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A construção da solidariedade na escola: as virtudes,

a razão e a afetividade

Luciene Regina Paulino Tognetta


Orly Zucatto Mantovani de Assis
Universidade Estadual de Campinas

Resumo

Discutindo sobre como as pessoas podem construir a solidarie-


dade, baseando-se em pressupostos psicológicos que garantem
que tal virtude é construída por cada um na interação com o
meio, esta pesquisa aponta um caminho para a formação de su-
jeitos mais autônomos e solidários: a cooperação como estratégia
de conceber a construção das virtudes.
Para tal, foram investigados, em comparação, os julgamentos de
crianças de ambos os sexos, na faixa etária de 6 a 7 anos, prove-
nientes de dois tipos de ambientes: A – baseado em relações
autoritárias; e B – em relações de cooperação. Utilizou-se da
aplicação das provas de diagnóstico do comportamento operató-
rio de Jean Piaget, no intuito de verificar um paralelo entre as
estruturas cognitivas e morais dos sujeitos, como também da
observação das relações interpessoais e da discussão de dilemas
morais, divididos em dois blocos, que atenderam a dois requisi-
tos desta investigação: constatar o julgamento da solidariedade
entre pares e na presença da autoridade.
Os resultados demonstram a existência de uma evolução na dis-
posição dos sujeitos para serem solidários, ligada a uma pers-
pectiva de vivenciarem experiências significativas de reciprocida-
de e respeito mútuo, características de um ambiente cooperati-
vo. Tais resultados nos permitem conceber uma “Pedagogia das
virtudes”, que considere o desenvolvimento das estruturas
cognitivas e dos aspectos afetivos para a construção de perso-
nalidades morais.

Palavras-chave

Solidariedade — Virtudes — Razão — Afetividade.

Correspondência:
Luciene Regina P. Tognetta
Av. Florindo Cibin, 1532 apto. 13 B. 1
13465-560 – Americana – SP
e-mail: lrpaulino@uol.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.1, p. 49-66, jan./abr. 2006 49


The construction of solidarity at school: the virtues,
the reason, and the affectivity

Luciene Regina Paulino Tognetta


Orly Zucatto Mantovani de Assis
Universidade Estadual de Campinas

Abstract

Discussing how people can build up solidarity, and drawing from


psychological assumptions that guarantee that such virtue is
constructed by each one in their interaction with the environment,
this research points to a path for the formation of more
autonomous and solidary subjects: the cooperation as a strategy
to conceive the construction of virtues.
To this end, a comparative investigation was made of the
judgments of children of both sexes, aged 6 and 7, in two kinds of
environments: A – based on authoritarian relations; and B – in
relationships of cooperation. Diagnostic tests for Jean Piaget’s
operatory behavior were used to investigate the parallel between the
cognitive and moral structures of the subjects. The study also used
the observation of the interpersonal relationships and the discussion
of moral dilemmas split into two groups, and which fulfilled two
conditions: to inspect the judgment of solidarity between peers, and
in the presence of authority.
Results demonstrate the existence of an evolution in the disposition
of the subjects to be solidary, linked to the prospect of significant
experiences of solidarity and mutual respect, characteristic of a
cooperative environment. Such results allow us to envisage a
“Pedagogy of Virtues” that takes in the development of cognitive
structures and affective aspects to the construction of moral
personalities.

Keywords

Solidarity – Virtues – Reason – Affectivity.

Contact:
Luciene Regina P. Tognetta
Av. Florindo Cibin, 1532 apto. 13 B. 1
13465-560 – Americana – SP
e-mail: lrpaulino@uol.com.br

