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Agradeço à minha mãe Magdalena e à minha irmã Solange, pelo amor e
apoio incondicional de todas as horas
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O título deste livro foi inspirado numa frase da canção “Rios, pontes e
overdrives” de Chico Science e Fred Zero Quatro
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Apresentação
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Sumário
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Pequenos gestos, grandes pessoas
Toda vez que acendo um fósforo, não me lembro de ninguém. Mas toda
vez que apago um fósforo, me lembro do meu avô. O pai da minha mãe. Isso
porque, uma vez, ao me ver tentar apagar um fósforo sacudindo o palito (e a
chama) perto de minhas longas madeixas de menina, ele disse, calma e
convincentemente: “assim você acaba botando fogo em alguma coisa;
experimenta assoprar assim, ó, que é mais fácil”. Eu devia ter, sei lá, uns sete
anos, mas o momento foi tão impactante que eu jamais esqueci.
A foto de casamento dos pais do meu pai é uma das mais lindas que eu
já vi na vida. Parece que é do ano de 1930, ou 1931. Os noivos estão num
estúdio, com um fundo infinito, ela usa um vestido curto, até a canela,
elegantérrimo, um buquê de flores naturais (odeio flor artificial e mais adiante
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explico por quê) e ele um terno branco. Meus avós tinham cara de gringos,
principalmente ele, todo magro e esticado como um gafanhoto, há quem diga
que tinha sangue de ciganos da Romênia. Realmente, uma das minhas tias,
filha mais velha deles, sempre me pareceu uma cigana perfeita, principalmente
pelas pesadas argolas de ouro que costumava usar.
Sei muito pouco sobre a vida do meu avô e acho que menos ainda sobre
a vida de minha avó Ynaiá (a mãe dela, Dona Olympia, gostava de batizar as
crianças com nomes indígenas, como parece ter sido moda na época).
Mas o modo como a vida dele terminou já me diz tudo que eu precisaria
saber. Parece que ele tinha 42 anos (e seis filhos) quando morreu. Como não
sabia ler nem escrever (minha avó também não), sustentava a filharada com os
biscates que conseguia arranjar. Segundo relato do meu pai, Sérgio, o segundo
filho homem, e terceiro na “escadinha”, e que sempre era o assistente, já que
os irmãos mais velhos tinham vergonha do trabalho infantil compulsório, houve
uma época em que fabricavam guarda-chuvas. Iam ao centro da cidade de
bonde comprar o material — as capas pretas (só faziam o modelo masculino),
as armações — e depois costuravam as capas nas varetas, o que lhes valia
numerosos furos nos dedos. Hoje em dia, dada a concorrência da China, não
existe um único guarda-chuva vendido no país que seja produzido aqui.
Quando a situação apertava, Oswaldo vendia raspadinhas, que eram
essencialmente lascas de gelo recobertas por um xarope de groselha,
verdadeira delícia para a garotada do Morro do Pinto, onde moravam,
mormente porque na época as poucas geladeiras disponíveis na vizinhança
refrigeravam à base de gelo seco.
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quando por acaso o número de fortões não era o suficiente para dar conta de
descarregar um navio.
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Um pedaço de destino
Foi por causa dessa última que nessa referida noite meu pai estaria a
caminho de romper com Deus, pelo menos por um bom tempo. Embora tivesse
sido coroinha numa época em que os padres molestarem criancinhas ainda
não havia virado moda ou, então, em que os casos eram mais bem abafados,
ele não era um homem nada religioso. Mas sempre conservou muita fé em
Deus, uma enorme simpatia por São Judas Tadeu, já que é o santo das causas
impossíveis, e igualmente por Santa Rita de Cássia, especialista também em
casos graves. Mesmo não tendo ligação na idade adulta com uma igreja
organizada, conservou um lado místico e um tanto supersticioso.
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Depois da refeição, se sentia disposto e animado. Sua sorte poderia
estar para mudar, afinal. Calado e mal vestido, seu 1,83 m de altura fazia com
que parecesse ainda mais magro. A linda cabeleira, que era negra, lhe dava
ares de ainda mais pálido. Mas agora nada mais importava. Mesmo lembrando
de sua educação católica, achava que tinha valido à pena o sacrilégio de ir à
macumba em troca de poder matar a fome.
Porque, naqueles dias, era esse esporte o grande amor da sua vida.
Não pensava em mulher, não queria casar, nem ter família, nada, depois do
que aconteceu com a sua. Melhor viver sozinho para o resto da vida, e quanto
mais curta ela fosse, bem também. Pelado — esse era o apelido de infância
que permaneceu no futebol — era um goleiro dos bons e já ia começar bem o
dia, fazendo o que mais gostava.
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por transformar, não apenas sua vida, mas principalmente os seus sonhos.
Ficou doente do peito. Não seria jamais um jogador de futebol. Ao invés disso,
um hospital de campanha esperava por ele, dali a bem pouco tempo, para uma
cirurgia de risco e de ponta, para a época, a fim de extirpar do pulmão o
pedaço carcomido pela tuberculose...
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Fatalidades
Como meu pai contava, o pai dele havia crescido praticamente na rua e,
assim como os irmãos, vivia vagabundeando pelo bairro, vestido apenas com
um camisolão, descalço e sujo, até uma idade relativamente alta, ali pelos 12
anos, porque a família era tão pobre que não tinha sequer como vestir as
crianças. As dificuldades da vida também foram muito grandes para meu pai.
Teve praticamente todas as doenças infantis — pelo menos entre aquelas
conhecidas na época. O sarampo quase o deixou cego do olho direito. Teve
apendicite e hérnia — o que, aliás, o impediu de servir no exército, como era de
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seu desejo — na adolescência e, operado de ambas ao mesmo tempo, com
uma anestesia curta demais, acabou fugindo do hospital antes da hora,
pulando um muro e arrebentando os pontos. Já adulto, casado e pai de duas
crianças, foi operado das amídalas e da adenóide e, nos seus termos, “quase
que empacotou”, porque as amídalas foram arrancadas quase que na marra, o
que teria gerado uma certa hemorragia.
Agora, hemorragia pra valer veio mesmo com a extração dos dentes.
Naquele período do limbo em que meu pai viveu sozinho, entre a morte dos
pais e o casamento com minha mãe, ele teve sérios problemas dentários.
Como não podia pagar um tratamento decente e não agüentava mais tanta dor
de dente, um dia endoidou e procurou o dentista e carniceiro do Santo Cristo, o
lendário Doutor Bezerra. O pedido: que lhe arrancasse de uma vez todos os
dentes da arcada superior, já que a extração era barata. Agora não me lembro
ao certo se a carnificina foi feita num único dia ou se em dois, lado direito e
lado esquerdo de cada vez. De qualquer maneira, ele quase morreu. Desde
que me entendi por gente, meu pai sempre usou dentadura em cima e ainda
tinha alguns dentes da frente, não muito bons por causa do cigarro, na parte de
baixo da boca. Ainda assim, ele tinha um lindo sorriso. Já o pai dele, acho que
não tinha lá muitos motivos para ser um sujeito alegre.
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esses pais de famílias numerosas de subversão. Para eles, não havia qualquer
vestígio de luta armada. Apenas o sonho de dias melhores para os seus. Uma
sociedade organizada, mais comida na mesa, a chance de estudo, justiça
social, esse artigo absolutamente inexistente no Brasil, ainda nos dias de hoje,
a despeito do discurso de qualquer presidente da república mais bem
articulado.
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Nervos
Nunca soube se foi alguém que disse a ele, repetidamente, mas o fato é que
uma mesma informação, reafirmada várias vezes, ainda que improcedente,
acaba se tornando verdade. Assim foi que cresci ouvindo meu pai dizer o que,
provavelmente, ele também cresceu ouvindo: que ele sofria dos nervos. De
minha parte, nunca acreditei muito nisso. Certo que, a vida inteira, ele tomou
remédios para dormir, mas nas últimas décadas minha mãe também — aliás,
sem conseguir dormir direito — o que não prova nada, porque essa parece ser
mais uma das tantas dependências humanas na modernidade. Quando sofro
de insônia, eu prefiro ficar careta e o máximo que faço é não me levantar da
cama. Afinal, preciso colaborar minimamente com o processo de pegar no
sono. Numa fase em que meus pais brigavam muito e ele, já doente, partiu
para a agressão física, levei-o a um psiquiatra e pedi um laudo técnico. O
parecer foi de que ele era um sujeito centrado, com discurso coerente e que
sofria, no máximo, apenas de muito ciúme dela.
Um dos lances do passado que meu pai contava para ilustrar sua
suposta demência tinha acontecido em torno dos cinco anos de idade. Como
os garotos às vezes enrolavam a própria camiseta para usar como baliza na
pelada de rua, ele freqüentemente acordava no meio da noite querendo ir lá
fora procurar uma peça de roupa que não sabia mais se já tinha trazido para
casa ou não. O mais próximo de um tratamento que ele recebeu, sob a
chancela do aconselhamento médico, foram banhos de água fria, não sem nem
a que horas nem em qual estação do ano, sabidamente eficientes para
acalmar. Outro traço distintivo da sua personalidade em formação era um alto
grau de violência. Não era raro que qualquer desentendimento na rua
acabasse em agressão física, e geralmente ele era o agressor. Contava, aos
risos, histórias que estavam mais para assustar. Como no dia em que,
sentados no alto do morro, fazendo um frio de lascar, ele usava uma camisa
com zíper até a gola e, na hora de fechar, teria prendido a pele junto. Só
porque um outro garoto achou graça e riu dele foi sumariamente atirado
ribanceira abaixo com um chute nas costas e quebrou duas costelas.
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A folha corrida de meu delinqüente pai incluía pedradas sobre diversas
cabeças, todas posteriormente costuradas, braços quebrados e que tais. Volta
e meia, um meganha do posto policial ia procurá-lo em casa, para levar preso,
mas era apropriadamente recebido pela sua madrinha-avó, Dona Olympia, que
guardava para essas ocasiões um porrete tamanho família atrás da porta de
entrada. A velha não fazia a menor cerimônia ao receber um representante da
lei. “Procurando alguém? Sim, o Sérgio é meu neto. O que foi que ele fez? Ah,
esse fulaninho é o maior marginal e o senhor não vai levar meu neto preso. Só
se vier buscar aqui dentro...”, e, nessa hora, mostrava o porrete. Nunca
nenhum policial se atreveu a entrar.
Quando meu próprio pai se machucava, era a avó quem tratava dele,
com métodos nada ortodoxos. Como no dia em que meu pai, numa pelada,
chutou a bola que foi cair no quintal de uma vizinha, cujo portão tinha lanças de
ferro. Existia um código que obrigava o autor do chute a ir recuperar a valiosa
bola, não importa onde ela caísse, e meu pai não teve alternativa a não ser
escalar o portão e entrar. Aquela vizinha fazia parte do grupo anti-esportivo
que, se pegasse uma bola, só devolvia depois de furá-la com a faca. Quando
já estava voltando, com o brinquedo debaixo do braço, meu pai se distraiu e
escorregou. Ficou enganchado no alto do portão pelo joelho, cuja parte de trás
enfiou numa das lanças de ferro. Deixou a bola cair, que os garotos recolheram
e foram dar prosseguimento ao jogo. Ele ficou lá esperneando um pouco, como
se fosse um siri num pau, até que conseguiu, sozinho, soltar o joelho e
capengar até sua casa. Tratamento da vovó: ela aqueceu um pedaço de
toucinho na chama do fogareiro até ele ficar em brasa e usou para cauterizar a
ferida aberta. Assim, não corria-se o risco de infecção e, também, não era
preciso dar pontos, porque a hemorragia estancava imediatamente, diante da
violência da queimadura. Meu pai teve uma série de ossos quebrados, mas
nunca engessou nem imobilizou nenhum.
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morreram de morte natural. Em outros casos, creio que ela deu uma ajudinha.
Um deles, totalmente sem noção, teria se atrevido a levantar a mão para ela
durante uma discussão. Como era mais fraca, ela aguardou a ocasião de dar o
troco. Esperou que dormisse e, no meio da noite, colocou a chaleira d’água
para ferver e, quando estava no ponto, simplesmente despejou pelo ouvido
abaixo do marido que dormia, deitado de lado. Parece que, dali, ele não durou
muito mais tempo. Vai ver que ela pensou o seguinte: ele deve andar aí com a
cabeça meio entupida por maus pensamentos, a água deve ajudar a
desobstruir, como num encanamento.
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Cirurgia
De todos os capítulos tão tristes na vida de meu pai, esse deve ser um dos
mais tristes, senão o mais triste. Perdi a conta de quantas vezes ouvi este
relato, e não me restava nenhuma alternativa, a nenhuma de nós, quando ele
chegava ao fim, a não ser um sentimento de vazio intenso, um não saber o que
dizer, um desespero mudo.
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Meu pai contava que, nos primeiros meses, quando ainda morava
sozinho com o irmão, freqüentemente o encontrava na soleira da porta de
entrada, quando chegava em casa, tarde da noite. Cada filho teve uma reação
diferente. Enquanto meu tio morria de medo de tudo, inclusive de fantasmas, e
se recusava a ficar só, além de passar a ter uma vida regrada por causa da
doença, meu pai fazia justamente o contrário. A tendência a beber, que o
acompanhou pela vida toda, se exacerbou nesse período, e ele, que já estava
doente, só piorava a situação, pegando sereno, sem cuidado nenhum, e ainda
se alimentando mal.
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longe. Não havia mais para onde descer. Aumentavam, também, a febre e as
crises de hemoptise. Assim, no auge do desespero, meu pai se voltou contra o
médico que tratava dele, cobrando uma decisão. "Não vou morrer aos poucos
desse jeito. Eu quero uma alternativa. Ou eu fico curado, ou morro de uma
vez." Diante da sua renitência, o médico lhe ofereceu, então, a oportunidade de
uma cirurgia experimental para extirpar a parte lesionada do pulmão. Meu pai
não pensou duas vezes e aceitou.
Talvez pela juventude, talvez pela teimosia, o certo é que meu pai
agüentou o tranco. Ali, naqueles ambientes sufocantes, porque o telhado era
improvisado, não sei se com telhas de zinco, ele reclamava até conseguir um
ventilador. Ao nos contar e recontar suas memórias, parece que expurgava
todo aquele sofrimento. Gostava de contar sobre os outros personagens. Como
o Matalana, um senhor nordestino que já tinha perdido totalmente um dos
pulmões, e cujo corpo tinha ficado deformado porque, para chegar a ele, eram
serradas também as costelas, de forma que um dos lados do peito havia
afundado, restando praticamente só a pele. Esse homem, que necessitava de
muitas transfusões de sangue, sempre surpreendia os companheiros, porque
comia com grande apetite o prato de comida fria, que o esperava ao lado, até
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que a bolsa de sangue estivesse vazia. Outra figura interessante era o Três
Beicinho (assim, sem S mesmo), um rapaz em quem havia sido diagnosticada
tuberculose mas que, na verdade, estava esbanjando saúde. No entanto, como
sofria de lábio leporino, o médico aproveitou para lhe dar um bônus, fazendo a
cirurgia plástica que iria mandá-lo pra casa com um beicinho só...
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lá dentro, até os postes da rua me pareciam bonitos!" Talvez já fosse influência
de uma outra mudança, até mais significativa do que a recuperação da saúde,
e que havia se operado ao longo daquele período. A importância de minha mãe
na vida dele.
Na verdade, minha mãe tinha sido colega de colégio de minha Tia Leila.
Embora de família um pouco menos pobre, ela cresceu numa área próxima
àquela em que vivia meu pai. Quando não estavam em aula, as garotas
gostavam de ir ao Castelo ouvir os discos, em especial os da Ângela Maria. Só
que vitrola e discos eram todos de meu pai! Que dava verdadeiros ataques
quando aquelas enxeridas chegavam fazendo barulho, dançando e mexendo
no que era dele. Minha mãe dizia: "Ih, Leila. Esse seu irmão é tão esquisito...
Acho que ele é bicha!" Naquela época, não passava na cabeça de ninguém
que, um dia, os dois fossem se apaixonar, porque eles se odiavam. Mas, às
vezes, esses ódios inexplicáveis são, na verdade, indícios de amor ou coisa
parecida. Mamãe conta que viu meu avô Oswaldo apenas uma vez, mas nunca
falou com ele. Diz que minha avó Ynaiá também era quieta e parecia um
bibelô, de tão frágil, já que tinha problemas de coração. Mas Dona Olympia, a
avó e madrinha de meu pai, era um furacão: alegre, viva, barulhenta — várias
bisnetas puxaram a ela — e adorava receber minha mãe lá. Se já pressentia
que aquela menina iria ser quem o destino escolheu para cuidar do seu neto
preferido? Certo é que, se alguém se queixava de dor de cabeça, ela se saía
sempre com o mesmo diagnóstico: "Isso é fome!" E servia logo alguma comida
gostosa. "E não é que a dor passava mesmo?", lembra, divertida, minha mãe.
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agrado, conquistou seu coração. Lembro que, um dia, perguntei ao meu pai o
que haveria levado os dois ao casamento, já que ele nunca escondeu que tinha
se casado contra a vontade. Ele, então, me explicou o seguinte. "Na verdade, o
que eu sentia era muita pena da sua mãe. Ela sempre tinha sido quase que
como uma empregada da família. Ela não era totalmente reconhecida por
ninguém, nem mesmo pela avó ou pela tia. Primeiro porque era uma mulata no
meio de uma família de brancos. Isso era comum naquela época. Um filho
bastardo, assim, fruto de um deslize, era o que se chamava de agregado, e
passava a ser tolerado no convívio, mas sempre numa situação subalterna."
Acredito que ele tivesse razão. Minha tia teve uma menina atrás da outra e não
dava conta de cuidar dos bebês. Minha mãe foi quase mãe daquelas meninas
e batizou, inclusive, a segunda, junto com meu pai, ainda antes de se casarem.
Não sei por quanto tempo namoraram. Mas o noivado dos dois levou um
ano. Nesse meio tempo, meu pai teria desconfiado da fidelidade de minha mãe.
Fenômeno que, aliás, se repetiu no final da vida. Depois da cirurgia de
próstata, que o deixou impotente, ele passou a imaginar que minha mãe
tivesse casos extraconjugais, o que gerou uma série de conflitos graves e
difíceis de administrar. Como era um jovem com pouco a oferecer, detalhe
permanentemente lembrado por minha bisavó Amélia, acredito que ele tivesse
também algum tipo de complexo de inferioridade. Fosse por um motivo ou por
outro, o certo é que ele desistiu do casamento. Se não me engano, eles tinham
tido uma briga comum e meu pai encontrou minha mãe saindo com outro
homem, bem mais velho e com melhor situação financeira. Era o que faltava.
Totalmente traumatizado com o desmoronamento da própria família, ele não
desejava repetir a dose, então, não queria se casar. "Se não tivesse me
casado, eu já teria morrido há muito tempo", dizia sempre, como quem tivesse
perdido alguma coisa. No entanto, a influência de meu pai na vida de minha
mãe já tinha se dado num nível bem mais complexo, ela já tinha feito suas
escolhas, e ele não iria se livrar do comprometimento tão fácil assim...
Além da cor da pele, uma herança espiritual caiu sobre minha mãe.
Quando ela tinha 16 anos e entrou pela primeira vez na casa onde viria a morar
com sua família na época — a avó Amélia, que a criou, sua tia Celina, ou
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Filhinha, como a chamavam, mais o marido dela Messias, mais o filho dela e
primo de minha mãe, Adyr, e a mulher dele, minha tia Leila, e não sei mais
quem — se deparou com a imagem de um homem enforcado, dependurado
numa viga sobre uma das portas. Desmaiou imediatamente. Levada a um
centro de umbanda, foi descoberta sua mediunidade, tão comum de se
manifestar justamente na adolescência. O que ela tinha visto, se descobriu
mais tarde, foi uma espécie de reminiscência espiritual, já que, efetivamente,
um antigo morador da casa havia, sim, se enforcado no lugar onde ela teve a
visão. Seu padrinho de batismo, junto com a avó Amélia, era um médium negro
mais conhecido pelo sobrenome — ele se chamava Paixão — e que a
encaminhou para o centro espírita do Seu Bráulio, outro médium, que minha
mãe admirava e meu pai odiava. Minha mãe passou a desenvolver a
mediunidade e trabalhava no centro, acredito, duas vezes por semana.
Recebia entidades de muita luz, como Seu Pena Branca, um caboclo com
poderes de cura, que fez o bem e tratou de muitos doentes. Mas, à certa altura,
meu pai deu a decisão em minha mãe. "Você vai ter que escolher: o centro ou
eu."
Ela conta que não foi nada fácil fechar a mediunidade para poder sair do
centro. Entre uma série de trabalhos e obrigações que teve que cumprir, e nem
todas ela pode revelar, uma das mais difíceis teria sido ir a sete cemitérios no
mesmo dia, para assentar oferendas, sem poder dar uma palavra com quem
quer que fosse. Sua avó e fiel escudeira Amélia foi quem a acompanhou nessa
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e em outras maratonas. No entanto, apesar de fazer o que lhe foi instruído e
proposto pelo mundo espiritual, minha mãe acredita que teve que pagar um
preço alto pela sua escolha. Meu pai pediu exclusividade. Ela deixou o centro.
Mas quando parecia que tudo estava se encaminhando, meu pai simplesmente
disse a ela que não queria mais se casar e ela entrou em desespero. Numa
noite, tomou uma caixa inteira de tranqüilizantes, entrou em coma e só veio a
ser socorrida na manhã seguinte, quando já não restava muito o que fazer. Foi
por causa disso que meu avô, o pai dela, ameaçou meu pai de morte,
obrigando a que se casasse com minha mãe com um revólver apontado para
ele, acho que ainda na emergência do hospital para onde ela foi levada.
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A voz de meu pai
Logo de cara, ele diz que foi muito boa, apesar da pobreza e de que
vivesse no Morro do Pinto. Desse morro, que fica na região central da cidade,
perto do cais do porto, mesmo hoje em dia muito pouco se ouve falar, apesar
de todas as questões que envolvem marginalidade, exclusão, violência. Na
própria música popular brasileira, a única referência de que me lembro vem da
música “Escurinho”, com a célebre frase: “já foi no Morro do Pinto acabar com
o samba”. No relato, meu pai dizia que morar naquele morro era como morar,
hoje, em Santa Tereza. Essa é outra região especial do Rio de Janeiro:
montanhosa, em que foi preservado o bonde como meio de transporte, com
famílias de classe média baixa e um certo estilo de vida meio bicho grilo.
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Cada um ficava numa ponta da feira e outro no meio. Ele ficava no
início, por ser o menor, e contava sempre com a cobertura das donas-de-casa,
que deixavam sua porta aberta, caso o rapa passasse e ele precisasse se
esconder correndo. Seu apelido era Fala Grosso, porque berrava bastante, a
fim de vender tudo o mais depressa possível. Uma única vez, levaram a
menina Leila para ajudar, mas o resultado não poderia ter sido mais
desastroso. Louca por paçoca, ele não fez nada a manhã inteira a não ser se
empanturrar daquela gostosura, e lá pelo fim da manhã teve uma terrível dor
de barriga. Sem lugar apropriado para se aliviar, minha tia acabou fazendo
cocô dentro de uma caixa grande onde o vendedor de pintos tinha transportado
os bichinhos. Ela não foi surpreendida no meio da infração, mas mais tarde a
família adivinhou quem tinha sido a culpada, quando o homem começou a
berrar, furioso, em plena feira, que alguém tinha cagado a caixa de pinto toda!
Já a carga de lã de aço era transportada no que eles chamavam de pára-
quedas: um saco de farinha de trigo cujas pontas eram atadas e, no meio,
ficavam as lãs de aço. Era mais fácil para transportar e para expor a
mercadoria. O motivo da pressa de meu pai era vender tudo entre as 7h e as
11h, porque aí chegava a hora de ir para casa, tomar banho e ir para o colégio.
Ele dizia que nunca voltava com sobras para casa.
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sempre foi meio esganado e não se contentava em beber só uma garrafinha.
Na volta para casa, a rua escura, quando já iam destrancar a porta, meu tio ia
apressando a mulher: “anda, Leila, que eu estou quase fazendo!” , quando ela,
com a calma que lhe é peculiar, apenas disse: “ih! Deixei a chave cair...”
Naquela escuridão toda? Não ia dar tempo de procurar. Meu tio, desesperado,
fez cocô “pelas pernas abaixo” na mesma hora.
“Sempre gostei de fazer as coisas bem feitas. Tanto que não era de
faltar dia de serviço. Não faltei nenhuma vez. Não tirava férias porque preferia
trabalhar e receber o dinheiro. Ia ficar em casa fazendo o quê, se eu gostava
de trabalhar? Tem a ver com a minha formação. Aos cinco anos eu já
trabalhava na feira com meu pai, vendendo lã de aço. Ele também fabricava
guarda-chuvas, consertava, era sempre ligado ao comércio. Eu tinha um tio
que trabalhava na Brahma e era torneiro mecânico. Ele fez uma raspadeira
para fazer sorvete. A partir da pedra de gelo, a gente raspava e colocava
groselha ou licor de chocolate, e vendia na banquinha durante os dias de
carnaval. Meu pai também vendia bolas de gás. E eu tinha sempre meu
dinheirinho no bolso. Nunca faltava para ir ver o jogo do Flamengo.
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Meu primeiro emprego foi na Madex, uma empresa que vendia madeira
dentro e fora do país. Saí porque era novo e não tinha malícia. Ficava
encarregado de pagar os fretes e pegar dinheiro para pagar capatazias,
desembaraço de mercadoria e, para isso, assinava vales. À medida que os
vendedores fossem trazendo aqueles papéis de recebimento, eu resgatava os
vales emitidos em meu nome. Cheguei à conclusão de que, querendo
aprender, me dei mal. No livro só tinha saídas, nenhuma entrada de dinheiro.
