estou. Tenho a sensação de que os problemas estão só começando.
Minha monografia sobre quarenta filmes com jornalistas foi um sucesso, mas a
verdade é que eu ainda não entendi direito a profissão.

Maio de 1992 — Escapei por pouco. Acabaram os três meses de


experiência na Coca-Cola e eles já iam me contratando. Por sorte a Rio-92
está aí e me chamaram pra fazer produção pra um canal de tevê da Alemanha.

Novembro de 1992 — Terminaram as 15 semanas de estágio no jornal


O Globo, mas pelo visto não me querem por aqui. Se eu soubesse teria tentado
o Estadão lá em São Paulo, porque também passei na prova, mas a gente não
pode adivinhar.

Janeiro de 1993 — Dia de São Sebastião: Fui operada há menos de


duas semanas e perdi o ovário direito, que tinha um cisto superdesenvolvido.
Perdi também a bolsa pra fazer um mestrado em Oregon. Isso depois de 40

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recusas de universidades do mundo inteiro ao longo de dois anos e meio. Que
derrota!

Maio de 1993 — Eu juro que tentei. Faz três meses que eu estou dando
aula desde Ipanema até a Avenida Brasil — às vezes no mesmo dia —, tudo
pra fugir do escritório. Não tenho nenhuma turma de espanhol, e por mais que
eu ensine inglês e alemão até quase dez da noite o dinheiro não aparece.
Também não tenho carteira assinada.

Junho de 1993 — Não agüentei a saudade de um namorado e vim pra


Alemanha atrás dele, que me dispensou logo de cara. Pra não perder a
viagem, aproveitei pra pedir um estágio naquela televisão que me conhece.
Consegui, mas não foi o suficiente pra me consolar.

Abril de 1994 — Dia 1°: parece brincadeira, mas hoje eu volto pro Brasil
depois de três meses de neve e estágios, não necessariamente nesta ordem.
O carnaval na Alemanha é o que há de mais bizarro na face da Terra. O
jornalismo que se faz aqui também é de pouca aplicação prática no Brasil —
sobram repartições e faltam notícias.

Junho de 1994 — Dia 4: Hoje o Brasil entra em campo — não me


perguntem contra quem, que eu já esqueci! — e eu também. Fui aprovada para
um estágio de quatro semanas na Vênus Platinada, deve ser a minha grande
chance. Tenho a sensação de que, se o Brasil faturar esse tetra, eu também
vou me dar bem, mas nunca se sabe.

Novembro de 1994 — Sou a secretária do escritório da Klöckner no Rio


há dez dias. Um telefonema muda tudo. Quando terminou o estágio na Globo
substituí uma coordenadora no mês de férias dela mas ficou nisso. Agora me
chamaram de volta, o outro coordenador está condenado pela AIDS, e só Deus
sabe o que pode acontecer.

Fevereiro de 1995 — 1ª semana: Mal posso crer na minha sorte!


Contrariando as probabilidades, estou para ser contratada. A rotina tem sua

139
dose de tensão e de frustração, mas eu gosto do que eu faço e sempre pode
surgir uma oportunidade mais de acordo com a minha aspiração intelectual.

Fevereiro de 1995 — 2ª semana: As requisições de exame médico ainda


estão na minha bolsa, só que agora vão pro lixo. Acabo de saber que a cúpula
precisou da minha vaga para encaixar a filha de um famoso e falecido imortal
(imortal?). A editoria Rio não pode dispensar um repórter pra ela entrar no
lugar, que é prejuízo. Não sei o que dizer.

Maio de 1995 — Parece milagre, mas eu fui aprovada pro XV Curso


Bloch de Comunicação. Tenho pela frente seis semanas de palestras com
quem faz as revistas do grupo. Algo me diz que essa é minha última chance.
Deve ser porque eu já mandei currículo pra tudo quanto é lugar e só a Editora
Abril mandou resposta, um lacônico "não, obrigada".

Julho de 1995 — Hoje é quinta-feira dia 6 e a situação é a seguinte: a


Bloch pode ligar até amanhã para me propor sabe lá que tipo de trabalho sabe
lá pra qual revista sabe lá por quanto. O detalhe é que amanhã de manhã fiquei
de dar resposta pra uma companhia seguradora que me oferece um emprego
de... secretária.

Eu não merecia isso. Mantenham líquidos inflamáveis à distância.

O texto anterior foi escrito com a intenção de ser um registro, de mim


para mim mesma, em relação a minha trajetória profissional. Quando uma
mulher não tem vida própria, leia-se vida amorosa e família, o trabalho assume
proporções gigantescas, quer ela queira ou goste disso ou não. Nunca fui
orientada para carreira e, apesar de ver o trabalho como uma bênção, e não
como uma maldição, porque ele tem alguma coisa de terapêutico, eu teria
trocado um relativo sucesso profissional por uma vida familiar, sem dúvida.

O que aconteceu depois daquele 6 de julho de 1995 foi que, sim, a


Editora Bloch me chamou pra trabalhar. Participaram da seleção 500
candidatos. Meu amigo Valter passou em primeiro lugar e eu em segundo. Os

140
mais bem classificados fizeram o curso e foram convidados. No caso, nós dois,
fomos para o carro-chefe da empresa, a revista Manchete. Trabalhei lá por
pouco mais de um ano, no início sem carteira assinada, como vem
acontecendo, lamentavelmente, sempre mais no Brasil, e ao longo desse
período viajei bastante, para fazer reportagens em diversos estados do país, já
que não tínhamos sucursais, e também no exterior. Minha matéria de capa
sobre os brasileiros que foram tentar a vida em Miami foi um sucesso e tenho
certeza de que aquele período foi o auge da minha trajetória como jornalista,
apesar do salário totalmente insignificante.

Mas não foi apenas daquela vez que eu fiz um registro de minhas
memórias como empregada assalariada da livre iniciativa. Há outros, como o
que se segue.

Independentemente do que se vai fazer, só sair de casa e ir trabalhar


fora já muda o mundo da gente. Dá pra acumular a tal da experiência — que
eu, aliás, não sei pra quê que serve e ouso substituir pela mera habilidade — e
também a vivência, que é parente da experiência em primeiro grau, embora
mais taciturna.

Tempos depois, deslizando o dedo pela superfície desbotada da


memória, a gente encontra uns carocinhos ásperos, e se surpreende de como
é que ainda consegue identificar cada um.

Um dos meus é japonês, cerca de 45 anos, e se chama Endo. Endo San


faz parte de uma minoria intelectual no seu país porque ultrapassou o nível
universitário, o que por si só já é um feito, se considerarmos que o sujeito tem
que aprender os ideogramas num grau máximo de complicação. Aliás, esta
linguagem é um desconhecido japonês tanto pra nós quanto para as massas
deles. Endo é um bem sucedido executivo, já teve postos nos cinco
continentes, só faz conta usando um ábaco. Endo é um ser dual.

Hoje ele trouxe na marmita um prato exótico. Executivo de marmita,


aliás, já é exótico. Endo abre seu amarelo sorriso dizendo que adora mokoto.

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Não senhor, não conhecemos comida japonesa. Ah, o prato é daqui mesmo?,
não conheço. A perna do boi. O senhor quer dizer mocotó.

Endo adora também mocotó de mulata. É um devasso. Nos fins de


semana a mulher dele tem que andar bem lá atrás, depois dos três filhos, como
manda a tradição. Endo é um ser dual. Todo dia chega ao escritório fedendo a
porre de uísque. A saliva está grossa, mas ele não perde o bom humor. E isso
ele resolve ali no bebedouro de garrafa mesmo, escarrando na grade onde a
água cai, sem se dar ao trabalho de ir até o banheiro. Afinal, ele é quem
manda.

Meu indicador desliza um pouco mais adiante e esbarra em dois


carocinhos contíguos. Um deles é francês, o outro é alemão. Um deles é
jornalista, o outro foi fotógrafo. Os dois estão meio encostados num escritório
de relações públicas.

Neste escritório há dois banheiros. Um deles é feminino, o outro é


masculino. O feminino se comporta direitinho e sempre embrulha os
absorventes usados. O masculino são os piores pesadelos da faxineira.

Pelo menos duas vezes por semana ela chama todo mundo pra ver.
Mijaram na pia de novo. Ela tem dois suspeitos e ninguém discorda. Até o final
do expediente D. Maria roga as piores pragas baianas contra o membro
pecador. Ela esfrega o assoalho branco e implora pra gente limpar os pés
antes de entrar, mas não esquece o assunto.

Tem coisa pior. Que eu tenha visto, bem umas três vezes no período de
um ano. Gritos, todo mundo corria pro banheiro masculino. Agora passaram da
conta. Agora passaram a toalha de mão na bunda. Alguém limpou a bunda
com a toalha branquinha, lavadinha, que D. Maria trocou ontem. Ela se
descontrola.

142
Ninguém reage quando ela se recusa a lavar a toalha. Precisa dinheiro
pra comprar toalhas novas, com essa já vão três. Só pode ser um doente. Um
pervertido. Um dos dois.

O terceiro carocinho daqui pra lá é mais pontiagudo do que os anteriores


e está mais bem localizado. Numa loja de jóias e souvenires em plena Avenida
Princesa Isabel, o caminho do mar da praia de Copacabana. Há poucos
vendedores e ainda menos vendas. A disputa entre eles é feroz. E a casa
precisa fazer dinheiro.

Uma vendedora novata não tem a mínima chance. O filho do dono da


loja, embora diga que ela parece um patinho no meio das feras, insiste: tem
que aprender a conhecer as pedras. E aponta uma, duas, três. Vai levar algum
tempo.

Quatro da tarde, entra um italiano e quer saber o preço de um


tamborzinho. Legítima pele de gato — não se encontra desses com facilidade
hoje em dia — e com umas contas do tipo lágrima de Nossa Senhora
amarradas na ponta de umas cordinhas. Você sacode o cabo pra um lado e pro
outro, as contas vão batendo no couro do gato e faz o maior esporro. A
vantagem é que qualquer gringo, ainda que tente, não perde o ritmo.

O italiano reclama do preço do brinquedo. No Pão de Açúcar ‘tava mais


barato. A sugestão geral é de que ele volte ao Pão de Açúcar. Ele passa por
um brasileiro na saída, um brasileiro em loja de souvenir, algo suspeito. Tem
que aprender a reconhecer as pedras.

O brasileiro vai direto falar com a vendedora mais antiga, uma uruguaia,
e só quem se aproxima é o patinho. Ele fica à meia distância, o suficiente para
ouvir a conversa e para saber que aquele não é um cliente.

Tem que aprender a identificar as pedras. O sujeito é um policial


faturando por fora, a loja é fachada para distribuir cocaína, e nunca um apelido
de patinho foi tão bem escolhido.

143
A experiência acumulada só ocupa espaço que poderia estar sendo
mais bem ocupado com outras letras de música. Já a vivência não, a vivência
pode render assunto em conversas de salão, quando não umas boas piadas.

Encontro, ainda, um terceiro registro de época numa fase de alto


desespero, do tipo: o quê que eu faço da minha vida? Vamos a ele.

"... Por favor! Em vez de me mandar procurar tratamento, me ajude a


encontrar um lugar na sociedade."

Pronto! Estava escrito. Com esta ela completava a crônica de humor


número 45 e agora já podia pensar procurar uma editora. Conseguira juntar a
quantidade necessária para quase um ano de uma publicação que saísse toda
semana ou para quatro anos numa revista mensal.

Faltava agora a parte mais difícil. "Vou oferecer pra quem? Ninguém me
conhece. Pior ainda, não conheço ninguém nesse meio." Pensou em fazer
primeiro uma pesquisa de mercado.

Não, opinião de mãe não vale. A melhor amiga adorou, leu tudo num dia,
mas melhor amiga também não vale. Um amigo chegado leu, achou alguns
textos inteligentes e outros engraçados. A irmã dele, de 74 anos, leu duas
vezes, mas não disse se gostou.

Mandou encadernar umas cópias e tentou traçar uma estratégia de


marketing. "Eu podia decorar tudo e sair por aí, declamando. Atacando onde
estivesse um microfone. Palcos, tribunas, reunião de condomínio. A entrada ao
vivo num noticiário de tevê. No supermercado, em vez da oferta-relâmpago
abaixando o preço da batata lisa, aparecia eu com uma história engraçada. Ou,
no metrô. Ninguém agüenta mais ouvir que não pode ultrapassar a faixa
amarela."

Mas havia um obstáculo. O que fazer com os palavrões? Sem eles,


alguns textos perderiam parte da graça. Não era em todo lugar que podiam ser

144
publicadas. Talvez em revistas adultas. Isso! Selecionaria as melhores do
mercado. A abordagem poderia ser assim, um apelo em forma de carta, ou
crônica:

Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1995.


Prezado Doutor Editor:
Desculpe o incômodo, eu vir assim importunando, mas só o senhor pode
salvar a minha vida. Eu sei que o tempo é curto pra tomar conta de uma casa
de publicação tão grande, mas é uma emergência. Estou lhe pedindo socorro.
Minha sobrevivência depende do doutor.

Entrei no vício sozinha. Com cinco anos, comecei, de uma hora pra
outra, a ler as manchetes penduradas nas bancas de jornal, quando ia pro
jardim de infância. Bem rápido, passei a escrever e não consegui mais parar.
Hoje leio até placa de carro.

Aos 11 anos a nossa língua só não me satisfazia e eu experimentei o


inglês, que se encontra em qualquer esquina. Aos 16, completamente
dependente, precisava de uma coisa mais pesada e parti para o alemão.
Depois de uma fase curta com o francês e espanhol, aos 22 anos, eu dei um
tempo.

Mas sustentar a dependência nunca foi fácil. Arranjei emprego numa


editora e em escritórios de multinacionais. Nesse caminho sem volta,
aconteceu o inevitável. Acabei me formando em Jornalismo.

A esta altura já precisava vender pra garantir minha dose diária. Fui
estagiária, produtora e repórter na rede internacional. Cheguei a prestar serviço
pra maior máquina de informação do país.

De tanto ler e escrever estou sofrendo alucinações. A mania de


perseguição aumenta a cada tentativa fracassada de ser empregada como
jornalista. E agora só me resta uma chance. Este apelo que estou fazendo pro

145
doutor. O doutor me dando um cantinho de página pra eu plantar umas idéias
como colaboradora.

Eu sei que foi difícil o senhor chegar ao espaço que tem hoje. Eu não
estou falando daquele assunto de reforma não, só quero um pedacinho pra
garantir minha subsistência.

Porque escrever, doutor, é a minha droga e sem ela eu não vivo. Com
ela, atualmente, eu nem sobrevivo. Garantido meu consumo, o risco é aparecer
mais algum dependente, mas aí gero lucro pro senhor. Por favor! Em vez de
me mandar procurar tratamento, me ajude a encontrar um lugar na sociedade.

É claro que nunca mandei essa carta, mas ela exprime perfeitamente
todo o desespero que eu sentia. Na verdade, eu já mudei de profissão três
vezes: comecei com trabalhos administrativos, tipo secretária em escritório,
depois passei para o jornalismo e, por fim, cheguei a professora universitária
(de jornalismo, claro), o que me garante o sustento há seis anos. Por quanto
tempo, não sei. Sempre sem deixar de escrever meus livros em paralelo. Assim
como minha vida amorosa, a profissional também foi cheia de altos e baixos.

Meu primeiro emprego, por exemplo. Eu já tinha feito uma tentativa


numa loja de souvenires aos 16 anos, mas era tão atrapalhada que o resultado
foi meu pai ter que ir, depois de uns poucos dias, resgatar minha carteira de
trabalho, ainda não assinada. Minha primeira experiência real, embora
tampouco bem sucedida, aconteceu numa editora de revistas médicas, três
anos mais tarde, mas que só durou uns poucos meses, porque eu não tinha
amadurecido muito nesse meio tempo. O primeiro emprego para valer só
aconteceu dali a mais três anos, quando fiquei empregada no departamento
naval da empresa alemã AEG Telefunken, como secretária de um senhor
angolano muito bacana. Lá eu já usava meus conhecimentos de inglês e
alemão.

Não fazia nem uma semana que eu estava trabalhando quando


aconteceu um fato corriqueiro do qual me lembro até hoje e que, portanto,

146
marcou minha entrada no mundo dos adultos com o risco, inclusive, de quase
me fazer desistir do emprego.

Como o escritório ficava na Avenida General Justo — aquela em frente


ao Aeroporto Santos Dumont, logo depois da Praça XV, para quem segue em
direção ao Aterro do Flamengo — e eu morava na Praça Gabriel Soares,
pegava o ônibus cujo ponto final ficava em frente de casa, o 409, saltava no
Passeio e caminhava pela Rua Santa Luzia até lá. Neste dia, começando o
expediente, o ônibus cheio, perguntei a um senhor que estava na minha frente
se ele já ia saltar. Aquele era o meu ponto e, se não, eu iria pedir licença. Ele
respondeu, reunindo toda a grosseria e, quem sabe, a frustração acumuladas
há anos, que “não interessava” se ele ia descer ou não, que aquilo era
problema dele. Aquilo me bateu tão mal que a mensagem gravada
indelevelmente foi a seguinte: “Ei, psiu, a vida aqui fora é uma selva. Aquele
mundo protegido da sua casa acabou. A vida é isso que está aí”. Em parte,
minha voz interior estava certa, mas apenas em parte. Porque, felizmente, ao
longo de meu trajeto profissional sempre encontrei colegas e mesmo chefes
que são pessoas maravilhosas e com quem vale a pena conviver. Esse é um
dos lados bons de se trabalhar fora. A gente poder conhecer e se dar a
conhecer e, quem sabe, criar novos vínculos. No mais, as visitas à igreja de
Santa Luzia no caminho de ida e volta, vez por outra, também ajudaram.