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Por que as ações das pessoas nem sem- moral e, se quisermos, sobre a formação de
pre são morais? Essa indagação se faz presente pessoas virtuosas, pois a necessidade desses
a todo tempo, em diversos lugares do mundo, estudos se faz presente desde pequenos “aten-
para situações que não retratam apenas cenas de tados” cotidianos entre nossas crianças até seu
violência e descumprimento do que acreditamos extremo, aos atentados à vida humana.
serem deveres como o respeito e a justiça, mas O que será preciso fazer para que aque-
também do que podemos chamar de princípios les valores morais por nós desejados sejam
que garantem uma vida em comum: a honesti- colocados em prática?
dade, a solidariedade, a humildade. Essas e tan- Pensemos, portanto, seguindo os pas-
tas outras virtudes parecem tomar um lugar sos da Psicologia Moral, em como um valor ou
especial em discussões sobre a moralidade em uma virtude como a solidariedade ou tantas
tempos atuais. Porém, como uma dicotomia, tal outras podem ser construídas.
discussão já se fazia presente desde há muito Nesse sentido, voltemos ao modelo psi-
tempo na história das relações humanas. É fato cológico piagetiano, que nos permite pensar a
que só discutimos a moral por sua falta. moral em termos de evolução, ainda que tenda
Poderíamos aqui elencar mais uma ques- a ligar tal sistema conceptual ao desenvolvimen-
tão, esta um pouco mais cotidiana: por que os to das estruturas cognitivas. A partir dele, eluci-
alunos das mais variadas escolas não resolvem daremos como a pedagogia pode dar conta da
seus problemas sem usar de violência, se todo formação de nossas crianças, considerando ainda
dia é lembrado a eles que não se podem bater a dimensão afetiva de sua evolução.
uns nos outros? De onde virá essa preocupação Piaget se refere a duas tendências
que assola o tempo de tantos profissionais de morais que determinam os julgamentos huma-
educação? Talvez venha do desejo de realizar nos e as compreende como um contínuo de-
seus objetivos traçados em planos escolares, de senvolvimento. Em seus estudos, considera a
ver a solidariedade, a humildade, o respeito, a moral como um sistema de regras que se cons-
justiça e o diálogo construídos por seus alunos. trói na interação do sujeito e suas estruturas
Digamos que temos, então, duas ques- internas com o objeto. Considera que as pesso-
tões distintas: a primeira corresponde a um as nascem com uma ausência total de regras e
macrossistema de relações de certa forma pla- é exatamente essa interação com o meio físico
netárias e a segunda indagação corresponden- e social que permitirá sua construção pelo su-
te àquela microssociedade que traduz a sala de jeito. Um bebê aprende logo nos primeiros
aula. Porém, essas duas questões nos permi- segundos de vida, fora do útero materno, a
tem compreender com clareza uma necessida- respirar, utilizando os pulmões e as vias respi-
de humana: repensar a moral e, sobretudo, ratórias que antes, embora já existentes, não
rever as formas de intolerância, de desrespei- eram utilizadas por ele. O meio impõe e cria a
to ao outro, que constatamos estampadas em regra de sobrevivência.
nosso cotidiano. A criança pequena não distingue o que
Na verdade, ao elucidarmos a primeira pode ou não fazer. Descobre o mundo pela
de nossas questões, não temos a pretensão de ação física, pelo movimento, pelas sensações.
esgotar todas as discussões que poderiam ser Quem a livra dos perigos, quem a alimenta e
feitas, mesmo porque os conflitos que destaca- troca sua roupa é o adulto. Por tais motivos,
mos têm dimensões culturais, políticas e ideo- vai considerá-lo, não obstante, como aquele
lógicas que precisam ser consideradas para que tudo sabe, que tudo pode. Porém, ao
uma análise mais aprofundada de suas causas. mesmo tempo, tentando constituir-se como ser
Dessa forma, apenas desejamos, a partir dessas separado de sua mãe, como único, revela uma
questões, tornar possível uma reflexão sobre a característica comum e própria de uma tendên-