Um espertinho me devolvia os vales mas não dava baixa no caixa. Fui falar
com o diretor tesoureiro, afilhado de casamento do presidente da firma.
Trabalhava com dois primos, mas nenhum resolvia nada. O tesoureiro
percebeu que eu era esperto, e eu pensando que estava prestando um serviço,
fui falar que não tinha entrada de capital.
Para se ver livre de mim, já que era ele quem estava aplicando o golpe,
ele me mandou trabalhar no escritório da fábrica de tintas do grupo, num
subúrbio, onde o cheiro de solvente e tinta era insuportável. Minha função era
só tirar notas fiscais. Trabalhei de segunda à sexta-feira e pedi as contas. O
Mangi teve a cara de pau de ainda me dar uma carta de recomendação. Nesse
período em que fiquei sem trabalhar, fiz um concurso para a Companhia
Nacional de Navegação Costeira. Passei, mas dependia de sair a nomeação
no Diário Oficial. Como o Lloyd era próximo da Rua do Mercado e eu estava
muito satisfeito com a minha sorte aquele dia, passei no escritório da Madex.
Foi justamente quando o balanço de final de ano tinha estourado a fraude! Eu
nem sabia do caso, já que não tinha dinheiro para comprar jornal. O presidente
me recebeu bem, aliás, como todos. Eles me chamaram para tomar conta do
escritório, já que os primos foram mandados embora e o tesoureiro tinha
fugido. Ele foi condenado no final de 1956. Como não compareceu, foi julgado
à revelia e condenado a oito anos de prisão. De minha parte, já que eu não
sabia quando ia sair a nomeação no Diário Oficial, deixei a coisa em aberto.
Nunca fui nomeado para o tal cargo público, já que, na época, ali já tinha
muitos “peixinhos”. Da mesma foram nos anos 1960, mandei uma carta ao
então presidente da república, João Goulart, pedindo um emprego, e recebi um
telegrama me indicando para o IAPB -Instituto de Aposentadoria e Pensão dos
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Bancários. Contudo, mais uma vez, o Golpe Militar impossibilitou que eu fosse
nomeado para o cargo.”
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A infância de meu pai
Cinqüenta anos depois, ele ainda era capaz de se lembrar em que dia
da semana cada feira ficava. Segunda-feira em Santo Cristo, terça na Tijuca,
quarta em São Cristóvão, quinta no Mangue, sexta na Rua Camerino, sábado
em São Francisco Xavier, bairro Riachuelo, e domingo novamente em São
Cristóvão. Vender esfregões de lã de aço foi uma idéia de um casal de
alemães que se afeiçoou ao meu pai na sua primeira infância. Naquela fase,
ele morava com os pais, a avó materna e os dois irmãos mais velhos,
Claudionor e Leila, numa casa de cômodos na Rua da Gamboa. Os outros três
irmãos nasceriam depois, quando a família já estava instalada numa casa de
verdade, no Morro do Pinto.
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Meu pai entrou no colégio com oito anos de idade. Era o Sagrado
Coração de Jesus, da professora Maria Esther de Aquino e Castro, particular, e
funcionava na sala da casa dela. Mineira de Barbacena, era professora por
vocação, como dizia meu pai. Estudou ali durante quatro anos, porque fez o
primário bem mais rápido do que os colegas que, em geral, levavam cinco.
Papai assistia à aula sentado num banquinho de madeira, perto da porta, e às
vezes tumultuava a sala, mas não por indisciplina. Quando Dona Esther fazia
uma pergunta para algum colega e ele não sabia responder, meu pai não
conseguia se conter e gritava a resposta lá do fundo. Uma vez, chegou a ser
suspenso, já que a professora havia chamado sua atenção várias vezes pelo
mesmo motivo: ele tinha que deixar os colegas responderem também.
Sua primeira pasta escolar tinha sido feita pelo padrinho, marido de sua
avó materna, que era marceneiro, e estava mais para um maleta de madeira
envernizada, com as iniciais do seu nome gravadas — SMS. Os colegas
levavam o material debaixo do braço e, logo no primeiro dia, ele se sentiu
deslocado e nunca mais usou a pasta. Estudava de 12h às 16h e mesmo que
se atrasasse 10 ou 15 minutos Dona Esther dava tolerância porque sabia que
ele estava trabalhando. Das cerca de 30 crianças na turma, só ele trabalhava.
Não tinham uniforme para o colégio, apenas um para ir à missa ou alguma
procissão. Era de cor cáqui com um emblema no peito que trazia o nome do
colégio.
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Coração de Jesus. Naqueles anos, ele ia à missa todo domingo e chegou a
ser coroinha e depois sacristão. Seus pais não iam à igreja e meu avô não
tinha religião nem acreditava em Deus, mas não se opunha. Papai freqüentou a
igreja por muitos anos, quase até se casar. Aos domingos, se tivesse ladainha,
ajudava nos preparativos. A igreja dava toda a roupa de que os meninos
precisavam.
Ninguém fazia piada com isso. Embora fosse católico praticante, meu
pai sempre foi rebelde. “Nunca deixei que ninguém me humilhasse nem fizesse
chacota.” Gostava de roubar, ou melhor, surrupiar vinho do padre. Só ele,
porque os outros seis meninos não tinham coragem. Entre eles, havia uma
verdadeira disputa. Porque, quando necessário, um garoto poderia ir ajudar à
celebração de uma missa na Candelária e o retorno financeiro era
compensador, já que eles ganhavam dinheiro da cúria ou do padre. Na
paróquia de Santo Cristo, onde ele estava sempre, não havia pagamento. Já
na capela de Nossa Senhora de Montserrat, aquela que parece uma nave,
plantada entre o Morro do Pinto e o Morro da Providência, e que se avista da
Avenida Presidente Vargas, ele nunca ajudou na missa.
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incrivelmente quentes, e não era raro algum garoto perder parte da “cabeça” do
dedo num chute mal aplicado. Mais um jogo divertido era aquele chamado
frontão e meu pai o descrevia como uma espécie de squash sem raquete: a
garotada ficava jogando uma bola num paredão e rebatendo de volta, sem
deixar cair no chão, com toda a força.
Quando alguma das vizinhas precisava comprar alguma coisa que não
tinha no morro, dizia: “venha cá, vai lá na Rua Nabuco de Freitas comprar um
litro de leite pra mim”. Ele morava na Rua Saldanha Marinho e dizia que, no
Morro, só morou nessa rua, no número 80. Não sabemos se a fachada ainda
está lá. Em cima da casa, ficava a escola de Dona Esther. Para sair do morro e
ir fazer as compras para as vizinhas, um garoto tinha que andar cerca de um
quilômetro e meio. “Qualquer garoto ia. Não era pelo dinheiro. Se na volta ela
desse um tostão, estava bom. Se não, tudo bem. Éramos obrigados.” Existia
uma espécie de pacto na comunidade, aquela senhora não podia ficar subindo
e descendo morro. Como crianças, eles tinham o dever de ajudar. Se
recusassem e a vizinha comunicasse à família, quando o garoto chegasse em
casa iria receber uma reprimenda. “Mas nós fazíamos com muito boa vontade.”
Mas, o que a garotada fazia, afinal, com aquele dinheiro? Dava para
comprar dois cigarrinhos para fumar escondido. Meu pai, por exemplo,
começou a fumar com oito anos, porque seu avô, que também era seu
padrinho, fumava toda noite quando voltava da Light, a empresa inglesa que
fornecia luz elétrica para a cidade, e que depois foi nacionalizada. Esse avô,
Manuel Vaz Repolho — chamado de Vagem Repolho para fazer troça — não
era o avô biológico de meu pai, detalhe que ele sempre lembrava ao velho no
caso de alguma desavença, mas parece que os dois se davam bem. Contava
que o português era um marceneiro de mão cheia, a ponto de ter feito até um
violão, mesmo sem ser luthier, e uma geladeira.
Então, ele ficava enrolando o fumo no papel colomi, meu pai via aquilo,
até que, um dia, resolveu furtar três ou quatro cigarrinhos daqueles. “Cheguei
na rua, junto dos garotos, acendi um e era muito forte. Eu não estava
acostumado, fiquei tonto e deu vontade de vomitar. Os outros colegas pediam
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para eu dar a ‘vinte’ (guimba), eu estava doido para me livrar, aquilo estava me
fazendo mal. Foi daí que começou.” Segundo meu pai, dinheiro era muito difícil
de conseguir no pós-guerra. As marcas, como a Rodeio ou a Caporal
Amarelinho, eram nacionais, vendidas em embalagens importadas com que,
depois, os meninos jogavam bafo-bafo.
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carvão não, já que ele virava brasa. O fornecimento de carvão para cozinhar
custava cinco tostões cada lata. Com essa quantia, um menino comprava um
ingresso para o Cinema Poeira. Daria também para pagar cinco passagens de
bonde, caso eles fossem pagar. Mas eles preferiam viajar dependurados e
saiam mudando de um lado para o outro com o cobrador atrás. Na verdade,
meu pai dizia que nem ele nem os outros garotos vendiam água. O que eles
cobravam era pelo transporte. Afinal, caminhar dois quilômetros morro acima
carregando tanto peso tinha algum valor. Para eles, a água saía de graça.
Existia uma instalação na Central do Brasil que servia para abastecer os
tanques de cada maria-fumaça. A água fervia na caldeira, depois de ser
esquentada com o carvão que queimava na fornalha e o vapor movimentava o
trem. Quando não havia nenhum lá, bastava chegar e puxar uma cordinha para
deixar a água encher a lata.
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de ir às terças-feiras à noite, porque durante o dia estava ocupando com o
trabalho e a escola, e aos domingos. Ele gostava dos filmes de terror, com
Boris Karloff, e também do Jim das Selvas. Os assentos não poderiam ser
piores, já que eram meras poltronas de madeira sem estofo, e no ambiente
também fazia muito calor, principalmente no verão. Vai ver que era isso que
justificava as sessões tão curtas. Segundo meu pai, também havia muitas
pulgas.
A minha vida inteira escutei o meu pai brincar, toda vez que estava
quente, dizendo: “ai, o calore, o calore”, imitando um sotaque português. Mas
foi só nos seus últimos dias de vida que ele me contou a totalidade dessa
história. Foi num domingo, no fim de novembro de 2007, último dia em que ele
esteve totalmente lúcido, já que morreu, completamente drogado de morfina,
na quinta-feira seguinte. Aquele mês inteiro eu passei praticamente, senão
direto lá, indo e voltando todos os dias, embora meus pais tivessem me dito
que ficasse em casa para descansar. Mas eu respondi que papai estava indo
embora e eu queria passar com ele todo o tempo que restava.
O único cinema que tinha uma cortina na frente da tela era o cinema
Ideal, que ficava na Rua da Carioca, no Centro da cidade. No intervalo de
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alguns minutos, no meio da exibição, os funcionários acionavam um
mecanismo que abria o teto do teatro, como se fosse uma espécie de janela,
para renovar o ar. Só que, pelo luxo, o ingresso era mais caro. A lotação
máxima ficava em torno de 50 pessoas. Já no Morro do Pinto, havia também
um único cinema, chamado de Poeira ou Barnabé, que era também o nome do
dono. Havia outros, como o Primor, na esquina da Avenida Marechal Floriano
com Rua Camerino, quase em frente ao Colégio Pedro II, e o Popular, que
ficava em frente ao mesmo col. Na Tijuca, ficavam cinemas melhores, como o
Metro e o Olinda, para grandes públicos, mas esse ele não freqüentava, porque
eram para uma classe social mais alta. Na Cinelândia existiam, ainda, o Rex, o
Plaza, o Pathé e o Odeon, sendo que esses dois últimos conseguiram
sobreviver até o século XXI. Meu pai ficava circunscrito mesmo aos cinemas
Popular e ao Poeira...
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Roupas e sapatos eram um capítulo à parte na história daquela
comunidade pobre, como de tantas outras naqueles dias. Os meninos
circulavam pelo morro vestidos num calção feito de saco de farinha de trigo da
padaria. Na rua, estavam sempre descalços. Basqueta só se calçava para ir à
missa no domingo ou ao cinema. Para ir à aula ou trabalhar, o calçado era um
par de tamancos, comprado no armazém, que se usava também para marcar o
lugar das balizas sobre o calçamento de paralelepípedos, na hora de jogar uma
pelada. Servia também, em dias mais frios, se alguém estivesse vestindo uma
camiseta ou camisa, quando a peça era enrolada e colocada no chão.
Seu tio João, casado com uma das irmãs de seu pai, tinha uma pequena
fábrica de guarda-chuvas, que ficava na Rua Bento Ribeiro, próxima ao Túnel
João Ricardo, atrás da Central do Brasil. Então, meu avô Oswaldo pegava
carregamentos de três dúzias de armações de cada vez, mais as capas e os
cabos para terminar de montar em casa, teoricamente com a ajuda dos dois
filhos mais velhos — meu pai e seu irmão Claudionor. “Eu carregava mais do
que trabalhava. Não gostava de fazer aquilo. Nunca tive habilidade manual. Já
meu irmão sempre dava um jeito de fugir do serviço...” O modelo masculino era
o típico, na cor preta, e o feminino era sempre azul, sem estampa, e só variava
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o tom, mais claro ou mais escuro. “Ficava bom. Depois de pronto, a gente tinha
que passar cada peça por cima de uma panela de água fervendo porque o
vapor deixava o pano esticadinho e dava pra ver se tinha ficado algum defeito.”
Meu pai começou na atividade com 14 para 15 anos e trabalhou nisso até os
17, quando seu pai morreu.
Mas sua grande paixão sempre foi o futebol. Coisa que ele nunca soube
explicar. Sempre jogou como goleiro. Começou com as peladas na rua, aos
sete anos. A bola era de meia recheada com papel e ficava do tamanho de
uma manga grande. “Mas nós fazíamos com tanto carinho, ficava tão bem-
feita, que chegava a quicar!” Aos 13 já estava jogando no clube do São
Cristóvão — onde, décadas mais tarde, iniciaria sua carreira um outro craque,
conhecido como Ronaldo, o Fenômeno. O campo, ainda hoje na Rua Figueira
de Melo, era chamado de galinheiro, porque ali tudo era pequeno. No ano de
1954, aos 17 anos, portanto, meu pai foi vice-campeão pelo time na categoria
juvenil numa final contra o Vasco da Gama, que tinha uma infra-estrutura muito
melhor. “Na véspera, ficamos concentrados na sede. Jantamos macarrão com
almôndegas na pensão do diretor do São Cristóvão, que tinha um açougue no
Santo Cristo. Antes da partida, foi servido café com leite e pão doce.” Segundo
explicou, no Vasco os jogadores tinham preparação física, enquanto que eles
só treinavam quando dava. A maioria trabalhava nas fábricas e, normalmente,
só chegava na hora do jogo, trazendo a chuteira debaixo do braço. O modelo
era nacional, comprado na loja Superball, e o clube oferecia só a camisa e o
meião. A chuteira tinha travas fixas de couro presas com pregos e não tinha
como substituir em dia de chuva.
Meu pai ficou no São Cristóvão de 1954 a 1956. Depois foi para o clube
da Portuguesa, já como jogador profissional, justamente numa fase em que o
time tinha passado para a primeira divisão. A sede ficava na Rua Barão de São
Félix, mas depois que o Jóquei Clube acabou com o hipódromo que existia na
Ilha do Governador a Portuguesa construiu um estádio lá. Jogou no time de
1956 a 1957. Depois, nunca mais, por causa da reviravolta na vida e,
principalmente, da sua doença. Meu avô Oswaldo tinha, ele mesmo, sido
goleiro reserva do titular Jaguaré no time do Vasco da Gama, mas nunca quis
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que os filhos jogassem, porque naqueles dias o esporte não dava dinheiro. Por
isso, não incentivou os filhos e ficava contrariado quando meu pai dizia que
queria investir no futebol.
Naquele meio, todo mundo tinha apelido. “Era uma forma de a gente se
livrar dos meganhas, como chamávamos os policiais militares, que ficavam
numa força policial instalada no Morro do Pinto.” Jogar futebol era proibido,
porque a bola podia bater numa daquelas senhoras ou quebrar a vidraça do
armazém. Por isso, os codinomes eram Dondoca (um negro que perdeu um gol
alegando que o cabelo “lhe caiu no olho”), Doquinha e o dele, Pelado, como
era conhecido até 20 e poucos anos. “Quando sua mãe me conheceu, todo
mundo ainda me chamava de Pelado.” A origem tinha a ver não só com o corte
exótico de cabelo, como também com um programa da Rádio Nacional. “Eu
sempre fui fanático pelo Flamengo!” No tal programa, um personagem
chamado Peladinho dizia: “Doutor Rube, você é o maior!”, em referência a um
meia direita do time.
O cabelo curto também era para não ter trabalho. “Sempre gostei muito
de limpeza. Chegava no barbeiro e mandava raspar.” Só ele usava esse corte.
Chegava em casa e, conforme dizia, era mais fácil, porque depois do banho
não precisava pentear. Já o irmão mais velho costumava sofrer na mão do pai,
que o pegava para arrumar o cabelo comprido, e doía bastante tirar os nós.
“Meu pai dizia que ia pentear as melenas dele. Já eu nunca fui vaidoso.”
Naqueles anos de vida mais dura e, ainda assim, mais leve, o carnaval
era o ponto alto do ano, em especial junto aos mais pobres. Meus avós
paternos adoravam se fantasiar e há lindas fotos de família, com todos
paramentados. Já na geração de meu pai, com a filharada e a grana mais
curta, o mais comum eram os homens saírem vestidos de mulher. Meu Tio Nô,
por exemplo, arrumava uma camisola qualquer e saía pela rua. Papai conta
que só se arriscou uma vez e, mal chegou na esquina, se sentiu tão ridículo
que voltou resmungando para casa. Mas se no nível pessoal ele não tinha lá
muito entusiasmo pela festa da alegria, certamente colecionava histórias vistas
e vividas junto à coletividade. Como aquela que aconteceu num bonde. Em
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alguns trechos da cidade, os trilhos das linhas de bonde passavam bem perto
um do outro. E ele contava que, num carnaval, viu que um sujeito todo vestido
de mulher, usando peruca, era o folião mais doido de um bonde daqueles. Só
que, assim como nas partidas do Maracanã, era comum que alguns rapazes
mais extremistas levassem consigo para dentro do bonde um barril cheinho de
urina, coletada pacientemente nos dias que antecediam a festa de rua. Pois
não é que, assim que os bondes se cruzaram, e o folião modelo, acompanhado
de um sobrinho, berrava uma marchinha a plenos pulmões, acabou levando
uma carga direta de mijo pela cara, e engoliu um bocado, chegando inclusive a
se engasgar? Meu pai dizia que o garoto só chamava: “titio, titio!” Esse era o
espírito lúdico do carioca na primeira metade do século XX.
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era transportado num outro canudo gigante, esse de metal, que o vendedor
carregava nas costas. Sua chegada era devidamente anunciada pela matraca:
uma espécie de taco de madeira onde era presa dos lados, ali pelo meio da
largura, uma trava de metal, e que fazia o maior barulhão quando ele sacudia o
instrumento. Em dias de sorte, o ping-ling poderia ser adquirido junto com uma
chupetinha. Esse era um doce ingênuo, feito basicamente com açúcar
queimado que era moldado em forma de chupeta e um verdadeiro buquê
daquele vermelho translúcido vinha fincado no topo do canudão de metal.
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Mais memórias de meu pai
Nem todo mundo que morava no Morro do Pinto era assim tão pobre. O Rafael,
por exemplo, era dono de uma joalheria na Rua da Carioca e, todo dia, subia
com embrulho de queijo Palmira, chamado também de queijo de cuia, presunto
e outras iguarias. Quando ele parava para tomar uma no Bar do Galego, a
galera ficava pedindo: ”dá aí um pedacinho de queijo para a gente comer com
a cerveja!” E ele dizia que não, que era para a família dele. Quando a situação
econômica piorou para todo mundo, ele passou a embrulhar pedras e levar o
embrulho como sempre, para não perder o status. Até que, um dia, deixou no
balcão, a rapaziada abriu, viu o conteúdo, mas ele não perdeu a pose. “Podem
se servir.” Ele também explorava a cantina do Clube Dramático, que era mais
um clube de futebol. Teve um dia que um freguês pediu um churrasquinho mas
reclamou porque estava duro. Rafael levou de volta para a cozinha, jogou a
carne no chão, sapateou bastante em cima, cuspiu, colocou de volta na grelha
e trouxe com uma cerveja. A reação do cliente: “agora sim! Por que você não
trouxe logo desse jeito?” De certa forma, se poderia dizer que meu pai cresceu
praticamente dentro de um livro, que era cheio de personagens dramatúrgicos
e situações-limite.
Meu pai jogou em diversos times. Como o Canadá, que ficava na área
do Canal do Mangue e do baixo meretrício. Ou o Ouro Verde, com sede na
Rua Nabuco de Freitas, ou o Rui Barbosa, que ficava no Estácio. No Atília, de
Santo Cristo, no entanto, não jogou alegando que “santo de casa não faz
milagre”.
Papai foi morar no morro aos oito anos e ficou até mais ou menos uns
13. Depois que seu Tio João — o mesmo da fábrica de guarda-chuvas —
ganhou pela terceira vez na loteria federal e se mudou para uma mansão no
Grajaú, a família de papai foi morar na casa dele, no chamado Castelo, porque
era a casa mais bonita da Rua da América, no bairro de Santo Cristo. Mas ele
dizia que todo dia subia o morro, até se casar e ir para a Tijuca, porque era lá
que estavam seus amigos. No dia 2 de novembro de 1956, feriado de finados,
fundou o time de futebol Americano e participou, inclusive, do primeiro jogo,
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realizado no campo de um quartel do Corpo de Bombeiros que existia onde,
hoje, fica a Rodoviária Novo Rio. O Americano começou bem, ganhando contra
um outro time lá da área mesmo. Segundo meu pai, era muito comum existir
times pequenos e era onde se formavam os grandes jogadores.
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segunda divisão, do chamado departamento autônomo. A partida terminou
empatada em um a um e a imprensa criticou bastante a seleção. Historiadores
do esporte, vale à pena conferir.
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tinha um péssimo treinador, um português chamado Cândido de Oliveira." No
América havia também um jogador do Morro do Pinto, Jorginho. Então, todo
domingo ele estava lá. Em relação às torcidas organizadas, a situação era bem
diferente. "Só havia uma charanga do Jaime de Almeida, do Flamengo. Depois
um torcedor chamado Ramalho apareceu com uma torcida para o Vasco."
No curso comercial básico da Suesc, que fez até a quarta série, as aulas
iam das 8h ao meio-dia. Ali, foi suspenso duas vezes. A primeira, por uma
semana, porque se recusou a assistir às aulas de Inglês com uma professora
portuguesa chamada Dona Alda, que insistia na fonética. Pensava poder
conseguir, com seu protesto, o retorno da professora anterior, Dona Ione, mas
a tática não deu certo. Da segunda vez, se envolveu numa briga dentro de sala
de aula, para defender um colega que apanhava de outro garoto mais forte.
Filho de uma família tão pobre, a explicação para conseguir estudar, ainda que
por pouco tempo, numa escola profissionalizante vinha de relações familiares.
O professor Ademir Sampaio, que trabalhava na Suesc e havia sido também
diretor do tradicional Colégio Pedro II, era casado com a irmã de seu avô
materno, o legítimo. Esse, chamado Armando Rodrigues da Silva, nem mesmo
sua mãe, filha dele, chegou a conhecer direito. Ela nasceu em 1911 e ele, que
era trocador de bonde, deve ter morrido por volta de 1915, de tuberculose
pulmonar. Minha avó Ynaiá era a filha mais velha e depois nasceu Yara.
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eram parentes pelo lado da minha avó. Certo é que esse homem, professor e,
se não me engano, também ex-diretor do Colégio Pedro II, além de dono de
um colégio no Méier, freqüentemente socorria a família em horas de aperto
financeiro. Meu pai dizia que ele fazia isso com muita elegância. Ninguém
abusava, justamente porque ele era sempre tão generoso, e todo mundo ficava
constrangido de ficar incomodando. Mas ele chamava a visita na biblioteca,
colocava o dinheiro dentro de um envelope e entregava ao familiar. Foi assim
que meu pai se safou de algumas crises. Parece que esse homem bom morreu
cedo e não deixou descendentes. Acho que ele era casado com a Tia Olga,
uma velhinha simpática e elegante, que conheci quando criança, ou com uma
irmã dela, não sei mais. Alguém da casa tinha batizado minha madrinha, a irmã
mais nova de meu pai, e foi para lá que ela foi encaminhada, quando minha
avó morreu.
O Tio João, outro poderoso da família, era casado com Miloca, irmã de
seu pai Oswaldo. Ele tinha carro importado, geladeira e, segundo meu pai,
parecia um alemão, sempre vermelho e careca, mas era um bom sujeito, pai de
duas filhas. Foi graças a esse tio que foram para o Castelo. Ele ficava em
frente ao Morro da Favela, o primeiro que jamais existiu no Rio de Janeiro.
Mais tarde, esse morro foi dividido ao meio: uma parte foi rebatizada de Morro
da Providência e existe, até hoje, considerado como a favela mais antiga da
cidade, e na outra metade foi construída a Vila Portuária, para alojar as famílias
dos trabalhadores do Cais do Porto. Tenho ainda parte da família do irmão
mais velho de meu pai que vive na Vila Portuária. Mas quem morava no Morro
da Favela era sua tia Gieta, que também tinha dinheiro mas, no dizer dele, era
"miserável", porque só queria guardar e nunca gastava nada. Para alimentar
sua criação de porcos, andava pela rua de restaurante em restaurante
coletando restos de comida numa lata enorme que carregava na cabeça,
enquanto o chorume lhe escorria pela testa abaixo. Como sua figura era
constrangedora, apesar de rica, os sobrinhos se escondiam quando a viam,
para não passar vergonha na frente dos colegas, e ela reagia aos gritos.