Depois que saí da Bloch, passei pouco mais de um ano às voltas com
Berlim e um freelance numa rádio de lá. Na volta, mais freelance num jornal
diário do Rio, depois o contrato em outro — que também não funcionou, porque
o jornal é péssimo — depois recaída de secretária num colégio alemão, depois
convite para ser redatora de internet num canal de tv a cabo, aí o lampejo de
que eu devia tentar fazer um mestrado, o milagre do mestrado, e a cambalhota
que me levou ao meio acadêmico, resumidamente. Descobri que dar aulas,
em especial para os bons alunos, dá um retorno incrível: a gente sente que
investiu o próprio tempo semeando algo de bom e importante. No entanto, a
grande maioria é composta por alunos fracos e desinteressados, e as
universidades privadas estão mais preocupadas em faturar do que oferecer
ensino de qualidade, infra-estrutura mínima, respeitabilidade. É por isso que,

147
vez por outra, aviso aos meus alunos: já mudei de profissão duas vezes e
duvido que vá me aposentar como professora.

148
Uma jornalista investigativa totalmente sem noção

Quando terminei o Ensino Médio, em dezembro de 1982, não pensava em


fazer um curso superior. Pelo contrário: minha idéia era partir logo para o
mercado de trabalho e, para isso, fiz um ou dois cursos técnicos que, esperava,
iriam me qualificar, assim como os idiomas que eu já falava com uma certa
fluência — inglês e alemão, já que para o espanhol só despertei um pouco
mais tarde.

Na minha turma do cursinho preparatório para o Vestibular, as colegas


mais próximas todas queriam se tornar jornalistas e viviam me incentivando.
Mas, aos 18 anos, apesar de já gostar de escrever, eu pensaria em tudo na
vida, menos em ser, por exemplo, repórter. No entanto, a realidade das rotinas
administrativas, em monótonos escritórios de monótonas multinacionais, foram
o empurrãozinho do qual eu necessitava. Prestei vestibular para jornalismo e
fui aprovada para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde comecei o
curso no segundo semestre de 1985, me sentindo uma anciã, aos 21 anos de
idade, em meio a uma turma de adolescentes que, quando muito, tinham 18.

Depois de dois meses, tranquei a matrícula para nunca mais voltar. O


motivo foi um total estranhamento ao meio. Eu não tinha nada a ver com
aquele público, em sua maioria da classe média alta, que ia para o campus
dirigindo algum modelo zero quilômetro como presente dos pais pela
aprovação numa universidade pública e gratuita. A turma nem esperava os
intervalos entre as aulas: saía no meio da fala dos professores mesmo, e a
coisa mais inofensiva que fazia nessas escapadas era tomar uma coca-cola.

Passou o tempo e inauguraram o curso de jornalismo na Universidade


do Estado do Rio de Janeiro. Mais perto da minha casa, na Zona Norte, menos
rica e sofisticada do que a população da UFRJ, na Zona Sul, decidi arriscar. Fiz
o curso ali entre 1988 e 1991, entre um grupo de colegas os mais variados:
suburbanos; gente que vinha e voltada todo dia só para as aulas lá da Região
Serrana, a mais de 100 km de distância; ex-operários de fábrica... Enquanto

149
que as aulas da UFRJ eram à tarde, o que dificultava muito conseguir algum
emprego, as da UERJ eram noturnas, e dificilmente alguém da turma era
exclusivamente estudante naqueles dias. Mais sofridos e mais maduros, os
colegas queriam aprender porque, como eu, viam ali a única ou principal
chance de elevar o status social.

O fato de ninguém precisar pagar nunca foi motivo para que


aceitássemos aulas ruins. Vários de nossos professores, inclusive, trabalhavam
também na PUC, a Pontifícia Universidade Católica, considerada uma das mais
sérias, apesar de atender a um público pagante da alta classe. Pelo contrário:
todo mundo botava a boca no trombone diante de um professor que faltava
reincidentemente sem dar satisfação, por exemplo. Eu fui uma das que ficou
com fama de chata junto aos professores. Talvez eles não conseguissem
perceber a importância que aquela qualificação tinha para a gente. Passamos
unidos por muitas dificuldades e acho que aquela minha turma, se não me
engano, foi a segunda a se formar em jornalismo pela UERJ.

Acredito que, no geral, eu fosse querida pela comunidade acadêmica.


Tive bons amigos entre os professores e também entre os colegas. Mas um
evento muito emblemático acabou por manchar essa minha passagem pela
universidade e acabou criando um afastamento entre mim e aquelas pessoas
que, até então, pensava que conhecia.

A Língua Portuguesa sempre foi importante no curso de Jornalismo da


UERJ. Tivemos sete períodos dedicados a ela, porque o oitavo período era
dedicado exclusivamente à monografia de conclusão, sendo que os três
últimos mudavam de nome e de grau de dificuldade, chamados de Redação
em Jornalismo I, II e III, se me lembro. Nós três últimos semestres tivemos o
mesmo professor, um escritor relativamente famoso, que foi presidente do
Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, que esteve exilado por perseguição
da ditadura militar, de cujo talento eu não duvide, apesar de jamais ter lido
nada que escreveu. Provável que ele estivesse cansado da vida, porque suas
aulas em nada indicavam coerência com a trajetória política e profissional que

150
ostentava no currículo. Ele simplesmente não ensinava nada. Aliás, nem
tentava.

No último semestre em que foi nosso professor, teve um enfarte logo no


início do período. Depois de um afastamento de algumas semanas, no qual
não foi substituído, retornou com a saúde frágil e, de todos os lados, ouvimos
as mesmas recomendações: muito cuidado para não aborrecer o professor, ele
pode ter outro enfarte... Ficamos reféns da situação e não nos restava nada a
não ser ficar sentados em silêncio, olhando para o teto e remoendo a vontade
de ir para casa jantar, depois de um dia exaustivo de trabalho, enquanto ele
dizia absolutamente qualquer coisa que lhe desse na telha, lamentavelmente
nada que pudesse ser de uso para nós.

Eu achava particularmente irritante que a chamada levasse praticamente


a metade da aula. Até que, um dia, comecei a prestar atenção nela, como
quem busca atingir a concentração da meditação por meio da repetição de um
mantra. E foi aí que me veio um momento de verdadeira iluminação...

Naquela época — não sei como está hoje — a UERJ só aceitava


calouros uma vez por ano. Assim, havia as turmas de períodos ímpares no
primeiro semestre — primeiro, terceiro, quinto e sétimo — e as de períodos
pares no segundo — segundo, quarto e sexto. Minha turma estava no sétimo
período, junta desde o início, conhecíamos todos os colegas transferidos
vindos de outras universidades particulares, e portanto deveria haver total
semelhança entre os nomes do diário de classe e as caras em sala de aula.

Mas não havia. E não fosse aquele nome masculino repetido ad eternum
pelo professor catatônico como o primeiro da lista, porque começava pela
combinação AC..., eu jamais teria despertado para a seguinte suspeita, que
viria a se confirmar: pelo menos aquele inscrito na matéria, cujas seis versões
anteriores, de Língua Portuguesa I a Redação Jornalística II eram uma cadeia
instransponível de pré-requisitos, estava na lista de forma irregular, já que
nenhum de nós jamais tinha visto a cara dele!

151
Minha primeira providência foi procurar, no andar térreo, o departamento
responsável pelo registro do histórico dos alunos. Pedi a um funcionário muito
gentil, um negro forte, chamado Milton, que me desse a ficha do suposto
colega cujas iniciais eram AMG. Ele disse que era proibido e que apenas o
próprio aluno poderia levantar o formulário de sua situação naquele dado
semestre. Muito por alto, expliquei o caso e o confrontei com a pergunta: “e
caso se trate de uma fraude?” Na mesma hora ele aceitou meu pedido,
confirmando minha inclinação a julgar que fosse uma pessoa de bem, e
mandou que eu voltasse dali a dois dias. Da segunda vez, me recebeu com um
sorriso quase triunfante, e anunciou: “Ele não só está inscrito naquela disciplina
como em mais cinco, com excelentes notas, e está para se formar com a turma
de vocês...” Ao que eu respondi: “Mas não vai se formar MESMO!!!”

A esta altura eu precisava de reforços. Contei o que sabia a um


professor de minha confiança e orientador de monografia e ele me situou de
que a história parecia grave e que poderia haver todo um esquema ilegal, pelo
pouco que ele conhecia das entranhas do poder naquele estabelecimento de
ensino onde já estava a bem mais tempo do que eu. Mas não se envolveu
diretamente, com medo de que pudesse ser por ali acusado de manipulação
política de bastidor. Recomendou que eu procurasse um outro professor de
uma dada sub-reitoria e mostrasse o formulário contínuo com a vida do aluno e
desse meu depoimento de que não o reconhecia como colega. Foi o que fiz.

Com um espanto indizível o tal professor me fez aceitar mais um período


de espera: “Volte daqui a três dias, vou levantar tudo o que temos de registro
deste aluno”. E quando retornei lá, já se havia desfeito o mistério. “Este
documento que estou lhe dando mostra uma a uma as disciplinas que o aluno
teoricamente teria cursado, seu número de faltas e as contas com que foi
aprovado. Curiosamente, cada uma delas foi alterada com corretor líquido e o
autor da façanha tinha tanta certeza de que não iria ser descoberto que chegou
a colocar seu carimbo E rubrica em cada alteração, uma por uma, até para
endossar o que está escrito. É o Diretor da Faculdade de Comunicação, em
pessoa.”

152
Foi difícil acreditar que isso fosse possível. Corria o mês de abril e no
mês anterior, como presente de aniversário, eu havia recebido de presente do
diretor, com quem tinha a melhor das relações, um livro chamado As
responsabilidades do jornalismo, organizado por Robert Schmul, com a
seguinte dedicatória: “A você, Sandra, com os votos de um feliz aniversário e
de uma boa leitura, forte abraço”. Eu estava bastante abalada quando voltei a
procurar meu orientador e ele quase caiu duro. “Você tem que levar isso
adiante, é muito grave! Reúna os alunos todos e conte o que está
acontecendo. A comunidade precisa se colocar por uma postura ética, mas tem
que partir dos alunos, os maiores interessados e também os maiores
prejudicados, ou então vão dizer que é mentira, manobra política, de uma
dissidência interna querendo tomar o poder.” O diretor fazia parte do corpo
docente de Relações Públicas, que era a outra habilitação possível e a mais
antiga do curso, e havia uma eterna luta interna pelo poder entre RP e
Jornalismo. Se não me engano, aquele foi, inclusive, um ano de eleição para
escolher novos diretor e vice-diretor.

Ainda me lembro de mim, inocente, numa sala que reunia mais de uma
centena de alunos dos quatro períodos em curso, no Jornalismo, contando a
história, de como a chamada me pareceu suspeita, de como peregrinei pelos
departamentos à procura de provas, de como estava ali querendo que os
colegas se colocassem a respeito. Porque eu, individualmente, estava
indignada. Não achava justo trabalhar o dia inteiro em expediente integral,
assistir a todas as aulas e dar duro para escrever uma boa monografia e me
formar como se deve, enquanto que outra pessoa — no caso, um funcionário
da técnica do estúdio de tv que nem lá aparecia — por caminhos escusos, dali
a poucos meses ia ter na mão um diploma igualzinho ao meu, sem fazer força.

A reação da audiência não poderia ter sido mais surpreendente. Naquela


noite, eu, que acreditava iria receber o apoio maciço dos colegas para a causa
de moralizar nosso curso, acabei amadurecendo à força. O que houve foi um
verdadeiro racha. De um lado, alunos evasivos, dizendo que as provas não
eram suficientes e que, pelo seu jeito de me olhar nos olhos, faziam acreditar
que, eles eram, também, beneficiários do mesmo corretor líquido. Outros

153
começaram literalmente uma grita dizendo que era para deixar tudo como
estava. Afinal, ninguém queria arriscar que vazasse a história para algum
veículo de comunicação abelhudo, o que ameaçava comprometer a futura
empregabilidade de em breve formandos naquela “universidade do liquid
paper”, como ficaria conhecida.

Em poucos minutos, me vi sozinha, execrada como se fosse eu a autora


de algum crime, o de bisbilhotagem, talvez. Todo mundo, alunos e professores,
me olhava como quem diz: “Como é que você foi ter a audácia de mexer nesse
vespeiro?” Mesmo os amigos mais próximos de mim se afastaram, para não se
contaminar com a minha culpa. O tal professor orientador escolheu,
estrategicamente, se colocar em cima do muro. Recebi telefonemas que
ameaçavam colocar uma bomba debaixo do meu carro, no estacionamento do
campus. Até minha família ficou de mal comigo, dizendo que se eu tinha algum
talento ele era, isso sim, talento para arrumar confusão. O único que pareceu
entender o meu lado, por mais incrível que possa parecer, foi o responsável
pela fraude.

À total revelia do que pensava ou deixava de pensar o alunado, foi


instaurado um inquérito administrativo e houve uma acareação entre mim e o
diretor, sozinhos, diante de alguma autoridade da reitoria. Ele não só confirmou
que havia alterado os arquivos daquele “aluno” como me deu os parabéns pelo
aparente talento para o jornalismo investigativo. Disse que eu tinha, sim,
aprendido alguma coisa na universidade. Foi exonerado sumariamente, passou
um tempo em São Paulo e, não faz muitos anos, nos reencontramos numa
reunião de professores da maior universidade privada do país, onde até bem
pouco tempo eu fui professora. Não nos falamos mas, no olhar dele, percebi
que ele me reconhecia e que a vida não tem sido muito generosa com ele, o
que sinceramente lamento.

Porque não existem criminosos isolados. Porque ele foi afastado mas
isso não é garantia de que outros esquemas, apoiados nas brechas do
sistema, não tivessem continuado. Anos mais tarde, quando comecei a dar
aulas no ensino universitário, reencontrei alunos da época, agora professores,

154
e eles defendem o diretor como tendo sido vítima de um complô, armado por
sabe-se-lá-quem, sem no entanto explicar quem seria. A inveja teria sido a
motivação. Diante desses relatos, eu me calo. Aprendi uma lição diante
daquela platéia com uma centena de alunos enfurecidos. Não me dou mais ao
trabalho de explicar por que não foi complô nenhum, já que quem levantou a
fraude era alguém de minha inteira confiança, a única, aliás, em que eu posso
confiar plenamente, e por sinal devo, que sou eu mesma. Ouço tudo em
silêncio.

A convite de um professor, que me deu aulas de ética, atual diretor do


curso e que deve ter memória ruim, fui professora substitua um ano na UERJ e,
passados 12 anos do problema ainda havia um pessoal da antiga que me
olhava de cara feia! Realmente, eu cometi um erro. Em vez de me arrolar o
papel de arauto da moralidade, eu deveria ter, isso sim, procurado a redação
de jornal mais próxima e passado adiante as provas, meu depoimento e, quem
sabe, até, ter feito minha primeira matéria. Não seria nada mal para uma
jornalista em início de carreira. De todo mundo que saiu perdendo, acho que a
maior prejudicada posso ter sido eu pela falta de noção do que tinha na mão e
não soube aproveitar em benefício próprio...

155
Amizade com começo, meio e fim

Durante muito tempo me perguntei se uma amizade com começo meio e fim
continua sendo uma amizade. Entendo amizade como uma forma de amor em
que não rola sexo mas, no mais, a entrega, a dedicação, a parceria é a mesma.
Claro que não se pode ser amigo assim de todo mundo. Por isso mesmo, os
amigos verdadeiros são poucos e fiéis ou, então, não passam de conhecidos
que se julgam importantes.

Tive, como todo mundo, uma grande amiga que acreditava ser minha
melhor amiga. Para mais tarde, a duras penas, descobri que minha melhor
amiga preciso ser eu mesma. Escolada de um trote incômodo na minha
passagem pela UFRJ, em 1985, no qual tive que rebolar em cima de uma
mesa e sair à rua para pedir esmola — o que não cheguei a fazer, porque me
rebelei e os veteranos me liberaram — com a cara toda pintada de verde,
decidi que, na UERJ, três anos depois, o melhor seria faltar a toda primeira
semana e escapar do repeteco.