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cia moral que irá prevalecer por algum tempo pelos sujeitos porque estes se tornam responsá-
(ou muito, em tantos casos!). Tal característica, veis pelo contrato que estabeleceram. São obedi-
que o faz centrar-se em apenas uma possibili- entes, portanto, mas não cegamente, porque
dade de resolver seus conflitos, caracteriza o acreditam na necessidade de que as regras sirvam
egocentrismo. Com seu “Eu”, centrado em si para o bem de cada um e de todos os possíveis
mesmo, esse sujeito não é capaz de reconhe- contratantes. Outro equívoco é também comum:
cer o ponto de vista do outro, de resolver os se a autonomia é a moral do bem, a heteronomia
conflitos que se apresentam em sua relação é a moral do mal. Dessa disparidade decorre a
com os demais (Piaget, 1931). interpretação de que os comportamentos inade-
Por seu pensamento pré-lógico, esse quados de alguns alunos, na maioria das vezes
sujeito não é capaz de pensar em mais de uma heterônomos, sejam maldades, quando são ape-
possibilidade para resolver seus problemas. A tal nas condutas não legitimadas por acordos que
conduta, Piaget (1994) chamou heteronomia. É comumente se impõem às crianças, porque se
característica dessa fase que as regras sejam acredita que assim seja melhor fazê-lo e por não
exteriores ao sujeito. Também chamada por ele se considerar o que as escolas tendem, de fato,
de “moral da obediência”, os sujeitos acreditam a esquecer: os sentimentos ou a energia que le-
que a obediência deva prevalecer, pois não há vam a tais ações.
legitimação, por sua parte, das regras que lhe Agora vejamos: se seguirmos os passos de
são impostas. Piaget (1994), poderemos encontrar em suas pes-
Uma moral heterônoma não compreende quisas um postulado interacionista que tende a
diferenças e pensamentos divergentes, não con- pensar a moral como uma indissociabilidade entre
trapõe pontos de vista; nela, permanece adorme- razão e energia. Segundo ele, a razão é imprescin-
cida qualquer experiência de contrato. Por isso, dível à moral porque dispõe para essa última a
chamamo-la também de moral não contratual. capacidade de refletir sobre suas direções.
Digamos que é objetivo daqueles que Nesse sentido, a razão pressupõe uma
educam que todos os sujeitos superem essa coordenação de ações em um outro plano que
tendência e cheguem a uma “moral do bem”, não seja apenas perceptivo, mas que tenha
como prescrevia Piaget. Nela, os pontos de operação. Para Piaget, operar significa tal co-
vista podem ser coordenados, porque acompa- ordenação de ações em plano representativo,
nham uma evolução cognitiva que garante ao em plano de pensamento, quando há uma
sujeito uma capacidade de operar, coordenar perspectiva de reversibilidade e essa última
ações que podem ser reversíveis, ir e vir em compõe uma chave para entendermos, enfim, a
plano de pensamento. Torna-se possível cons- primeira necessidade para a moral.
tatar diferenças, os pontos de vista dos outros, Uma ação reversível, segundo Piaget, é
coordená-los com os seus próprios e legitimar um ir e vir, uma transformação de estados, com
as regras como contratos. volta ao estado inicial em que algo se conser-
Tomamos um certo cuidado ao tratarmos ve. Dessa forma, entendemos a necessidade da
dos termos citados como “moral da obediência” razão. Essa qualidade humana pressupõe tal
para a heteronomia e “moral do bem” para a estado reversível e, portanto, pensar sobre o
autonomia, no sentido de não se chegar a con- ponto de vista do outro significa sair do seu
clusões equivocadas como a de que na hetero- próprio ponto de vista e considerar o do outro,
nomia há a obediência e na autonomia não há. entendendo suas diferenças de modo a com-
Esse foi um equívoco de muitas escolas, que acre- pensá-las, sem perder de vista nem as suas
ditaram ser a autonomia um desencontro em que razões nem as do outro.
a indisciplina e a falta de limites se estabeleceram. A segunda chave que nos permite pen-
Na autonomia, as regras são bastante legitimadas sar a moral, considerando a cognição, é que