"Venham cá falar comigo. Vou fazer queixa ao seu pai!" Quando achou que já
tinha juntado dinheiro bastante, comprou terras — uma fazenda, segundo meu
pai — no bairro de Rocha Miranda e sumiu da favela. A diferença entre o Morro
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da Favela e o Morro do Pinto, segundo ele, é que na primeira havia casas de
tábua e, logo, ninguém pagava aluguel. No Morro do Pinto, moravam os
operários em casas de alvenaria. Havia mais uma ou duas questões
importantíssimas para distinguir os muito pobres dos mais pobres ainda. "Se no
Morro do Pinto uma família tinha seis filhos, no Morro da Favela ela tinha 12,
13, 14... Quando o chefe da família recebia o pagamento, geralmente às
sextas-feiras, ele ia direto para o boteco tomar cerveja e metade do salário
ficava ali, na mesa do bar."
Faltou falar, ainda, da única tia materna de meu pai, a Yara. Ela era
muito gorda, barulhenta como a mãe dela, Olympia, e adorava gatos. Tudo na
casa dela lembrava o animal. Eram diversos objetos de decoração, como
almofadas bordadas com cara de gato. E, se não me engano, assim como sua
mãe, também mantinha o marido na rédea curta. O coitado tinha dois
empregos, um de dia e outro de noite, para dar à esposa do bom e do melhor,
já que era totalmente louco por ela. Tiveram três filhos, meninos, e meu pai
dizia que os garotos eram verdadeiros capetas. Do tipo que maltrata animais.
Uma vez, meu pai chegou a ver um dos primos pegar alguns pregos, um
pedaço de tábua e crucificar um pintinho!
Yara era bem maior — mais alta e mais forte, para não dizer pesada —
do que o marido. Acho que o nome dele também era João. Mas morria de
ciúmes dele. Meu pai dizia que ela era bem feia e, ele, um homem bonito, de
olhos azuis, que havia nascido numa boa família, extremamente bem educado,
e cuja mãe sofria de desgosto e chorava ao vê-lo se casar com uma mulher do
povo, ir morar no morro, trabalhar como um escravo e ainda sofrer na sua
integridade física. Porque se o pobre João chegasse em casa um pouquinho
mais tarde, por qualquer atraso na condução, Yara já o esperava na porta
pronta para “cobrí-lo de porradas”. Era comum que desse surras nele. Ele
jamais revidava. Quando ela morreu, subitamente, de um enfarte, não levou
muitos dias e ele morreu também, de pura tristeza...
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Parentesco
Meu pai era pelo menos dois. Um quando acordava de manhã, descansado e
bem disposto, barba feita, e saía cedo para o trabalho. O outro era aquele que
voltava à noite, cansado, desesperançado e, na maioria absoluta das vezes,
bêbado. Parecia que ele era duas pessoas diferentes. O primeiro tinha uma
leveza, uma alegria, um jeito positivo de ser, divertido, adorável. O segundo
cheirava a suor, falava com a língua enrolada, piscava com dificuldade,
tombava para os lados e, desse, eu só queria distância.
Entender quem foi meu pai passa por entender sua trajetória
profissional. Filho de famílias portuguesas ou, pelo menos, de quase
portugueses nascidos no Brasil, parecia que trabalho era uma das poucas
palavras que fazia sentido para ele. Ou, pior: que davam sentido à sua vida.
Meu pai era do tipo de homem que odiava os feriados, principalmente o
carnaval, porque era longo, já que seu pior castigo era não poder sair para
trabalhar. Durante muitos anos ele trabalhou de segunda a sábado e, alguns
anos, quando já era sócio minoritário da loja de material de construção em que
terminou sua vida útil, até mesmo aos domingos abriam até o meio-dia.
Uma passagem ilustra bastante bem o fanatismo com que meu pai
encarava o dever de trabalhar. No ano de 1966, houve uma tremenda enchente
no Rio de Janeiro e ele já trabalhava na mesma lojinha em que se aposentou
na Barra da Tijuca. Dentre os prejuízos à cidade, contava-se uma espécie de
avalanche em toda a extensão de acesso ao bairro no trajeto feito a partir da
Zona Sul, livre apenas para pedestres, e uma estrada destruída pelas árvores
que desabaram no acesso pela serra a partir da Tijuca. Pois meu pai, que já
era gerente da loja, acompanhado de seu irmão mais novo, também
funcionário, tomou um ônibus até o Leblon e dali seguiu a pé por não sei
quantos quilômetros no meio da lama até chegar à Barra da Tijuca. A loja, em
frente à igreja de São Franscisco de Paula, está lá até hoje. Os dois levaram
muitas horas para ir e tiveram que repetir a aventura para voltar. Como almoço,
houve apenas uma dúzia de bananas. Mas meu pai dizia não ter se
arrependido da empreitada, já que, por causa dos estragos da chuva, a
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comunidade precisava de tudo, pás, vassouras, pequenos bujões de gás, e
aquela era a única loja de material de construção na época.
A seguir, o relato que ele mesmo fez sobre o tal evento da ida a pé para
o trabalho, daquele nosso livro sobre a Barra da Tijuca.
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Leblon, subindo a Avenida Niemeyer e passando por cima da barreira. Levei,
junto com o Eli, duas horas e meia até chegar à Praça Euvaldo Lodi.
Almoçamos uma dúzia de bananas prata que compramos na quitanda do Xico,
quando finalmente alcançamos o Largo da Barra. Voltamos da mesma maneira
que nós fomos: a pé. Caminhamos da Avenida Niemeyer até a Praça Antero de
Quental, onde ficava o ponto final do ônibus 172, Rodoviária-Leblon.
53
Alguns acidentes
“Assim que a loja maior ficou pronta, eu tinha em mente instalar uma
serra circular para desdobrar madeira. O pessoal que freqüentava a antiga loja
tinha como hobby aproveitar o fim de semana para fazer trabalhos de
marcenaria e carpintaria. Naquela época, não tinha muita coisa para fazer na
Barra. Levavam, geralmente, uma relação que pedia sarrafos de 5 m x 2 m
aparelhados — a madeira é bruta e um sarrafo aparelhado é quando se deixa a
madeira lisinha. Falei com o Elias, dono da loja, e fui ali no Castelo, no Centro
da cidade, e encomendei uma serra circular de 7,5 cavalos de força. Passamos
a comprar a madeira aplainada e só desdobrar de acordo com a largura que o
freguês quisesse. Ninguém mais vendia madeira assim, só tabuado bruto para
construção, para fazer fôrmas e receber concreto. Um certo dia, houve um
caso interessante com um professor que morava no Recreio dos Bandeirantes.
Era boa pessoa, mas muito exigente, metódico, trazia a relação de material e
ficava ao lado, observando. Eu estava desdobrando um pranchão de três
polegadas por 12 polegadas. A serra circular ficava um pouco à frente da
fossa. Estou eu lá empurrando aquele pranchão pesado de peroba rosa. Tinha
4,5 m de comprimento, 7,5 polegadas de espessura e 30 polegadas de largura.
Também trabalhávamos muito com pinho e canela. Nós tínhamos um cavalete
e pousávamos a peça em cima dele. Havia um tubo galvanizado que ia girando
à medida que fosse cortando a peça. Precisava ter muita atenção no serviço,
porque em caso de descuido se estava sujeito a perder os dedos. Eu ficava
sempre na testa e o Louro na outra ponta, puxando. Mas eu me descuidei, pisei
na ponta da tampa da fossa, que não estava bem cimentada, sem caixilho, e
ela suspendeu e eu cai até a cintura. Não fui direto porque ela tem um
travessão no centro e bati ali. Pegou entre as pernas. Fui ralando as pernas
dentro daquela sujeira de banheiro. Por sorte, eu morava lá bem perto. Fui ao
consultório do Dr. Hélio, no mesmo prédio, e ele disse: ‘vou ter que fazer
curativo, você vai para casa, lava com bastante sabão as pernas, vai tomar
antibiótico’. Eu olhei e não fiz nada disso. Fui ao Bar do Gaúcho e tomei dois
conhaques Dreher. Graças a Deus, não tive nada. Só tive que agüentar a
gozação do pessoal.
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Mais uma ocorrência interessante foi a seguinte. O Louro (um negro que
trabalhava na loja) tinha acabado de vender parafina, que vinha em tabletes
grandes de cerca de cinco quilos de peso cada uma. A gente vendia por
gramas, 100, 200, batia com a marreta para partir. Era uma hora em que não
tinha freguês e o Louro ficou me desafiando. ‘Pôxa, você precisa de marreta
para quebrar isso aí, quebro na mão!’ Eu respondi: ‘se tu quebra, quebro
também’. Ele era lutador de boxe e muito mais forte que eu. Eu disse: ‘segura
essa placa aí, inteirinha’. Tomei distância e.. ‘há!’. Dei uma porrada com a parte
de baixo da mão e começou a inchar perto do osso do pulso na hora. Cheguei
em casa e avisei que ia ao pronto socorro. Minha filha caçula, Sandra,
começou a chorar, se lamentando: ‘mas eu só tenho esse pai!’. No Hospital
Municipal Souza Aguiar, puseram uma atadura com água vegeto-mineral, que
ficou uma semana. Nesse período, eu não podia tirar nota fiscal porque não
conseguia escrever.
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freio e capotar de frente. No entanto, o carro bateu o pneu dianteiro direito no
meio-fio e capotou de lado. Ficou com as rodas para o ar. Foi bem em frente à
residência do Dr. Rubens Porto, que era Procurador da República e me
conhecia da loja Barrinha. A família dele nos socorreu, ajudou a tirar as
crianças do carro e nos levaram para a sua casa.”
Embora no seu relato para o livro sobre a Barra papai tenha sido
bastante sucinto e discreto, minhas memórias vão um pouco além. Aquele dia,
pela nossa própria ida juntos ao clube, o que nunca acontecia, já era, em si,
extraordinário. Que levássemos nossa prima Rita conosco tornava a coisa
ainda mais extraordinária. Passamos a manhã e o início da tarde lá, na piscina,
tiramos fotos, era quase um sonho de tão incrivelmente bom. Na volta para
casa, iam meus pais nos bancos da frente e as três meninas (eu dormindo) no
banco de trás. Eu cheguei a pensar que era um pesadelo e, portanto, nem abri
os olhos, quando comecei a ouvir o barulho dos pneus cantando e minha mãe,
que perguntava ao meu pai, o tempo todo: “o que é isso, o que é isso?” Depois,
veio um barulhão e a nítida sensação de estarmos todos dentro de um
liquidificador gigante. O carro capotou umas três ou quatro vezes, e foi tudo
muito rápido.
Eu tinha nove anos, mas me lembro como se fosse hoje. Quem viu o
carro dizia que não tinha escapado ninguém vivo. Com a força do impacto, meu
pai foi cuspido pelo vidro da frente. Ficamos dentro e minha mãe segurava com
o braço o assento, para que ele não caísse em cima da gente. A gasolina
começou a escapar e havia risco de explosão. Lembro do contato do meu rosto
com o asfalto e de cacos de vidro por todos os lados. Em questão de
segundos, uma multidão, na rua até então quase deserta, se formou em torno
do carro. Eu ouvia vozes dizendo que era para tirar a gente correndo. Saímos
pela janela lateral de trás, que era mínima. A última a sair foi minha mãe e,
quando a colocaram de pé, ela simplesmente desmaiou. Eu achei que ela tinha
morrido e comecei a gritar. Meu joelhos estavam bastante ralados. Meu pai
tinha perdido partes do ombro e do braço direitos, que saíram ralando no
asfalto quando ele foi parar longe. Minha mãe teve, na verdade, uma espécie
de trauma na coluna cervical, mas nada grave. Minha prima machucou a
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orelha, superficialmente, Dias depois, se descobriu que eu tinha sofrido uma
fissura no braço direito, o que me custou duas semanas de gesso. Minha irmã
não sofreu um arranhão. Embora que, nos dias subseqüentes, todos nós
víamos sair de dentro das orelhas um bocado de cacos de vidro, toda vez que
dávamos leves batidinhas logo acima na cabeça.
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Verdade que meu pai sempre foi um péssimo motorista. O tal fusquinha
azul, que depois de recuperado do acidente virou vermelho, era propriedade de
meu pai e de meu tio mais novo, que ficava com o carro durante a semana e,
nós, no sábado e domingo. Meu pai dizia que não tinha a menor habilidade
manual. Realmente. Quem consertava tudo lá em casa era sempre a minha
mãe. Volta e meia, quando saía dirigindo, meu pai voltava contando alguma
estripulia. Como no dia em que, sem conseguir desviar de um gari com sua
carrocinha – nos anos 1970 elas eram bem grandes, com uns 2m por 1,5 m, de
madeira — passou tão perto que o sujeito acabou caindo com a carroça dentro
do Rio Maracanã. Fazer meia embreagem naquelas ladeiras do Alto da Boa
Vista era uma possibilidade muito além do que meu pobre pai poderia imaginar
e qualquer interrupção no tráfego à frente nos fazia engolir em seco, porque já
antevíamos que ele iria esbarrar no carro logo atrás, sob os protestos sempre
veementes dos outros motoristas.
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Dificuldades
Meu pai nunca tirou férias na vida. Trabalhou desde a infância até depois da
aposentadoria e mais além, e só se retirou de vez no fim de 2000, quando já
estava com 63 anos. Foi aí que ele fez algumas descobertas importantes: a
primeira, que estava doente com câncer de próstata, doença que viria a matá-
lo em novembro de 2007. A segunda que não se entendia tão bem com minha
mãe, apesar dos cuidados dela, quanto tinha acreditado a vida inteira. O que,
para ele, se tornou um verdadeiro suplício, porque a convivência entre os dois
foi se desgastando muito no cotidiano, embora ele saísse todos os dias, com
os pretextos de sempre: fazer um joguinho — geralmente do bicho ou nas
corridas de cavalo — comprar cigarro e, embora não admitisse claramente,
beber.
Quando já estava fraco e tão doente, minha mãe foi a melhor enfermeira
que Deus já colocou na Terra. Cuidava dele com tanto carinho, firme ali no
posto, 24 horas por dia, cansada à exaustão, mas sem jamais se queixar. Nos
últimos anos, além do câncer e dos acidentes que ele teve em que quebrou
ambos os quadris, um de cada vez, e por último o braço direito, sendo que
duas dessas quedas foram causadas provavelmente por causa do álcool, o que
só fez piorar seus problemas de locomoção e movimentação, meu pai passou a
sofrer de incontinência urinária. Era como ter um bebê em casa. No final, nem
o fraldão noturno dava conta do volume de urina. E minha mãe ali, abnegada,
cuidando de um monte de roupas dele e de cama, num rodamoinho que não
tinha fim. Nada que eu faça por ela vai poder pagar a gratidão que eu sinto por
ter cuidado tão bem do meu pai. Talvez por isso me preocupe tanto com seu
bem-estar, embora nem sempre eu ache que ela entenda isso, já que
pensamos de formas tão diferentes. É aí que entra minha irmã, capaz de fazer
a ponte. O importante é a gente conseguir se amparar mutuamente. Sei que
temos, umas nas outras, verdadeiras amigas.
Meu pai tinha preferência por conhaque, mas acredito que, nos bares,
bebesse também cerveja e até cachaça. Em casa, havia sempre a cervejinha
e, em dias de festa, também uísque. Mas, na nossa vida adulta, minha irmã e
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eu descobrimos que papai chegou numa fase em que era capaz de beber
absolutamente qualquer bebida alcoólica que encontrasse pela frente, e o
quadro piorava quando ele se aborrecia com alguma coisa. Com qualquer
coisa. Era bem freqüente.
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por causa das doses de morfina, ele ainda conservava na mão uma posição
dos dedos de quem segura um cigarro, quando não perguntava, olhando a mão
vazia, se não estava fumando... Até o fim, o cigarro foi seu mais fiel
companheiro, e apesar de saber que ele deve ter ajudado a matar meu pai, não
consigo sentir raiva desse vício. Nos dias que antecederam a internação, ele
estava tão fraco que era eu quem tinha que acender os cigarros para ele, e
fazia com a maior boa vontade. Era como o banquete do condenado.
Só uma tarde, quando éramos crianças, meu pai nos levou à praia, na
Barra da Tijuca, perto de onde trabalhava. E foi a praia mais estranha de que
consigo me lembrar. Saímos da Tijuca, de ônibus, saltamos no então centro do
bairro, caminhamos pela Rua Euvaldo Lódi até a praia, entramos no mar, ele
deu umas braçadas e em menos de 20 minutos já estava nos chamando para
sair e voltar para casa. Não nos sentamos na areia, não conversamos, não
comemos nada, simplesmente saímos pingando água salgada para outro
trajeto de mais de uma hora de ônibus de volta até em casa. Com minha mãe
era bastante diferente, porque ela também sempre gostou muito de banho de
mar. Levávamos horas, sempre de manhã, no horário de melhor sol, e era uma
verdadeira farra, embora ela não fosse nenhuma exímia nadadora e sempre
tivesse ficado na beirada, tomando banho de baldinho. Mas minha irmã e eu
íamos até junto dos surfistas, nadávamos bem e não saíamos da água. Graças
à mamãe, nossa infância também foi repleta de consumo cultural, do tipo ir ao
teatro infantil, embora o forte mesmo tenha sido sempre a ida ao cinema.
Também foi ela quem nos incentivou e bancou os cursos de idiomas que
fizemos, desde cedo, e que nos serviram bastante na vida profissional.
Durante dois anos, entre 1967 e 1969, moramos no único prédio que
ficava em cima da loja de meu pai, quase na esquina da mesma Rua Euvaldo
Lódi. Eu acho simplesmente espantoso como é que meu pai consegui ficar ali
naquele endereço a maior parte do dia, durante cerca de 36 anos, com alguns
curtos intervalos, sem jamais ter tido a iniciativa de simplesmente andar até o
fim da rua, nem que fosse apenas para ver o mar. E, com isso, acalmar o
coração. E, com isso, lembrar que existe um Deus. E, talvez, assim, renovar
suas energias. Mas não. Meu pai parecia ter um trauma, uma frustração, tão
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grandes que o tornavam quase um deficiente, mas de uma deficiência que não
era visível a olho nu, uma deficiência de alma, uma forma abstrata de invalidez,
que não o deixava nunca, e que era, possivelmente, o motivo que o fazia
beber. Então, nem na sua pausa do almoço, quando esquentava a marmita que
minha mãe preparava, nem na hora de ir embora, quando preferia ir até o
balcão do bar tomar a primeira da noite, passava por sua cabeça ir beber numa
fonte de esperança. Ele não se importava com o que nós três pensássemos
quando chegava em casa, lá não muito bem. Isso nunca pesou para ele. Fez o
que quis, à revelia dos nossos sentimentos. Só quando o porre era muito forte
ou quando ele fazia alguma confusão muito grande, ou caía na rua, e se
machucava, se lembrava de nos pedir desculpas, envergonhado na manhã
seguinte. O constrangimento era grande, porque a gente ficava sem saber o
que dizer. Não foram poucas as vezes que minha mãe foi recolhê-lo caído na
rua, mesmo quando já estava doente com o câncer.
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sair correndo dali, mas não tinha para onde, porque não tinha nem um quarto
só pra mim. Talvez eu deva ir conhecer o Havaí qualquer dia desses, só para
ter uma noção do que a gente perdeu...
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Choro
Foram bem poucas as vezes que vi meu pai chorar. Tão poucas que fica até
difícil de lembrar. No auge da doença, meses atrás, quando ele mal suportava
as dores nos ossos por causa da metástase do câncer de próstata, e, nos
últimos dias, apesar das doses de morfina, ele nunca chorou. Nunca gritou.
Nunca pediu misericórdia. Os momentos mais difíceis eram quando ele se
deitava ou se levantava da cama. Tinha que ser tudo muito devagar, porque
doía muito. Ele apenas apertava os olhos e gemia baixinho. Às vezes, dizia, “ai,
meu Deus, meu Deus”, mais nada. Vou me lembrar disso se um dia estiver
gravemente doente. Vou querer ser valente como sempre foi o meu pai.
A segunda vez que vi meu pai chorar foi dia 8 de fevereiro de 1986. Eu
já estava com quase 22 anos. O motivo foi a morte do nosso cachorrinho
pequinês, que estava na família desde que eu tinha oito. O bichinho morreu de
enfarte, já estava velho, e ficamos todos muito abalados. Ele simplesmente foi
parando de comer, de beber água e, numa tarde de sábado, num táxi a
caminho da veterinária, estrebuchou. Entramos correndo, minha mãe e eu, na
veterinária, mas o doutor foi logo anunciando que ele estava morto. Dei um
grito igual a esses de novela e começar a chorar. Ele falou: “não tem problema,
aqui é lugar disso mesmo”. Quando meu pai morreu, levei bem uma semana
para conseguir chorar. E é claro que eu não gostava mais do cachorro do que
dele. Com o dobro da idade, mais sofrida e, espero, mais espiritualizada, vi no
desenlace da vida de meu pai muito mais uma libertação, o fim do seu
sofrimento, o que me deixou, de cara, bem mais aliviada do que triste.
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vez que vi meu pai chorar aconteceu alguns anos antes, provavelmente em
1976. Ele havia trabalhado como gerente de uma loja de material de
construção entre 1964 e 1973. Dali até 1976, quando foi convidado para
gerenciar outra loja também na Barra da Tijuca, o que conseguiu foi uma vaga
de vendedor de madeira sob as piores condições possíveis e que só fez mal a
ele e, indiretamente, a todos nós.
Eu nunca tive uma boa relação com o dinheiro e acho que isso tem a ver
com os modelos da minha infância. Acho que meus pais, de origem muito
pobre, também não sabiam lidar muito bem com ele. De um lado, eu percebia
uma certa aversão católica à idéia de usura. Nossos pais nunca nos deram
mesada e costumavam dizer que dinheiro não era assunto para criança. Zero
de “A ética protestante e o espírito do capitalismo” de Weber. Durante anos, o
único dinheiro que nos caía nas mãos era o do lanche no recreio do colégio —
e, mesmo assim, só quando já estávamos grandinhas — e, mais tarde,
também, o da passagem do ônibus para ir e voltar do colégio. Nos anos em
que meu pai foi gerente da loja, e tinha um salário relativamente bom, nunca vi
ninguém guardar dinheiro para uma necessidade no futuro que, afinal, estava
por vir. Se alguém perguntar à minha mãe hoje, ela vai dizer que,
simplesmente, não sobrava nada para guardar. Mas não era bem assim.
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No bairro da Tijuca, onde crescemos, e onde ela vive até hoje, existia
uma loja de roupas infantis chamada A Mirim Boutique e, durante anos, toda
semana ela nos levava lá para comprar um vestido novo. Comprávamos
também sapatos combinando, em geral na sapataria Gambier ou na Polar, e
bolsas também, geralmente na Sloper. Nunca viajamos de férias antes dos
meus 17 anos, quando fomos passar um fim de semana (sem meu pai) na casa
de praia do chefe dele, em Saquarema. Mesmo nas piores crises, minha mãe
fazia, no máximo, alguns trabalhos manuais de crochê, como uns cachorrinhos
que cobriam o rolo de papel higiênico, para vender a outras donas-de-casa que
conhecia. Nunca vi meu pai nem minha mãe tocarem na palavra estudo para
eles mesmos. Diziam que não pensavam em realizar o sonho da casa própria
para não nos sacrificarem, já que teríamos que abrir mão, por exemplo, do
refrigerante no fim de semana.
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Naquele ano do primeiro choro de meu pai a que assisti, houve também
um outro lance memorável, algo traumático, e igualmente sem sentido para
mim. Até então, tínhamos estudado numa escola municipal, mas minha mãe
resolveu nos colocar num colégio particular para fazer o ginásio que, na rede
pública, era sabidamente fraco. Teve a infeliz idéia de escolher um colégio de
freiras, onde passei dois dos piores anos da minha vida. Era tudo tão rigoroso
que nem meninos eram autorizados de estudar lá. Feita a matrícula,
deveríamos ir conversar, pessoalmente, minha irmã e eu, para ficarem nos
conhecendo. Mas nesse dia ela não pode ir, porque não tinha roupa. Nessa
fase de vacas magras, tirando os shortinhos e camisetas com que brincávamos
no playground do nosso prédio ou o uniforme da escola, cada uma só tinha um
vestido e o dela era a chamada “frente única”, com as costas à mostra, um
modelo totalmente inapropriado para sua primeira visita a uma escola de
freiras.
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Cabelos e tijolos
Sei perfeitamente a fase da minha vida em que mais me aproximei de meu pai.
Talvez porque ela não tenha acontecido lá muito cedo. Eu estava com 28 anos
e passando por algumas mudanças significativas. A mais flagrante, talvez,
fosse em relação ao meu cabelo. E se tratando eu de uma mulher, essa não é
uma informação secundária, mas absolutamente relevante. Cabelo. Taí uma
característica que eu gostaria de ter herdado do meu pai. Quando jovem, ele
tinha uma cabeleira preta linda e, com o envelhecimento, ela foi ficando
grisalha e, no fim da vida, era quase absolutamente branca, mas de um branco
prateado, sedoso e brilhante como eu nunca vi. Minha vida inteira ouvi as
pessoas elogiarem o cabelo de papai. Homens, principalmente os carecas, e
mesmo mulheres, tinham um único qualificativo para definir a cabeleira dele:
linda!