Assim sendo, inaugurei meu semestre numa aula de Língua Portuguesa


em que, quando cheguei à sala, não havia ninguém a exceção de uma garota
meio gordinha, bem branquela e de cabeleira encacheada. Ela respondeu às
minhas perguntas meio de má vontade, em relação ao que já havia sido dado
nos dias perdidos, inclusive um trabalho de grupo e foi logo me avisando que
seria difícil eu conseguir me enturmar, já que todo mundo já tinha organizado o
seu. Realmente, tive certa dificuldade de reunir um grupo de trabalho, o que
ficou sensivelmente mais fácil quando eu simplesmente perguntei em sala de
aula “quem é aí que faltou e não tem grupo como eu?”. Pronto, estava
resolvido, e aquele foi um dos melhores seminários que realizei nos quatro
anos de curso, com base no livro O processo, de Kafka, e não era para menos.
Do meu grupo fazia parte o talentosíssimo Ary Moraes, só que na época ele
assinava Ary Pimenta, e seu talento para o desenho produziu para nós
imagens maravilhosas de diversas cenas do enredo. Combinamos também
algumas firulas, como irmos todos vestidos de preto, da cabeça aos pés, na

156
noite da apresentação, a fim de criar um clima bem de acordo com a
dramaticidade da história.

Em poucas semanas a tal garota, muito comunicativa, já estava me


convidando para dar depoimento na rádio onde estagiava, a propósito do dia
do livro ou do escritor, não lembro bem, porque ela sabia que eu escrevia.
Minha participação foi bem legal, inclusive. Era uma mesa-redonda com
aficionados por literatura. Dali começou uma amizade. Do tipo em que as
famílias são envolvidas, e todo mundo conhece todo mundo, até chegar ao
ponto de que a gente se falasse por telefone diariamente. Acredito que nos
tenhamos apoiado mutuamente em momentos decisivos de nosso crescimento.
Apesar de que eu já tivesse 24 anos, e ela 17, quando entrei na faculdade.

Fui eu quem nasci no Boulevard Vinte e Oito de Setembro, terra do


samba, em Vila Isabel, mas era ela que sabia sambar e muito bem. Aliás, era
crítica de samba. Bastava encostar numa roda qualquer que começava os
vereditos: essa samba bruto. Aquela samba espalhado. Mas o que é que é
sambar espalhado? É sambar assim, de braço aberto e perna arreganhada.
Você entendia na hora o que ela estava dizendo. Minha amiga tinha outros
tantos talentos mais comuns à raça negra, como jogar capoeira. Fui eu sua
madrinha, no batizado de Talandê, nome escolhido pelo mestre Mucugê —
onde andará, será que Seu Oswaldo ainda está vivo? — e que significa uma
prece para Ogum, salve São Jorge! Foi através dela que eu conheci o seu
mestre Biquinho, e o mestre do seu mestre, o Touro, e assisti a rodas tão
bonitas do subúrbio, na Penha Circular, no Brás, como ela costumava se referir
a Brás de Pina, na quadra do Ciep Complexo do Alemão, em Ramos.

De onde ela tinha herdado tanta ginga, taí uma coisa que eu nunca
descobri. Seu sangue zero negativo era totalmente judeu. Neta de refugiados
da Bessarábia durante a Segunda Guerra, era uma das poucas descendentes
de judeu de família pobre que eu conheci. Do que, aliás, eu me queixava
sempre que possível!

157
Nossa afinidade era tão grande que a gente se escrevia, mesmo
estando uma sentada do lado da outra na sala de aula. Batizamos essa
produção de Os alfarrábios. Os alfarrábios eram folhas arrancadas de caderno
e fichário, pedaços de bloco, até um envelope de Matte Leão, usados para
trocar mensagens durante os nossos diálogos simultâneos ao longo das aulas
mais chatas. Hoje os originais estão guardados comigo, mas antes era ela a fiel
guardiã da papelada. À medida que o tempo passou, foram se incorporando
também vários outros escritos: cartões de aniversário, postais, cartões de Natal
(ela é judia!) e cartas trocadas entre a Tijuca e Brás de Pina, apesar de nossos
telefonemas diários.

Nos últimos anos do curso, minha amiga começou a namorar um


diplomata alemão que morava em São Paulo e eu era freqüentemente
convocada, por um e por outro, para apagar incêndios de toda espécie, o que
fazia com prazer porque gostava muito dos dois. Até sob o ponto de vista
cultural a relação era difícil, uma vez que ela vinha de família judia que ainda
não tinha superado a memória do holocausto. Seriam inúmeros os casos de
ajuda mútua que prestamos uma à outra ao longo de quase seis anos de
convivência. Um deles é bastante emblemático e resume o espírito dessa
amizade.

Dezembro de 1991, toca a campainha na minha casa e ainda não eram


sete horas da manhã. Minha mãe, que passava o café, avisa que ela está
subindo. Não poderia estar mais pálida e abatida e diz que precisa falar comigo
sozinha, apesar de alegar pra todo mundo que apareceu para me trazer a fita
verde-amarela que iríamos usar para amarrar folhas de ofício representando os
diplomas na nossa pífia celebração da formatura. Vamos conversar, eu ainda
de estômago vazio, sentadas na escadaria do prédio e ela me conta,
totalmente arrasada, que disse ao então noivo há dois anos, na madrugada
anterior, que estava tudo acabado entre eles. O motivo era ele ter dito que não
sabia se viria, ou não, à nossa formatura, uma vez que, para ele, que nem
diploma de curso superior tinha, aquele nosso título de bacharel em
Comunicação Social com habilitação em Jornalismo não iria valer de nada. Ele
estava convencido de que ela não iria conseguir um emprego na área e, se

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conseguisse, não iria chegar aos pés do dinheiro que ele ganhava como
representante da Alemanha no exterior. Fiquei meio surpresa porque, até
então, eu nunca tinha tido a impressão de que os dois estivessem concorrendo
a alguma coisa mas, enfim, pude entender o ressentimento dela, que dizia: “ele
não sabe como foi difícil chegar aqui, ele não dá o menor valor para o que é
importante para mim”. Não havia base para um relacionamento duradouro.

Primeiro homem, primeiro amor, primeiro coração partido. Penei


segurando a barra dela durante umas boas semanas. Mas o rompimento não
iria ficar só nisso e acabou fazendo estragos bem maiores como o tempo se
encarregou de mostrar. Minha amiga tinha tudo para ter sido uma boa jornalista
se tivesse tido um pouco mais de paciência e persistência, porque levava jeito
para a coisa. Em vez disso, primeiro arrumou emprego como secretária de uma
instituição ortodoxa que tentava se instalar em Copacabana e passou a se
vestir de acordo, toda coberta e nada atraente. Apesar do grande número de
judeus moradores do bairro, o projeto não foi adiante e aproveitando o ensejo
minha amiga foi convidada a ir para uma escola de moças em Jerusalém, e
aceitou.

Ela até chegou a ficar em dúvida se devia ir para a Alemanha trabalhar


como babá, ou au pair, como eles chamam, de um casal franco-alemão que
tinha dois filhos — chegaram a trocar fotos e estava tudo praticamente
acertado quando os séculos de tradição fizeram o sangue falar mais alto. Eu
lembro muito bem daquele dia: era eleição, dia 15 de novembro de 1994 — a
que levou o então ministro Fernando Henrique Cardoso à presidência — e eu
passei a tarde inteira no apartamento em que ela morava com os pais, na
Avenida Antenor Navarro, em cima da loja de móveis da família.

Tinha malas e bolsas e roupas espalhadas para todo lado. A


escrivaninha dela, que nunca vi arrumada, estava mais bagunçada do que
nunca. As roupas proibidas - calças, blusas decotadas, vestidos curtos — já
estavam separadas e fui eu que recebi a incumbência da mãe dela, semanas
depois, de levar para doação. Foi como se eu estivesse despachando as
coisas de uma pessoa que morreu.

159
Naquela noite, véspera da viagem, minha amiga estava usando um
vestido preto, de malha, curto, sem mangas, e me acompanhou até o ponto de
ônibus, que agora ficava na porta da casa dela. Era o Caxião, um
intermunicipal, que ela costumava saudar aos gritos toda vez que o via na rua,
mesmo quando não estava precisando pegá-lo. Acontece que o Caxias-Usina
ou Caxias-Sãenz Peña era a única possibilidade direta de ela se deslocar entre
a minha casa e a dela. Sobre o ônibus, observadora e sensível como era, ela
reunia casos e mais casos interessantes. Ele demorava muito a passar.

Naquela noite, no entanto, o veículo veio bem rápido, a gente se


abraçou e eu só pensava em quanto tempo ia levar para eu ver minha amiga
de novo. Então o ônibus saiu e ouvi ela dizer: “puxa, como ele veio rápido, não
sei se foi sorte ou azar”. Apesar de eu ter tentado dissuadí-la de dar uma
virada tão radical na vida, assim como sua própria família, ela estava decidida
e não havia mais o que fazer. Acho que foi um conjunto de fatores, inclusive o
péssimo clima em casa, já que seus pais brigavam muito, que a levou a bater
em retirada. A essa altura, estávamos formadas há três anos e não
conseguíamos emprego decente.

Nos dois anos que levamos para nos reencontrar, eu ficava sabendo
pouca coisa dos acontecimentos através de seus pais, que sempre me
trataram com a maior consideração. Creio que só recebi uma carta em
resposta às muitas que lhe enviei nesse meio tempo. Até que, em 1996,
estando em Berlim e às vésperas do seu aniversário, que era dia 13 de
outubro, telefonei e perguntei o que ela achava de a gente comemorar juntas.
Eu estava com muita saudade e a passagem de avião da Alemanha para Israel
não era tão cara como se eu fosse sair do Brasil. Ela foi logo me avisando que
não poderia me hospedar na yeshivá onde morava, porque era dedicada
apenas a meninas judias. Eu ficaria num albergue da juventude. Depois de me
encontrar no aeroporto, seguimos juntas até lá e aí começaram a saltar os
olhos todos os detalhes daquele processo de transformação pelo qual ela tinha
passado.

160
Já no telefone, quando eu liguei de Berlim perguntando se poderia visitá-
la para a gente comemorar juntas seu aniversário no dia 13 de outubro, percebi
que havia alguma coisa errada quando ela me respondeu que, aquele ano, o
aniversário ia cair num outro dia. Explicou que entre os judeus a referência de
contagem dos dias se pauta pelo calendário lunar e, por isso, a cada ano a
data podia cair num dia diferente. Pensei comigo: primeira estratégia para o
esvaziamento da identidade. Ao longo daquela convivência — que não chegou
a uma semana, até porque, nos dias do sabá, ela preventivamente me mandou
viajar numa excursão de ônibus até Tel Aviv, Jaffa e redondezas — outros
detalhes curiosos foram se revelando.

Minha amiga não podia mais conversar com os homens. Se me lembro,


a exceção eram o pai e o irmão, ambos no Brasil. Suas roupas deviam ser
saias abaixo do joelho e blusas cobrindo os cotovelos sempre. Uma vez que,
estes últimos, eram considerados naquela cultura do judaísmo ortodoxo uma
parte especialmente atraente do corpo feminino. Da mesma maneira o cabelo:
depois de casada, uma mulher só poderia deixar que seu marido visse sua
cabeleira original. Para todas as outras pessoas ela se apresentaria usando um
chapéu, uma espécie de rede mole (em geral feita de crochê ou tricô) e, mais
comum, uma peruca.

Depois que chegamos ao meu quarto no albergue e entreguei seu


presente, decidimos ir almoçar. Minha amiga foi fazer aquela paradinha básica
no banheiro e voltou murmurando. Perguntei se ela estava rezando e ela disse
que sim. Toda vez que ia ao banheiro, devia recitar a reza que agradecia a
Deus — cujos diversos nomes não podem ser escritos por completo nunca —
“pelos orifícios do corpo estarem funcionando a contento”, nas palavras dela.
Havia uma série de outras rezas para as mais diversas situações, o que
confirmei logo em seguida. Depois de passar por uma revista na entrada, que
se repetiu também na saída do shopping, para ver se carregávamos
explosivos, fomos a um restaurante de comida kosher — todos os ingredientes
e pratos precisam ser preparados segundo normas rígidas, inclusive o abate de
animais, e devidamente abençoadas por um rabino — e eu pude confirmar uma
nova situação para reza.

161
Diante de uma sopa de cebola servida dentro de um pão cujo miolo
havia sido retirado, era a hora de fazer a reza da farinha, recitada na iminência
de consumir qualquer produto que utilizasse a farinha de trigo. Outro aspecto
que me chamou muito a atenção foi que, em todas as casas, havia instaladas
duas pias de cozinha. Uma para produtos de carne e outra para produtos de
leite. Panos de prato, louça e talheres também não poderiam ser misturados
para cumprir uma proibição da época de Moisés, segundo a qual é preciso
esperar um dado número de horas quando se ingere comida de um ou outro
grupo. Essa foi uma prescrição que, de certa forma, acabou me beneficiando.
Como só como peixe há mais de 20 anos, pude encontrar em Israel um variado
cardápio vegetariano, com diversos schnitzels de legumes, por exemplo, o
correspondente a um nugget ou empanado do tamanho e com a função de um
bife. Até chocolate em barra sem leite, por sinal bem saboroso, eles
desenvolveram para não gerar qualquer tipo de privação alimentar.

Foi nesse universo novo de significações e lutando contra qualquer juízo


de valor etnocêntrico preconceituoso — eu me surpreendia e pensava: não é
melhor nem pior do que o que eu conheço, deve ser apenas diferente, e deve
existir uma explicação razoável para isso tudo — que recebemos juntas uma
notícia terrível. Uma noite, quando liguei para minha mãe, a fim de colocar as
duas antigas amigas na mesma linha, ela nos contou da morte de Renato
Russo, o mais talentoso cantor e compositor da minha geração, por causa da
aids. Lembramos de como fomos assistir a um show do Legião Urbana, no
Jóquei Clube do Rio de Janeiro, anos antes, na companhia do noivo dela, e de
como só pudemos ver a banda de Renato pelo telão, tamanho o mar de gente.
Ainda assim adoramos, mas ele não, porque era alemão e, apesar do
português fluente, não percebia o significado que aquelas letras e aquele
movimento musical tinha para nós.

Minha amiga continuava uma pessoa alegre, cheia de vida e que, para
meu espanto, falava os mesmos palavrões de antigamente e com a mesma
naturalidade. Perguntei o que estudavam aquelas moças ali, qual seu futuro, e
ela me revelou que o intuito era dar continuidade às tradições. O Ocidente não

162
costuma saber muito sobre isso, mas na verdade nem todos os judeus são
ortodoxos. Os pais de minha amiga no Brasil, por exemplo, não eram. Já
aqueles que andam de preto e usam chapéu, barba e os cachinhos lá em Nova
York são. Dentro do território israelense a gente vê ambas as variantes, e como
os ortodoxos são minoria numérica existe uma orientação voltada para
preservar sua comunidade não só naquele país, mas em vários outros. Em
resumo, minha amiga estava sendo preparada para se casar e gerar filhos,
apenas. Apesar de falar, ler e escrever fluentemente português, inglês, francês,
espanhol, alemão e, em apenas dois anos, também o hebraico, cujo alfabeto é
totalmente diferente do nosso.

Para se manter, já que as doações dos judeus de todo o planeta nem


sempre dão conta de suportar os gastos de comunidades como aquela onde
estava inserida, minha amiga costumava “fazer esponja”. Era a maneira
corrente de dizer que ela trabalhava como faxineira na casa de famílias
ortodoxas, em geral com muitos filhos, porque eles não devem ser evitados, e
cujas mães não conseguem administrar a casa sozinha. Há bairros onde vivem
exclusivamente os ortodoxos e, para entrar lá, precisei me vestir como essas
mulheres, cobrindo braços e pernas.

Os dias passaram voando e nossas últimas duas horas foram todas


gravadas por mim num cassete de áudio. Desde o café da manhã, até o trajeto
de ônibus até o aeroporto. Ali se encontram afeto, risos, despedidas. Traços
esmaecidos de uma amizade que tinha sido bem mais importante e que, ali, já
demonstrava estar condenada a desaparecer dados dois mundos
inconciliáveis. Eu não era bem vista, no sentido puro da expressão, pelos
adultos da yeshivá, por ser considerada uma influência negativa, que trazia de
volta o passado de minha amiga. Acho que eles tinham medo de que ela
tivesse algum tipo de recaída e resolvesse desistir daquele projeto. Na casa
das moças havia muitas adolescentes e minha amiga levava, em relação a
elas, uma enorme desvantagem: não era mais virgem, o que dificultava
bastante a possibilidade de se conseguir fazer um shrider.

163
Segundo o que ela me explicou, entre os ortodoxos ainda vale a tradição
do casamento arranjado, uma forma de anacronismo que foi comum há alguns
séculos, inclusive no Brasil. Assim, alguém da comunidade considera que
fulano e beltrana podem combinar e faz os primeiros contatos. Da primeira vez,
eles conversam diante de um grupo de pessoas, mas não demonstram
abertamente o que sentiram. Isso é passado mais tarde através de
intermediário, quando vão rejeitar claramente o contato ou encorajá-lo. Um
segundo encontro é agendado, por interesse das duas partes, e eles se
encontram, se não me engano sozinhos, num local público e ao ar livre, como
num parque. Depois de um número determinado, se não me engano sete, de
aparições, se ninguém tiver nada contra, homem e mulher se casam. Sem
sequer terem trocado um único beijo, terminantemente proibido.