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aquele que contrapõe as diferenças, constatan- idéias e objetos materiais, como Piaget preten-
do-as e coordenando-as, é capaz de fazer es- dia) são constituídas de energia, de afetividade.
colhas. Essas últimas deliberam uma condição Nessas relações, projetam-se os investimentos
natural de liberdade para a tomada de decisão afetivos, revelando os valores que vão se for-
que, por sua vez, implica uma característica mando na relação com o outro.
notadamente humana: a responsabilidade. Di- Nesse sentido, a ação moral, ou mesmo
gamos que um sujeito não aja com responsa- a emissão de um juízo, requer um sentido de
bilidade; logo, diremos que está fora de si. aprovação da conduta ou do julgamento que
Assim, quando uma ação se torna mo- se estabelece. Necessariamente, essa aprovação
ral, é caracterizada como evoluída, do ponto de estará ligada à razão e aos afetos.
vista de que se supera uma ação primitiva, in- Piaget (1994) intuiria que haveria mais
capaz de pensar em mais do que uma única uma variável a ser considerada nas condutas
possibilidade de se resolverem os problemas. humanas. Ele alerta para o fato de que suas
Essa ação, por sinal, freqüentemente se limita pesquisas estariam se aprofundando em algo
às formas violentas. que é passível de lógica e de uma verificação
Agir com responsabilidade indica a empírica. A nosso ver, tal autor nos aponta um
existência de uma tomada de consciência (ao pressuposto imprescindível para os estudos da
menos, dos processos vividos) de suas ações. A moral: quando insistentemente anunciava a
consciência supõe, na verdade, a existência de necessidade de considerar razão e energia, e
uma faculdade moral que nos permite aprovar mesmo ao traçar uma gênese para a afetividade
ou desaprovar algo. Significa dizer que é, pro- ainda que ligada indissociavelmente às estrutu-
priamente, tomar consciência de se ter agido ras cognitivas, Piaget anunciava a convergên-
em conformidade ou de forma contrária às suas cia entre esses dois aspectos do psiquismo que
ordens (Smith, 1999). estariam presentes na moral. Em outras palavras,
Agora pensemos: se a razão fosse a a evolução cognitiva e afetiva do desenvolvi-
única determinante das atitudes morais presen- mento humano converge na formação de uma
tes na conduta humana, como explicar a exis- personalidade em que os valores de solidarie-
tência de sujeitos altamente inteligentes, capa- dade, por exemplo, estejam legitimados pelo
zes de levantar hipóteses e pensar sobre todas sujeito (Piaget, 1920; 1962).
as possibilidades, mas nada morais? Nem Freud, Sem nos distanciarmos do referencial
cujas teses revolucionam as teorias que estudam piagetiano, que é foco para entendimento de
o homem e, dessa forma, torna-se menos idea- uma pesquisa cujo pressuposto é a educação
lista que Piaget sobre a possibilidade do agir moral, é preciso que nos atentemos a conside-
moral, nem esse último poderiam desconsiderar rar que a Psicologia Moral tem, a partir das
tal aspecto. Essa é a maior contribuição de idéias de Piaget com outros autores, a evidên-
Piaget. Porém, seu modelo é todo um esforço cia dos afetos como variáveis imprescindíveis
por estudar a gênese do conhecimento humano para uma ação moral. Não obstante, o cotidi-
e, portanto, a regularidade das condutas huma- ano nos dá mostras de que saber qual o dever
nas, que são compostas sempre pelos dois as- a cumprir não impede um sujeito de agir mal.
pectos: inteligência e afetividade. Por isso, res- Há uma energia que move, uma necessidade de
salta o próprio sujeito como agente. Toda sua satisfação pessoal a ser considerada.
obra revela a ação do sujeito sobre o que enten- As pesquisas de Gilligan (1982) eviden-
de por objeto e mesmo as reações desse último ciam a existência desses últimos interferindo na
são estudadas diante das projeções que proce- formulação de um juízo ou na ação moral. Tal
dem do sujeito. As relações estabelecidas entre autora defende que será preciso enxergar as
sujeito e objeto (considerando aqui, pessoas, contribuições desse campo afetivo, que conso-