Já eu não tive a mesma sorte. Não que meu cabelo seja feio. Ele apenas
é parecido demais com o meu espírito mais rebelde. Quando eu era criança,
todo mundo elogiava sua cor. Era castanho bem claro e com um frisado bonito
como costuma ser, em geral, cabelo de criança. Até os nove anos, usávamos
minha irmã e eu uma cabeleira longa, mas que só podíamos manter presa por
determinação de minha mãe. Ou num rabo de cavalo, o mais comum, ou como
maria-chiquinha, que eu usava bastante entre os cinco e os sete anos. Minha
irmã não gostava dessa última variante. Para soltar os cabelos, tínhamos que
pedir quase que autorização à minha mãe. Ela alegava que os cabelos soltos
embaraçavam muito. Realmente. Toda vez que lavávamos a cabeça, e que
ninguém me pergunte por quê isso só acontecia uma vez por semana, era uma
choradeira danada na hora de desfazer os nós. Precisava muito creme rinse, o
equivalente, na época, ao condicionador contemporâneo. Minha bisavó Amélia,
avó de minha mãe, dona de uma longa cabeleira que usava presa num coque,
se solidarizava com nosso pleito e, se estivesse lá por casa, se oferecia para
pentear nosso cabelo, o que fazia sem nenhum estresse e com o maior
carinho.
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Houve até uma ocasião em que, de tanto se remexer na cadeira, minha
irmã acabou levando uma escovada na cara. Minha mãe perdeu a paciência e
deu com a escova do lado do rosto dela. Como a escova era de um plástico
duro e quebrou, acabou arranhando feio o rosto da menina, e aí ela ganhou
uma espécie de prêmio de consolação: passou uns dias podendo usar o cabelo
solto para encobrir o ferimento. Na época, havia uma novela na tv Globo em
que a protagonista, vivida por Regina Duarte, escapava de um acidente de
carro com uma cicatriz horrível no rosto e a situação ficou até um pouco
caricata. Acho que o nome era Selva de Pedra. Por tudo isso, mamãe ficou
bastante animada quando cheguei em casa contando que estava pensando em
cortar o cabelo. Uma colega de turma chamada Valéria tinha feito um corte do
tipo chanel e acreditei que seria boa uma mudança.
Ela, então, nos levou ao salão de uma portuguesa, cuja filha Ana Paula
estudava na mesma turma que eu, na Rua Pinto de Figueiredo. Não poderia ter
sido maior o desastre! Em vez de apenas tirar o comprimento do cabelo num
fio reto na altura do ombro, que era o que eu tinha em mente, a mulher
inventou de cortar nosso cabelo quase do tipo Joãzinho, que fica igual a cabelo
de homem. E chegou a usar navalha, o que, dependendo do tipo de cabelo,
pode eriçar totalmente as mechas. Como nós estávamos entrando na natação
no Tijuca Tênis Clube, com aulas duas vezes por semana, o cloro acabou de
destruir o que a navalha não tinha estragado. Talvez os hormônios tenham
dado o golpe final. Só sei que, durante anos, ninguém conseguia domar nosso
cabelo, nem o meu, nem o de minha irmã. Uma das irmãs mais novas de
minha mãe, numa visita, chegou a nos ensinar a fazer a chamada “touca” no
cabelo, nas palavras dela, “para elas ficarem mais com uma carinha de
menina(!)”. A touca era enrolar o cabelo em volta da própria cabeça como um
turbante usando grampos, de preferência quando estivessem molhados do
banho, e esperar secar, para depois virar tudo para o outro lado, digamos, no
sentido horário e anti-horário. Aquela era uma maneira de conseguir sair à rua,
porque no geral baixava e alisava, mas passar às vezes um dia inteiro com o
cabelo molhado preso acabava com os fios e o estrago era ainda maior. Foram
anos fazendo touca e usando bobs.
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No final da adolescência eu tinha desenvolvido um método relativamente
confortável de lidar com meu problema capilar. Simplesmente prendia a área
da franja para cima com algum prendedor e tchau. Não ficava nada bom e,
além disso, me dava um ar por demais austero, mas era isso ou o
descabelamento total. Só no fim da faculdade dei um corte diferente, que não
me liberava de trabalhos com secador, mas pelo menos a gente já estava
começando a se entender, meu cabelo e eu. A tão sonhada paz de espírito
chegou em torno dos 40 anos, quando finalmente descobri um salão onde as
pessoas são maravilhosas e amigas e onde todo mundo me entende, a mim e
ao meu cabelo. É impressionante o que um cabelo organizado pode fazer de
bom pela auto-estima da gente. Minha última crise capilar foi no final dos 30
anos, quando, extremamente insatisfeita com meu trabalho e com meu
casamento, fui voluntariamente a um salão desconhecido e mandei eu mesma
cortar meu cabelo Joãozinho, para nunca mais, apesar de que passou longe
daquele estrago da infância.
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De volta à fase em que me aproximei de meu pai: eu estava recém-
formada, usando um penteado que, afinal, era naturalmente eu, encacheado e
livre, e demos de sair juntos. Nos fins de semana, sempre íamos a uma
exposição qualquer, de artes plásticas, de fotografias, mas o programa
preferido era a música. Sala Cecília Meirelles e Teatro Municipal eram nossos
destinos prediletos, já que meu pai adorava música clássica. Ele contava que
tinha muitos discos na juventude, ainda daqueles de 78 rotações, mas que
perdeu todos de uma vez graças a outra da muitas mancadas de seu irmão
mais velho que, depois da morte dos pais, simplesmente passou nos cobres
um armário com tudo dentro, inclusive os discos e livros de meu pai. Ele
gostava especialmente de Chopin e, na mpb, de Noel Rosa. Acredito que o fato
de ambos terem morrido de tuberculose tivesse um peso nesse processo de
identificação, já que a mesma doença marcou profundamente a vida de meu
pai.
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que tem a marca de mais uma empresa de telefonia móvel onde se realizam
shows. No entanto, naquele mês de maio de 1992, estava lá aquele negro
construindo, sozinho, uma parede lateral do galpão. E eu assistindo. Não sei se
por causa da massa ou da colher de pedreiro, que me lembram meninas
brincando de casinha, eu sempre tive quase que um fetiche por esse negócio
de empilhar tijolos. Assim, depois de uns 10 minutos observando minha vítima,
que sequer tinha se dado conta de que estava ali, olhando deliciada, me
aproximei, numa abordagem de altíssima sedução que uso sempre que desejo
alguma coisa de alguém, seja lá o que for. Fiz uma rápida apresentação — e
foi assim que conheci o nome dele — expliquei que estava esperando meu pai
e, dali a pouco, já estava revelando meu segredo íntimo na vontade de, um dia,
quem sabe, assentar um tijolo. Satisfeito por encontrar uma jovem interlocutora
— e olha que eu não era mais tão jovem, mas a vida toda eu pareci ter de 10 a
15 anos menos — que apreciava sua arte e ofício, Seu Sebastião prontamente
passou a me explicar como é que se fazia e, pronto! De repente, recebi a honra
de assentar, também, minha humilde contribuição ali naquela construção que,
no momento, eu acreditava seria eterna. Dali para a frente, toda vez que
passava pelo trecho, pedalando em direção ao aeroporto, eu parava e, às
vezes, até tocava no “meu” tijolo”, que era, de baixo para cima, o da décima
sexta fileira e, da esquerda para a direita, o quarto, numa matemática curiosa,
já que o múltiplo entre um e outro dá 64, exatamente o ano do meu
nascimento.
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O lado materno da família: meu avô José
Dos meus antepassados diretos, o único que conheci pessoalmente foi o pai de
minha mãe. Ele morreu de diabete, depois de ter amputada uma perna, e
depois a segunda, internado na Ilha das Cobras, no Arsenal de Marinha do Rio
de Janeiro, no dia 23 de dezembro de 1973. Eu tinha nove anos de idade e
acompanhei meio à distância o que estava acontecendo, porque minha mãe
sempre acreditou que doença e morte não eram assuntos para criança, assim
como vestir preto — nem pensar!
Claro que álcool demais não faz bem à saúde, ainda mais num paciente
com esse perfil, mas até aí ele parecia não sofrer muito os efeitos desse hábito.
O problema foi que, pensando em cuidar da saúde, foi atrás de uma campanha
no rádio que anunciava os benefícios da geléia real e encomendou uma caixa,
da qual todo dia tomava uma dose. Uma pequena topada no boxe com o dedo
73
mindinho do pé direito na saída do chuveiro se tornou uma ferida que nunca
cicatrizava e, daí, o enredo é sempre o mesmo. Meu avô foi sepultado no
Cemitério do Caju na véspera de Natal, talvez porque não houvesse quem se
lembrasse dele o suficiente, nem ele mesmo.
Apesar de que minha memória desse meu avô seja tão escassa,
conheço algumas histórias a seu respeito. Sei que ele viveu praticamente a
vida inteira mal instalado em pensões na Praça Tiradentes, reduto boêmio da
cidade, e que em vez da casa na Pavuna poderia ter comprado um
apartamento no Leblon, bairro nobre do Rio, sob as mesmas condições, com
vista, inclusive, para a sede do Flamengo, o clube de futebol mais popular do
país. Seu jeito de misantropo e uma verdadeira aversão à humanidade teria
sido o motivo de preferir o subúrbio. Não foram poucas as vezes que vi minha
mãe se lamentar pela escolha dele. Como nem meu pai nem minha mãe
consideravam a idéia de sair da Tijuca, na Zona Norte da cidade, ou, pelo
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menos, só aceitariam substituir o bairro por outro melhor, na visão
hierarquizada dos cariocas, como o Leblon, nós teríamos ido morar no tal
apartamento quando ele morreu mas, na casa, nunca.
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sequer teria avançado tanto na minha educação e qualificação profissional, eu
imagino.
Mas se minha avó não deu cabo da certidão da filha, minha mãe não
teve a mesma calma e destruiu, num ataque de fúria, outros documentos da
família, e isso bem diante de nossos olhos, pouco depois da morte de meu avô.
Quando ele morreu, minha mãe não vendeu logo a casa, e minha bisavó, que
em 1974 teve o primeiro derrame e só veio a falecer no ano seguinte, depois
de uma temporada em que perdeu a fala, os movimentos e a consciência,
acabou sendo instalada lá, sob os cuidados da filha mais velha, a Tia Filhinha.
Ao separar os pertences do pai para doação, minha mãe encontrou caixas e
mais caixas com fotos de quando ele era jovem, fisiculturista, músico, e vivia
cercado de mulheres. Na maioria das imagens, ele aparecia satisfeito,
abraçado em alguma beldade. “Ele maltratou muito a pobre da minha mãe! Foi
por isso que ela não quis viver com ele”, dizia, enquanto rasgava as fotos e
chorava.
A primeira que odiava meu avô era minha bisavó Amélia, mãe de Nadir,
com quem ele teve minha mãe. Ela nunca apoiou o relacionamento entre eles
e, acredito, em parte, para tentar acobertar o “mau passo” da filha, para usar
uma formulação bem da época, assumiu a menina desde bebê, o que teve
outros reflexos de prejuízo pessoal para minha mãe. Meu pai era outro que
nunca suportou meu avô. No caso dele, existia um motivo ainda mais palpável:
é difícil gostar de alguém que já ameaçou matar você com um revólver em
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punho. Foi a maneira que meu avô encontrou de convencer meu pai a se casar
com minha mãe quando ele desistiu do noivado. Certo é que os dois nunca se
deram e só começaram a conversar de verdade quando meu avô já estava
doente e meu pai, justamente nos anos de falta de trabalho, tinha tempo tanto
para acompanhar minha mãe nas visitas que ela fazia durante os meses em
que o pai esteve internado quanto ia, ele mesmo, levar alguma coisa de que o
doente precisasse. Não sei por quê, mas acredito que também aí houvesse
algum dedo de minha bisavó, como uma má influência. Ela também abominava
meu pai e foi totalmente contra o casamento dele com minha mãe.
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Mais sobre a mãe de minha mãe
Enquanto que sobre a mãe de meu pai não sei praticamente nada — era
cardiopata mas gerou seis filhos, morreu com menos de 45 anos, foi operária
de fábrica, gostava de se fantasiar no carnaval — tenho de minha avó materna
uma série de informações, passadas pela visão meio romanceada de minha
mãe. Um dos relatos mais interessante se deve a uma suposta capacidade
mediúnica de minha avó Nadir.
Conta minha mãe que, uma certa época, na casa em que Nadir morava
com o segundo marido e os cinco filhos deste casamento, começou a ter
visões. Num certo horário, recebia a visita de um frade, que aparecia na
cozinha, enquanto ela preparava o jantar. Ele contava que tinha deixado um
tesouro enterrado num dado local, o qual mostrava a ela por telepatia, e que
era facilmente identificável porque ele havia pintado sua mão direita numa
pedra que marcava o lugar. Não tinha como errar. O frade dizia que aquela era
a sorte dela e que sua alma só teria descanso no dia em que ela fosse lá para
desenterrar o dinheiro — parece que eram moedas de ouro. A cada aparição,
minha avó entrava em transe e, invariavelmente, desmaiava.
O problema é que ela não poderia falar sobre o assunto com ninguém,
mas falou. Uma certa vizinha teria ido ao lugar descrito e encontrado a fortuna
que estaria designada à minha avó. Depois disso, a mulher simplesmente
sumiu. O frade reapareceu, bastante desapontado, e foi categórico: disse à
minha avó que ela nunca mais teria sorte na vida. Como realmente não teve.
Não tem nada uma coisa a ver com a outra, mas minha mãe diz que a
mãe dela era chegada numa branquinha. Escondia as garrafas no meio de
cascos de refrigerante vazios para o marido não descobrir. Pela descrição de
meu pai, fiquei sabendo que minha avó era bastante barulhenta e desbocada.
E esfuziante, do tipo que ama a vida. Falava alto e, como gostava muito dele, é
motivo suficiente para que eu também goste dela.
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Uma outra história meio fantástica aconteceu comigo quando eu tinha
uns cinco anos. Tínhamos acabado de mudar para a Tijuca, vindos da Barra,
para o apartamento onde cresci. Minha mãe sempre gostou muito de
fotografias e de olhar velhos álbuns. Uma tarde, estava ela vendo fotos,
quando parou numa da minha avó. Eu me virei para ela e disse: “eu tô vendo
essa moça aí”. E ela: “que moça?” “Essa moça aí do retrato.“ “Onde?” “Ela ‘tá
em pé ali, ó” — e apontei para a janela. “O que ela está fazendo?”, perguntava
minha mãe, cada vez mais assustada, já que minha avó morreu atropelada
quando eu tinha poucos meses de vida. “Ah, ela ‘tá com a mão assim, ó, na
boca”, eu teria dito, cobrindo os lábios com a mão em concha. Minha mãe
estremeceu, porque esse era um gesto muito típico de minha avó. Dizem que
crianças até sete anos têm uma percepção muito forte do mundo espiritual. Eu
me lembro vagamente desse diálogo.
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A promessa de minha avó
Não sei muito sobre a mãe de minha mãe porque ela morreu quando eu
tinha sete meses de idade. A imagem que tenho dela vem de uma foto em
preto e branco do seu rosto, dos relatos de minha mãe e da sua própria história
de vida. Na foto aparece um rosto sem qualquer traço de alegria, apesar de
todo mundo garantir que ela estava sempre bem-humorada e alegre. Não sei
por que motivo ela e os irmãos, de uma família de seis filhos, teriam nascido no
Espírito Santo, já que a mãe, minha bisavó, fosse de Santo Antônio de Pádua,
no norte fluminense. Convivi com minha bisavó Amélia até os onze anos,
quando ela morreu de derrame, aos 86. Não sei se mãe e filha tiveram vida
muito dura, só sei que nunca vi minha bisavó sorrir e, muito menos, rir.
Conta minha mãe que Nadir ficou viúva aos 19 anos quando seu marido,
filho de um fazendeiro rico, teve uma queda quando montava a cavalo. Como a
família do rapaz não gostava dela, alegando que se casara por interesse, ela
então resolveu vir tentar a vida no Rio de Janeiro e trouxe as duas filhas junto,
que morreram anos depois, numa epidemia de crupe. A partir da migração de
minha avó, todos os irmãos, irmãs e também seus pais seguiram para cá,
principalmente depois que meu bisavô Antônio começou a apresentar os
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sintomas de um câncer que, além de matá-lo, acabou também com o último
dinheiro da família. Todos eram analfabetos e perderam suas terras,
enganados por um advogado.
Acho que a vida da minha avó se divide em duas partes: antes e depois
do meu avô. Diferente dela, que era branca e vinha de uma família estruturada
e unida, ele era mulato e tinha sido engajado à força na Marinha pelo próprio
pai, Saturnino, para desespero da mãe, Flora, depois que passou a integrar um
bando de arruaceiros mirins na cidade onde nasceu, Bonfim, interior da Bahia.
Parece que Nadir e José se conheceram num baile, pode até ter sido num
cassino, que na época não era proibido, e tiveram um envolvimento amoroso.
Dessa relação nasceu minha mãe, uma menina mestiça, fruto de um caso
entre uma jovem viúva e um solteiro inveterado — ele nunca se casou — o que
só complicou a vida da minha avó.
Segundo minha mãe, seu pai até tentou se assentar, mas não
conseguiu. Quando minha avó, que era operária da mesma fábrica de tecidos
cantada na canção de Noel Rosa, engravidou, ele montou casa para ela e
passaram a viver juntos no Méier, um bairro de classe média da Zona Norte.
Ele, por outro lado, tinha feito a própria vida na Marinha, viajara o mundo
inteiro, se tornou professor autodidata de inglês e francês, e chegou a sub-
oficial, apesar da cor da pele e da falta de sobrenome. Como também era
músico e dos bons, chegou a maestro da Banda dos Fuzileiros Navais e ainda
se apresentava na agitadíssima vida noturna carioca dos anos 1930 e 1940.
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Com o tempo, minha avó refez a vida, se casou de novo e, desse
casamento, nasceram mais cinco crianças louríssimas. O marido de minha avó,
que cheguei a conhecer quando era criança, não gostava nada da minha mãe.
Batalhadora, minha avó chegou a se aposentar pela fábrica e comprar sozinha
a casa em que a família morou. À exceção de minha mãe, que nasceu na Pró-
Matre, uma instituição muito antiga de amparo às mães solteiras, todos os
outros filhos nasceram em casa, nas mãos da parteira. Minha avó amava a
natureza, plantas e animais, e também era chegada numa boa pinga. Conta
minha mãe que, no casamento dela com meu pai, Nadir e José se paqueraram
mutuamente a cerimônia inteira, juntos no altar, para desgosto do marido dela.
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orientou a procurar, em Cachoeiro de Itapemirim, uma dada igreja, que então
eu nem sabia qual era, a fim de cumprir uma promessa feita por minha avó de
quando minha mãe estava grávida de mim. Eu sentia que minha avó havia se
comprometido a visitar uma igreja e assistir a uma missa em ação de graças
pelo meu nascimento e pela minha saúde e que iria me levar, antes de que eu
completasse sete anos de idade, e que seu desejo só não se realizou por
causa do acidente. A pendência, portanto, havia ficado em aberto e agora era
urgente que eu fizesse a minha parte, por mim mesma e por ela.
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Primeira infância
Quando seu pai tem cinco irmãos e sua mãe tem mais cinco, isso significa que
a quantidade de tios e, conseqüentemente primos e primas, com seus
respectivos filhos e, atualmente, até netos, é enorme. Mas, no nosso caso, isso
nunca significou grandes festas de Natal ou qualquer reunião parecida. Sempre
foi, praticamente, cada um para o seu lado. Como, em geral, os filhos se
reúnem em torno dos pais e, em ambos os lados, não havia esses casais
aglutinadores, fica fácil de entender tanta desunião. E olha que a irmã mais
velha de meu pai era casada com um primo da minha mãe, com quem ela
cresceu, na mesma casa, já que meus avós maternos praticamente não
viveram juntos.
Pela própria afinidade entre meus pais e alguns de seus irmãos veio
também um relacionamento mais próximo comigo e minha irmã. Fui batizada
pela irmã mais nova de meu pai, Maria da Penha, e pelo único irmão de minha
mãe, Reinaldo Mauro, no dia em que completei um ano de idade, na igreja de
Santo Afonso, na Tijuca, onde morávamos. Para a época, o batizado até que
demorou muito, porque era costume tentar garantir que a alminha sem pecados
dos bebês, mas maculada pelo pecado original herdado de Adão e Eva por
toda a humanidade, conseguisse um lugarzinho no céu, em caso de morte
precoce. Se hoje em dia a taxa de mortalidade infantil no país continua alta,
meio século atrás ela era ainda pior. Tanto que pais e mães não se abalavam
muito quando confrontados com ter que responder sobre o número de filhos.
Contavam os vivos e os mortos com a mesma naturalidade. Havia casos
extremos: duas gerações antes, poucos eram os filhos que sobreviviam. Dos
18 filhos da avó materna de meu pai, Dona Olympia, apenas duas conseguiram
chegar à idade adulta — minha avó Ynaiá e sua irmã Yara. Ynaiá deu a luz a
dez filhos e nesta geração a sobrevida foi maior, de seis deles. A geração de
meus pais e seus irmãos teve, em média, dois filhos cada. A minha geração e
de meus primos ficou em torno de um filho por casal.
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foi logo batizada — pelo irmão mais velho de meu pai e pela avó materna de
minha mãe — e temos dela dezenas de fotos de bebê, como é comum
acontecer com os primogênitos, no meu caso tudo foi muito diferente. Eu fui um
acidente de percurso. Meus pais se casaram dia 1º de julho de 1961 e, no
Natal daquele ano, escreveram uma singela cartinha para Papai Noel pedindo
um filho de presente. A primeira gravidez só iria acontecer no ano seguinte,
mas minha mãe sofreu um aborto espontâneo depois de ter ficado nervosa
com uma pasta do trabalho que meu pai teria procurado, sem encontrar, por
todo o apartamento. Parece que era um menino. Quando minha irmã nasceu,
em fevereiro de 1963, eles não devem ter ficado lá muito satisfeitos porque,
como dizia a missiva, eles haviam pedido um menino. Meu pai havia sido
jogador de futebol e pretendia legar ao herdeiro tudo o que sabia sobre os
segredos da bola, na esperança de realizar nele tudo aquilo que não conseguiu
pessoalmente.
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sonhar com um terceiro filho. Muitas vezes ao longo da vida, quando meus pais
nos contavam sobre nosso nascimento, eu ouvia os dois contarem, divertidos,
o seguinte diálogo. “E então, o que é que foi?” “Outra menina.” “Menina? Mas
eu não quero outra menina!” “Então devolve!”, teria sido a resposta que minha
mãe deu ao meu pai, depois de um parto dificílimo em que eu quase morri
esganada com meu próprio cordão umbilical, que estava todo enrolado não
apenas em volta do pescoço como, também, sob o joelho direito.
Minha mãe conta que eu passei da hora de nascer porque ela queria dar
uma tal mamadeira para minha irmã, em vez de deixar a tarefa para minha
madrinha, que morava com eles, além dos dois irmãos mais jovens de meu pai,
naquela época, num quitinete na Rua General Roca — como, nem imagino...
Ouvi dizer, também, que o cordão umbilical teria sido mal amarrado e que
demoraram a perceber uma perda substancial de sangue. Depois houve o
evento de que uma enfermeira preguiçosa estaria dando banho em todos os
recém-nascidos com a mesma água e a primeira na seqüência, que era eu,
acabava por isso mesmo pegando a água escalpelando, e voltava para o
quarto berrando e completamente vermelha — mas, pelo menos, limpinha; já
os outros, nem tanto. Eu também sofri uma série de quedas suspeitas nos dois
primeiros anos de vida, assim como queimaduras. Claro que não tem como eu
me lembrar, mas minha mãe sempre repetiu as mesmas histórias.
86
Sobre as quedas, ela explica que fazia questão de casa muito bem
arrumada. Como eu era do tipo que fazia muito xixi na fralda toda hora, ela me
deixava trancada no berço, andando sobre o colchão, e eu não tinha firmeza
nas pernas. Quando me colocavam, finalmente, para curtos passeios sobre o
chão firme, era inevitável que caísse. E como a tal casa arrumada não poderia
dispensar mobiliário adequado, havia no meu percurso todo tipo de obstáculos
perigosos, como mesinhas com quinas pontiagudas, que não eram removidos
para não estragar a decoração. Foi assim que eu dei com a testa na ponta da
mesa da televisão três vezes seguidas no intervalo de uma semana e acabei
criando galo em cima de galo. A febre era tão alta que o pediatra ameaçou
minha mãe, dizendo que eram grandes as chances de que estivesse à beira de
uma meningite, se não fosse mais bem cuidada. Já as queimaduras, segundo
ela, se dariam ao fato de que eu, extremamente assustadiça, não queria
desgrudar dela um instante sequer, o que a obrigava a realizar todas as tarefas
domésticas comigo nos braços. Foi assim que acabei levando as sobras do
ferro de passar e de panelas fervendo. Mas nada tão grave que eu tenha ficado
com marcas. Em compensação, fui amamentada no peito até dois anos e dois
meses, quando, conta ela, num ataque de fúria, mordi primeiro um e, depois, o
segundo bico do peito, a ponto de quase arrancá-los fora, o que obrigou à
necessidade de tomar remédio para secar o leite. Graças à amamentação e,
talvez, também ao leite de cabra que nossa bisavó nos deu, nem eu nem
minha irmã tivemos qualquer doença infantil quando éramos crianças. Só
fomos pegar rubéola e, eu, ainda catapora, com mais de 20 anos de idade.