Levei aí mais três anos para estar de novo com minha amiga,
novamente em Israel. Recebi pelo correio o convite de seu casamento e
telefonei para perguntar se, como não judeus, meu ex-marido e eu poderíamos
participar da festa. Ela confirmou, dizendo que seríamos as exceções. Nem seu
único irmão viajou com a cunhada para lá e nós só pudemos comparecer com
muito esforço. Ganhamos de presente as passagens de avião de um amigo
meu, nossas famílias se cotizaram e juntaram um punhado de dólares
suficiente para hospedagem em albergues e comida nos 10 dias que passamos
lá, e o vôo, especialmente o de volta, foi bastante extenuante, porque era direto
e levou mais de um dia inteiro, entre atrasos e conexões.

Como os pais da noiva mais atrapalhavam do que ajudavam, quando


perguntei se poderia ajudar em alguma coisa ela me disse: é só manter esses
dois ocupados! Então, incluímos o casal nas nossas excursões pela cidade e
foi bastante divertido. Também fui incumbida de dar um trato no visual da mãe
da noiva. Mal via minha amiga, e fiquei esperando, em vão, pelo dia em que
seria apresentada ao noivo. Jamais trocamos uma palavra sequer. Ninguém
criou uma ocasião para isso. Nem no dia do casamento, porque a cerimônia é
um ritual cumprido à risca e a festa, um banquete para umas duas centenas de
pessoas, é dividida ao meio — de um lado ficam as mulheres, de outro os

164
homens. Pelo menos ele mandou me dizer, pela sua noiva, que tinha me
achado “uma gata” (?)

Eu sentia saudade da minha amiga estando na mesma cidade que ela.


Queria participar desse momento tão importante na sua vida mas era sempre
mantida à distância, porque a agenda pré e pós-casamento estava fechada e
nos almoços e jantares de praxe nós não podíamos ser convidados. Mas eu só
percebi de verdade que havia cometido um engano quando cheguei ao local
onde seria celebrada a cerimônia. Porque havia recebido uma incumbência da
minha mãe: providencia uma foto bem bonita de vocês duas juntas com ela
vestida de noiva que eu quero guardar! Era um pedido simples e bastante
razoável, considerando que, durante anos, ela era uma pessoa da minha
família.

Com minha câmera na mão, cheguei cedo e comecei a tirar várias fotos
dela, que posava toda radiante, mas quando pedia ao meu ex-marido que
fotografasse a gente sempre acontecia alguma coisa: era a hora de ela sair na
foto com pessoas importantes da comunidade, ou de resolver qualquer outro
aspecto de última hora e, mais do que minha desconfiança, era o olhar que os
organizadores da comunidade onde agora ela estava inserida me lançavam o
que não deixava dúvida: o que eu queria não podia ser.

Ao longo de algumas horas, fiquei remoendo a mesma pergunta: quando


será que a gente vai fazer a foto? Depois, cheguei à conclusão de que era
nunca. Meu ex-marido foi o tempo todo escoltado e se sentou à mesa com o
pai da noiva, uma simpatia de pessoa, e não sofreu tanto o baque. Já eu fiquei
sentada com gente que não conhecia e que não queria me conhecer, enquanto
a mãe e a tia da noiva ficavam numa mesa especial, longe da minha. Algumas
vezes a noivame chamou para dançar junto com aquele bando interminável de
mulheres, que era a maneira de aquela cultura demonstrar alegria, mas eu não
sentia nenhuma. Estava contrariada e, num dado momento, consegui dizer isso
a ela. Cheguei numa linha imaginária entre os dois lados do salão, fiz sinal para
meu ex-marido e disse a ele: vamos embora.

165
Quando ela percebeu a movimentação, e meu rosto não escondia nada
do que eu estava sentindo, nem minha frustração, chamou o fotógrafo da festa,
me levou para um canto onde não poderíamos ser vistas e pediu que ele
tirasse uma foto de nós duas. Imagino a cara que eu fiz. Imagino, apenas,
porque nunca vi esta foto. Quando chegamos na calçada, tinha uma das piores
crises de choro da minha vida, e disse ao meu ex-marido: “a gente não está
saindo da festa de casamento dela, a gente está saindo do funeral”. Eu sentia
uma dor horrível, um vazio imenso, uma perda sem limite. Na manhã seguinte,
fomos de ônibus para Tel Aviv e só voltamos à cidade para pegar o vôo de
volta ao Brasil. Nós não iríamos poder estar com os recém-casados por causa
dos seus inadiáveis compromissos. Ainda que com vizinhos, enquanto nós já
estávamos indo embora para o outro lado do mundo.

Mas a gente devia se dar por feliz. Afinal, a agora feita esposa foi se
despedir de nós no aeroporto de Bem Gurion, já com a rede no cabelo e uma
consciência aparentemente tranqüila. Eu não queria conversa. Não queria dizer
nem entender mais nada. Só me sentia traída, enganada, descartada por
conveniência, e roubada do único pedido que havia feito minha mãe e que
também tinha se tornado meu único pedido. Sei ainda hoje a última frase que
eu disse. “Esse seu Deus não é o meu Deus. Eu não sei quem ele é, mas acho
que não é Deus. Porque, para mim, Deus une as pessoas e o seu Deus está
nos separando!” Ela não respondeu nada.

Tive o cuidado de não chorar na frente dela, porque logo depois do meu
rompimento verbal passamos pelo portão de embarque, e só consegui
controlar o choro convulsivo bem depois, trancafiada ao lado do meu ex-marido
na cabine do avião sem refrigeração debaixo do sol por algumas horas, sem
poder desembarcar, enquanto consertavam alguma pane de última hora.
Quando enfim decolamos, o medo de morrer se sobrepôs àquele drama tão
pequeno, e procurei afastar meu pensamento daquele assunto. Só descobri de
verdade que a maior amizade da minha vida tinha acabado no Natal do mesmo
ano, quando eu e meu ex-marido separamos um cartão e, por sorte, não
escrevemos. Porque não tínhamos o endereço dela. E eu nem sabia mais,
aliás, qual era o seu novo nome...

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Depois de uma curta temporada em Jerusalém, a família foi morar em
Nova York, onde o rapaz nasceu, e atualmente a prole consta de duas meninas
e um menino.

167
Ganha, mas não leva

Apesar de todo o prazer que sinto em escrever, já nos dois primeiros anos de
faculdade eu comecei a desconfiar de que não tinha alguns dos requisitos para
fazer uma carreira como jornalista. Minha maior deficiência, na verdade, me
parecia estar no fato de que eu nunca fui muito competitiva. Não sou do tipo
que vive checando para saber o que os outros andam fazendo para, só então,
bolar uma estratégia de ação. Eu penso que ou a gente faz as coisas com um
certo grau de sinceridade espontânea ou está na hora de rever alguns
propósitos.

Por isso mesmo, comecei a considerar a possibilidade de uma carreira


acadêmica, que poderia ser interessante para uma pessoa que sempre gostou
de estudar. Como ainda não existia internet, todos os contatos só eram
possíveis através dos correios e eu devo ter gasto uma pequena fortuna nesse
processo que legou um pouco mais de dois anos. Meu ponto de partida era a
Fundação Mudes, que publicava informação sobre vários cursos, inclusive de
pós-graduação, no Brasil e no mundo. Recebi retorno de cerca de 40
instituições nacionais e estrangeiras, mas sempre em descompasso. Já que eu
estava pleiteando uma vaga num mestrado e ainda alguma forma de me
manter, que tanto poderia ser uma bolsa de estudos quanto a oportunidade de
dar aula para um curso de graduação, por exemplo, os dois tinham que ser
oferecidos simultaneamente, ou a chance não se concretizaria. E era
justamente isso o que não acontecia. Quando eu conseguia a vaga não
conseguia a bolsa, quando conseguia a bolsa não conseguia a vaga.

Até que, finalmente, uma perspectiva parecia animadora. Recebi cartas


da Oregon State University, uma universidade norte-americana bem perto do
Canadá, em que tudo parecia se encaminhar. Por esta época, eu já havia
realizado, com sucesso, tanto a prova de proficiência em inglês do Conselho
Britânico, o IELTS, quando do Instituto Brasil-Estados Unidos, o TOEFL, com
resultados que iam bem além do mínimo pedido pelas instituições de ensino. O
ano era 1992 e eu, mentalmente, achava que aquela poderia ser a
oportunidade que iria fazer de mim mais uma emigrante brasileira, da tal fuga

168
de cérebros para o exterior, que tanto se comenta há anos. Porque, depois de
passar dois anos fazendo um mestrado, o mais provável é que eu ainda
tentasse mais uns quatro de doutorado e seria difícil que pensasse em voltar
para o país.

Eu tinha terminado a faculdade em dezembro de 1991 e naquele


momento, dezembro de 1992, duvidava mais que nunca de minha capacidade
para atuar como repórter. As desconfianças do tempo da faculdade só se
tornaram mais reais depois de um estágio de quatro meses na redação do
jornal O Globo, que fiz ao longo do segundo semestre, depois de passar numa
prova com mais de 500 candidatos para oito vagas. Na época, tive um
relacionamento-relâmpago, como a maioria dos outros em minha vida, com um
colega da editoria de esportes. Dali surgiu um problema ginecológico sem
qualquer gravidade mas, na investigação para o tratamento, um médico
detectou a suspeita de que eu tivesse um cisto ovariano dos grandes. Dois
exames de ultrassom consecutivos e realizados em laboratórios diferentes
atestaram a presença de um tumor, aparentemente benigno, mas
extremamente grande e que, segundo o doutor, corria o risco de romper por
efeito do próprio vôo ou mesmo dado o choque térmico de que eu saísse daqui
no alto verão para desembarcar em Oregon no auge do inverno.

Ficou acertado que eu me submeteria primeiro à operação e depois


retomaria minha ida aos Estados Unidos, já que lá o ano letivo é dividido em
trimestres. Na verdade, eu já deveria ter viajado um trimestre mais cedo e a
viagem só não aconteceu porque o pessoal da universidade demorou a mandar
a carta ao consulado americano no Rio de Janeiro solicitando o visto de
estudante. Imaginei: se por um erro deles o início foi postergado em três
meses, não vai haver problema, por uma necessidade médica minha, de
postergar por mais três. Mas eu estava enganada. Diante do laudo que enviei
por fax, a resposta da universidade foi direta e inequívoca: tente de novo o
processo inteiro no ano que vem.

Levei tempo para me recuperar do baque. Sofri a cirurgia, perdi o ovário


direito, e começou o meu calvário rumo à esterilidade. Eu já tinha vendido meu

169
único bem, um carro usado, para comprar o bilhete aéreo, cuja reserva estava
confirmada — soube da operação numa sexta e ia pagar a passagem na
segunda-feira seguinte. Quanto às pilhas de materiais recebidos das
universidades, reuni tudo e doei para a Fundação Mudes, como forma de
agradecimento. Espero que aquela papelada toda, que me custou tanta grana
de correio, tenha podido ajudar outra pessoa...

170
Doutorado? Ainda não...

Depois da rasteira que foi a perda da vaga no mestrado em Oregon, levei dez
anos para me recuperar e pensar, novamente, em tentar fazer o curso de pós-
graduação. Até hoje quando, no primeiro dia de aula, invariavelmente, em toda
turma, faço minha apresentação e converso com os alunos um por um, gosto
de repetir a interessante conjuntura que me levou às salas de aula.

Corria o ano de 2000 e eu estava relativamente saturada da vida de


jornalista. Um dia, uma voz me soprou que eu deveria acessar a página da
UFRJ e ver o que andava rolando por lá. Quer tenha sido minha voz interior, a
tal da intuição, ou algum agente externo, do tipo anjo da guarda, só tenho a
agradecer. Primeiro porque sou muito feliz como professora universitária. E
também porque, tivesse a voz se atrasado pouca coisa, vamos dizer, uma
semana, talvez eu estivesse frita e muito longe das salas de aula.

Estava em plena semana de inscrição, tanto para a seleção do mestrado


quanto para a de doutorado numa das mais prestigiosas instituições de ensino
e pesquisa em Comunicação do país. Sem pensar muito em como iria
freqüentar qualquer aula, uma vez que meu expediente de trabalho era integral
e exigia, além disso, muitas horas extras, corri ao campus da Praia Vermelha,
ali pertinho do Pão de Açúcar (e também da minha casa!) e me inscrevi para
fazer a prova.

A lista com a bibliografia era bem grande. Alguns títulos e autores eu até
que conhecia do meu tempo de estudante, muitos anos atrás. Mas outros eram
novidade. Não tive dúvida: em rápidas pesquisas de internet, eu procurei ler o
máximo da filosofia de cada um daqueles pensadores e ponto final. Meu tempo
era tão escasso que tive que pedir à minha irmã mais velha que fosse conferir
se meu nome aparecia na lista dos aprovados.

Nem acreditei quando ela falou: eu tinha sido aprovada com média 9,7
(de um máximo de 10 pontos) na linha de pesquisas de imagem. Era a

171
confirmação de que eu precisava. O milagre tinha dedo de anjo da guarda
mesmo, que esteve, inclusive, de prontidão no dia da prova escrita. Uma
entrevista com banca depois eu já fazia parte do corpo discente da Escola de
Comunicação, a famosa ECO. Agora é que vinha a parte mais difícil...

Num horário de almoço em que estávamos sozinhas as duas na sala,


me sentei diante da minha chefe e não disse apenas que havia passado na
prova, mas que também estava na turma do primeiro semestre do ano
seguinte. A minha função ali, depois de ter chegado tão longe, não era pedir
nada mas, sim, negociar. Certamente que a empresa só poderia apreciar que
uma funcionária estivesse buscando mais qualificação. Ela mesma tinha um
MBA em sei-lá-o-quê, ostentado numa plaquinha de metal, com seu nome,
sobre a mesa.

Nada como ser assertiva. Diante da minha firmeza não lhe restou mais
nada a não ser concordar com minha proposta. Mas o acordo seria
imediatamente revogado caso qualquer outro colega de trabalho pleiteasse a
mesma “vantagem”. O trato foi que eu não tiraria nunca mais minha hora de
almoço de segunda à quinta-feira e, em troca, poderia ter as manhãs de sexta-
feira livres para fazer o curso. De tanto comer sanduíche na frente do
computador eu, que sou vegetariana há mais de 20 anos, acabei ficando, pela
primeira vez, bastante anêmica, num processo que levou tempo para eu
recuperar a saúde. Mas valeu à pena investir na qualificação profissional.

Quando já estava no último semestre, o segundo de 2002 — levei um


período além da média para concluir o mestrado, porque só conseguia assistir
às aulas de duas matérias de cada vez — comecei a fazer contato com tudo
quanto era universidade do Rio de Janeiro e dei sorte (de novo!) com a Veiga
de Almeida, onde estou até hoje. Estranhamente, para continuar num
doutorado, não tenho tido a mesma habilidade. Anjo, você não tirou férias não,
tirou?

Tenho anotadinhas todas as instituições, projetos e anos, já que nunca


deixei furar nenhum, até agora, na tentativa de continuar estudando. Por três

172
vezes cheguei às bancas, que são a última fase sempre, e nada de me sair a
contento no bate-papo. Devo estar dizendo alguma coisa errada, só não sei o
quê. Ai, essa minha sinceridade estraçalhante!

Da primeira vez, eu concorria a uma vaga no departamento de literatura


da PUC, a Pontifícia Universidade Católica, e as três senhoras nada amistosas
diante de mim se aborreceram um pouco quando disse que teria que continuar
dando aulas e não teria dedicação exclusiva àquele templo do saber porque,
por um acaso, precisava comer e Deus ainda não tinha me enviado um marido
abastado e proporcionalmente generoso.

A terceira tentativa aconteceu, lamentavelmente, no dia em que meu pai


morreu, 29 de novembro de 2007. Ele já havia entrado em coma desde o fim
da manhã e eu não me sentia em condições para a entrevista mas duvidava
que alguém fosse acreditar em mim e, muito menos, ter a bondade de remarcar
a conversa para outro dia. Juro que se soubesse que não ia levar a nada não
teria deixado de segurar a mão do meu pai à toa. De qualquer maneira, eu
estava me fazendo de forte, porque ainda teria que trabalhar aquela noite e na
manhã seguinte. Período de provas e final de semestre, qualquer falha em que
eu fraquejasse e faltasse iria significar trabalho dobrado logo ali adiante.
Mesmo tendo direito a uma semana de licença, não faltei a nenhum dos meus
compromissos profissionais. Foi assim que meu pai me ensinou com seu
exemplo — ele jamais faltou a um dia de trabalho! Tenho certeza de que,
parecidos como somos, ele iria entender minha decisão e apoiar.

A penúltima vez foi memorável. Tinha dado aula das 7h30 às 9h30 em
uma outra universidade particular e pedi liberação à chefia para sair. Sem
problemas. É bom quando das visitas do MEC (Ministério da Educação e
Cultura) que haja o maior número de doutores na casa. Mas o dia não iria
começar lá muito bem. Já fui assaltada (de novo!) no ônibus no caminho para a
UFRJ. Com aquele foram 10 assaltos, não preciso de mais nenhum, e eles são
um capítulo à parte na minha vida.