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lidam uma nova dimensão de pensar a moral: precisam para ser morais, mas identificar os
o cuidado. caminhos para que essas estruturas cognitivas e
Ora, o leitor deve ter percebido que afetivas, ligadas a representações de si, possam
estamos tratando não apenas da formação ser construídas. Em outras palavras, o que fazer
moral de maneira geral, mas da construção da para favorecer a construção de “personalidades
personalidade moral. Portanto, tratamos de morais”, cujos valores (morais, é claro) estejam
aspectos muito mais profundos do psiquismo centrados na identidade do sujeito?
humano. Isso porque “pensar a moralidade Ora, estamos chegando, afinal, às dis-
dentro do quadro da personalidade representa posições do caráter que ampliam a moral por-
uma das perspectivas mais promissoras que que superam apenas a condição de deveres e
hoje temos” (La Taille, 1998, p.13), já que nos direitos e nos permitem constatar seu campo
leva a compreender afetivo: as virtudes ou o que poderíamos ape-
nas resumir como “estar disposto a”.
sua complexidade, na qual certamente entram Uma virtude é uma força que age ou
fatores relacionados a hábitos, juízos, pressões que pode agir (Comte-Sponville, 1995); há nela
inconscientes, sentimentos diversos [...], só que um caráter espontâneo, portanto, ligado às
de forma integrada, com os fatores interagindo disposições próprias. É verdade que a virtude
uns com os outros” (1998, p.15). consiste na conformidade com a razão, como
causa e princípio da aprovação ou desaprova-
O que nos leva ao querer fazer é a ção, diria Smith (1999). Porém, segundo esse
questão que evidenciamos ao pensar sobre esse autor, é evidente que o caráter da virtude deve
caráter afetivo da moral. Nesse sentido, quan- ser atribuído aos afetos, porque deles se origi-
do simpatizamos com uma ação, é porque na a força que demanda uma disposição usual
consideramos que esta atende a uma regra e costumeira do espírito.
geral estabelecida internamente, que depende Tal afirmação significa que há no ho-
das representações que temos de nós mesmos, mem um sentido de realização, um estar volta-
construídas em nossas relações com o meio (La do para agir em prol de si mesmo, superando-
Taille, 2002). se, comum a todos os homens, uma procura
Na verdade, o que pretendemos desta- constante e uniforme de buscar o bem, a feli-
car é que as representações de si são sempre cidade (Aristóteles, 1996).
valorativas – ora positivas, ora negativas – e só Se assim é, uma virtude constitui, pri-
são construídas a partir do que sentimos em meiramente, o equilíbrio entre o bem para si e
nossas relações conosco e com os outros, ou o bem para o outro. Dessa forma, ser genero-
seja, da carga afetiva que projetamos nos ob- so requer uma disposição de caráter que não
jetos, aos quais assim atribuímos um valor exija algo em troca; porque, a princípio, a ação
(Piaget, 1962). já é disponível e pressupõe que, ao sujeito que
Podemos dizer, então, que o valor de age, não lhe causa mal algum. Há, portanto, um
algo ou alguém é formado pela projeção de ponto a mais a se discutir. Dar ao outro o que
sentimentos que emitimos. Estamos tratando de lhe falta e não, necessariamente, o que lhe é de
algo que necessita de um sistema de significa- direito é o caráter magnânimo da virtude.
ções que precisam estar centradas na identidade A virtude constitui mais do que um
do sujeito, para que ele possa, a partir desses querer moral, estando relacionada a um conjun-
sentimentos, estar disposto à realização de uma to de representações de si, um autoconceito
ação moral. que cada um tem para não exigir apenas o que
O problema que se coloca no momento pode ser imediato, o que pode estar ligado a
é de fato não mais responder o que as pessoas direitos e deveres. Em outras palavras, para ser