Não me lembro dessa relação turbulenta com minha própria família. Sei
que, até cerca de cinco anos, evitava contato com meu pai. Dizem que isso
começou quando ele me deixou cair no chão. Minha mãe teria ido ao
supermercado e ele me colocou no peniquinho, mas não no chão, sobre o
colchão do berço com a grade arriada. Não podia dar em outra coisa: eu caí de
cabeça e, quando minha mãe voltou, me encontrou aos gritos, coberta de cocô,
em estado de choque. Minha memória mais antiga vem dos meus dois anos,
quando moramos uma temporada curta no primeiro andar do prédio onde iria
crescer, depois dos dois anos morando na Barra. Na porta ao lado moravam
duas meninas judias: Regina, então com seis para sete anos, e Elaine, da
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mesma idade que eu, que usava chupeta. Nem minha irmã nem eu
gostávamos do acessório e, nesse dia, Elaine, parada na porta de casa, e eu
na minha, com a chupeta na boca, repetia sem parar: “a Sandra chupa
chupeta!” e eu, totalmente indignada, reagia, dizendo que não, que quem
estava de chupeta era ela. Acho que aquele foi meu primeiro contato com a
idéia de injustiça... Nenhum adulto interferiu.
88
Para ser bem sincera, eu acredito que não era muito parecida nem com
meu pai nem com minha mãe quando criança. Não que minha irmã fosse. Ela
era bem cabeçuda e tinha orelhas de abano que só foram corrigidas por uma
cirurgia estética na idade adulta. Bastante dentuça, era bem alegre e
comunicativa, adorava brincar, embora detestasse qualquer tipo de jogo de
tabuleiro. Não dava trabalho, a não ser por uma certa preguiça de ler e,
também, porque fosse gulosa, o que lhe rendeu não poucas alergias
alimentares. Sua grande queixa era que, gordinha, nunca encontrava entre os
coleguinhas quem fosse forte o suficiente para levá-la na garupa da bicicleta.
Já eu era uma enjoada de marca maior. Até quando minha mãe ia tomar
banho, ficava sentada na soleira da porta, geralmente com a mamadeira na
boca, resmungando, até que ela saísse, enquanto meu pai dizia: “nunca
reparou que sua mãe é bruxa? Ela vive com a vassoura na mão, varrendo a
casa! Ela vai pegar aquela vassoura e sair voando pelo basculante!” E eu
acreditava.
Foi numa dessas sessões de tortura, aliás, que minha irmã acabou
levando a única palmada de meu pai que tomou na vida — em mim ele nunca
bateu — por minha culpa. Ela se irritou com meus mugidos incessantes
chamando minha mãe com o bico da mamadeira de mingau na boca e
começou a me mandar parar, bastante impaciente e bem mais ruidosa. Meu
pai se levantou da cama e deu-lhe uma palmada na bunda. Morávamos na
Barra e minhas memórias daquele endereço são um tanto quanto violentas. Do
tipo: tivemos duas rolinhas presas, que achamos filhotes, caídas do ninho na
árvore, numa gaiola durante meses. Foi nesse endereço que ouvi minha bisavó
dizer, num dia em que minha mãe havia pedido uma galinha ao molho pardo
para o almoço: “não fiquem com pena da galinha, senão ela demora mais a
morrer”. Aviso feito, só me lembro de minha bisavó Amélia correndo pela área
de serviço com um facão na mão, atrás de uma galinha com a cabeça já
decepada, e que espalhava tanto sangue que mal ia sobrando algum para o
molho. Acho que foi ali, também, que ela preparou o único coelho frito que vi na
vida, e no qual nós duas não tocamos.
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Mas as lembranças desse mundo inóspito no qual vivi entre meus três e
meus cinco anos também estão relacionadas ao meio ambiente. A Barra da
Tijuca era uma verdadeira selva, em que topávamos nas ruas não asfaltadas
com cobras e cavalos soltos praticamente a cada esquina. Mas o pior eram os
mosquitos, e nós morávamos praticamente de frente para a lagoa, de maneira
que a única forma de sobreviver era usar a famosa espiral, um tipo de incenso
que fazia uma fumaça quase tão mortal quanto os mosquitos e que tinha o
agravante de só ficar de pé, queimando, espetada num grampo de metal. Não
foram poucos os casos de gente que levantava no meio da noite para fazer um
xixi ou beber um copo d’água e que, meio tonta de sono, acabava pisando na
maldita armadilha, e até pegando tétano — quando não se morria de uma
coisa, morria-se de outra...
Foi nessa casa que sentei num alfinete, depois de uma tarde de costura
com minha tia Geisa, a mais jovem das irmãs de minha mãe que, na época,
devia ter uns 12 anos. Nossas bonequinhas ficaram satisfeitas com o guarda-
roupa novo, mas meu pai não ficou nem um pouco, diante da minha gritaria e
falta de cuidado de minha pequena tia. Lembro que, depois de arrancarem o
alfinete, que entrou até a cabeça, puseram mertiolate no meu bumbum. Foi ali,
também, o acidente com o “quase cotonete”. Minha mãe limpava nossas
orelhas com palitos de dente enrolados em algodão e eu, cosquenta, me mexia
muito. Lá pelas tantas, minha mãe cravou a mini-lança pontiaguda no meu
ouvido direito e saiu um bocado de sangue. Nenhum exame na idade adulta
indicou qualquer tipo de lesão. Mas, até hoje, só consigo falar ao telefone, por
mais longa que seja a ligação, usando o ouvido esquerdo.
Agora, campeã mesmo foi uma briga entre meu pai e minha mãe.
Crescemos vendo os dois discutindo por causa de dinheiro, isso é certo. Meu
pai reclamava sempre que minha mãe gastava demais. Nessa noite, no
entanto, o motivo foi outro. Não faço idéia de que horas eram. Só sei que a
gritaria era tanta que acordamos e nos encolhemos no cantinho da porta aberta
de nosso quarto, logo atrás de meu pai, para tentar entender o que estava
acontecendo. De um momento para o outro, só deu tempo de a gente se
abaixar, porque alguma coisa passou voando pelas nossas cabeças. Era um
90
vaso de vidro incolor horroroso que ficava na sala, cheio de areia e flores de
plástico. Pois foi ele o que minha mãe alcançou mais rápido para atirar no meu
pai, furiosa que estava. E olha que era super pesado. Deve ser por isso que,
até hoje, detesto flores artificiais. E poucas coisas me tiram tão do sério como
flores de plástico.
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O fantasma
Vamos ao fantasma.
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cítricos com design espacial, como Phillipe Starck, ou com uma receita de
sequilhos que vai ficar, vai ficar, bem, na família dos outros, já que você não
pôde deixar a sua.
Outro dia, eu usei O mito do Superman do Umberto Eco numa das aulas
de Teorias da Comunicação e, embora ele esteja vivo e atuante, e espero que
ainda por muitos anos, vi que, ali, ele iria continuar. E pensei em todos os
outros livros, sejam eles técnicos, acadêmicos ou de entretenimento, não
importa, e em todos os autores que já morreram faz décadas, como Foucault, e
de como eles estão tão presentes (e vivem, ou revivem) cada vez que os cito
ou recomendo sua leitura para meus alunos, assim como acontece com tantos
outros autores, cantores, artistas por aí, diariamente, não há como admitir a
morte sob essas circunstâncias. Sendo assim, decidi viver. Ou melhor,
continuar a viver. Porque já escrevia antes, há muito tempo, uma coisinha ou
outra. E até que o meu seleto público não tem reclamado — pelo contrário.
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Visitação
Minha mãe morria de medo que alguém trocasse seu bebê na maternidade.
Acredito que esse tenha sido um dos motivos que a levou a escolher a casa de
saúde e maternidade de Nossa Senhora de Lourdes, que ficava ao lado da
igreja de mesmo nome, no único boulevard da cidade, no bairro de Vila Isabel,
uma das referências do samba carioca: o Boulevard 28 de Setembro. Naquele
lugar, as crianças recém-nascidas não iam para o berçário e, em vez disso,
eram instaladas em bercinhos no próprio quarto de onde a mãe podia ficar de
olho neles.
Por isso mesmo, minha mãe pôde ser testemunha de uma sucessão
de eventos no mínimo insólitos que cercaram o meu nascimento, mas de uma
forma, pelo menos ao meu ver, bastante positiva. Cada vez que nascia uma
criança na família, a avó dela, minha bisavó Amélia, acompanhava a
parturiente e dava todo o suporte até que a mãe aprendesse a cuidar do bebê.
Um dos rituais que minha avó fazia — dizem que temos sangue de índios
misturado ao francês por esse lado da família — era pegar a criança, levar até
à janela e consagrar à lua, repetindo certas palavras mágicas, em que ela
pedia à lua para “ajudar a criar” aquele recém-chegado. Do alto, a lua ficaria
vigiando, como uma madrinha zelosa, e livrando a criança de todo mal, até que
chegasse à idade adulta.
Foi essa mesma ancestral que socorreu minha mãe diante das
inusitadas visitas que me foram feitas no quarto da maternidade na manhã do
meu nascimento. Não sei direito a seqüência, mas parece que a primeira a
chegar foi Dona Aranha. Minha mãe diz que, sem mais nem menos, apareceu
andando pela parede uma aranha imensa, que ia em direção ao berço. Ela,
então, teria começado a gritar, ao que minha bisavó interferiu. Como nenhuma
das duas gostava de matar nenhum bicho à toa, Amélia teria espantado a
aranha, dando tapinhas na parede junto dela, indicando a saída pela janela.
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pelo quarto, e mais uma vez minha bisavó foi encarregada de se livrar da
intrusa. Quando ela pousou, pegou com a mão e jogou pela janela. Minha mãe
só gritava: “vai cair na minha filha!”. Mas parece que a cigarra sabia o que
estava fazendo.
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Anos de escola
Fiz todo o primário num colégio público, a Escola Municipal Laudímia Trotta.
Até hoje me lembro do hino: “Nossa escola é exímia, em fazer gente feliz, com
o nome de Laudímia, fará grande este país...” No ano de 1988, houve uma das
mais recentes enchentes na cidade do Rio de Janeiro e a escola, como várias
outras da área da Tijuca, acabou recebendo, em princípio em caráter
emergencial, alguns dos flagelados dessa mesma enchente. Só que eles não
foram embora e, nos meses que se seguiram, ao passar pela porta, na Rua
Antônio Basílio (há uma outra entrada pela Avenida Maracanã) era possível ver
roupas penduradas para secar por tudo quanto era canto, ouvir o rádio tocando
sempre muito alto algum tipo de batidão e, assim, meu sentimento acabou
sendo o de ter visto profanado um lugar que, para mim, era quase sagrado.
Justamente por ter sido onde eu vivi algumas das mais marcantes experiências
da infância. Entre os sete e os onze anos, foi detrás daqueles muros que
desenvolvi noções que me acompanharam pelo resto da vida, como qual o
limite do companheirismo, minha feminilidade, minha relação com os meninos.
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tocar no “pavilhão” verde-amarelo, hinos de toda sorte e, às vezes,
chegávamos mesmo a cantar algumas canções da moda, populares, de
propaganda, como os versos: “esse é um país que vai pra frente, ou ou ou ou
ou (deveria eu escrever ô ô ô ô ô ou wow wow wow wow wow?)
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conservei, diga-se de passagem, sem qualquer esforço e em total
sedentarismo pelos 20 anos seguintes, pelo menos.
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vinham com as tais presilhas fixas nos fundilhos mesmo. Mas elas também não
eram muito higiênicas, nem seguras.
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saindo aos borbotões, e imaginava minha vergonha diante das meninas (a
maioria ainda não menstruava) e, mais ainda, diante dos meninos, algozes tão
cruéis? Eu simplesmente, nos momentos de ficar de pé, mantinha as mãos
dadas com os coleguinhas ao lado, mas continuava sentada em segurança no
longo banco de madeira, enquanto a igreja inteira cumpria os procedimentos.
De onde eu estava, podia ver minha mãe, esbravejando, ainda que num
sussurro, fazendo gestos violentos que me comandavam a ficar de pé, que
ignorei todos, diante da conveniência de meu próprio julgamento. É bem
verdade que depois tive que acertar as contas com ela pela minha
desobediência, e acabei aceitando o argumento de que, naquela igreja lotada,
com certeza deveria haver mais não sei quantas mulheres menstruadas, que
nem por isso deixavam o desconforto superar suas obrigações confessionais.
No entanto, ao longo da missa, eu olhava para o altar e para o Sagrado
Coração de Jesus e, mais abaixo, para o Sagrado Coração de Maria e,
principalmente dela, podia esperar uma certa solidariedade, para não dizer, seu
sagrado perdão.
100
A origem dos problemas
De meu pai eu jamais iria saber. De minha mãe também não recebi a
informação que alguns orifícios do corpo precisam ser lavados diariamente com
água e sabão. No meu caso em criança, significava que eu não sabia fazer
nem a higiene do nariz nem a da vagina, essencial depois que comecei a
menstruar. Não lembro que eu tivesse qualquer odor desagradável, nem tão
pouco que pudesse passar pela minha cabeça que era necessário ensaboar as
mãos e me lavar por dentro. Aquele era um território tabu no meu corpo com o
qual eu tinha minhas relações secretas que, lamentavelmente, não incluíam
certos cuidados de limpeza porque isso é um hábito que alguém tem que
ensinar. Quem me ensinou foi um médico. O Dr. Ricardo, durante o
acompanhamento que fez depois de ter me operado de apendicite aguda. Ele
me disse: “todo dia você tem que lavar, quando tomar banho, a parte mais
íntima sua”. Eu entendi o recado e aprendi a lição, dali pra frente, não de minha
mãe, que simplesmente ouviu, calada, parada ao lado do doutor. Nesse
mesmo encontro, ele me perguntou se eu “não tinha corrimento” e como
responder se eu não fazia idéia do que é que ele estava falando? De uma certa
maneira, aquele homem salvou minha vida. Conseguiu diagnosticar uma
apendicite praticamente assintomática (eu não sentia qualquer dor abdominal)
em 1976, numa época com bem menos recursos de exames, principalmente de
imagem, que poderia facilmente ter sido confundida com uma gripe forte ou
uma amidalite, apesar da minha febre de 41º C.
101
Como eu havia dito, ao longo de todo o ano escolar de 1976 sofri um
verdadeiro calvário. Eu estava com 12 anos e só me lembro de chegar em casa
todo dia, por volta do horário do almoço, porque estudava de manhã, com a
saia molhada e cheirando mal. Lembrava xixi e minha sensação, no final das
aulas diárias, era realmente de estar fazendo xixi nas calças, porque eu sentia
sair um líquido, só não sabia o que era.
Todo dia minha mãe lavava a parte afetada da saia, pendurava pra
secar, e eu vestia no dia seguinte. Durante dois anos, e aquele foi o primeiro,
estudamos minha irmã e eu numa escola de freiras chamada Colégio dos
Santos Anjos, particular, na Muda. E, naquela época, embora a escola fosse só
de meninas (ou talvez por isso mesmo) não se permitia o uso de calças
compridas. Como eu era muito boa aluna, quando sentia que a enxurrada ia
começar, eu geralmente pedia à professora que estivesse dando aula (era meu
primeiro ano no ginásio e agora todas as disciplinas eram separadas) para me
deixar assistir ao fim da aula em pé, alegando uma inexistente dor na coluna.
Nunca ninguém negou o pedido, assim como também nunca ninguém
desconfiou de nada.
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Preliminares do sexo
Toda essa memória sobre as primeiras menstruações não aparece hoje sem
uma razão de ser. Talvez ela seja o melhor exemplo do que opera a passagem
do tempo sobre a personalidade de uma pessoa — no caso, a pessoa sou eu.
Se um dia eu concluir esse livro, e mais, se ele for publicado (e lido!) alguém se
pergunte como é que eu estou tendo a coragem de contar, em primeira pessoa,
tudo isso, coisas tão íntimas, mas eu explico.
Agora quero fechar o círculo que me levou ao relato sobre como lidar
com a menstruação durante a infância. Tenho, hoje, 43 anos e, como já disse,
há pouco mais de seis meses foi sentenciada minha esterilidade a partir da
retirada de meu segundo ovário. Mas esse foi um processo longo e doloroso,
no corpo e na alma, e que tem suas origens muito bem explicadas e claras na
minha cabeça. Embora nem os médicos, entre eles um dos melhores
103
especialistas da cidade, sejam capazes de explicar objetivamente o que está
se passando comigo hoje.
104
prédio onde eu morava havia umas tampas de concreto armado que,
devidamente arrastadas por três ou quatro crianças fazendo força ao mesmo
tempo, revelavam tesouros ocultos no subsolo da garagem. Jornais e revistas
velhos! Nos jornais, nada demais. Mas devia haver algum tarado (ou vários) no
prédio (maneira de dizer, porque todo mundo sabe que não é preciso ter uma
patologia para gostar de revistas masculinas, pelo contrário, acho que é típico
— até certo ponto — de um cara normal) que apreciava a Playboy (ou seria a
Ele ela?). Nos dias em que estávamos mais atacados, quando não íamos
invadir nenhum carro ou nenhuma casa abandonada para quebrar-lhes as
vidraças, a gente resolvia dar um “confere” ali na nossa coleção de pornografia
particular.
Era dessa maneira, obscura e recalcada, que a gente podia ter uma
idéia, mais ou menos, de como seriam nossos corpos dali a alguns anos, se
tivéssemos alguma sorte e a carga genética e os hábitos alimentares nos
fossem favoráveis. Mas um dos nossos problemas era saber a configuração
final do corpo masculino crescido. Na época da ditadura, a censura era feroz,
em especial sobre o conteúdo da televisão. Certo que fosse o auge da
pornografia e, “nunca antes nesse país”, para fazer referência a um dos mais
ilustres pornógrafos do momento, se consumisse e produzisse tanta
pornochanchada no cinema nacional — e isso também tinha sua função
política. Mas, numa novela, por exemplo, qualquer cena que lembrasse ao
longe uma situação de violência ou qualquer conotação sexual levava o
episódio a uma excepcional exibição num horário mais tarde, como o que
aconteceu algumas vezes com a novela Irmãos Coragem, de Janete Clair,
105
exibida em 1970/71, se não me engano. Os pais, pelo menos os meus,
deixavam a gente ver esses capítulos também, como os de várias outras
crianças. Dava a eles uma espécie de revanchismo, como quem diz: “nos meus
filhos mando eu!” (e a discussão não está de todo ultrapassada, uma vez que o
tema da censura televisiva e o controle dos pais voltou atualmente à baila).
Meus pais não tinham nada contra a exposição do sexo, contanto que a
iniciativa não tivesse que partir deles, porque aí ficavam constrangidos.
Imagino o tipo de educação sexual que teriam recebido, se é que receberam
(?). Pais de duas meninas e com uma vida sexual, como alguns indícios
mostraram já estando ambos na terceira idade, das mais satisfatórias de que
eu já tive conhecimento, era compreensível, embora não aceitável, que eles
tentassem reservar esse espaço como algo proibido para menores, só do
mundo dos adultos. Como se isso fosse capaz de postergar nosso
amadurecimento e, com ele, todos os problemas advindos da iniciação ao
sexo, no caso de meninas (como a gravidez precoce, para falar do menor dos
problemas). Mais sobre os meus prejuízos nessa esfera oportunamente.
106
mesmo o sucessor de Severino como chefe dos porteiros, casar-se e ter três
filhos, todos invariavelmente machos (como não poderia [?] deixar de ser) —
estou sendo irônica e badalando alguns clichês, por favor, não me entendam
mal! Paulo ainda trabalha no mesmo edifício.
Mas, naquele dia mágico, e digo dia porque, se não foi nas nossas
férias, foi no período da tarde, à luz do sol, portanto, que tivemos a experiência
mística de ver o novo faxineiro nu. Não sei dizer mais onde é que aquele
homem estava tomando banho, era ali pela garagem, perto da lixeira e da casa
do porteiro, é só do que me lembro (preciso perguntar à minha irmã, que hoje
mora na Alemanha, ela há de dar boas risadas). Nem sei descrever a que
distância estávamos, mas o suficiente em segurança para observá-lo durante
uns minutos, nu, debaixo do chuveiro, de costas para nós, de maneira que
pudemos olhar detidamente toda a extensão das costas, das longas pernas, a
firmeza da bunda e, às vezes, até de relance, o pênis visto de um ou outro lado
das coxas quando ele mais ou menos se virava. Era escuro e grande, embora
não estivesse teso. Por isso mesmo, e pelo tipo de caráter que era Paulo
Sérgio, acredito que ele não fosse nenhum exibicionista e, provavelmente, teria
pedido demissão se soubesse de nossa travessura.
107
Brincadeiras infantis
108
mais quem foi que deu a idéia. O fato é que, uma manhã, sem que ninguém
nos visse e, mais difícil, sem que nenhum dos porteiros ou vigias desse com a
língua nos dentes, conseguimos entrar na casa pelos fundos e até hoje me
lembro da nossa emoção. A construção ia ser derrubada, acho até que os
operários já haviam começado, parcialmente, a demolição, e nós cuidamos
para que tivessem menos trabalho. Porque... nosso único intuito ali dentro era
destruir tudo o que passasse pela frente!
Outra vez foi a Kombi de um vizinho que era alcoólatra o que decidimos
invadir. Ela já estava parada lá embaixo na garagem do térreo fazia tempo, não
rodava mais, com sua placa de dois alfas e seis numéricos, ela estava nos
chamando! Não foi difícil arrombar a porta. O carro era tão velho e
despedaçado que as portas estavam amarradas com um arame grosso, nada
que teimosia de criança, mesmo sem um bom alicate — cada um ajudava a
desatar um pouquinho e era prontamente substituído pelo próximo da fila
quando o braço ficava cansado — não pudesse resolver. Abrimos, enchemos a
Kombi e só não fizemos ligação direta porque ali ninguém ainda sabia dirigir.
Ou porque estava sem combustível, já que a gente aprendia rápido. Imagine-se
109
uma Kombi velha e imunda estacionada numa garagem lotada de crianças
simulando uma perseguição e dirigindo sem sair do lugar: como nós nos
divertimos!!! Só não foi engraçado quando, já não tendo mais onde mexer,
inventei de abrir uma das janelas, sentada num dos bancos de trás, e era só
uma espécie de ventoinha, que abria quando se esticava uma espécie de micro
braço mecânico e, pronto! Acabei prendendo o fofo da mão, abaixo do polegar
direito, ali. Nossa, como doeu! Aí eu já estava querendo saltar de qualquer
maneira, sem me importar porque teria que desalojar toda a criançada nos
bancos da frente. Tive que empurrar um ou outro. Mas, nesse dia, fomos
descobertos!
110
Meninos
O segundo garotinho de que me lembro devia ter uns sete anos, como
eu, também era lourinho e foi exceção porque tinha um sobrenome português.
Era meu vizinho de rua. No nosso aniversário — como minha irmã e eu
nascemos com um ano e uma semana de diferença, acabamos crescendo
usando roupas idênticas e festejávamos em algum dia entre o aniversário dela
e o meu — ele veio à festa e, no final, inventou de me dar um beijo. Como eu
não sabia que beijo era aquele e sempre fui tímida pra essas coisas
românticas, pensei em sair correndo. Mas outras meninas maiores me
seguraram e ele me deu uma singela beijoca na bochecha. Que eu adorei!
Depois que ele saiu, fiquei acompanhando ele ir até seu prédio da janela da
minha casa. Mas ficou só nisso mesmo.
111
que só faltava mergulhar dentro dos meus decotes, mas eu achava todo mundo
muito bobo. No último ano do Ensino Médio, quando eu já estava com 18 anos,
teve um garoto que me chamou bastante atenção. Era tudo de bom e bem do
meu tipo, discreto e educado, mas eu nunca fui muito boa na arte da sedução e
duvido que ele sequer tenha notado a minha existência como mulher, embora
ele soubesse quem eu era e a gente conversasse de vez em quando, numa
sala com 200 alunos que falavam ao mesmo tempo. Ainda nesse ano, um
colega de turma me chamou para sair, mas eu não estava interessada nele,
apesar da torcida declarada da minha mãe, e disse a ele logo no primeiro
encontro que estava a fim de outro cara.
112
Mas é uma vida sem sentido. Não ter com quem compartilhar é doloroso.
Minha terapeuta diz, com base nos meus relatos detalhados, que eu nunca tive
um namorado de verdade, e talvez ela tenha razão. O que eu vivi foi outra
coisa...
Curioso como alguns desses homens que passaram pela minha vida
tenham sido alemães, o que reforça aquele dado da infância dos primeiros
admiradores. Claro que, na adolescência, minha irmã e eu começamos a
aprender o idioma, mais tarde trabalhei em empresas alemãs, estive no país
diversas vezes fazendo cursos e turismo, então seria uma decorrência quase
que natural. Mas não deixa de ser interessante. Quem sabe eu não tenha tido o
interesse de aprender a língua justamente porque, lá no fundo, fizesse alguma
espécie de associação entre aquele país e relações amorosas? Poderia ser um
atalho para o amor. Outra coincidência estranha é que eu tenha comprado meu
primeiro apartamento não apenas na mesma rua, mas do mesmo lado da
calçada, em que também tive minha primeira relação, num outro prédio cerca
de uns cem números à frente, muitos anos antes. A Cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro não é tão pequena assim.
113
Ereção Companhia Limitada
Talvez a maior virtude desse meu apartamentinho no Flamengo não seja nem
o fato de ser bem iluminado ou arejado, nem que, todo carnaval, passe aqui na
rua o memorável Bloco do Cachorro Cansado. Pode ser que seja a localização,
digamos, a vista, e olhe que eu não tenho a menor vocação para voyeur. Num
dos prédios do outro lado da calçada mora um grupo de rapazes — não
saberia dizer quantos — que transformaram mesmo a sala numa espécie de
alojamento. Dá pra ver, pela abertura da porta da varanda, que tem cama
espalhada por todo o lugar. Eu não sei o que eles fazem, porque saem
vestidinhos num estilo dead head attirement, ou seja, calça escura e camisa
social branca, embora de mangas curtas, como assim o exige o calor, e
gravata. No peito, uma plaquinha dourada com o nome de cada um — e que só
vi cruzando com alguns quando saía para uma caminhada, porque nunca me
atrevi a chegar muito perto de um desses exemplares. Não depois do que eu
tenho visto...