173
Sem chorar — tô cada dia mais resistente; na morte do meu pai, levei
mais de uma semana para conseguir derramar minhas lágrimas — me
encaminhei ao corredor onde todo mundo estava esperando e não dei uma
palavra sobre o que tinha acontecido. Lá dentro, uma banca sui generis me
esperava. A professora doutora que havia aceito ser minha orientadora no
projeto e já me conhecia porque me deu aulas no mestrado, a querida Yeda
Tucherman. Uma professora destacada na área de novas tecnologias e que,
aliás, tem boa penetração na imprensa carioca. Um professor-pesquisador da
área de internet que fuma bastante, o que não combina com o que se espera
de um doutor, já que fumar não é nada inteligente.

Minha proposta era fazer uma investigação bastante extensa de tudo


que pudesse ser considerado webarte e foi com base nisso que eu escrevi o
projeto. Minha orientadora havia me enviado um e-mail na véspera, que não
deu tempo de eu ler antes de sair de casa, em que sugeria que eu fizesse um
recorte. Segundo explicava, outros professores achavam que seria um volume
extremo de informação e, por isso, ela me recomendou que eu me retratasse
publicamente diante dos doutores e também argumentasse que havia refletido
um pouco mais e decidido me circunscrever apenas à literatura.

Mas eu não sabia de nada. Diante das perguntas de um doutor fumante


fumando e aborrecido com a minha atrevida petulância eu tentei deixar claro
que confiava no meu taco tendo, inclusive, usado essa mesma expressão. Ora,
bolas! Se eu não tinha tido medo de analisar 40 filmes para fazer uma ninharia
de 120 páginas de monografia de graduação, não ia ser uma web de nada que
iria me fazer correr assustada. Faltou pouco para ele espumar. “Mas quem foi
que aceitou orientar você, afinal de contas?” E a professora orientadora ali, do
lado dele, na mesma mesa.

Fiquei com vergonha no lugar dele. Fiquei constrangida por ele (eu
tenho esse problema: se alguém faz uma coisa muito abominável na minha
frente, eu me sinto assim, assumo a culpa, o remorso, no lugar do outro; ainda
bem que só dura uns segundos...). Só me restava olhar pra ela, pedindo
socorro, porque eu já estava meio velhinha para virar uma dedo-duro, ainda

174
mais num ambiente acadêmico. O mesmo de onde eu tinha saído e para onde
pretendia voltar. No momento, não pretendo mais: sei quando não sou bem-
vinda e creio mesmo haver uma lista negra em ordem não-alfabética
começando pela letra S só para avisar que eu não posso passar nem na porta
da instituição.

Finalmente, a professora se manifestou, mas não para me defender.


Apenas para assumir sua parte na culpa e dizer que eu era muito disciplinada,
que quando ela sugeriu algumas leituras eu tinha feito, nada que pudesse
efetivamente limpar minha barra. Saí dali sabendo que havia dançado, até
porque o doutor não se abalou de ter constrangido uma colega e a outra
autoridade na banca também não se comoveu com a situação. Agora, também,
não quero mais! Eles que fiquem com a academia toda e bom proveito. Prefiro
tentar a sorte com meus livros, virar doutora honoris causa de alguma
universidade internacionalmente reconhecida e ganhar fortunas em direitos
autorais. Vai ser uma lição e tanto!

175
Dona Marta

De todas as comunidades, eufemismo usado no lugar de morro e, pior ainda,


de favela, para designar os guetos onde vivem eminentemente os pretos e os
pobres na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, uma, durante certo
tempo, gozou de seus 15 minutos de fama. Assim como acontece com as
pessoas, desde Robert Park, jornalista especializado em pesquisas
etnográficas que propôs o conceito de personalidade urbana, na Escola de
Chicago, Estados Unidos, lá pela década de 1910, as cidades também
possuem seus traços distintivos. Em meio ao pior surto de dengue da cidade,
no final da primeira década do século XXI, dados oficiais revelavam: há mais
de 600 favelas apenas no Rio de Janeiro.

Mas não foi qualquer iniciativa nativa o fato gerador da notoriedade da


Favela Dona Marta, ou Santa Marta, como também é conhecida. Bastou que
Spike Lee, um dos mais destacados cineastas negros norte-americanos da
atualidade, resolvesse filmar um videoclipe de Michael Jackson, em que o ex-
negro e atual branco popstar garante que “eles não ligam pra gente” (eles
quem? os brancos? os poderosos? os ricos?) justamente naquela comunidade
para que a vista deslumbrante que se alcança lá do alto da favela e a nem tão
deslumbrante vista das vielas ganhasse o mundo, em meio a pipocos acústicos
da percussão. Eram os idos de 1996 e, na época, estatísticas oficiais falavam
de 12 mil habitantes na área, quando se sabe que seriam pelo menos o dobro,
a maioria crianças.

Quando houve as filmagens, mais tarde intercaladas com imagens dos


tambores do Olodum, no Pelourinho, em Salvador, eu trabalhava como repórter
da revista ilustrada Manchete e um colega muito talentoso, Valter, foi o
destacado para cobrir o evento internacional. Não passou nem um mês e eu,
que já recebia, vez por outra, algum convite para fazer produção para o canal 1
da Alemanha, o ARD, fui convocada para mais um trabalho: estava vindo um
diretor de cinema de Berlim que filmaria no Brasil a quarta parte de seu
documentário sobre adolescentes desajustados. Até então, a equipe já havia
passado pela própria capital alemã e por Paris, e depois do Rio seguiria para

176
São Petersburgo, na Rússia. Como eu acumulava muitas folgas não tiradas
porque quando não estava trabalhando no fim de semana para a revista estava
fora da cidade em alguma viagem, pedi uma espécie de despensa ao meu
chefe, para fazer um freelancer básico e, aí sim, ganhar algum dinheiro em
dólares.

Quem veio na frente foi o diretor sozinho, a fim de fazer prospecção, e


estivemos juntos em muitos pontos não exatamente bem-comportados do Rio.
Como ao redor da Central do Brasil, por exemplo. A Central, como é mais
conhecida entre os habitantes, é a principal estação ferroviária, localizada ao
longo da Avenida Presidente Vargas, no Centro, e faz a ligação com a periferia,
transportando essencialmente trabalhadores. Foi fundada ainda no tempo do
império. Desde que eu me entendo por gente, circular nas bandas da Central
não é lá uma pedida muito sensata. A maioria dos passageiros jamais ficaria
dando bobeira por ali e se limita a chegar ou sair. Como acontece em outras
capitais do mundo, se desenvolve nas cercanias dessa estação da ferrovia
uma verdadeira população marginal: biscateiros, punguistas, meninos de rua.

O tal diretor chegou a aventar a possibilidade de incluir no seu filme


alguns garotos que ficavam por ali, cheirando cola de sapateiro. Durante um
bom tempo, fui a intermediária, como intérprete, de um diálogo prolongado
entre uma menina de 18 anos, chamada Elisângela, e ele. A menina dizia que
não sabia o motivo de sempre precisar voltar para a rua. Haveria uma força
maior do que ela e que, com os irmãos, não acontecia. A mãe até que vinha
buscá-la, mas não tinha jeito. A menina, que nem tinha acabado de crescer
direito e poderia ter saído de um ensaio fotográfico sobre a fome no continente
africano, coberta com uns panos sobre a cabeça, toda dentes e olhos, afirmava
ter tido um bebê há menos de dois meses, um menino, e que ele estava com
sua mãe. O que mais me impressionava era sua voz, de uma rouquidão que
parecia vinda de outro mundo, um mundo onde nada mais tivesse vida. Apesar
de tanta tragédia, a menina era bela, delicada na maneira de falar,
essencialmente feminina.

177
Também estivemos num lar de acolhida para garotos sem família, ou
melhor, cuja família havia desistido deles, em uma parte qualquer de
Jacarepaguá. A jovem que cuidava deles, uma evangélica, gordinha e decidida,
era pouco mais velha do que aqueles que buscava ajudar, e conseguia
administrar um lar de forma surpreendente, inclusive no que diz respeito às
finanças. A figura da mulher também esteve muito marcante num baile funk a
que assistimos no alto do Morro do Cantagalo, em pleno cartão postal de
Copacabana, em meio a traficantes dos mais variados calibres que
empunhavam armas dos mais variados calibres também. Eram filhas da classe
média alta da Zona Sul, cujas famílias dificilmente estariam a par de seu súbito
interesse pela macheza dos bandidos do outro lado da linha da pobreza e da
sociedade.

Lá em cima, no Dona Marta, nosso primeiro contato também havia sido


com mulheres. Uma, mãe de família, que precisava pôr os 10 filhos para dormir
praticamente em prateleiras — porque não dava para chamar aquilo de
beliches — num único cômodo de, no máximo, 3 x 3 metros, senão menor. Ou
uma outra geração de avó-mãe-neta, a mais velha com 28 anos, então 14, e
então semanas de vida, que mais pareciam saídas de um filme de Steven
Spielberg, com seu canto triste na hora de esfregar a roupa para lavar num fio
d’água. Mas nosso diretor era machista e, como macho, estava à procura de si
mesmo, de sua própria adolescência, na rebelião do outro, estivesse ele onde
estivesse por esse mundão perdido. Optou por um trio de amigos negros, cuja
história se confundiu com a minha, embora com desfecho o mais triste
possível.

Claro que só ocorreu ao diretor que procurássemos personagens no


Morro do Michael Jackson por causa do clipe. E eu, que como repórter carioca
não era exatamente virgem na ida às cercanias de favelas, embora fosse
sempre com uma equipe, quando não com repórteres de outros veículos, me vi
de repente tendo que ir sozinha àquele mundo que não era o meu. A
representação construída pelos meios de comunicação de massa do que seja
uma favela é a pior possível, uma vez que elas só entram no noticiário como
sinônimo de lugar perigoso e violento. Mas não é bem isso.

178
Tudo que eu sabia era que meu amigo Valter havia tido acesso na favela
por causa de alguém que ele conhecia. O rapaz era evangélico, como ele, e já
havia construído uma certa reputação, inclusive junto à imprensa, pela
militância numa outra favela no subúrbio em que, anos antes, depois de uma
das maiores chacinas da história da cidade, ele havia conseguido instalar uma
chamada Casa da Paz, na tentativa de resgatar tanto a cidadania quanto a
auto-estima da comunidade. Pois então. Eu andava dez metros e, por mais
simples que estivesse vestida, e andando sozinha, sem o gringo chamativo a
tiracolo, chamava a atenção dos moradores — é impressionante como todos se
conhecem, inclusive pelo nome — parava e perguntava pelo tal do líder
comunitário. Só fui saber bem mais tarde que fazia dois anos que ele não
freqüentava mais o local e, no entanto, continuava respeitado, até por suas
vinculações particulares com o então dono do morro, como vim a saber mais
tarde.

Fala daqui, fala de lá, levei tempo para subir os mais de 700 degraus e
chegar ao topo da favela, onde funcionava uma instituição organizada por um
grupo de igrejas protestantes chamado Jovens com uma missão, onde fui
recebida por uma missionária. Ela me apresentou a um vizinho, e este a um
amigo, e esse ao terceiro garoto, e foi assim que se formou o elenco de nossa
produção. Aos poucos a equipe foi se formando — chegaram de Berlim,
também, o cinegrafista, ainda hoje meu amigo, um técnico de som e um
assistente, fora o motorista de fé, que eu sempre reconvocava nessas ocasiões
— e o processo natural da construção desse discurso se desenvolveu. Os
garotos, que toparam participar da produção, em princípio, sem reservas, nem
o pedido de qualquer vantagem ou cachê, nos contavam horas a fio, muitas
vezes diante da câmera, suas vidas, expectativas, realidades tão diferentes da
minha e, mais ainda, daqueles europeus.

Nem tudo do que foi filmado, como acontece nesses casos, pôde ser
aproveitado na versão final, por mera questão de dimensão, ou o filme ficaria
muito longo. Havia imagens dos três amigos jogando totó; da prisão do mais
jovem, quando estava de vigia num paiol de armas; da fala sobre as

179
namoradas e filhos que estavam a caminho, embora ele estivessem ainda
abaixo linha da maioridade; de como os levamos a um baile funk no subúrbio e,
sem saber, os expusemos a um risco, já que aquela era a área de uma facção
criminosa inimiga. Binho, o garoto mais jovem, já tinha envolvimento com o
tráfico, embora não soubéssemos, e acabava ficando sempre mais na
retaguarda, enquanto César e Gilson se expunham aparentemente sem
reservas. De uma forma geral, o convívio com eles era muito prazeroso, já que
eram extremamente engraçados e amistosos. Em pouco tempo, ficamos
amigos e, ao fim da produção, depois de cerca de um mês indo à favela, de
onde só saíamos para dormir, o diretor deu a cada um uma quantia bacana em
dinheiro, que foi imediatamente gasta no shopping center mais próximo no
mesmo dia.

A ida ao baile funk no bairro de Coleginho foi um capítulo à parte. A


começar porque fomos num ônibus pirata, em que um organizador conhecido
como Boca Mole já vendia, no trajeto, os ingressos a preço promocional. Para
entrar no galpão, todo visitante do sexo masculino passava por uma revista
corporal, à procura de armas. No auge do baile, cinco mil almas entravam em
êxtase frenético com toda a fumaça, as luzes piscantes, o batidão
ensurdecedor, e até fogos de artifício, enquanto de um palco em frente
surgiam, vez por outra, ordens a orquestrar o lado A e o lado B. Nesses
encontros essencialmente para jovens, sexo e violência são ingredientes
básicos. Dançam separados A e B, divididos por uma linha imaginária no meio
do salão, até que, de repente, começa uma pancadaria, às vezes apartada
pelos seguranças contratados, às vezes acentuada pelos mesmos seguranças,
não raro com vítimas fatais, conforme tive, lamentavelmente, a oportunidade de
conferir enquanto repórter de cidade. O funk, enquanto desdobramento do
movimento hip hop importado dos Estados Unidos, ganhou feições bem
próprias no território do Rio de Janeiro, e não há como definir uma versão
definitiva do que seja, porque ele está sempre se modificando, e lançando
modas novas, imitadas até na comemoração dos jogadores de futebol durante
uma partida. De qualquer maneira, uma vertente desse universo é o bonde, em
que meninas menores de idade entram num sexo grupal, usando saias curtas e
calcinha nenhuma, e não raro engravidam do bonde, na melhor das hipóteses.

180
Por sorte, não vimos morte, não vimos sexo explícito, naquela noite,
embora eu tenha sido abordada diversas vezes por homens que queriam
oferecer meninas aos gringos e eles esperavam que eu servisse de intérprete
na negociação. Ou, talvez, a versão light do baile tenha se devido à
interferência do dono da Furacão 2000, Rômulo Costa, que antes das
gravações nos apresentou à galera dizendo: “gente, isso aqui é tudo alemão!” e
eu me apressei a corrigir: “alemão não, eles são da Alemanha”. Alemão, na
gíria dos morros, é sinônimo de inimigo, graças aos filmes holliwoodianos sobre
a Segunda Guerra Mundial.

Houve, também, uma execução durante o nosso tempo no Dona Marta.


Na noite em que filmamos o forró, até altas horas, e quando já íamos embora,
fomos alertados por um dos gerentes para aguardar um pouco mais e ainda
não sair. Tínhamos acabado de ouvir uma rajada de metralhadora e os
alemães estavam especialmente preocupados, uma vez que esse é o tipo de
linguagem que todo mundo entende, em qualquer idioma. Repassei para a
equipe aquilo que me disseram: o pessoal do tráfico de drogas estaria testando
um carregamento recém-chegado de armas. Uma hora mais tarde, nos vimos
descendo de carro naquela estrada de terra batida totalmente sem iluminação
que, na noite em questão, nos pareceu mais sinistra do que nunca, apesar da
vista panorâmica para o Pão de Açúcar iluminado. Só no dia seguinte fiquei
sabendo que, na verdade, havia sido eliminado um dos gerentes da parte baixa
do morro, a cerca de 20 metros de onde estávamos, por questões de
insubordinação entre ele e o dono do morro. Dentre outros aspectos, o gerente
morto era contrário à nossa presença na favela.

O filme Galera foi premiado com o primeiro lugar no festival de


documentários de Barcelona em 1997. Já o destino dos três garotos foi bem
diferente...

181
Dona Marta, 10 anos mais tarde

Depois que as filmagens terminaram, e antes que eu fosse viver um tempinho


na Alemanha, meu contato com os amigos que deixei no Morro Dona Marta foi
se intensificando. Minha amizade com Beth, a missionária da Jocum, era muito
bacana: fazíamos atividades com as crianças, eu tentava providenciar alguma
coisa de que estivessem precisando, como agasalhos — e às vezes minha
contribuição era mais de conseguir donativos de meus amigos do que
propriamente pagar por eles — e houve uma festa de Natal muito linda que
conseguimos organizar, cheia de cantoria e gostosuras para comer, chegou até
a sobrar, de tanto sorvete que levamos, e nessa tarde as crianças me fizeram
uma homenagem e eu me senti um ser humano de bem.