Fato é que, no fim de 2005, percebi que, toda vez que eu chegava na
minha janela — eu adoro olhar para o céu! — um desses garotos (esqueci de
dizer que são muito jovens e que jamais vi um homem adulto entre eles? Pois
é. Mulher por lá, então, nem pensar...) simplesmente chegou num cantinho de
onde sabia que eu podia vê-lo, arreou as calças e teve a ereção mais
instantânea e aprumada que meus olhos puderam contemplar. Na hora fiquei
meio embasbacada, me deu uma crise de riso e eu saí do camarote, sem saber
o que esperar do espetáculo. Mas, à medida que o tempo passava, aquele
show passava a ter várias sessões por dia e eu comecei a me aborrecer. Se
estivessem em casa, era chegar na janela e... tcharam!
114
toalha de banho enrolada na cintura, ele fazia um movimento rápido para
arrancá-la e, vamos lá de novo, taí ó, pra você!!! Permanecia de perfil, seu
melhor ângulo! E não fazia mais nada. Só ficava ali, me mostrando... Acredito
que o jogo tenha outros ingredientes de tensão que deveriam excitá-lo. Como o
fato de que os outros rapazes aparecessem na hora e dessem um flagra (se é
que não viam e entravam na onda) ou que ele pudesse ser visto por outros
moradores deste lado da rua.
115
Taoísmo, que apregoa a mesma sabedoria, viva o poder da inação! No jardim
do prédio à esquerda do meu, uma árvore imensa estica os seus galhos e já
está quase cobrindo nossa linha de visão. Aí, acabou-se a farra.
116
O céu da minha infância
117
mais distante, lá na principal rua do bairro, toda vez que via alguém numa
janela, melhor se houvesse mais de uma pessoa.
Hoje o céu da minha janela é bem mais limitado, cerceado pelos prédios
altos em frente, não vejo mais a ida e a vinda do sol, sobraram apenas as
estrelas e, com sorte, a lua, se eu chegar na hora certa. Sinto falta de ver o
céu.
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Destino de bicicleta
119
próximo ao Parque do Flamengo e nosso lazer de domingo, durante anos, era
pedalar até o Aeroporto Santos Dumont. Quando nos separamos, ele levou sua
bicicleta e, pelo que vi, na época, ela rapidamente foi sucateada na área
comum do prédio. Ele também já não andava mais. Uma bicicleta morre
quando fica abandonada.
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Medos e confusões infantis
O mais antigo deve ter acontecido lá pelos meus cinco anos. Minha mãe
foi à feira livre que ficava quase na esquina de casa e nos levou, a mim e a
minha irmã. Apesar do empurra-empurra, já que feira costuma ser um local
concorrido, das senhoras que não tinham habilitação apropriada para dirigirem
os carrinhos de feira e que, portanto, não poupavam nossos pés e do pregão
dos feirantes (meu pavor de voz alta é ainda mais ancestral do que a dupla de
medos que estou identificando agora) eu até que gostava de bater ponto
naquela experiência colorida toda terça-feira.
Era tão bom porque, naquela época, havia paçoca moída na hora. Às
vezes, com o amendoim recém-torrado, que fazia aquela delícia enfarinhada
chegar freqüentemente ainda quente às nossas mãos. Ninguém, nem os
adultos, esperava até em casa, no nosso caso, a bem poucos metros, e a
paçoca era devorada ali mesmo, com o tempero da rua. Mas era preciso tomar
cuidado: de tão boa, a gente sempre queria uma, duas, três, sempre queria
mais, sob o risco de uma bela dor de barriga naquela mesma tarde...
121
A mesma associação aconteceu também com o circo. Só que, nesse
caso, a agressão, felizmente, não foi comigo. Afinal, eu era muito jovem para
dar motivos a alguém de me dar uma garrafada. E foi justamente isso que
aconteceu. No intervalo de um espetáculo no circo do Orlando Orfei, se não me
engano, saímos da tenda para beber alguma coisa e, numa discussão entre
dois funcionários bem perto de nós, um homem acertou a cabeça do outro com
uma garrafa. Sangue pra todo lado foi o suficiente para me deixar petrificada.
Nem retornamos para o segundo ato.
122
certo tio meu muito parecido com o Altemar Dutra, a não ser pela voz rouca
(Altemar Dutra era um cantor, de boleros, se não me engano...) Algumas
confusões eu efetivamente só consegui desfazer na vida adulta.
123
Ontem me lembrei de outro rolo mental da minha infância, desta vez
mais grave, e que poderia ter, inclusive, comprometido minhas reais chances
de salvação eterna ou, então, ter me feito virar uma contestadora política
radical, quiçá da esquerda.
Não foi pouco tempo que eu não sabia dizer quem era Tiradentes, quem
era Jesus Cristo. Para mim, menina dispersa e alvoroçada, a imagem sempre
pesou muito e eu só sabia que se tratava de um cara que foi assassinado, era
jovem, tinha barba e cabelo escuro e comprido. Só. Tramaram um complô
contra ele. Foi isso mesmo, em ambos os casos. Só que, num, o objetivo era
salvar a humanidade e, no outro, as finanças de Minas Gerais.
Acredito que Joaquim José da Silva Xavier deva ter sido um grande
cara. Pelo menos, ele não era dedo-duro. Jesus, então, nem se fala. Mas
embora eu tenha construído na minha cabeça e no meu coração um discurso a
respeito dele, muito com base nas representações que a gente vê ao longo da
vida, assim como de Deus, de quem consigo imaginar um perfil de
personalidade, confesso que sempre tive minhas dificuldades com Nossa
Senhora. Para mim, ela é a figura cujos contornos são os menos bem
delineados da igreja.
124
A começar porque há mínimas passagens sobre ela ou em que ela se
manifesta nos textos sagrados. Como conseqüência, até hoje tenho muito mais
dificuldade de rezar a Ave Maria do que o Pai Nosso, de maneira que minha
mente sempre escapole para outro lugar, logo depois das primeiras frases. Em
compensação, na idade adulta, não sei bem por quê, desenvolvi uma sincera
simpatia e real devoção pelo Divino Espírito Santo. É uma das orações que
rezo com o maior fervor. E me sinto ao mesmo tempo confortada e encantada
pelo mistério da Santíssima Trindade. Vai entender.
125
Cucarachas
Minha infância foi um período lúdico cercado de baratas por todos os lados.
Credito ao fato de o edifício em que cresci incinerar o próprio lixo o fato de
haver tantas delas por perto. Na parte de trás do prédio, em paralelo ao hall, na
reta grande de um corredor amplo que era ladeado por um muro e levava ao
grande pátio com as vagas de garagem, ficava a lixeira. Numa área de,
digamos, 3 x 3 m, cujas paredes e teto eram completamente negros de fuligem
e não tinha porta, ficava um incinerador, usado de três a quatro vezes por
semana. O lixo ensacado acumulado se amontoava pelo espaço até a próxima
incineração. Claro que devia atrair uma vizinhança nada higiênica e que
circulava por onde bem entendesse.
Houve um outro evento marcante que deve ter acontecido entre os anos
de 1988 e 1991, quando cursei a faculdade. Sei disso porque estava
acompanhada de uma colega de turma. Nessa tarde, acompanhamos minha
mãe ao supermercado que funciona nas antigas instalações de uma velha
fábrica da Zona Norte, no bairro de Vila Isabel.
126
Nós já estávamos empacotando as compras na saída do caixa quando,
não sei por que motivo, o pessoal da manutenção removeu uma espécie de
proteção de madeira sob a qual se escondia uma parede. Foi a única parede
viva que eu vi até o presente momento. E eu digo que ela estava viva porque
estava tão coberta de baratas, de todas as cores, tamanhos e formatos que se
mexia como numa onda independente. Imaginem quantas baratas conseguem
se acumular, umas passando por cima das outras, numa extensão de,
digamos, 4 x 10 m. Imaginaram? Pois tinha o triplo!
Medo de barata por quê? Barata não morde... Toda mulher, no meio de
um chilique nervoso, já ouviu isso, pelo menos uma vez na vida. No entanto...
Dia desses, remexendo numas receitas médicas guardadas, encontrei uma da
Sociedade Portuguesa de Beneficência de Niterói, na qual fui atendida de
emergência em 12 de abril do ano passado. O medicamento prescrito foi contra
intoxicação. Depois de passar mais de cinco horas respirando uma boa dose
de naftalina numa sala sem ventilação, eu estava a ponto de cair de barriga pra
cima, espernear as meras duas pernas que nós, os humanos, temos, e
sucumbir tal qual uma barata envenenada.
127
Já tenho problemas suficientes na vida pra não querer receber um
processo por difamação. Então, preciso privá-los de citar nominalmente em que
instituição de Ensino Superior eu fui tão cruelmente dedetizada. Se eu não
estava mais agradando, bastava me demitir! — o que, aliás, a mesma intituição
acabou fazendo no fim do mesmo semestre, a pretexto de corte de pessoal...
Mas os amigos próximos sabem de quem estou falando.
128
abusadas, do tipo que sobe pelo diário de classe, curiosas, talvez pensando
em fofocar mais tarde sobre a nota dos alunos... Certo é que devo muito aos
rapazes da informática, que me socorriam porque ali havia poucos funcionários
de limpeza, e mesmo alguns alunos, valorosos trucidadores de insetos. Valeu,
galera!
129
meter a mão na aldrava para abrir a porta, mas recolhi a perna e tentei me
controlar. Ao meu lado, minha mãe repetia, sabedora que é desse meu fraco
por insetos: “Filhinha, filhinha, fica calma, mamãe mata. Mamãe mata...”
Só que mamãe não foi tão rápida quanto a barata, porque aquela
resolveu usar as asas, e adivinhem onde decidiu pousar? Bem no meio do
meu peito, de onde veio subindo, lépida, firmemente decidida que estava a me
dar um beijo na boca! Quem sabe, não se tratasse de uma barata, mas de um
“barato”?!?!?!
130
De cara nova
Para alguém que ainda não completou meio século de vida, até que eu já sofri
por muitas cirurgias. Até agora, seis, e espero ficar por aqui. Nisso devo ter
puxado ao meu pai que quando morreu, aos 70 anos, já tinha entrado 13 vezes
por centros cirúrgicos, pelas nossas contas... Talvez a operação que para mim
tenha sido a mais marcante foi a que passei dos 17 para os 18 anos, no osso
maxilar inferior. Eu cresci com uma má formação que é herança de família, do
lado paterno, claro, e lançava meu queixo para a frente e também um pouco
para o lado esquerdo. Se eu tivesse usado aparelho mais cedo talvez a coisa
tivesse se resolvido mais fácil. Mas como não tínhamos dinheiro e só pude
começar um tratamento ortodôntico quando já tinha 15 anos completos não
havia muito que se pudesse fazer por mim.
131
11 pontos do lado direito e mais 13 do esquerdo da cara sem anestesia
nenhuma.
Eu só sabia que ainda estava viva e que não tinha morrido porque ouvia
a equipe trocar elogios mútuos. “Nossa, mas ficou uma beleza mesmo!” Ou:
“Puxa, que trabalho bem feito!” A cada novo ponto, eu sentia um dor aguda
acompanhada de um clique, como se alguém estivesse grampeando a minha
pele com um gigantesco grampeador de papel, e depois sentia a linha
corrrendo quando a dor se tornava ainda mais intensa. Doía, doía, como doía!
Mas nem havia tempo de sentir que aquela dor diminuía, uma vez que já vinha
o próximo clique, a próxima grampeada, a próxima dor lancinante, ai que dor,
que dor... Isso se repetiu por um bom tempo, mais ou menos pela duração dos
24 pontos. Quando eu já não sabia mais o que pensar, consegui levantar um
dedo, ou um pouquinho da mão direita. Por sorte, alguém viu!
Naquele ano, não comi bolo pelo meu aniversário, que é em março, uma
vez que fiquei 66 dias com ferros e elásticos que amarravam uma arcada
dentária a outra, e só me deixavam me alimentar tomando qualquer coisa
líquida. Fiz algumas descobertas interessantes. Como a da vitamina de batata
inglesa. Intragável... Que é quando se adiciona mais leite a um purê de batata,
de maneira a tentar fazê-lo subir por um canudinho. Quando, enfim, os ferros
foram retirados, meus dentes estavam completamente moles, o que não me
impediu de me atracar com um bife, esturricado do jeito que eu gostava,
quando ainda comia carne, muitos anos atrás.
132
Uma máquina incrível
Um dos primeiros empregos que tive naquele intervalo entre o Ensino Médio e
a faculdade foi na representação de dois bancos alemães no Rio de Janeiro.
Havia um escritório bonito e bem localizado na Praça Pio X, em frente à Igreja
da Candelária, onde funcionava o setor administrativo do Deutsch-
Südamerikanische Bank e do Dresdner Bank na cidade. Fui parar lá por
recomendação do marido de minha professora de alemão, que era húngaro e
muito bem relacionado com o então diretor-presidente do escritório.
133
era insegura e vivia sendo chamada à atenção. Tanto que o bordão pelo qual
era conhecida tinha a ver com a frase que sempre repetia, depois da mais nova
bronca dada pelo seu chefe: “eu só levo fora!” Havia ainda uma secretária
viúva, mãe de dois adolescentes, em cuja vida tudo parecida dar errado —
viuvez precoce, filhos problemáticos e cachorro com leishmaniose — e a
tesoureira, também alemã, que tinha um marido com metade da sua idade e
que não se cansava de elogiar os atributos sexuais e o desempenho do pai de
suas duas filhas. Para completar a equipe, havia um rapaz descendente direto
da nobreza germânica que vivia às voltas com sua namorada interesseira e
uma recepcionista que, embora jovem, estava há 13 anos no escritório, o que
parecia já haver sugado de sua alma toda esperança de melhorar de vida, e
cujo traço distintivo era conservar o feitio de garota do interior a qualquer custo,
como se isso fosse um mérito.
134
telex e não sabe como ele funciona, explico que era um aparelho que enviava,
por linha telefônica, uma mensagem contida numa fita de papel perfurada. Eu
tinha algumas guardadas, mas já não tenho mais. O esquema era simples.
Primeiro a gente digitava o texto a ser enviado num teclado que ia produzindo
duas versões: a primeira datilografada numa bobina com várias cópias com
carbono entre si e a segunda que era a perfuração da fita, que podia ter vários
metros, dependendo do tamanho da mensagem.
135
digitar ali. A peça de museu era marrom e fazia bastante barulho quando
recebia algum telex, tanto para digitar o texto quanto para perfurar a fita. Ali
dentro, diante daquela máquina, a gente sabia que alguma coisa importante
estava acontecendo, a gente sentia no corpo que era um ambiente de trabalho,
coisa que a comedida feição do computador mais ou menos deixou para trás.
Gostaria muito de saber que destino teve essa linda máquina e, mais ainda, de
vê-la e operá-la novamente.
136
Folha Corrida
Março de 1989 — Não foi mesmo boa idéia ter vindo aqui para Miami
fazer o curso de comissária de bordo na Pan Am. Os funcionários agem de
forma suspeita, como se o mundo fosse acabar amanhã. E ainda mais essa:
dobraram a duração de um para dois meses. Eu estou voltando. Não quero
perder o semestre na faculdade.
137
Maio de 1989 — Agora eu sossego. Bom emprego de secretária trilíngüe
no escritório da Adidas. Um chefe é divertido e o outro é bonitão. Fico aqui pelo
menos até me formar. A vista do Pão de Açúcar é a melhor parte.
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recusas de universidades do mundo inteiro ao longo de dois anos e meio. Que
derrota!
Maio de 1993 — Eu juro que tentei. Faz três meses que eu estou dando
aula desde Ipanema até a Avenida Brasil — às vezes no mesmo dia —, tudo
pra fugir do escritório. Não tenho nenhuma turma de espanhol, e por mais que
eu ensine inglês e alemão até quase dez da noite o dinheiro não aparece.
Também não tenho carteira assinada.
Abril de 1994 — Dia 1°: parece brincadeira, mas hoje eu volto pro Brasil
depois de três meses de neve e estágios, não necessariamente nesta ordem.
O carnaval na Alemanha é o que há de mais bizarro na face da Terra. O
jornalismo que se faz aqui também é de pouca aplicação prática no Brasil —
sobram repartições e faltam notícias.
139
dose de tensão e de frustração, mas eu gosto do que eu faço e sempre pode
surgir uma oportunidade mais de acordo com a minha aspiração intelectual.
140
mais bem classificados fizeram o curso e foram convidados. No caso, nós dois,
fomos para o carro-chefe da empresa, a revista Manchete. Trabalhei lá por
pouco mais de um ano, no início sem carteira assinada, como vem
acontecendo, lamentavelmente, sempre mais no Brasil, e ao longo desse
período viajei bastante, para fazer reportagens em diversos estados do país, já
que não tínhamos sucursais, e também no exterior. Minha matéria de capa
sobre os brasileiros que foram tentar a vida em Miami foi um sucesso e tenho
certeza de que aquele período foi o auge da minha trajetória como jornalista,
apesar do salário totalmente insignificante.
Mas não foi apenas daquela vez que eu fiz um registro de minhas
memórias como empregada assalariada da livre iniciativa. Há outros, como o
que se segue.
141
Não senhor, não conhecemos comida japonesa. Ah, o prato é daqui mesmo?,
não conheço. A perna do boi. O senhor quer dizer mocotó.
Pelo menos duas vezes por semana ela chama todo mundo pra ver.
Mijaram na pia de novo. Ela tem dois suspeitos e ninguém discorda. Até o final
do expediente D. Maria roga as piores pragas baianas contra o membro
pecador. Ela esfrega o assoalho branco e implora pra gente limpar os pés
antes de entrar, mas não esquece o assunto.
Tem coisa pior. Que eu tenha visto, bem umas três vezes no período de
um ano. Gritos, todo mundo corria pro banheiro masculino. Agora passaram da
conta. Agora passaram a toalha de mão na bunda. Alguém limpou a bunda
com a toalha branquinha, lavadinha, que D. Maria trocou ontem. Ela se
descontrola.
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Ninguém reage quando ela se recusa a lavar a toalha. Precisa dinheiro
pra comprar toalhas novas, com essa já vão três. Só pode ser um doente. Um
pervertido. Um dos dois.
O brasileiro vai direto falar com a vendedora mais antiga, uma uruguaia,
e só quem se aproxima é o patinho. Ele fica à meia distância, o suficiente para
ouvir a conversa e para saber que aquele não é um cliente.
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A experiência acumulada só ocupa espaço que poderia estar sendo
mais bem ocupado com outras letras de música. Já a vivência não, a vivência
pode render assunto em conversas de salão, quando não umas boas piadas.
Faltava agora a parte mais difícil. "Vou oferecer pra quem? Ninguém me
conhece. Pior ainda, não conheço ninguém nesse meio." Pensou em fazer
primeiro uma pesquisa de mercado.
Não, opinião de mãe não vale. A melhor amiga adorou, leu tudo num dia,
mas melhor amiga também não vale. Um amigo chegado leu, achou alguns
textos inteligentes e outros engraçados. A irmã dele, de 74 anos, leu duas
vezes, mas não disse se gostou.
144
publicadas. Talvez em revistas adultas. Isso! Selecionaria as melhores do
mercado. A abordagem poderia ser assim, um apelo em forma de carta, ou
crônica:
Entrei no vício sozinha. Com cinco anos, comecei, de uma hora pra
outra, a ler as manchetes penduradas nas bancas de jornal, quando ia pro
jardim de infância. Bem rápido, passei a escrever e não consegui mais parar.
Hoje leio até placa de carro.
A esta altura já precisava vender pra garantir minha dose diária. Fui
estagiária, produtora e repórter na rede internacional. Cheguei a prestar serviço
pra maior máquina de informação do país.
145
doutor. O doutor me dando um cantinho de página pra eu plantar umas idéias
como colaboradora.
Eu sei que foi difícil o senhor chegar ao espaço que tem hoje. Eu não
estou falando daquele assunto de reforma não, só quero um pedacinho pra
garantir minha subsistência.
Porque escrever, doutor, é a minha droga e sem ela eu não vivo. Com
ela, atualmente, eu nem sobrevivo. Garantido meu consumo, o risco é aparecer
mais algum dependente, mas aí gero lucro pro senhor. Por favor! Em vez de
me mandar procurar tratamento, me ajude a encontrar um lugar na sociedade.
É claro que nunca mandei essa carta, mas ela exprime perfeitamente
todo o desespero que eu sentia. Na verdade, eu já mudei de profissão três
vezes: comecei com trabalhos administrativos, tipo secretária em escritório,
depois passei para o jornalismo e, por fim, cheguei a professora universitária
(de jornalismo, claro), o que me garante o sustento há seis anos. Por quanto
tempo, não sei. Sempre sem deixar de escrever meus livros em paralelo. Assim
como minha vida amorosa, a profissional também foi cheia de altos e baixos.
146
marcou minha entrada no mundo dos adultos com o risco, inclusive, de quase
me fazer desistir do emprego.
Depois que saí da Bloch, passei pouco mais de um ano às voltas com
Berlim e um freelance numa rádio de lá. Na volta, mais freelance num jornal
diário do Rio, depois o contrato em outro — que também não funcionou, porque
o jornal é péssimo — depois recaída de secretária num colégio alemão, depois
convite para ser redatora de internet num canal de tv a cabo, aí o lampejo de
que eu devia tentar fazer um mestrado, o milagre do mestrado, e a cambalhota
que me levou ao meio acadêmico, resumidamente. Descobri que dar aulas,
em especial para os bons alunos, dá um retorno incrível: a gente sente que
investiu o próprio tempo semeando algo de bom e importante. No entanto, a
grande maioria é composta por alunos fracos e desinteressados, e as
universidades privadas estão mais preocupadas em faturar do que oferecer
ensino de qualidade, infra-estrutura mínima, respeitabilidade. É por isso que,
147
vez por outra, aviso aos meus alunos: já mudei de profissão duas vezes e
duvido que vá me aposentar como professora.
148
Uma jornalista investigativa totalmente sem noção
149
que as aulas da UFRJ eram à tarde, o que dificultava muito conseguir algum
emprego, as da UERJ eram noturnas, e dificilmente alguém da turma era
exclusivamente estudante naqueles dias. Mais sofridos e mais maduros, os
colegas queriam aprender porque, como eu, viam ali a única ou principal
chance de elevar o status social.
150
ostentava no currículo. Ele simplesmente não ensinava nada. Aliás, nem
tentava.
Mas não havia. E não fosse aquele nome masculino repetido ad eternum
pelo professor catatônico como o primeiro da lista, porque começava pela
combinação AC..., eu jamais teria despertado para a seguinte suspeita, que
viria a se confirmar: pelo menos aquele inscrito na matéria, cujas seis versões
anteriores, de Língua Portuguesa I a Redação Jornalística II eram uma cadeia
instransponível de pré-requisitos, estava na lista de forma irregular, já que
nenhum de nós jamais tinha visto a cara dele!
151
Minha primeira providência foi procurar, no andar térreo, o departamento
responsável pelo registro do histórico dos alunos. Pedi a um funcionário muito
gentil, um negro forte, chamado Milton, que me desse a ficha do suposto
colega cujas iniciais eram AMG. Ele disse que era proibido e que apenas o
próprio aluno poderia levantar o formulário de sua situação naquele dado
semestre. Muito por alto, expliquei o caso e o confrontei com a pergunta: “e
caso se trate de uma fraude?” Na mesma hora ele aceitou meu pedido,
confirmando minha inclinação a julgar que fosse uma pessoa de bem, e
mandou que eu voltasse dali a dois dias. Da segunda vez, me recebeu com um
sorriso quase triunfante, e anunciou: “Ele não só está inscrito naquela disciplina
como em mais cinco, com excelentes notas, e está para se formar com a turma
de vocês...” Ao que eu respondi: “Mas não vai se formar MESMO!!!”
152
Foi difícil acreditar que isso fosse possível. Corria o mês de abril e no
mês anterior, como presente de aniversário, eu havia recebido de presente do
diretor, com quem tinha a melhor das relações, um livro chamado As
responsabilidades do jornalismo, organizado por Robert Schmul, com a
seguinte dedicatória: “A você, Sandra, com os votos de um feliz aniversário e
de uma boa leitura, forte abraço”. Eu estava bastante abalada quando voltei a
procurar meu orientador e ele quase caiu duro. “Você tem que levar isso
adiante, é muito grave! Reúna os alunos todos e conte o que está
acontecendo. A comunidade precisa se colocar por uma postura ética, mas tem
que partir dos alunos, os maiores interessados e também os maiores
prejudicados, ou então vão dizer que é mentira, manobra política, de uma
dissidência interna querendo tomar o poder.” O diretor fazia parte do corpo
docente de Relações Públicas, que era a outra habilitação possível e a mais
antiga do curso, e havia uma eterna luta interna pelo poder entre RP e
Jornalismo. Se não me engano, aquele foi, inclusive, um ano de eleição para
escolher novos diretor e vice-diretor.
Ainda me lembro de mim, inocente, numa sala que reunia mais de uma
centena de alunos dos quatro períodos em curso, no Jornalismo, contando a
história, de como a chamada me pareceu suspeita, de como peregrinei pelos
departamentos à procura de provas, de como estava ali querendo que os
colegas se colocassem a respeito. Porque eu, individualmente, estava
indignada. Não achava justo trabalhar o dia inteiro em expediente integral,
assistir a todas as aulas e dar duro para escrever uma boa monografia e me
formar como se deve, enquanto que outra pessoa — no caso, um funcionário
da técnica do estúdio de tv que nem lá aparecia — por caminhos escusos, dali
a poucos meses ia ter na mão um diploma igualzinho ao meu, sem fazer força.
153
começaram literalmente uma grita dizendo que era para deixar tudo como
estava. Afinal, ninguém queria arriscar que vazasse a história para algum
veículo de comunicação abelhudo, o que ameaçava comprometer a futura
empregabilidade de em breve formandos naquela “universidade do liquid
paper”, como ficaria conhecida.
Porque não existem criminosos isolados. Porque ele foi afastado mas
isso não é garantia de que outros esquemas, apoiados nas brechas do
sistema, não tivessem continuado. Anos mais tarde, quando comecei a dar
aulas no ensino universitário, reencontrei alunos da época, agora professores,
154
e eles defendem o diretor como tendo sido vítima de um complô, armado por
sabe-se-lá-quem, sem no entanto explicar quem seria. A inveja teria sido a
motivação. Diante desses relatos, eu me calo. Aprendi uma lição diante
daquela platéia com uma centena de alunos enfurecidos. Não me dou mais ao
trabalho de explicar por que não foi complô nenhum, já que quem levantou a
fraude era alguém de minha inteira confiança, a única, aliás, em que eu posso
confiar plenamente, e por sinal devo, que sou eu mesma. Ouço tudo em
silêncio.
155
Amizade com começo, meio e fim
Durante muito tempo me perguntei se uma amizade com começo meio e fim
continua sendo uma amizade. Entendo amizade como uma forma de amor em
que não rola sexo mas, no mais, a entrega, a dedicação, a parceria é a mesma.
Claro que não se pode ser amigo assim de todo mundo. Por isso mesmo, os
amigos verdadeiros são poucos e fiéis ou, então, não passam de conhecidos
que se julgam importantes.
Tive, como todo mundo, uma grande amiga que acreditava ser minha
melhor amiga. Para mais tarde, a duras penas, descobri que minha melhor
amiga preciso ser eu mesma. Escolada de um trote incômodo na minha
passagem pela UFRJ, em 1985, no qual tive que rebolar em cima de uma
mesa e sair à rua para pedir esmola — o que não cheguei a fazer, porque me
rebelei e os veteranos me liberaram — com a cara toda pintada de verde,
decidi que, na UERJ, três anos depois, o melhor seria faltar a toda primeira
semana e escapar do repeteco.
156
noite da apresentação, a fim de criar um clima bem de acordo com a
dramaticidade da história.
De onde ela tinha herdado tanta ginga, taí uma coisa que eu nunca
descobri. Seu sangue zero negativo era totalmente judeu. Neta de refugiados
da Bessarábia durante a Segunda Guerra, era uma das poucas descendentes
de judeu de família pobre que eu conheci. Do que, aliás, eu me queixava
sempre que possível!
157
Nossa afinidade era tão grande que a gente se escrevia, mesmo
estando uma sentada do lado da outra na sala de aula. Batizamos essa
produção de Os alfarrábios. Os alfarrábios eram folhas arrancadas de caderno
e fichário, pedaços de bloco, até um envelope de Matte Leão, usados para
trocar mensagens durante os nossos diálogos simultâneos ao longo das aulas
mais chatas. Hoje os originais estão guardados comigo, mas antes era ela a fiel
guardiã da papelada. À medida que o tempo passou, foram se incorporando
também vários outros escritos: cartões de aniversário, postais, cartões de Natal
(ela é judia!) e cartas trocadas entre a Tijuca e Brás de Pina, apesar de nossos
telefonemas diários.
158
conseguisse, não iria chegar aos pés do dinheiro que ele ganhava como
representante da Alemanha no exterior. Fiquei meio surpresa porque, até
então, eu nunca tinha tido a impressão de que os dois estivessem concorrendo
a alguma coisa mas, enfim, pude entender o ressentimento dela, que dizia: “ele
não sabe como foi difícil chegar aqui, ele não dá o menor valor para o que é
importante para mim”. Não havia base para um relacionamento duradouro.
159
Naquela noite, véspera da viagem, minha amiga estava usando um
vestido preto, de malha, curto, sem mangas, e me acompanhou até o ponto de
ônibus, que agora ficava na porta da casa dela. Era o Caxião, um
intermunicipal, que ela costumava saudar aos gritos toda vez que o via na rua,
mesmo quando não estava precisando pegá-lo. Acontece que o Caxias-Usina
ou Caxias-Sãenz Peña era a única possibilidade direta de ela se deslocar entre
a minha casa e a dela. Sobre o ônibus, observadora e sensível como era, ela
reunia casos e mais casos interessantes. Ele demorava muito a passar.
Nos dois anos que levamos para nos reencontrar, eu ficava sabendo
pouca coisa dos acontecimentos através de seus pais, que sempre me
trataram com a maior consideração. Creio que só recebi uma carta em
resposta às muitas que lhe enviei nesse meio tempo. Até que, em 1996,
estando em Berlim e às vésperas do seu aniversário, que era dia 13 de
outubro, telefonei e perguntei o que ela achava de a gente comemorar juntas.
Eu estava com muita saudade e a passagem de avião da Alemanha para Israel
não era tão cara como se eu fosse sair do Brasil. Ela foi logo me avisando que
não poderia me hospedar na yeshivá onde morava, porque era dedicada
apenas a meninas judias. Eu ficaria num albergue da juventude. Depois de me
encontrar no aeroporto, seguimos juntas até lá e aí começaram a saltar os
olhos todos os detalhes daquele processo de transformação pelo qual ela tinha
passado.
160
Já no telefone, quando eu liguei de Berlim perguntando se poderia visitá-
la para a gente comemorar juntas seu aniversário no dia 13 de outubro, percebi
que havia alguma coisa errada quando ela me respondeu que, aquele ano, o
aniversário ia cair num outro dia. Explicou que entre os judeus a referência de
contagem dos dias se pauta pelo calendário lunar e, por isso, a cada ano a
data podia cair num dia diferente. Pensei comigo: primeira estratégia para o
esvaziamento da identidade. Ao longo daquela convivência — que não chegou
a uma semana, até porque, nos dias do sabá, ela preventivamente me mandou
viajar numa excursão de ônibus até Tel Aviv, Jaffa e redondezas — outros
detalhes curiosos foram se revelando.
161
Diante de uma sopa de cebola servida dentro de um pão cujo miolo
havia sido retirado, era a hora de fazer a reza da farinha, recitada na iminência
de consumir qualquer produto que utilizasse a farinha de trigo. Outro aspecto
que me chamou muito a atenção foi que, em todas as casas, havia instaladas
duas pias de cozinha. Uma para produtos de carne e outra para produtos de
leite. Panos de prato, louça e talheres também não poderiam ser misturados
para cumprir uma proibição da época de Moisés, segundo a qual é preciso
esperar um dado número de horas quando se ingere comida de um ou outro
grupo. Essa foi uma prescrição que, de certa forma, acabou me beneficiando.
Como só como peixe há mais de 20 anos, pude encontrar em Israel um variado
cardápio vegetariano, com diversos schnitzels de legumes, por exemplo, o
correspondente a um nugget ou empanado do tamanho e com a função de um
bife. Até chocolate em barra sem leite, por sinal bem saboroso, eles
desenvolveram para não gerar qualquer tipo de privação alimentar.
Minha amiga continuava uma pessoa alegre, cheia de vida e que, para
meu espanto, falava os mesmos palavrões de antigamente e com a mesma
naturalidade. Perguntei o que estudavam aquelas moças ali, qual seu futuro, e
ela me revelou que o intuito era dar continuidade às tradições. O Ocidente não
162
costuma saber muito sobre isso, mas na verdade nem todos os judeus são
ortodoxos. Os pais de minha amiga no Brasil, por exemplo, não eram. Já
aqueles que andam de preto e usam chapéu, barba e os cachinhos lá em Nova
York são. Dentro do território israelense a gente vê ambas as variantes, e como
os ortodoxos são minoria numérica existe uma orientação voltada para
preservar sua comunidade não só naquele país, mas em vários outros. Em
resumo, minha amiga estava sendo preparada para se casar e gerar filhos,
apenas. Apesar de falar, ler e escrever fluentemente português, inglês, francês,
espanhol, alemão e, em apenas dois anos, também o hebraico, cujo alfabeto é
totalmente diferente do nosso.
163
Segundo o que ela me explicou, entre os ortodoxos ainda vale a tradição
do casamento arranjado, uma forma de anacronismo que foi comum há alguns
séculos, inclusive no Brasil. Assim, alguém da comunidade considera que
fulano e beltrana podem combinar e faz os primeiros contatos. Da primeira vez,
eles conversam diante de um grupo de pessoas, mas não demonstram
abertamente o que sentiram. Isso é passado mais tarde através de
intermediário, quando vão rejeitar claramente o contato ou encorajá-lo. Um
segundo encontro é agendado, por interesse das duas partes, e eles se
encontram, se não me engano sozinhos, num local público e ao ar livre, como
num parque. Depois de um número determinado, se não me engano sete, de
aparições, se ninguém tiver nada contra, homem e mulher se casam. Sem
sequer terem trocado um único beijo, terminantemente proibido.
Levei aí mais três anos para estar de novo com minha amiga,
novamente em Israel. Recebi pelo correio o convite de seu casamento e
telefonei para perguntar se, como não judeus, meu ex-marido e eu poderíamos
participar da festa. Ela confirmou, dizendo que seríamos as exceções. Nem seu
único irmão viajou com a cunhada para lá e nós só pudemos comparecer com
muito esforço. Ganhamos de presente as passagens de avião de um amigo
meu, nossas famílias se cotizaram e juntaram um punhado de dólares
suficiente para hospedagem em albergues e comida nos 10 dias que passamos
lá, e o vôo, especialmente o de volta, foi bastante extenuante, porque era direto
e levou mais de um dia inteiro, entre atrasos e conexões.
164
homens. Pelo menos ele mandou me dizer, pela sua noiva, que tinha me
achado “uma gata” (?)
Com minha câmera na mão, cheguei cedo e comecei a tirar várias fotos
dela, que posava toda radiante, mas quando pedia ao meu ex-marido que
fotografasse a gente sempre acontecia alguma coisa: era a hora de ela sair na
foto com pessoas importantes da comunidade, ou de resolver qualquer outro
aspecto de última hora e, mais do que minha desconfiança, era o olhar que os
organizadores da comunidade onde agora ela estava inserida me lançavam o
que não deixava dúvida: o que eu queria não podia ser.
165
Quando ela percebeu a movimentação, e meu rosto não escondia nada
do que eu estava sentindo, nem minha frustração, chamou o fotógrafo da festa,
me levou para um canto onde não poderíamos ser vistas e pediu que ele
tirasse uma foto de nós duas. Imagino a cara que eu fiz. Imagino, apenas,
porque nunca vi esta foto. Quando chegamos na calçada, tinha uma das piores
crises de choro da minha vida, e disse ao meu ex-marido: “a gente não está
saindo da festa de casamento dela, a gente está saindo do funeral”. Eu sentia
uma dor horrível, um vazio imenso, uma perda sem limite. Na manhã seguinte,
fomos de ônibus para Tel Aviv e só voltamos à cidade para pegar o vôo de
volta ao Brasil. Nós não iríamos poder estar com os recém-casados por causa
dos seus inadiáveis compromissos. Ainda que com vizinhos, enquanto nós já
estávamos indo embora para o outro lado do mundo.
Mas a gente devia se dar por feliz. Afinal, a agora feita esposa foi se
despedir de nós no aeroporto de Bem Gurion, já com a rede no cabelo e uma
consciência aparentemente tranqüila. Eu não queria conversa. Não queria dizer
nem entender mais nada. Só me sentia traída, enganada, descartada por
conveniência, e roubada do único pedido que havia feito minha mãe e que
também tinha se tornado meu único pedido. Sei ainda hoje a última frase que
eu disse. “Esse seu Deus não é o meu Deus. Eu não sei quem ele é, mas acho
que não é Deus. Porque, para mim, Deus une as pessoas e o seu Deus está
nos separando!” Ela não respondeu nada.
Tive o cuidado de não chorar na frente dela, porque logo depois do meu
rompimento verbal passamos pelo portão de embarque, e só consegui
controlar o choro convulsivo bem depois, trancafiada ao lado do meu ex-marido
na cabine do avião sem refrigeração debaixo do sol por algumas horas, sem
poder desembarcar, enquanto consertavam alguma pane de última hora.
Quando enfim decolamos, o medo de morrer se sobrepôs àquele drama tão
pequeno, e procurei afastar meu pensamento daquele assunto. Só descobri de
verdade que a maior amizade da minha vida tinha acabado no Natal do mesmo
ano, quando eu e meu ex-marido separamos um cartão e, por sorte, não
escrevemos. Porque não tínhamos o endereço dela. E eu nem sabia mais,
aliás, qual era o seu novo nome...
166
Depois de uma curta temporada em Jerusalém, a família foi morar em
Nova York, onde o rapaz nasceu, e atualmente a prole consta de duas meninas
e um menino.
167
Ganha, mas não leva
Apesar de todo o prazer que sinto em escrever, já nos dois primeiros anos de
faculdade eu comecei a desconfiar de que não tinha alguns dos requisitos para
fazer uma carreira como jornalista. Minha maior deficiência, na verdade, me
parecia estar no fato de que eu nunca fui muito competitiva. Não sou do tipo
que vive checando para saber o que os outros andam fazendo para, só então,
bolar uma estratégia de ação. Eu penso que ou a gente faz as coisas com um
certo grau de sinceridade espontânea ou está na hora de rever alguns
propósitos.
168
de cérebros para o exterior, que tanto se comenta há anos. Porque, depois de
passar dois anos fazendo um mestrado, o mais provável é que eu ainda
tentasse mais uns quatro de doutorado e seria difícil que pensasse em voltar
para o país.
169
único bem, um carro usado, para comprar o bilhete aéreo, cuja reserva estava
confirmada — soube da operação numa sexta e ia pagar a passagem na
segunda-feira seguinte. Quanto às pilhas de materiais recebidos das
universidades, reuni tudo e doei para a Fundação Mudes, como forma de
agradecimento. Espero que aquela papelada toda, que me custou tanta grana
de correio, tenha podido ajudar outra pessoa...
170
Doutorado? Ainda não...
Depois da rasteira que foi a perda da vaga no mestrado em Oregon, levei dez
anos para me recuperar e pensar, novamente, em tentar fazer o curso de pós-
graduação. Até hoje quando, no primeiro dia de aula, invariavelmente, em toda
turma, faço minha apresentação e converso com os alunos um por um, gosto
de repetir a interessante conjuntura que me levou às salas de aula.
A lista com a bibliografia era bem grande. Alguns títulos e autores eu até
que conhecia do meu tempo de estudante, muitos anos atrás. Mas outros eram
novidade. Não tive dúvida: em rápidas pesquisas de internet, eu procurei ler o
máximo da filosofia de cada um daqueles pensadores e ponto final. Meu tempo
era tão escasso que tive que pedir à minha irmã mais velha que fosse conferir
se meu nome aparecia na lista dos aprovados.
Nem acreditei quando ela falou: eu tinha sido aprovada com média 9,7
(de um máximo de 10 pontos) na linha de pesquisas de imagem. Era a
171
confirmação de que eu precisava. O milagre tinha dedo de anjo da guarda
mesmo, que esteve, inclusive, de prontidão no dia da prova escrita. Uma
entrevista com banca depois eu já fazia parte do corpo discente da Escola de
Comunicação, a famosa ECO. Agora é que vinha a parte mais difícil...
Nada como ser assertiva. Diante da minha firmeza não lhe restou mais
nada a não ser concordar com minha proposta. Mas o acordo seria
imediatamente revogado caso qualquer outro colega de trabalho pleiteasse a
mesma “vantagem”. O trato foi que eu não tiraria nunca mais minha hora de
almoço de segunda à quinta-feira e, em troca, poderia ter as manhãs de sexta-
feira livres para fazer o curso. De tanto comer sanduíche na frente do
computador eu, que sou vegetariana há mais de 20 anos, acabei ficando, pela
primeira vez, bastante anêmica, num processo que levou tempo para eu
recuperar a saúde. Mas valeu à pena investir na qualificação profissional.
172
vezes cheguei às bancas, que são a última fase sempre, e nada de me sair a
contento no bate-papo. Devo estar dizendo alguma coisa errada, só não sei o
quê. Ai, essa minha sinceridade estraçalhante!
A penúltima vez foi memorável. Tinha dado aula das 7h30 às 9h30 em
uma outra universidade particular e pedi liberação à chefia para sair. Sem
problemas. É bom quando das visitas do MEC (Ministério da Educação e
Cultura) que haja o maior número de doutores na casa. Mas o dia não iria
começar lá muito bem. Já fui assaltada (de novo!) no ônibus no caminho para a
UFRJ. Com aquele foram 10 assaltos, não preciso de mais nenhum, e eles são
um capítulo à parte na minha vida.
173
Sem chorar — tô cada dia mais resistente; na morte do meu pai, levei
mais de uma semana para conseguir derramar minhas lágrimas — me
encaminhei ao corredor onde todo mundo estava esperando e não dei uma
palavra sobre o que tinha acontecido. Lá dentro, uma banca sui generis me
esperava. A professora doutora que havia aceito ser minha orientadora no
projeto e já me conhecia porque me deu aulas no mestrado, a querida Yeda
Tucherman. Uma professora destacada na área de novas tecnologias e que,
aliás, tem boa penetração na imprensa carioca. Um professor-pesquisador da
área de internet que fuma bastante, o que não combina com o que se espera
de um doutor, já que fumar não é nada inteligente.
Fiquei com vergonha no lugar dele. Fiquei constrangida por ele (eu
tenho esse problema: se alguém faz uma coisa muito abominável na minha
frente, eu me sinto assim, assumo a culpa, o remorso, no lugar do outro; ainda
bem que só dura uns segundos...). Só me restava olhar pra ela, pedindo
socorro, porque eu já estava meio velhinha para virar uma dedo-duro, ainda
174
mais num ambiente acadêmico. O mesmo de onde eu tinha saído e para onde
pretendia voltar. No momento, não pretendo mais: sei quando não sou bem-
vinda e creio mesmo haver uma lista negra em ordem não-alfabética
começando pela letra S só para avisar que eu não posso passar nem na porta
da instituição.
175
Dona Marta
176
São Petersburgo, na Rússia. Como eu acumulava muitas folgas não tiradas
porque quando não estava trabalhando no fim de semana para a revista estava
fora da cidade em alguma viagem, pedi uma espécie de despensa ao meu
chefe, para fazer um freelancer básico e, aí sim, ganhar algum dinheiro em
dólares.
177
Também estivemos num lar de acolhida para garotos sem família, ou
melhor, cuja família havia desistido deles, em uma parte qualquer de
Jacarepaguá. A jovem que cuidava deles, uma evangélica, gordinha e decidida,
era pouco mais velha do que aqueles que buscava ajudar, e conseguia
administrar um lar de forma surpreendente, inclusive no que diz respeito às
finanças. A figura da mulher também esteve muito marcante num baile funk a
que assistimos no alto do Morro do Cantagalo, em pleno cartão postal de
Copacabana, em meio a traficantes dos mais variados calibres que
empunhavam armas dos mais variados calibres também. Eram filhas da classe
média alta da Zona Sul, cujas famílias dificilmente estariam a par de seu súbito
interesse pela macheza dos bandidos do outro lado da linha da pobreza e da
sociedade.
178
Tudo que eu sabia era que meu amigo Valter havia tido acesso na favela
por causa de alguém que ele conhecia. O rapaz era evangélico, como ele, e já
havia construído uma certa reputação, inclusive junto à imprensa, pela
militância numa outra favela no subúrbio em que, anos antes, depois de uma
das maiores chacinas da história da cidade, ele havia conseguido instalar uma
chamada Casa da Paz, na tentativa de resgatar tanto a cidadania quanto a
auto-estima da comunidade. Pois então. Eu andava dez metros e, por mais
simples que estivesse vestida, e andando sozinha, sem o gringo chamativo a
tiracolo, chamava a atenção dos moradores — é impressionante como todos se
conhecem, inclusive pelo nome — parava e perguntava pelo tal do líder
comunitário. Só fui saber bem mais tarde que fazia dois anos que ele não
freqüentava mais o local e, no entanto, continuava respeitado, até por suas
vinculações particulares com o então dono do morro, como vim a saber mais
tarde.
Fala daqui, fala de lá, levei tempo para subir os mais de 700 degraus e
chegar ao topo da favela, onde funcionava uma instituição organizada por um
grupo de igrejas protestantes chamado Jovens com uma missão, onde fui
recebida por uma missionária. Ela me apresentou a um vizinho, e este a um
amigo, e esse ao terceiro garoto, e foi assim que se formou o elenco de nossa
produção. Aos poucos a equipe foi se formando — chegaram de Berlim,
também, o cinegrafista, ainda hoje meu amigo, um técnico de som e um
assistente, fora o motorista de fé, que eu sempre reconvocava nessas ocasiões
— e o processo natural da construção desse discurso se desenvolveu. Os
garotos, que toparam participar da produção, em princípio, sem reservas, nem
o pedido de qualquer vantagem ou cachê, nos contavam horas a fio, muitas
vezes diante da câmera, suas vidas, expectativas, realidades tão diferentes da
minha e, mais ainda, daqueles europeus.
Nem tudo do que foi filmado, como acontece nesses casos, pôde ser
aproveitado na versão final, por mera questão de dimensão, ou o filme ficaria
muito longo. Havia imagens dos três amigos jogando totó; da prisão do mais
jovem, quando estava de vigia num paiol de armas; da fala sobre as
179
namoradas e filhos que estavam a caminho, embora ele estivessem ainda
abaixo linha da maioridade; de como os levamos a um baile funk no subúrbio e,
sem saber, os expusemos a um risco, já que aquela era a área de uma facção
criminosa inimiga. Binho, o garoto mais jovem, já tinha envolvimento com o
tráfico, embora não soubéssemos, e acabava ficando sempre mais na
retaguarda, enquanto César e Gilson se expunham aparentemente sem
reservas. De uma forma geral, o convívio com eles era muito prazeroso, já que
eram extremamente engraçados e amistosos. Em pouco tempo, ficamos
amigos e, ao fim da produção, depois de cerca de um mês indo à favela, de
onde só saíamos para dormir, o diretor deu a cada um uma quantia bacana em
dinheiro, que foi imediatamente gasta no shopping center mais próximo no
mesmo dia.
180
Por sorte, não vimos morte, não vimos sexo explícito, naquela noite,
embora eu tenha sido abordada diversas vezes por homens que queriam
oferecer meninas aos gringos e eles esperavam que eu servisse de intérprete
na negociação. Ou, talvez, a versão light do baile tenha se devido à
interferência do dono da Furacão 2000, Rômulo Costa, que antes das
gravações nos apresentou à galera dizendo: “gente, isso aqui é tudo alemão!” e
eu me apressei a corrigir: “alemão não, eles são da Alemanha”. Alemão, na
gíria dos morros, é sinônimo de inimigo, graças aos filmes holliwoodianos sobre
a Segunda Guerra Mundial.
181
Dona Marta, 10 anos mais tarde
182
jornalista, tomei conhecimento de uma ong especializada em ajudar famílias de
presos e egressos, que oferecia cursos profissionalizantes e encaminhamento
de emprego para essas pessoas, e foi por essa via que Gilson reencontrou seu
equilíbrio. A questão do subemprego, da falta de carteira assinada, do
preconceito por causa da cor da pele ou do endereço e outras absurdidades
tão comuns no nosso país continuam existindo, mas meu amigo, hoje pai de
três filhos, sabe lidar com tudo isso com maestria e é uma pessoa feliz, sem a
menor correlação com a contravenção. Gilson é o que de mais próximo eu
encontrei de um filho, e ele me chama de mãe, sem que sua mãe verdadeira,
Dona Maria Helena, se aborreça com isso. É alguém a quem eu costumo dizer
“eu te amo” com a maior naturalidade e de quem eu ouço “eu te amo muito”
toda vez que nos falamos.
Depois que Gilson foi solto, a situação se inverteu e, aí, quem passou a
correr risco foi César. Por conta de disputas internas pelo gerenciamento da
venda de drogas no morro, houve uma espécie de racha e César se engajou
como soldado, armado, para defender um dos lados. Quando esse bando
começou a perder, ele teve que sair fugido do morro, e se escondeu em outra
comunidade. Até aí eu não sabia de nada. Simplesmente comecei a receber
ligações dele, muito desesperado, me dizendo que precisava urgentemente
conseguir um emprego e perguntando se eu não sabia de nada que pudesse
indicar. Durante cerca de uma semana, nos falamos todo dia, e embora eu não
estivesse entendendo nada do porquê de tanta agonia, tentei fazer o possível.
Mas o meu possível não foi suficiente. César ainda chegou a me dizer, pelo
telefone, que o filho dele, Leonardo, tinha nascido. Pensei que a urgência do
dinheiro pudesse ter algo a ver com isso. Passaram alguns dias sem ele me
telefonar.
183
Dona Conceição, mãe dos dois, e de Sidnei, um outro rapaz muito gentil,
sempre me fazia chegar algum pedido, de remédios e alimentos, e eu buscava
ajudar, porque ela tinha uma cardiopatia grave. De repente, ela ia ter a
responsabilidade de cuidar sozinha da neta, um bebê de menos de um ano,
filha de Cíntia, que havia nascido com hidrocefalia. Não levou muito tempo,
Gilson me contou da morte natural de Dona Conceição, que não tinha nem 50
anos. Não sei qual foi o destino da menina. Parece que Cinthienne ficou com o
avô materno, Seu Salvador, que tinha outra família, o que não era lá muito
recomendável, já que ele vivia de jogatina e adorava uma carreira de pó. Cíntia
era outra menina que gostava muito de mim. Ela morreu aos 16 anos. Queria
que eu batizasse sua filhinha. O bebê nasceu doente porque seu pai era
dependente de drogas.