Com os heróis do filme, não era diferente. Eles pediam que eu


traduzisse as letras das canções do Michael Jackson, com as quais se
identificavam tanto, a gente saía para lanchar, e acabamos formando uma
espécie de quarteto. Era o Gilson Fumaça, o César e sua irmã Cíntia, mais eu.
Binho nunca nos acompanhava e só estávamos com ele quando acontecia de
nos encontrarmos lá pelo morro mesmo. Num período de cerca de um ano e
meio, em que minha vida se dirigiu mais para Berlim, por motivos amorosos e
profissionais, perdi o contato com os garotos e com Beth. Mas, assim que
voltei, liguei para lá e marquei um encontro com César. Ele me contou, então,
que Gilson estava preso por tentativa de assalto, e que tinha, inclusive, sido
baleado. Meu amigo ficou preso por quase três anos e, nesse meio tempo,
estive de visita tanto nas delegacias quanto na penitenciária em que ele
cumpriu pena, em Niterói. Para mim, Gilson sempre tinha sido o garoto mais
especial: alegre, positivo, carismático, e não fazia sentido que, justo ele,
estivesse, aparentemente, mais envolvido com uma vida de crime. Com o
tempo, minhas suspeitas acabariam se confirmando.

Quando voltei definitivamente da Alemanha e comecei a trabalhar como


repórter freelancer no Rio, para tentar recuperar os contatos perdidos, cheguei
a fazer uma matéria dominical, publicada na primeira página de O Dia, em que
contava a trajetória de Gilson. Também graças a minha atividade como

182
jornalista, tomei conhecimento de uma ong especializada em ajudar famílias de
presos e egressos, que oferecia cursos profissionalizantes e encaminhamento
de emprego para essas pessoas, e foi por essa via que Gilson reencontrou seu
equilíbrio. A questão do subemprego, da falta de carteira assinada, do
preconceito por causa da cor da pele ou do endereço e outras absurdidades
tão comuns no nosso país continuam existindo, mas meu amigo, hoje pai de
três filhos, sabe lidar com tudo isso com maestria e é uma pessoa feliz, sem a
menor correlação com a contravenção. Gilson é o que de mais próximo eu
encontrei de um filho, e ele me chama de mãe, sem que sua mãe verdadeira,
Dona Maria Helena, se aborreça com isso. É alguém a quem eu costumo dizer
“eu te amo” com a maior naturalidade e de quem eu ouço “eu te amo muito”
toda vez que nos falamos.

Depois que Gilson foi solto, a situação se inverteu e, aí, quem passou a
correr risco foi César. Por conta de disputas internas pelo gerenciamento da
venda de drogas no morro, houve uma espécie de racha e César se engajou
como soldado, armado, para defender um dos lados. Quando esse bando
começou a perder, ele teve que sair fugido do morro, e se escondeu em outra
comunidade. Até aí eu não sabia de nada. Simplesmente comecei a receber
ligações dele, muito desesperado, me dizendo que precisava urgentemente
conseguir um emprego e perguntando se eu não sabia de nada que pudesse
indicar. Durante cerca de uma semana, nos falamos todo dia, e embora eu não
estivesse entendendo nada do porquê de tanta agonia, tentei fazer o possível.
Mas o meu possível não foi suficiente. César ainda chegou a me dizer, pelo
telefone, que o filho dele, Leonardo, tinha nascido. Pensei que a urgência do
dinheiro pudesse ter algo a ver com isso. Passaram alguns dias sem ele me
telefonar.

Eu estava tomando banho quando minha irmã me trouxe, no chuveiro, o


telefone sem fio: era Ricardo, marido da Beth, com uma notícia terrível. César
tinha sido morto pelos traficantes da outra falange, depois de ter sido localizado
numa favela no Alto da Boa Vista. E isso não era tudo. Cíntia, que tinha ido
levar roupas para o irmão no esconderijo, também tinha sido assassinada.
Entrei em choque e mal conseguia falar. Os corpos nunca foram recuperados.

183
Dona Conceição, mãe dos dois, e de Sidnei, um outro rapaz muito gentil,
sempre me fazia chegar algum pedido, de remédios e alimentos, e eu buscava
ajudar, porque ela tinha uma cardiopatia grave. De repente, ela ia ter a
responsabilidade de cuidar sozinha da neta, um bebê de menos de um ano,
filha de Cíntia, que havia nascido com hidrocefalia. Não levou muito tempo,
Gilson me contou da morte natural de Dona Conceição, que não tinha nem 50
anos. Não sei qual foi o destino da menina. Parece que Cinthienne ficou com o
avô materno, Seu Salvador, que tinha outra família, o que não era lá muito
recomendável, já que ele vivia de jogatina e adorava uma carreira de pó. Cíntia
era outra menina que gostava muito de mim. Ela morreu aos 16 anos. Queria
que eu batizasse sua filhinha. O bebê nasceu doente porque seu pai era
dependente de drogas.

Depois dessa tragédia com a família dos meus amigos, que eu revejo
com uma dor no coração toda vez que assisto ao Galera, simplesmente não
consegui mais ir lá. Cada canto do caminho me faria lembrar deles e de uma
época que, apesar de tudo, foi tão importante para o meu desenvolvimento
como profissional e como gente. Pressionados pela disputa que sua militância
fazia contra a sedução do tráfico, Beth, Ricardo e a filhinha deles tiveram que
sair de lá. Grande parte dos meninos que aparecem no filme estão mortos ou
presos. É o caso de Binho. Embora não soubéssemos, ele já tinha, sim,
envolvimento com o tráfico anos atrás. Com o tempo, foi subindo na hierarquia,
cometeu crimes terríveis, como invasão de domicílio — inclusive na mesma
avenida em que eu morava, só que do lado rico da calçada — assassinato
seguido de esquartejamento, conforme o relato de Gilson, até que sua sorte
acabou. Houve até um período em que ele me ligou, como César, pedindo
emprego. Mas como é possível, hoje, alguém empregar, numa cidade como o
Rio, um completo analfabeto? A dificuldade é tremendamente maior.
Binho foi preso quando liderava um “bonde” de assaltantes na Avenida
Niemeyer, num dos bairros mais chiques do Rio, em São Conrado, e nesse
fatídico evento os tiros dos bandidos contra o carro, que tentava escapar,
levaram à morte de uma professora mineira, em viagem de turismo com a
família na cidade. Parece que Binho pegou a pena máxima no país, que é de
30 anos. Seu irmão mais velho, de uma família de quatro filhos, Flávio — as

184
outras duas, felizmente, são meninas — também criminoso, foi morto
recentemente com requintes de crueldade na favela mesmo.
Dos três protagonistas, restou apenas Gilson, que freqüenta a minha
casa, para espanto de algumas pessoas que não acreditam em regeneração
nem em suas boas qualidades. Há muitos anos, Gilson desenvolve uma
atividade de "ledor" de historinhas para as crianças da favela, numa
biblioteca comunitária, sem prejuízo para seu trabalho convencional.
Não há empregador capaz de negar a ele as poucas horas livres no meio
do expediente, duas vezes por semana, quando ele conta o que significa
essa atividade, tanto para ele mesmo, quanto para os pequenos. Gilson
também já tomou parte em iniciativas de liderança comunitária, em que o
esporte tenta ocupar a garotada e dar novas perspectivas de futuro, e
tem boa penetração junto a ongs de atendimento social. Já deu palestras
na Pontifícia Universidade Católica, a mais renomada entre as privadas
do Rio de Janeiro, e eu perdi as contas de quantas vezes ele compareceu
às minhas aulas no curso de graduação em Comunicação Social, para falar
de sua experiência de vida, do que é estar do lado de lá da sociedade,
de como ele pode servir de ponte entre esses dois mundos — o dos
excluídos e o dos excludentes. Não tem como não se emocionar quando ele
narra o que é se ver no meio de uma rebelião dentro de um presídio, num
pesadelo total. Todas as vezes que falou às minhas turmas, com alunos de
classe média, Gilson fez tanto sucesso que, no final de sua fala, se formavam
grupos querendo saber mais e mais, e que só faltavam pedir autógrafo!
Nunca deixei de acreditar em Gilson e acho que tenho sido um fator de
influência positiva na vida dele. Desejo acompanhar, às vezes mais de perto,
às vezes mais de longe, seus altos e baixos, e ele sabe que estou sempre aqui
para dar o meu apoio. Mesmo sabendo dos erros, dos crimes, da catástrofe
que foi a história de César e Binho, meu carinho por eles não diminuiu. Afinal,
ouvi dizer que Deus odeia o pecado, mas ama o pecador...

185
Quase um filme de terror

Acredito que eu não tivesse sobrevivido, ou então só em péssimas condições


físicas e mentais, caso tivesse insistido na carreira de repórter. A rua maltrata
bastante. Foram diversas vezes que voltei à redação com um peso enorme
sobre os ombros, porque eu tinha a mania errada de chamar para mim os
problemas que não eram meus. Mas sempre acreditei, e ainda hoje faço isso
em sala de aula, que para ser um bom jornalista e gente precisa, nem que por
um pouquinho, se colocar no lugar dos outros.

Essa é uma das histórias que mais impressiona meus alunos, toda vez
que eu conto. Quando voltei daquela temporada em Berlim, comecei a atuar
como freelancer. Primeiro para um dos jornais populares da cidade. Dali, o
chefe de reportagem me chamou para o jornal onde ele mesmo e metade da
redação iriam trabalhar. Era um concorrente novo em folha, do grupo mais
poderoso de mídia do país, que optara por também criar um jornal popular.
Minha colaboração não deu certo por vários motivos. Tanto que pedi as contas
com apenas quatro meses de casa, para desespero de minha chefe de
reportagem. Mas esta é uma outra história.

O fato é que eu havia sido designada para cobrir um surto de meningite


numa favela chamada Cabuçu. A polêmica com a equipe já começou dali. O
motorista dizia que ficava na Estrada Grajaú-Jacarepaguá. O fotógrafo, que
não gostava de mim porque tinha tomado as dores de um outro — que, por sua
vez, tinha ficado chateado comigo porque eu não compareci a uma sessão de
fotos num domingo, sendo que minha matéria já estava escrita e era só ele
passar e fazer a foto! — insistia que a comunidade ficava em Nova Iguaçu e eu
dei o voto de minerva, para contrariedade do fotógrafo. “Estamos no Centro,
então vamos primeiro onde é mais perto, Grajaú. Se não for lá, a gente segue
para o município vizinho, simples.”

Nunca imaginei que pudesse morar tanta gente ali por trás daquelas
paredes de terra que a gente vê do lado esquerdo quando segue para
Jacarepaguá. Não que do lado direito não tenha barracos: como tem! É que, à

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direita, o morro continua num declive. Então, o que se tem é uma vista
panorâmica dos bairros da Zona Norte da cidade, enquanto a favela fica fora
do campo de visão. A área é uma seqüência de morros e vales. Daí que, por
trás dessa espécie de cortina natural à esquerda, se escondem diversas
comunidades, cada uma com seu nome de batismo, mas de igual miséria.

O caminho até a casa de nossa entrevistada era simples. Saltamos na


estrada, subimos uma escadaria e, ao descer do outro lado, demos de cara
com alguns casebres de madeira feitos, em geral, de tapumes encontrados por
aí. A mulher era negra, não tinha marido, e a prole constava de umas oito
crianças. A menina que tinha morrido tinha cinco anos e havia forte suspeitas
de que a causa tivesse sido meningite. Não havia posto de saúde por ali, nem
qualquer outra instância do poder público, quando o fato se deu, dez anos
atrás. Nosso intuito ao fazer a matéria era tentar conseguir um posto volante de
vacinação que pudesse ir ao local atender à enorme quantidade de crianças,
que sequer ia à escola, e impedir que mais morressem.

Não sei se pelo sofrimento, pela precariedade da vida, pela falta de


alimentação apropriada, a mãe da menina mal conseguia responder ao que eu
perguntava. Penso que ela não via sentido naquilo, e talvez estivesse certa.
Anotei o que pude para escrever um mínimo possível e chegou a vez do
fotógrafo. Ele deveria fazer uma reprodução de alguma foto da vítima. Bastava
fotografar alguma foto da garotinha. Como estava de má vontade, se negou
terminantemente a pedir a foto e aí fui eu quem teve que fazer o trabalho dele.
Pedi à mãe uma fotografia da menina, e ela ficou ressabiada. Expliquei que
matérias sem fotos são mais difíceis de serem selecionadas para publicação.
Disse que, com aquele gesto, ela estaria me ajudando a preservar a vida dos
outros sete filhos, caso a gente conseguisse comover as autoridades e,
finalmente, enviar as vacinas para lá. Ela entendeu o que eu estava dizendo e
me trouxe a foto.

Nesse meio tempo, como de costume, várias pessoas se aproximaram


para contar sobre outros problemas comuns. Os despossuídos no Brasil têm
todo tipo de carência e qualquer oportunidade que aparece de tentar resolver

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alguma delas eles não deixam passar. Ainda mais quando percebem que quem
está ali representando o jornal os trata com dignidade, numa postura humilde
de quem sabe que ninguém é obrigado a dar entrevista pra ninguém, por mais
pobre que seja o entrevistado. Eu sempre procurei ver essas pessoas como
gente, ter respeito por elas, dizer por favor e muito obrigada, humanizar o
tratamento num mundo em que eles são tratados como animais. Isso surtia um
efeito bastante construtivo. Porque eu saía da redação com uma pauta e
voltava com cinco. Foi nesse quadro que ouvi uma das histórias mais
horripilantes que já me chegou aos ouvidos.

Quem me contou foi o vice-presidente da associação de moradores. Ali


na área do entorno da estrada, é muito comum que os moradores tenham
animais como cavalos, porcos, cabras, e de vez em quando eles, inclusive,
chegam ao asfalto, o que pode gerar um acidente. Um dado cavalo morreu,
mas lá no alto, em algum lugar de difícil acesso. Como é um animal grande, dar
a ele um enterro cristão era uma tarefa relativamente dura, porque não ia ser
fácil abrir uma cova suficientemente grande. Como o dono do animal se
desresponsabilizou dele, ficou lá, apodrecendo e juntando moscas. Cheirando
mal, dias e dias. As crianças começaram a apresentar febre e sintomas de
doenças, e as mães acreditavam que podia ter alguma coisa a ver com o
cadáver do cavalo.

Sem nenhuma instância pública que os valesse, começaram a


pressionar o presidente da associação de moradores, que era o mais próximo
que eles tinham de uma autoridade. Acuado, não restou a ele, chamado Jorge,
mais nada a fazer: tinha que dar cabo do cavalo putrefato. Num lampejo,
imaginou ter encontrado a solução ideal: daria àquele nobre pangaré um
funeral viking! Atearia fogo nele. Providenciou alguns litros do combustível mais
barato que pôde encontrar, espalhou por cima, e jogou um fósforo aceso.

O problema é que Jorge, um mero biscateiro, por mais boa vontade que
tivesse, não havia freqüentado a escola e, por isso mesmo, jamais poderia se
lembrar das aulas de química. Segundo a ciência, um corpo em decomposição
costuma produzir gases, os mesmos que, ao sair das covas, numa cidade do

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interior, são confundidos com assombração e chamados de fogo-fátuo. Diante
da chama, o abdome do animal entrou em combustão. O cavalo explodiu.
Agora, imagine-se o que seja estar ao alcance de carnes podres de cavalo
pegando fogo e chovendo em cima de você! Foi o que aconteceu ao Jorge. Ele
teve boa parte do corpo queimada, principalmente as pernas, e no momento
em que me abordou, seu vice tinha apenas um pedido: que conseguisse coleta
regular de lixo para a comunidade. Quanto a Jorge, ele estava de cama há
meses e sobrevivia da solidariedade dos vizinhos.

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A estante do Paulo Coelho

Durante vários anos, trabalhei como produtora freelance do canal 1 de tv da


Alemanha, a ARD. Por meio destes contatos tortuosos, uma vez me fizeram a
seguinte proposta: acompanhar uma equipe que viria fazer um perfil de nosso
mais consagrado escritor na contemporaneidade, o mago em pessoa. Para a
ARD, o perfil de Paulo Coelho era tão importante que eles não designaram um
mero jornalista que desse conta da empreitada: enviaram ninguém menos que
uma cineasta em pessoa, bastante premiada em sua terra, como mais tarde
cheguei a saber.

Por mais ou menos uma semana, seguimos de perto os passos de


Paulo e de sua mulher, Cristina. Para mim, o contato com eles não chegou a
ser assim nenhuma novidade, porque eu já havia entrevistado a ambos. Em
1995 ou 1996, quando fui repórter da extinta Manchete, uma vez o diretor da
revista Roberto Muggiati me encarregou de fazer, a propósito da então sétima
Bienal do Livro no Rio de Janeiro, pequenas dobradinhas de perfis em que
cada editor elegia seu escritor favorito no momento e a gente reproduzia ali o
depoimento de um e de outro. Paulo Rocco escolheu o xará. Já Cristina
Oiticica deu uma simpática entrevista na Casa França-Brasil por ocasião de
uma exposição sua de telas inspiradas em Joana Darc.

Como leitora, eu tivera o primeiro contato com Paulo Coelho em 1988,


quando minha amiga Neli, de quem não sei há anos, me deu de presente O
alquimista. Confesso ter lido o livro sem jamais chegar a uma conclusão de
sobre o quê ele tratava. Para usar uma imagem figurada, foi como comer
algodão doce: não tinha nenhuma consistência e, até hoje, não sou capaz de
dizer sobre o que, afinal, ele falava. Não faço parte da legião planetária de fãs
do autor e desconfio de que sou eu quem deve estar perdendo alguma coisa
muito boa, da qual sequer cheguei a tomar conhecimento.

Fui pessoalmente à editora falar com Paulo Rocco, um sujeito roliço,


amistoso e de cabelos avermelhados. Do tipo que parece bem italiano, em

190
outras palavras. Naquela época, eu já havia lido muitas matérias a respeito do
sucesso de Paulo Coelho, mas nunca ninguém tinha explicado, não que eu
conhecesse, como é que se deu esse contato tão fortuito entre os dois Paulos
e a estrondosa e bem-sucedida parceira que se seguiu. Uma pena que eu
tivesse que falar de tantas pessoas na tal matéria na revista: tive que cortar o
melhor do depoimento, que era justamente o primeiro contato entre o editor e
seu durante anos melhor autor.

Paulo Rocco estava num coquetel de lançamento de alguma outra obra


quando foi abordado por alguém que nunca havia visto antes. “Boa noite, talvez
você me conheça, sou Paulo Coelho, compositor e parceiro das músicas de
Raul Seixas, tudo bem?” O escritor, então, apresentou ao editor um envelope.
“Aqui dentro você tem os fotolitos do meu livro que você vai lançar. Vai fazer
um tremendo sucesso no Natal!” Rocco me disse que ficou profundamente
impressionado com a contundência do discurso de Coelho, principalmente
porque já estava no fim do ano, lá por volta de outubro ou novembro, e um livro
leva tempo de preparação. Quando confrontado com esse obstáculo nada
desprezível, Paulo Coelho teria se limitado a explicar. “Não há nenhum
problema. Esse livro já foi lançado sem sucesso por outra editora, mas eu
recuperei os fotolitos, está tudo pronto e agora é só publicar. Tudo vai dar
certo.” Rocco não entrou em detalhes do porquê teria atendido à oferta de
Coelho. O que se sabe é que ambos ficaram muito bem financeiramente a
partir da publicação deste primeiro e de diversos outros títulos de Coelho,
enquanto ele esteve na casa.

Pelo que sei da coluna de Ancelmo Góis, Paulo e Cristina vivem


atualmente na França. Mas na época do tal perfil, ainda estavam aqui por
perto, na Avenida Atlântica. O casal nos recebeu da primeira vez uma tarde e
foi bastante solícito nos mostrando, inclusive, seu quarto de dormir, que tinha
janelas alemãs com o mais perfeito isolamento acústico e até uma jacuzzi a
poucos passos da cama. Decorado com muita modernidade, o excelente
apartamento tinha uma aura clara, se não me engano as paredes eram
brancas, e chamava a atenção uma simulação de rachadura, que deixava
tijolos aparentes, em algum ponto de uma das salas. Um ou outro detalhe

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remetia à imagem da borboleta, tatuada num desenho simples também nas
costas das mãos de Paulo e Cristina. Mas, dentre todo aquele universo
potencialmente rico em interpretações, o que mais me chamou a atenção foi o
hall de entrada e não é raro que faça referência a ele em algumas aulas na
universidade.

Ao passar pela porta principal do apartamento, o visitante dava de cara


com um espaço amplo em cuja parede do lado direito ficava uma enorme
estante de livros. Anos depois, no caderno Morar Bem, do jornal O Globo,
algum coleguinha fez matéria sobre a praticidade da estante, com foto
panorâmica inclusive, mas deixou passar batido justamente o que mais me
intrigou naquele momento. Nessa estante especificamente havia apenas os
livros publicados pelo dono da casa, separados por título em prateleiras
diferentes, mas agrupados pelas versões nos mais diversos idiomas. Em lugar
de aparadores, o que escorava os livros eram imagens de santos da Igreja
Católica: São José, de quem Paulo é devoto e para o qual há anos realiza uma
memorável festa todo dia 19 de março; Nossa Senhora Aparecida, Santa
Bárbara e mais um arsenal de fazer inveja a qualquer catedral.

Inga Wolfram, a cineasta, havia crescido na Alemanha Oriental e temos


mais ou menos a mesma idade. Isso significa dizer que ela não saberia dizer
de que homem santo se tratava nem se estivesse diante de uma imagem do
próprio Jesus Cristo. Chamei-a num canto e falei, meio aparvalhada, mais por
obra da minha educação católica formal. "Você reparou no que ele usa para
escorar os livros?" E ela: "Aquele artesanato?" De maneira nenhuma, repliquei!
Apresentei minha atéia amiga aos vips da igreja ao alcance da vista e ela,
então, ficou aguardando que eu prosseguisse nas instruções. Continuei: "Das
duas uma: ou ele é absolutamente fervoroso e coloca os santos de guarda
pessoalmente junto das suas obras, para dar uma proteção especial, ou é
justamente o contrário e trata-se de um herege, que rebaixa os santos a uma
função utilitária. O que você acha, vamos perguntar a ele para ver o que diz?"
Ela não precisou pensar muito para responder. "Do jeito que ele se esquiva de
tudo, vai encontrar alguma fórmula interessante de ilusionista para se sair bem
dessa também. Deixe que já sei o que vou fazer. No meu filme, vou mostrar

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apenas as imagens e deixar a mesma pergunta em off. Não vou dar a ele o
direito de defesa e deixar que cada espectador tire suas próprias conclusões..."

Além desse episódio religioso, outro aspecto que nunca ficou muito
claro, para mim, a respeito de Paulo Coelho é a calma com a qual ele trata dos
momentos mais tristes e difíceis de sua vida com a mesma brandura com que
fala dos sucessos e alegrias: parece simplesmente não se comover. Ou ele
atingiu aí algum tipo de nirvana que é só dele e que não quer compartilhar com
a galera nos seus ensinamentos literários, ou então... pode ser que tenha
vendido a alma em troca do sucesso. Só não me perguntem para quem.

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O mistério do INSS

Na minha vida como professora universitária, houve ocasiões em que dei aulas
em três instituições diferentes, com um número de campi maior ainda, sem que
isso possa ser considerado qualquer espécie de feito heróico, já que é o
cotidiano de muita gente honesta para conseguir compor renda. Você vira um
bagaço em forma de gente, as cordas vocais esfiapam um pouco, até que você
descobre que não vai sobreviver se continuar nesse ritmo por muito tempo.

Eu não vi escolha porque precisava me ver livre de um trauma de


infância. Filha de pais que em 46 anos de casados pagaram aluguel, eu
precisava da segurança de ter um teto só meu. Conseguir pagar um
financiamento sozinha e comprar um apartamento num bairro bacaninha
demandava muito capital, por causa dos juros no banco. Peitei o desafio e, no
presente momento, 90% do valor do imóvel já foi pago. Agora já não tenho
mais pressa de quitar e vou gastar todos os quatro anos que ainda tenho pela
frente para saldar essa dívida.

A lei brasileira tem algumas incoerências, como o fato de taxar a renda e


não o lucro. Aliás, a compra da casa própria, ainda que seja seu único imóvel e
para moradia, não pode ser lançada como gasto na declaração anual do
imposto de renda. Cada um dos meus três empregadores descontava na folha
de pagamento a parte do leão devido à Receita Federal a título de imposto de
renda. Já o imposto nacional de seguridade social, ou INSS, só pode ser
descontado numa fonte pagadora, caso o contribuinte já atinja o teto máximo,
que era o meu caso. Por problemas de distração ou o que quer que o valha,
meu segundo empregador descontou em duplicidade o INSS duas vezes em
menos de seis meses, e eu tive que correr atrás da restituição por mais de dois
anos, numa parafernália que inclui cartas com firma reconhecida em cartório e
outras perversidades de igual sadismo.

Outro detalhe que vem me causando espécie como contribuinte atenta


nesses últimos anos é o fato de que, pelo menos aqui no Rio de Janeiro, volta

194
e meia os postos da Receita Federal e do próprio INSS estão mudando de
endereço, como verdadeiros foragidos da justiça! Suspeito... Estive em vários
bairros ao longo da busca pelos meus caraminguás. Da última vez, cheguei a
um lugarzinho suspeito na Avenida Nossa Senhora de Copacabana e me
enviaram a um sobrado no andar de cima. Escadinha esquisita, aquela. Eu
deveria esperar até ser chamada num corredor estreito e deserto. Até que fui
mandada para dentro de uma porta e, na sala, só o que se via era uma meia
dúzia de mesas e cadeiras de um mobiliário igualmente sujo e decrépito e
pilhas incontáveis de pastas com papelada.

Atrás de uma delas estava assentada uma senhora de meia idade com
aparência oriental. Só mesmo com paciência de chinês para encarar aquele
cenário de apavorar até o próprio Kafka. Relutante e receosa, me dirigi a ela
explicando o caso, ao que ela retrucou, com a serenidade de quem sabe que
nada de mal pode lhe acontecer — com raras exceções, o funcionalismo
público já é o pior na vida de qualquer ser humano pensante! Disse que
gostaria de ajudar, mas como encontrar qualquer processo no meio daquele
mundo de surreal fuzuê?

Foi aí que eu, num instinto de sobrevivência, corri os olhos por sobre as
mesas, buscando uma luz qualquer. Um sinal do alto. Uma ajuda, já que o
dinheiro estava curto porque o banco não me deixava sobrar nenhuma
moedinha e eu já considerava a possibilidade de um quarto emprego, alta
madrugada, quando todo mundo sabe que não há aulas e que o serviço é bem
outro... E não é que, no topo de uma pilha, à minha direita, eu vi meu nome
justamente na pasta de cima? Foi um momento glorioso, quase místico, uma
revelação. Aí nossa solícita funcionária já não tinha mais desculpa para não me
atender e — supremo prazer! — me mandar aguardar em casa ou, pior!, voltar
outro dia.

Ela folheou rapidamente as páginas, confirmou que o que eu dizia era


verdade, e me mandou embora, estimando em mais dois meses o prazo para
que eu recebesse o aviso de um crédito na minha conta bancária, com juros e

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correção monetária correspondente aos meses de “confisco”, via correio. Foi
exatamente o que aconteceu. Às vezes, milagres acontecem.

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Mãos ao alto!

Imaginem a seguinte situação: acabou o expediente, uma colega convida você


para dividir um táxi, ela entra primeiro, um cara encosta uma arma nas suas
costas e outro uma faca no seu peito, eles querem o seu cordão de ouro que
tem o seu nome na frente — dependendo do seu nome, ia até ser difícil
revender — e, junto com o fecho, aquela medalhinha do anjo da guarda que
você ganhou no aniversário de 15 anos. Anjo de casa não faz milagre, lá se foi
o cordãozinho, deixando no lugar dele uma outra marca, uma plaquinha, que
você passou a carregar na alma, ou em volta do pescoço, onde se lê: “fácil de
assaltar!”. Detalhe: tem que ter olho clínico para entender esses sinais e, há
quem tenha... (Já reparou como, antes de você ser assaltado, o cara fica
sacando, procurando alguma coisa? É a tal plaquinha! Eles só vão na boa,
depois de conferir a danada da plaquinha.)

Pois, então, depois da primeira experiência, você já nem se assusta


tanto com a segunda abordagem. Você passa a colaborar. “Pois não, sim
senhor, em que posso ser útil? Sim? A bolsa ou a vida, a bolsa, claro, quer o
relógio também? Porsche, é um Porsche, todo seu, espero que goste de
branco, não tem de quê.” Dessa vez, você até estava acompanhada. Foi à luz
do dia, andando na calçada de um tranqüilo bairro de classe média, vamos
dizer, com sua irmã do lado, mas... com todo amor que você tem por ela... por
que ela não foi assaltada também? Hein? Só porque ela é mais alta? Ou por
que ela não usa a plaquinha?

No meu terceiro assalto, foi coisa rápida, mas de uma perseguição ainda
mais flagrante. Ônibus cheio, quase todos os lugares ocupados e, de repente,
senti uma mão agarrando minha roupa por trás, na altura da cintura, e pensei:
“mas quem é o babaca? Que brincadeira mais ridícula!” Até que ouvi, no pé do
ouvido, vindo do assento de trás, uma voz de poucos amigos dizendo, entre
dentes: “fica quieta que isso é um assalto. Passa tudo.” E me lembrei de
estender o relógio e entregar a carteira porque, ouro, já não usava mais...

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Da quarta vez a ação é meio cinematográfica. Vamos dizer que seja
assim. Sábado de manhã, você pára ali naquele sinal de quem vai subir para a
garagem do shopping Rio Sul e, quando vê, tem um molequinho assim de mais
ou menos 1,20m, 1,30m de altura, bem na janela do motorista, com um caco
de vidro verde esmeralda brilhando ao sol e uma mensagem que não deixa
dúvida: “tia, me passa aí o teu dinheiro que senão eu enfio esse caco no teu
olho!” Respondo: “só um instantinho”. Você tenta pegar a bolsa que estava no
banco do lado, para ser mais exata, no colo da sua mãe, mas ela está tão
nervosa que mal consegue lhe passar a bolsa. Além de acalmar o garoto, você
também tem que dar um sossega na sua velha. “Depois, mãe, chora depois,
deixa eu primeiro resolver aqui o problema do meu amigo... aí, pronto.” O
garoto desaparece do mesmo jeito que apareceu: do nada.

Teve mais de um assalto com menina? Teve, teve sim. Esqueci de dizer
que aquele assalto, aquele, da minha irmã que ficou com o relógio dela, só
levaram o meu, então: foram duas meninas. Da outra vez não, da segunda vez
com meninas o bando era maior e eu estava sozinha. Era um domingo de
carnaval e eu estava indo para o plantão na escuta, vemos dizer, de um canal
de tv importante aqui no Rio de Janeiro. Vamos dizer, o mais importante. Saber
como é que estava a cidade, naquele feriadão, todo mundo curtindo praia, se
preparando para ver desfile de escola de samba, sair na ala, coisa e tal,
enquanto eu acompanhava o estado de saúde do Mário Henrique Simonsen
(que Deus o tenha!), e que morreu justo no fim do meu plantão, mas... só fiquei
sabendo porque li na primeira página do jornal no dia seguinte — uma roubada
nunca vem sozinha! “Passa a grana, tia, anda.” E eu: “peraí, gente, será que
não dá pra me devolver só o dinheiro do ônibus? To indo pro trabalho...” “Dá
um real pra ela.” “Obrigada, vão com Deus!”

Tem alguém contando? Com esse já foi o quarto ou quinto? Vamos ver:
medalhinha, relógio Porsche, agarrão na cintura, Rio Sul, carnaval, são cinco.
Vamos em frente. Ah, sim. Eu não estava numa boa fase, inventei de me casar
com um cara que nem conhecia, mas quando chega um certo momento da vida
isso é o que menos faz diferença... conhecer o cara... melhor ele não conhecer
você, nem você a ele, porque não é certo a gente sair por aí fazendo o mal a

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quem nem conhece, não é mesmo? Mais fácil a gente sacanear assim, com
conhecimento de causa, sabendo o que está fazendo... Bom, outro ônibus,
rumo à Copacabana, na Rua Barata Ribeiro um cara se senta do meu lado no
banco e me manda passar a grana. Eu só pensava em esconder a aliança
novinha, achando que o acontecimento podia ter conseqüências mais graves,
do tipo: “se esse cara me leva a aliança, então é um sinal dos céus de que o
casamento também vai para o saco.” Estava frio e eu tirei a “grana do ladrão”
— a esta altura eu já estava escolada e dividia o dinheiro, deixando sempre
uns 20 reais na carteira e o resto nalgum bolsinho escondido — mas o ladrão
era experiente. “Eu quero o dinheiro todo”, frisou, não deixando dúvida de que
a reação seria violenta caso eu bancasse a besta e decidisse não cooperar. Lá
foram mais cinqüentinha... Ah, sim: e para quem ficou curioso, foi isso mesmo:
a tal aliança jamais passou para a mão esquerda e está guardada em algum
canto, escurecendo...

Deixa ver aqui. O sétimo assalto. Não me lembro muito bem da ordem
— foram tantos! Não me lembro mais do sétimo nem do oitavo. O nono foi
naquela passagem subterrânea ali em frente ao Centro Empresarial Rio, na
Praia de Botafogo, e os dois bandidos me levaram a bolsa com tudo dentro:
inclusive a minha chave de casa e o meu cartão de visita com o endereço
completo, logo ali, a dois quarteirões de distância. Como desta vez me levaram
a identidade original e o cartão do banco, fiz o boletim de ocorrência pela
primeira e única vez. E depois tem gente que ainda acredita em estatística. Na
delegacia do bairro de Botafogo, me perguntaram se eu não queria dar uma
voltinha com eles ali pelas redondezas do Edifício Rajah, hoje Solimar, para
tentar reconhecer alguém. Eu não titubeei a me confessar a mais completa
imprestável. “Não, senhor, eu já não olho para a cara deles por isso mesmo,
para não poder fazer o reconhecimento depois.”

A esta altura, eu já tinha passado a andar com a oração de São Dimas


há um tempo na bolsa, e me juraram que era tiro e queda contra assalto, mas
parece que o meu caso é para instâncias superiores. O último assalto
aconteceu dentro de um ônibus, mais uma vez só eu fui assaltada, diante de
uma platéia de homens inertes, que só viraram machos depois que o bandido

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saltou próximo ao morro do Catumbi. “Passa a grana e o celular.” “Moço, aí
dentro só tem livro, pode procurar. Se o senhor achar algum celular aí dentro,
ele é seu!”