Depois dessa tragédia com a família dos meus amigos, que eu revejo
com uma dor no coração toda vez que assisto ao Galera, simplesmente não
consegui mais ir lá. Cada canto do caminho me faria lembrar deles e de uma
época que, apesar de tudo, foi tão importante para o meu desenvolvimento
como profissional e como gente. Pressionados pela disputa que sua militância
fazia contra a sedução do tráfico, Beth, Ricardo e a filhinha deles tiveram que
sair de lá. Grande parte dos meninos que aparecem no filme estão mortos ou
presos. É o caso de Binho. Embora não soubéssemos, ele já tinha, sim,
envolvimento com o tráfico anos atrás. Com o tempo, foi subindo na hierarquia,
cometeu crimes terríveis, como invasão de domicílio — inclusive na mesma
avenida em que eu morava, só que do lado rico da calçada — assassinato
seguido de esquartejamento, conforme o relato de Gilson, até que sua sorte
acabou. Houve até um período em que ele me ligou, como César, pedindo
emprego. Mas como é possível, hoje, alguém empregar, numa cidade como o
Rio, um completo analfabeto? A dificuldade é tremendamente maior.
Binho foi preso quando liderava um “bonde” de assaltantes na Avenida
Niemeyer, num dos bairros mais chiques do Rio, em São Conrado, e nesse
fatídico evento os tiros dos bandidos contra o carro, que tentava escapar,
levaram à morte de uma professora mineira, em viagem de turismo com a
família na cidade. Parece que Binho pegou a pena máxima no país, que é de
30 anos. Seu irmão mais velho, de uma família de quatro filhos, Flávio — as
184
outras duas, felizmente, são meninas — também criminoso, foi morto
recentemente com requintes de crueldade na favela mesmo.
Dos três protagonistas, restou apenas Gilson, que freqüenta a minha
casa, para espanto de algumas pessoas que não acreditam em regeneração
nem em suas boas qualidades. Há muitos anos, Gilson desenvolve uma
atividade de "ledor" de historinhas para as crianças da favela, numa
biblioteca comunitária, sem prejuízo para seu trabalho convencional.
Não há empregador capaz de negar a ele as poucas horas livres no meio
do expediente, duas vezes por semana, quando ele conta o que significa
essa atividade, tanto para ele mesmo, quanto para os pequenos. Gilson
também já tomou parte em iniciativas de liderança comunitária, em que o
esporte tenta ocupar a garotada e dar novas perspectivas de futuro, e
tem boa penetração junto a ongs de atendimento social. Já deu palestras
na Pontifícia Universidade Católica, a mais renomada entre as privadas
do Rio de Janeiro, e eu perdi as contas de quantas vezes ele compareceu
às minhas aulas no curso de graduação em Comunicação Social, para falar
de sua experiência de vida, do que é estar do lado de lá da sociedade,
de como ele pode servir de ponte entre esses dois mundos — o dos
excluídos e o dos excludentes. Não tem como não se emocionar quando ele
narra o que é se ver no meio de uma rebelião dentro de um presídio, num
pesadelo total. Todas as vezes que falou às minhas turmas, com alunos de
classe média, Gilson fez tanto sucesso que, no final de sua fala, se formavam
grupos querendo saber mais e mais, e que só faltavam pedir autógrafo!
Nunca deixei de acreditar em Gilson e acho que tenho sido um fator de
influência positiva na vida dele. Desejo acompanhar, às vezes mais de perto,
às vezes mais de longe, seus altos e baixos, e ele sabe que estou sempre aqui
para dar o meu apoio. Mesmo sabendo dos erros, dos crimes, da catástrofe
que foi a história de César e Binho, meu carinho por eles não diminuiu. Afinal,
ouvi dizer que Deus odeia o pecado, mas ama o pecador...
185
Quase um filme de terror
Essa é uma das histórias que mais impressiona meus alunos, toda vez
que eu conto. Quando voltei daquela temporada em Berlim, comecei a atuar
como freelancer. Primeiro para um dos jornais populares da cidade. Dali, o
chefe de reportagem me chamou para o jornal onde ele mesmo e metade da
redação iriam trabalhar. Era um concorrente novo em folha, do grupo mais
poderoso de mídia do país, que optara por também criar um jornal popular.
Minha colaboração não deu certo por vários motivos. Tanto que pedi as contas
com apenas quatro meses de casa, para desespero de minha chefe de
reportagem. Mas esta é uma outra história.
Nunca imaginei que pudesse morar tanta gente ali por trás daquelas
paredes de terra que a gente vê do lado esquerdo quando segue para
Jacarepaguá. Não que do lado direito não tenha barracos: como tem! É que, à
186
direita, o morro continua num declive. Então, o que se tem é uma vista
panorâmica dos bairros da Zona Norte da cidade, enquanto a favela fica fora
do campo de visão. A área é uma seqüência de morros e vales. Daí que, por
trás dessa espécie de cortina natural à esquerda, se escondem diversas
comunidades, cada uma com seu nome de batismo, mas de igual miséria.
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alguma delas eles não deixam passar. Ainda mais quando percebem que quem
está ali representando o jornal os trata com dignidade, numa postura humilde
de quem sabe que ninguém é obrigado a dar entrevista pra ninguém, por mais
pobre que seja o entrevistado. Eu sempre procurei ver essas pessoas como
gente, ter respeito por elas, dizer por favor e muito obrigada, humanizar o
tratamento num mundo em que eles são tratados como animais. Isso surtia um
efeito bastante construtivo. Porque eu saía da redação com uma pauta e
voltava com cinco. Foi nesse quadro que ouvi uma das histórias mais
horripilantes que já me chegou aos ouvidos.
O problema é que Jorge, um mero biscateiro, por mais boa vontade que
tivesse, não havia freqüentado a escola e, por isso mesmo, jamais poderia se
lembrar das aulas de química. Segundo a ciência, um corpo em decomposição
costuma produzir gases, os mesmos que, ao sair das covas, numa cidade do
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interior, são confundidos com assombração e chamados de fogo-fátuo. Diante
da chama, o abdome do animal entrou em combustão. O cavalo explodiu.
Agora, imagine-se o que seja estar ao alcance de carnes podres de cavalo
pegando fogo e chovendo em cima de você! Foi o que aconteceu ao Jorge. Ele
teve boa parte do corpo queimada, principalmente as pernas, e no momento
em que me abordou, seu vice tinha apenas um pedido: que conseguisse coleta
regular de lixo para a comunidade. Quanto a Jorge, ele estava de cama há
meses e sobrevivia da solidariedade dos vizinhos.
189
A estante do Paulo Coelho
190
outras palavras. Naquela época, eu já havia lido muitas matérias a respeito do
sucesso de Paulo Coelho, mas nunca ninguém tinha explicado, não que eu
conhecesse, como é que se deu esse contato tão fortuito entre os dois Paulos
e a estrondosa e bem-sucedida parceira que se seguiu. Uma pena que eu
tivesse que falar de tantas pessoas na tal matéria na revista: tive que cortar o
melhor do depoimento, que era justamente o primeiro contato entre o editor e
seu durante anos melhor autor.
191
remetia à imagem da borboleta, tatuada num desenho simples também nas
costas das mãos de Paulo e Cristina. Mas, dentre todo aquele universo
potencialmente rico em interpretações, o que mais me chamou a atenção foi o
hall de entrada e não é raro que faça referência a ele em algumas aulas na
universidade.
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apenas as imagens e deixar a mesma pergunta em off. Não vou dar a ele o
direito de defesa e deixar que cada espectador tire suas próprias conclusões..."
Além desse episódio religioso, outro aspecto que nunca ficou muito
claro, para mim, a respeito de Paulo Coelho é a calma com a qual ele trata dos
momentos mais tristes e difíceis de sua vida com a mesma brandura com que
fala dos sucessos e alegrias: parece simplesmente não se comover. Ou ele
atingiu aí algum tipo de nirvana que é só dele e que não quer compartilhar com
a galera nos seus ensinamentos literários, ou então... pode ser que tenha
vendido a alma em troca do sucesso. Só não me perguntem para quem.
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O mistério do INSS
Na minha vida como professora universitária, houve ocasiões em que dei aulas
em três instituições diferentes, com um número de campi maior ainda, sem que
isso possa ser considerado qualquer espécie de feito heróico, já que é o
cotidiano de muita gente honesta para conseguir compor renda. Você vira um
bagaço em forma de gente, as cordas vocais esfiapam um pouco, até que você
descobre que não vai sobreviver se continuar nesse ritmo por muito tempo.
194
e meia os postos da Receita Federal e do próprio INSS estão mudando de
endereço, como verdadeiros foragidos da justiça! Suspeito... Estive em vários
bairros ao longo da busca pelos meus caraminguás. Da última vez, cheguei a
um lugarzinho suspeito na Avenida Nossa Senhora de Copacabana e me
enviaram a um sobrado no andar de cima. Escadinha esquisita, aquela. Eu
deveria esperar até ser chamada num corredor estreito e deserto. Até que fui
mandada para dentro de uma porta e, na sala, só o que se via era uma meia
dúzia de mesas e cadeiras de um mobiliário igualmente sujo e decrépito e
pilhas incontáveis de pastas com papelada.
Atrás de uma delas estava assentada uma senhora de meia idade com
aparência oriental. Só mesmo com paciência de chinês para encarar aquele
cenário de apavorar até o próprio Kafka. Relutante e receosa, me dirigi a ela
explicando o caso, ao que ela retrucou, com a serenidade de quem sabe que
nada de mal pode lhe acontecer — com raras exceções, o funcionalismo
público já é o pior na vida de qualquer ser humano pensante! Disse que
gostaria de ajudar, mas como encontrar qualquer processo no meio daquele
mundo de surreal fuzuê?
Foi aí que eu, num instinto de sobrevivência, corri os olhos por sobre as
mesas, buscando uma luz qualquer. Um sinal do alto. Uma ajuda, já que o
dinheiro estava curto porque o banco não me deixava sobrar nenhuma
moedinha e eu já considerava a possibilidade de um quarto emprego, alta
madrugada, quando todo mundo sabe que não há aulas e que o serviço é bem
outro... E não é que, no topo de uma pilha, à minha direita, eu vi meu nome
justamente na pasta de cima? Foi um momento glorioso, quase místico, uma
revelação. Aí nossa solícita funcionária já não tinha mais desculpa para não me
atender e — supremo prazer! — me mandar aguardar em casa ou, pior!, voltar
outro dia.
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correção monetária correspondente aos meses de “confisco”, via correio. Foi
exatamente o que aconteceu. Às vezes, milagres acontecem.
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Mãos ao alto!
No meu terceiro assalto, foi coisa rápida, mas de uma perseguição ainda
mais flagrante. Ônibus cheio, quase todos os lugares ocupados e, de repente,
senti uma mão agarrando minha roupa por trás, na altura da cintura, e pensei:
“mas quem é o babaca? Que brincadeira mais ridícula!” Até que ouvi, no pé do
ouvido, vindo do assento de trás, uma voz de poucos amigos dizendo, entre
dentes: “fica quieta que isso é um assalto. Passa tudo.” E me lembrei de
estender o relógio e entregar a carteira porque, ouro, já não usava mais...
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Da quarta vez a ação é meio cinematográfica. Vamos dizer que seja
assim. Sábado de manhã, você pára ali naquele sinal de quem vai subir para a
garagem do shopping Rio Sul e, quando vê, tem um molequinho assim de mais
ou menos 1,20m, 1,30m de altura, bem na janela do motorista, com um caco
de vidro verde esmeralda brilhando ao sol e uma mensagem que não deixa
dúvida: “tia, me passa aí o teu dinheiro que senão eu enfio esse caco no teu
olho!” Respondo: “só um instantinho”. Você tenta pegar a bolsa que estava no
banco do lado, para ser mais exata, no colo da sua mãe, mas ela está tão
nervosa que mal consegue lhe passar a bolsa. Além de acalmar o garoto, você
também tem que dar um sossega na sua velha. “Depois, mãe, chora depois,
deixa eu primeiro resolver aqui o problema do meu amigo... aí, pronto.” O
garoto desaparece do mesmo jeito que apareceu: do nada.
Teve mais de um assalto com menina? Teve, teve sim. Esqueci de dizer
que aquele assalto, aquele, da minha irmã que ficou com o relógio dela, só
levaram o meu, então: foram duas meninas. Da outra vez não, da segunda vez
com meninas o bando era maior e eu estava sozinha. Era um domingo de
carnaval e eu estava indo para o plantão na escuta, vemos dizer, de um canal
de tv importante aqui no Rio de Janeiro. Vamos dizer, o mais importante. Saber
como é que estava a cidade, naquele feriadão, todo mundo curtindo praia, se
preparando para ver desfile de escola de samba, sair na ala, coisa e tal,
enquanto eu acompanhava o estado de saúde do Mário Henrique Simonsen
(que Deus o tenha!), e que morreu justo no fim do meu plantão, mas... só fiquei
sabendo porque li na primeira página do jornal no dia seguinte — uma roubada
nunca vem sozinha! “Passa a grana, tia, anda.” E eu: “peraí, gente, será que
não dá pra me devolver só o dinheiro do ônibus? To indo pro trabalho...” “Dá
um real pra ela.” “Obrigada, vão com Deus!”
Tem alguém contando? Com esse já foi o quarto ou quinto? Vamos ver:
medalhinha, relógio Porsche, agarrão na cintura, Rio Sul, carnaval, são cinco.
Vamos em frente. Ah, sim. Eu não estava numa boa fase, inventei de me casar
com um cara que nem conhecia, mas quando chega um certo momento da vida
isso é o que menos faz diferença... conhecer o cara... melhor ele não conhecer
você, nem você a ele, porque não é certo a gente sair por aí fazendo o mal a
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quem nem conhece, não é mesmo? Mais fácil a gente sacanear assim, com
conhecimento de causa, sabendo o que está fazendo... Bom, outro ônibus,
rumo à Copacabana, na Rua Barata Ribeiro um cara se senta do meu lado no
banco e me manda passar a grana. Eu só pensava em esconder a aliança
novinha, achando que o acontecimento podia ter conseqüências mais graves,
do tipo: “se esse cara me leva a aliança, então é um sinal dos céus de que o
casamento também vai para o saco.” Estava frio e eu tirei a “grana do ladrão”
— a esta altura eu já estava escolada e dividia o dinheiro, deixando sempre
uns 20 reais na carteira e o resto nalgum bolsinho escondido — mas o ladrão
era experiente. “Eu quero o dinheiro todo”, frisou, não deixando dúvida de que
a reação seria violenta caso eu bancasse a besta e decidisse não cooperar. Lá
foram mais cinqüentinha... Ah, sim: e para quem ficou curioso, foi isso mesmo:
a tal aliança jamais passou para a mão esquerda e está guardada em algum
canto, escurecendo...
Deixa ver aqui. O sétimo assalto. Não me lembro muito bem da ordem
— foram tantos! Não me lembro mais do sétimo nem do oitavo. O nono foi
naquela passagem subterrânea ali em frente ao Centro Empresarial Rio, na
Praia de Botafogo, e os dois bandidos me levaram a bolsa com tudo dentro:
inclusive a minha chave de casa e o meu cartão de visita com o endereço
completo, logo ali, a dois quarteirões de distância. Como desta vez me levaram
a identidade original e o cartão do banco, fiz o boletim de ocorrência pela
primeira e única vez. E depois tem gente que ainda acredita em estatística. Na
delegacia do bairro de Botafogo, me perguntaram se eu não queria dar uma
voltinha com eles ali pelas redondezas do Edifício Rajah, hoje Solimar, para
tentar reconhecer alguém. Eu não titubeei a me confessar a mais completa
imprestável. “Não, senhor, eu já não olho para a cara deles por isso mesmo,
para não poder fazer o reconhecimento depois.”
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saltou próximo ao morro do Catumbi. “Passa a grana e o celular.” “Moço, aí
dentro só tem livro, pode procurar. Se o senhor achar algum celular aí dentro,
ele é seu!”
Diante deste relato, que de tão fantasioso parece até uma situação
fictícia, fica a pergunta: o que fazer? Sair da cidade? Aprender krav maga?
Contratar o Super-Homem? Mas, espere aí, não devo me lamentar tanto.
Afinal, esses foram todos assaltos light. Nunca me encostaram o dedo
(também, é para isso mesmo que eu coopero), nunca perdi nada de grande
valor (não me ligo em bens materiais e já não tenho carro, celular, mp3 para
não atrair), ou seja: posso me considerar uma assaltada-padrão. De ficha
limpa! Nunca me envolvi com tiroteios, nem fiquei dando escândalo na rua,
chamando atenção. Sofri meu carma em silêncio. Assim é que se faz!
Demonstrando bravura em serviço.
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uns rapazes, antes do horário previsto, mandando todo mundo entrar. Não era
nenhum milagre, nenhuma cortesia, mas os assaltantes, que se trancaram com
os clientes e passaram a agarrar a gerente pelos cabelos e surrar a mulher
com energia, até que ela abrisse o cofre.
“E você, pai, o que é que fez?” E ele: “eu não fazia nada. Só perguntei a
um dos assaltantes se estava autorizado a fumar um cigarrinho, ao que ele
respondeu: pode sim, meu tio, vai fundo!” Um outro assalto que meu pai sofreu
dentro de sua loja, junto com o sócio, quando três bandidos invadiram na hora
em que estavam fechando, não pareceu tão divertido. Mas pior mesmo eram
as investidas dos fiscais do governo, que apareciam regularmente para receber
uma caixinha, especial no Natal, ou escreveriam multas ainda mais altas sobre
erros nos livros-caixa que sequer tinham sido cometidos.
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Jogos e brincadeiras
Meu pai, que era um exímio e imbatível rival do “jogo do sério”, dizia ter
aprendido sua estratégia com o velho vendedor de ping-ling do Morro do Pinto.
Era um negro velho, que passava de vez em quando, meio por diversão, já que
na maioria das vezes a maioria dos garotos não comprava nada e ficava
pedindo um agrado. Aí ele tirava a carga do ombro e, para não decepcionar as
crianças, convidava: “vamos jogar sério?” Quem nunca jogou sério não sabe o
que está perdendo. É simplesmente você ficar encarando seu adversário nos
olhos sem dizer nada, até que o primeiro que rir perca a disputa. O truque de
meu pai era sempre o mesmo, mas sempre funcionava. Ele começava a se
lembrar das caretas que o velho vendedor fazia para as crianças do morro e
repetia para mim, olhando de repente para o teto, fazendo um muxoxo
inesperado ou torcendo a boca de um jeito engraçado, não havia como resistir.
Geralmente, eu ainda agüentava alguns segundos, para logo explodir numa
tremenda gargalhada espalhafatosa. E nem assim ele ria! Mas se divertia
muito, com olhos felizes, por me fazer rir. Brincamos de jogar sério a nossa
vida inteira.
Outra brincadeira nossa era luta. Lá com meus seis, sete anos,
acreditava que poderia vencê-lo e subia na cama dele, geralmente quando
estava ouvindo algum jogo de futebol no rádio, e a gente se enfrentava. Eu
costumava levar umas boas bolachas, mas também dava algumas. Ele
brincava, dizendo que o juiz era minha irmã, mas ela mal prestava atenção.
Quanto mais eu perdia, mas gritava, e minha mãe protestava, de longe:
"Sérgio, vai machucar a menina!" E ele: "mas eu não tô fazendo nada, só tô
apanhando!" Eu fechava a mão e socava. "Você vai machucar a mãozinha
dela!" O fim da luta era quando ele me pendurava de cabeça para baixo pela
borda da cama. Eu sempre ganhava uma compensação qualquer, tipo um
presentinho, depois, pelo meu esforço. Mas havia outras brincadeiras que
minha irmã e eu compartilhávamos e incluíam meu pai. Toda noite, depois de
esquiar dentro de casa, calçadas de meias, sobre o assoalho de tacos, a gente
subia num banco ou cadeira colocada atrás da porta de entrada e tentava ver,
as duas ao mesmo tempo, quem estava voltando do trabalho, no longo
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corredor. O que a gente queria mesmo é aguardar a chegada do papai. Se
estava frio e ele vinha de japona, que era o nome de um modelo de casaco, a
gente entrava dentro juntas e fazia um monstro de duas cabeças. Tinha vez
que o obrigávamos a ficar de quatro e nos dar uma voltinha como se fosse uma
montaria, o cavalo Tamandaré, que confundíamos com o termo pangaré. Mas
não havia nenhum dia em que ele não trouxesse um docinho pra gente. Podia
ser uma barrinha de chocolate, bala de hortelã, bala Toffe e, em geral,
caramelos de leite da Nestlé.
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pacote de quatro rolos de papel higiênico com decoração nova, tipo o desenho
de um bichinho nas folhas, ele rapidamente começava a oferecer para quem
aparecesse por lá. Para mim, para a faxineira... “Já viu o papel higiênico novo?
Te vendo baratinho: cinco reais o rolo.” Ultimamente, tudo e qualquer coisa
custava os mesmos cinco reais. Os presentes que ele recebia da gente — no
Natal era sempre ele quem ganhava mais pacotes do que todo mundo e eu
fingia reclamar, dizendo que havia favoritismo, para o enorme deleite dele! —
dizia depois ter comprado e pago muito caro. Não era raro que, diante de
qualquer objeto que o agradasse, ele anunciasse, como um pequeno rei
caprichoso, que agora tinha sido confiscado pela sua pessoa. Tudo da boca
pra fora, obviamente. Afora despesas com o jogo, bebida, cigarro e transporte,
meu pai dificilmente fazia compras. Não ia a supermercado, no máximo a uma
farmácia ou padaria, e desde que se casou com minha mãe era ela quem
comprava todas as roupas e sapatos dele.
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está bonita a minha filha! Não é brincadeira não: você está cada vez mais
bonita!” E eu respondia, meio para provocar: “mais bonita como? O que eu tô é
mais velha, pai!” “Velha nada, você ‘tá linda!” E abria um sorrisão daqueles. Na
sua última noite, dormi no hospital com ele. De manhã, prendi o cabelo para o
alto para poder lavar o rosto e lá veio ele, meio tonto dos remédios, mas
sempre gentil: “ficou bonita com o cabelo assim!” Quando elogiava a mim e a
minha irmã, ele sempre dizia: “ tiveram sorte, saíram lindas igual ao pai!” Mas
deixa que, falando sério, ele nunca se achou bonito. Dizia que, quando rapaz,
tinha cara de cavalo. “Não sei como é que sua mãe, uma morena tão bonita, foi
casar comigo, com aquela cara de fome.” Meu pai adorava crianças e não teve
netos. Adorava um carinho, um beijo, um abraço, adorava atenção. Estava feliz
só de ver que a gente estava bem. Acho que fiquei devendo a ele por não ter
sido uma pessoa feliz.
Cenas finais
Foi a partir das intensas dores nas costelas dele que começamos a perceber
que estava se aproximando o pior. Meu pai morreu no fim de novembro mas,
no mês de julho, ele já tinha sido operado de novo. Primeiro houve uma
hemorragia enorme pela via urinária ainda em casa, seguida de uma
internação em que ele sofreu dois procedimentos. Um para a retirada dos
tumores na bexiga e outra para a raspagem total do interior dos testículos, a
fim de que os hormônios não viessem a estimular qualquer atividade de células
malignas remanescentes da próstata, retirada sete anos antes.
Todo ano meu pai era submetido a uma cintilografia óssea completa.
Na última, os exames apontavam disseminação da doença desde o lado
esquerdo do crânio até o calcanhar do pé direito, com alta concentração
especialmente na coluna e nas costelas. Até a internação de julho, ele nunca
se queixou de qualquer dor proveniente do câncer. Como vi que o quadro
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estava piorando e me lembrando de outros doentes que viveram até a fase da
metástase óssea, como o antropólogo Darci Ribeiro, e do tanto que sofreram,
justamente porque aí as dores passam a ser agudas, cheguei a pedir aos
médicos que cuidavam de meu pai que o deixassem morrer, porque eu não
queria que ele passasse por um calvário tão doloroso. Mas eles me disseram
que valia à pena operá-lo, porque não se podia saber quanto tempo ele ainda
teria de vida. Eu não estava preocupada com duração, mas com qualidade de
vida. No final de outubro o vaticínio se confirmou.
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música. Não me lembro se ele já havia começado a tomar os comprimidos de
morfina, que além de tornarem, pelo menos no início, a dor suportável, serviam
para dar a ele uma abençoada espécie de desligamento da realidade. De
qualquer maneira, foram essas as últimas conexões entre nós, do lado de cá, e
ele. Quando eu já não sabia mais o que fazer para confortá-lo, na manhã da
véspera de sua morte, quando acordamos de manhã, no quarto do hospital, me
lembro que cantei pra ele. Devia ser umas seis horas. Segurei na sua mão e fiz
carinho no seu braço, bem de leve, porque eu já havia perdido a noção da sua
dor. Antes da internação, quando ele passou a tomar a morfina por via venosa,
e foi misericórdia de Deus que ele tivesse entrado em coma justamente
quando, em menos de três dias, nem ela estivesse mais adiantando para
impedir a dor, houve vezes em que não se podia tocá-lo. Uma noite, ainda em
casa, eu deitada ao lado dele na cama, quis passar a mão no seu cabelo, para
acalmá-lo e, quem sabe, fazê-lo dormir, ele me pediu que não, porque até isso
doía.
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