Diante deste relato, que de tão fantasioso parece até uma situação
fictícia, fica a pergunta: o que fazer? Sair da cidade? Aprender krav maga?
Contratar o Super-Homem? Mas, espere aí, não devo me lamentar tanto.
Afinal, esses foram todos assaltos light. Nunca me encostaram o dedo
(também, é para isso mesmo que eu coopero), nunca perdi nada de grande
valor (não me ligo em bens materiais e já não tenho carro, celular, mp3 para
não atrair), ou seja: posso me considerar uma assaltada-padrão. De ficha
limpa! Nunca me envolvi com tiroteios, nem fiquei dando escândalo na rua,
chamando atenção. Sofri meu carma em silêncio. Assim é que se faz!
Demonstrando bravura em serviço.

Talvez essa vocação para assaltada tenha um quê de carga genética,


herdade vocês sabem de quem. Meu pai conseguiu ser assaltado num tempo
em que o único tipo de crime publicado nos jornais era o passional. Ele contava
que estava saindo da casa do irmão, na Vila Portuária, na década de 1950
quando foi abordado por um cara que empunhava uma arma branca.
Inexperiente no assunto, pensou que poderia e, aliás, deveria reagir. Num
movimento brusco, tentou agarrar a faca para, então, arrancá-la das mãos do
meliante. Só que calculou mal e segurou na lâmina. Assustado, o assaltante,
que também parecia novato, puxou a arma para trás. O resultado foram alguns
dedos cortados — a lâmina não devia estar afiada, porque não foram
amputados — e a perda de um relógio de pulso barato e alguns trocados.

Interessante como meu pai conseguia fazer do acontecimento mais


banal ou trágico um relato sempre rico e até divertido. Como aquele que falava
de um outro assalto, sofrido quando já era aposentado e estava na fila diante
do banco, esperando a agência abrir. Ele dizia: “quando a gente ficava ali na
porta, desde cedo, em pé, cada velho mais caído do que o outro, coitadinho,
sempre aparecia algum gaiato pra gritar do ônibus que passava: ‘olhaí a fila do
pé-na-cova!’” Naquele dia, eles até que ficaram contentes quando apareceram

200
uns rapazes, antes do horário previsto, mandando todo mundo entrar. Não era
nenhum milagre, nenhuma cortesia, mas os assaltantes, que se trancaram com
os clientes e passaram a agarrar a gerente pelos cabelos e surrar a mulher
com energia, até que ela abrisse o cofre.

“E você, pai, o que é que fez?” E ele: “eu não fazia nada. Só perguntei a
um dos assaltantes se estava autorizado a fumar um cigarrinho, ao que ele
respondeu: pode sim, meu tio, vai fundo!” Um outro assalto que meu pai sofreu
dentro de sua loja, junto com o sócio, quando três bandidos invadiram na hora
em que estavam fechando, não pareceu tão divertido. Mas pior mesmo eram
as investidas dos fiscais do governo, que apareciam regularmente para receber
uma caixinha, especial no Natal, ou escreveriam multas ainda mais altas sobre
erros nos livros-caixa que sequer tinham sido cometidos.

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Jogos e brincadeiras

Meu pai, que era um exímio e imbatível rival do “jogo do sério”, dizia ter
aprendido sua estratégia com o velho vendedor de ping-ling do Morro do Pinto.
Era um negro velho, que passava de vez em quando, meio por diversão, já que
na maioria das vezes a maioria dos garotos não comprava nada e ficava
pedindo um agrado. Aí ele tirava a carga do ombro e, para não decepcionar as
crianças, convidava: “vamos jogar sério?” Quem nunca jogou sério não sabe o
que está perdendo. É simplesmente você ficar encarando seu adversário nos
olhos sem dizer nada, até que o primeiro que rir perca a disputa. O truque de
meu pai era sempre o mesmo, mas sempre funcionava. Ele começava a se
lembrar das caretas que o velho vendedor fazia para as crianças do morro e
repetia para mim, olhando de repente para o teto, fazendo um muxoxo
inesperado ou torcendo a boca de um jeito engraçado, não havia como resistir.
Geralmente, eu ainda agüentava alguns segundos, para logo explodir numa
tremenda gargalhada espalhafatosa. E nem assim ele ria! Mas se divertia
muito, com olhos felizes, por me fazer rir. Brincamos de jogar sério a nossa
vida inteira.

Outra brincadeira nossa era luta. Lá com meus seis, sete anos,
acreditava que poderia vencê-lo e subia na cama dele, geralmente quando
estava ouvindo algum jogo de futebol no rádio, e a gente se enfrentava. Eu
costumava levar umas boas bolachas, mas também dava algumas. Ele
brincava, dizendo que o juiz era minha irmã, mas ela mal prestava atenção.
Quanto mais eu perdia, mas gritava, e minha mãe protestava, de longe:
"Sérgio, vai machucar a menina!" E ele: "mas eu não tô fazendo nada, só tô
apanhando!" Eu fechava a mão e socava. "Você vai machucar a mãozinha
dela!" O fim da luta era quando ele me pendurava de cabeça para baixo pela
borda da cama. Eu sempre ganhava uma compensação qualquer, tipo um
presentinho, depois, pelo meu esforço. Mas havia outras brincadeiras que
minha irmã e eu compartilhávamos e incluíam meu pai. Toda noite, depois de
esquiar dentro de casa, calçadas de meias, sobre o assoalho de tacos, a gente
subia num banco ou cadeira colocada atrás da porta de entrada e tentava ver,
as duas ao mesmo tempo, quem estava voltando do trabalho, no longo

202
corredor. O que a gente queria mesmo é aguardar a chegada do papai. Se
estava frio e ele vinha de japona, que era o nome de um modelo de casaco, a
gente entrava dentro juntas e fazia um monstro de duas cabeças. Tinha vez
que o obrigávamos a ficar de quatro e nos dar uma voltinha como se fosse uma
montaria, o cavalo Tamandaré, que confundíamos com o termo pangaré. Mas
não havia nenhum dia em que ele não trouxesse um docinho pra gente. Podia
ser uma barrinha de chocolate, bala de hortelã, bala Toffe e, em geral,
caramelos de leite da Nestlé.

Já na minha adolescência, passamos a nos divertir, também, com o


dominó e o carteado. Para ser específica, com um jogo chamado escopa. Nele,
o objetivo é ir combinando as próprias cartas com as da mesa sempre numa
soma de pontos em que o total dê quinze. Algumas cartas, como o ás, sete e
rei de ouros, também valem um ponto cada, entre outros detalhes de
contagem. Ganha cada rodada quem fizer quinze pontos primeiro. Depois que
ele me ensinou o jogo e se estava condenado a ficar em casa por qualquer
feriado, a gente agendava uma disputa. Ele passava os dias anteriores
anunciando uma vitória histórica! Dizia que, daquela vez, seria diferente,
porque passaríamos a jogar a dinheiro — coisa que nunca fizemos. Durante a
disputa, só para fazer guerra de nervos, se começava a ganhar iniciava uma
cantoria louca de músicas antigas, como A deusa da minha rua e Lábios que
beijei, ou algumas de carnaval: “Neste palco iluminado, só dá Lalá...” Eu reagia,
dizendo que era proibido distrair o adversário. Mas ele continuava: “nada tu
ouvistes, e logo partistes, para os braços de um outro amor...” As cartas eram
só pretexto. O que nos divertia mesmo era ficar nos provocando mutuamente,
como num boxe verbal hilariante. No fim da vida ele, que adorava nos dar
apelidos, criou para si mesmo um personagem que incorporava diante da mesa
de jogo, e que só pela alcunha já dizia a que veio: o Larápio! Embora que, se
era eu quem estava ganhando, ele gritava pela minha mãe, dizendo que era eu
quem estava roubando...

Talvez por ter sofrido praticamente a vida inteira com a escassez de


dinheiro, meu pai sempre achava um jeito de fazer uma brincadeira envolvendo
grana. Se, por um acaso, minha mãe chegasse em casa com, vamos dizer, um

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pacote de quatro rolos de papel higiênico com decoração nova, tipo o desenho
de um bichinho nas folhas, ele rapidamente começava a oferecer para quem
aparecesse por lá. Para mim, para a faxineira... “Já viu o papel higiênico novo?
Te vendo baratinho: cinco reais o rolo.” Ultimamente, tudo e qualquer coisa
custava os mesmos cinco reais. Os presentes que ele recebia da gente — no
Natal era sempre ele quem ganhava mais pacotes do que todo mundo e eu
fingia reclamar, dizendo que havia favoritismo, para o enorme deleite dele! —
dizia depois ter comprado e pago muito caro. Não era raro que, diante de
qualquer objeto que o agradasse, ele anunciasse, como um pequeno rei
caprichoso, que agora tinha sido confiscado pela sua pessoa. Tudo da boca
pra fora, obviamente. Afora despesas com o jogo, bebida, cigarro e transporte,
meu pai dificilmente fazia compras. Não ia a supermercado, no máximo a uma
farmácia ou padaria, e desde que se casou com minha mãe era ela quem
comprava todas as roupas e sapatos dele.

A despeito dos problemas que o acompanharam por toda a vida, do jeito


desiludido de não confiar em ninguém, penso que meu pai era um sujeito
otimista. Ele tinha essencialmente pena das outras pessoas e era capaz de se
comover com uma notícia de jornal, de tentar ser solidário com um estranho na
rua, do tipo que pode não ter nada para dar a quem precisa, mas compartilha
até o último cigarro. Sem dúvida, ele era um cara contraditório e, por isso
mesmo, extremamente humano. Nos seus últimos anos de vida, eu passei a
telefonar diariamente e ele, ao mero som do meu alô, podia detectar se havia
alguma coisa errada, ao que contestava: “’tá tudo bem?” Não havia uma vez
que não quisesse saber se eu estava comendo direito, dormindo direito, e se
tinha dinheiro. Eram sempre esses três itens. Ele podia ter 20 reais mas,
quando me via, queria me dar a metade, mesmo quando eu esperneava,
dizendo que não precisava.

Além dessa preocupação, que ao mesmo tempo era trivial e altamente


objetiva, pelo menos pelos parâmetros dele — barriga cheia, sono em dia e uns
caraminguás no bolso para qualquer emergência — ele tinha outras bem mais
sutis e de extrema delicadeza. Meu pai era mestre em olhar para mim e dizer,
do nada, quando eu chegava na casa deles, que eu estava bonita. “Mas como

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está bonita a minha filha! Não é brincadeira não: você está cada vez mais
bonita!” E eu respondia, meio para provocar: “mais bonita como? O que eu tô é
mais velha, pai!” “Velha nada, você ‘tá linda!” E abria um sorrisão daqueles. Na
sua última noite, dormi no hospital com ele. De manhã, prendi o cabelo para o
alto para poder lavar o rosto e lá veio ele, meio tonto dos remédios, mas
sempre gentil: “ficou bonita com o cabelo assim!” Quando elogiava a mim e a
minha irmã, ele sempre dizia: “ tiveram sorte, saíram lindas igual ao pai!” Mas
deixa que, falando sério, ele nunca se achou bonito. Dizia que, quando rapaz,
tinha cara de cavalo. “Não sei como é que sua mãe, uma morena tão bonita, foi
casar comigo, com aquela cara de fome.” Meu pai adorava crianças e não teve
netos. Adorava um carinho, um beijo, um abraço, adorava atenção. Estava feliz
só de ver que a gente estava bem. Acho que fiquei devendo a ele por não ter
sido uma pessoa feliz.

Cenas finais

Foi a partir das intensas dores nas costelas dele que começamos a perceber
que estava se aproximando o pior. Meu pai morreu no fim de novembro mas,
no mês de julho, ele já tinha sido operado de novo. Primeiro houve uma
hemorragia enorme pela via urinária ainda em casa, seguida de uma
internação em que ele sofreu dois procedimentos. Um para a retirada dos
tumores na bexiga e outra para a raspagem total do interior dos testículos, a
fim de que os hormônios não viessem a estimular qualquer atividade de células
malignas remanescentes da próstata, retirada sete anos antes.

Todo ano meu pai era submetido a uma cintilografia óssea completa.
Na última, os exames apontavam disseminação da doença desde o lado
esquerdo do crânio até o calcanhar do pé direito, com alta concentração
especialmente na coluna e nas costelas. Até a internação de julho, ele nunca
se queixou de qualquer dor proveniente do câncer. Como vi que o quadro

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estava piorando e me lembrando de outros doentes que viveram até a fase da
metástase óssea, como o antropólogo Darci Ribeiro, e do tanto que sofreram,
justamente porque aí as dores passam a ser agudas, cheguei a pedir aos
médicos que cuidavam de meu pai que o deixassem morrer, porque eu não
queria que ele passasse por um calvário tão doloroso. Mas eles me disseram
que valia à pena operá-lo, porque não se podia saber quanto tempo ele ainda
teria de vida. Eu não estava preocupada com duração, mas com qualidade de
vida. No final de outubro o vaticínio se confirmou.

Nossa primeira providência foi procurar um oncologista. Até então,


meu pai estava sendo acompanhado por um urologista que realizou um feito e
tanto: conseguir uma sobrevida de sete anos a partir da primeira cirurgia para
um paciente que bebia e fumava. O doutor havia mesmo previsto que ainda iria
viver entre cinco e dez anos. O estado de papai já era tão grave que ele só
chegou a fazer a primeira sessão de quimioterapia. Eu havia combinado que,
depois da primeira aula da manhã, iria encontrá-los na clínica, que ficava na
Rua General Roca. De alguma maneira o procedimento correu mais depressa
do que havíamos calculado e eles foram liberados antes que eu chegasse.
Minha mãe contou que ele chegou a dormir sentado na poltrona enquanto
tomava a infusão. Mas disse a ela que queria esperar por mim. Fizeram hora
um pouquinho e depois desceram para a rua, porque ele estava andando bem
devagar. E quando já estavam na esquina com a Rua Santo Afonso para pegar
um táxi eu apareci do outro lado da calçada. Olhei para eles e entendi que
cheguei atrasada. Mas vi como o rosto do meu pai se iluminou quando ele me
viu. Ele, que já estava meio morto, com os olhos sem brilho de quem já está
mais no outro mundo do que nesse, abriu um sorriso tão bonito quando me
achou no meio de toda aquela gente ali na rua! Eu nunca vou esquecer o olhar
que ele me deu.

A partir dos feriados de 2 de novembro, eu passava mais tempo com


meus pai do que na minha própria casa. Nesse dia, eu comprei um cd do
Paulinho da Viola para o meu pai e, embora cansado, ele fez questão de ouvir
até o fim depois do lanchinho da noite. Chegou a cantar e até a se balançar de
leve, como se estivesse dançando, sentado na sua poltrona, ao som da

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música. Não me lembro se ele já havia começado a tomar os comprimidos de
morfina, que além de tornarem, pelo menos no início, a dor suportável, serviam
para dar a ele uma abençoada espécie de desligamento da realidade. De
qualquer maneira, foram essas as últimas conexões entre nós, do lado de cá, e
ele. Quando eu já não sabia mais o que fazer para confortá-lo, na manhã da
véspera de sua morte, quando acordamos de manhã, no quarto do hospital, me
lembro que cantei pra ele. Devia ser umas seis horas. Segurei na sua mão e fiz
carinho no seu braço, bem de leve, porque eu já havia perdido a noção da sua
dor. Antes da internação, quando ele passou a tomar a morfina por via venosa,
e foi misericórdia de Deus que ele tivesse entrado em coma justamente
quando, em menos de três dias, nem ela estivesse mais adiantando para
impedir a dor, houve vezes em que não se podia tocá-lo. Uma noite, ainda em
casa, eu deitada ao lado dele na cama, quis passar a mão no seu cabelo, para
acalmá-lo e, quem sabe, fazê-lo dormir, ele me pediu que não, porque até isso
doía.

Então, naquela manhã, no escuro do quarto, suas pupilas não se


mexiam mais. Mas ele ainda estava ali. Absolutamente carinhoso e agradecido
por tudo. Nunca ouvi meu pai, que em geral era bem educado, dizer tantos
obrigados na vida quanto nos seus últimos dias de vida. Eu comecei a cantar
para ele uma canção do cd, que acabou virando uma espécie de hino de
despedida: Coração leviano, justamente por causa da segunda frase, que diz
“parte sem dizer adeus”. Não sei como, mas na parte do laiá laiá ele até me
acompanhou, cantando baixinho. Foi com essa mesma canção que dissemos
nosso último adeus. Como eu nunca iria visitar seus restos mortais num
cemitério, sugeri à minha mãe e irmã que providenciássemos a cremação de
seu corpo. As cinzas foram dispersas na pista de grama do Jóquei Clube
Brasileiro, bem em frente ao photo chart, a linha de chegada, numa manhã de
domingo ensolarada. Cada uma de nós, mais o meu tio mais jovem,
despejamos um pouco das cinzas, enquanto cantávamos baixinho para ele. Ali,
eu lhe disse até breve. E sei que continuo encontrando meu pai no Amor de
Deus.

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