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virtuoso é preciso estar bem consigo mesmo, é atmosfera na qual a solidariedade, a tolerância e
necessária uma representação equilibrada de si, outras tantas virtudes possam ser construídas.
do ponto de vista das disposições para ser Qual é o remédio? Piaget responde a essa per-
solidário, para ser tolerante, sem nenhuma exi- gunta com uma resposta que nos parece bastan-
gência como retorno (La Taille, 2002). te eficaz na edificação de uma “pedagogia das
Dessa forma, podemos ir adiante. Se- virtudes”: a cooperação (Piaget, 1998).
gundo Aristóteles, as virtudes não são capaci- A cooperação, no sentido piagetiano do
dades inatas, mas adquiridas por meio do exer- termo, implica a descentração de pontos de
cício. Não se trata de um processo de ensinar vista, o “operar com” (Menin, 1996). Do pon-
virtudes sob o ponto de vista pedagógico, mas to de vista cognitivo e moral, como pensou
de um constante favorecimento para que elas Piaget, a cooperação se destaca como um ins-
possam ser exercitadas e tornar-se parte das trumento eficaz para a evolução moral porque
condutas humanas (Berkowitz, 1996). pressupõe a passagem de um único ponto de
O desenvolvimento do caráter e, pode- vista para a coordenação de vários. Tal passa-
mos dizer, da personalidade moral, que abran- gem, em plano mental, só é possível quando
ge as qualidades precursoras da moral humana, quem pensa for primeiramente sujeito de suas
encontra na construção das virtudes o caminho ações. Piaget prescrevia que a ação do próprio
propício ao seu favorecimento (La Taille, 2000). sujeito é que faz com que ele conheça os
Assim, será necessário pensar: quais objetos. Dessa forma, pensar sobre os conflitos
tipos de relações são propícios à formação vir- e coordenar as variáveis que os compõem só é
tuosa de nossos alunos? O que acontece na sala possível quando esse pensar é realizado pelos
de aula daquela professora de quem empresta- sujeitos envolvidos.
mos nossa segunda indagação, no início de Contudo, sob o ponto de vista das rela-
nossas discussões, para que seus alunos resol- ções interpessoais, a cooperação atinge uma
vam os problemas que têm com os outros, diga- abrangência ainda maior para a conquista da
se, tão comuns ou normais do ponto de vista moral autônoma. Para Piaget, a cooperação é
das relações e do desenvolvimento humano, fruto do sentimento de respeito mútuo, só pos-
como violência física ou verbal? sível em posições de igualdade entre os sujeitos.
Em meio a tais discussões que nos pro- Piaget deixou-nos clara a pertinência da relação
pusemos a apresentar, voltemos ao referencial entre pares, dizendo o quanto são privilegiadas
piagetiano do qual tratávamos. Retornamos a em possibilidades de evolução moral. Entre
Piaget, não porque haja em sua teoria um mo- iguais, entre as próprias crianças, elas experi-
delo pedagógico a seguir. Piaget apontou em mentam resolver seus conflitos e suas dúvidas
seus estudos um pressuposto necessário a qual- sem o peso de qualquer espécie de obediência.
quer evolução moral. Se bem entendemos, de- Ao propor o respeito mútuo, Piaget se referia
pois de termos realizado toda uma trajetória por também às relações com os adultos. O respeito
compreender, mesmo que resumidamente, as mútuo entre uma criança e um adulto pressupõe
novas pesquisas sobre o desenvolvimento moral a diminuição de qualquer autoridade.
e a formação das personalidades morais e, ain- Temos encontrado outra interpretação
da, que tenhamos ido um pouco além do mo- equivocada nas escolas: ao agir dessa forma,
delo de heteronomia e autonomia piagetianos não significa que estaremos deixando de repre-
quando distinguimos a necessidade de elucidar sentar a autoridade que somos, mas como
que uma ação moral depende dos valores inte- aqueles que superaram ou que deveriam ter
grados à identidade do sujeito e, portanto, das superado a heteronomia. Significa que nossas
representações que ele tem de si, ainda assim, ações estarão longe de se pautarem em castigos,
Piaget nos dá pistas para empreendermos uma punições ou mensagens de solução que freqüen-

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temente emitimos, com nossos famosos discursos de forma aleatória, 23 crianças, igualmente
morais (lições) e permitirão que as crianças pos- distribuídas entre meninos e meninas, de cada
sam tomar consciência por si de suas faltas, não tipo de ambiente: A – escolhido por não apre-
deixando que prospere o “laissez faire”. sentar nenhuma metodologia de trabalho espe-
Nesse sentido, a relação com a auto- cífica; e B – em que as crianças são advindas
ridade deixa de ser uma relação de subserviên- de classes nas quais seus professores aplicam
cia; ou, em seu extremo, uma relação de pater- um programa de educação infantil, baseado em
nalismo para atingir seu caráter de confiança. pressupostos piagetianos, Programa de Educa-
Dessa forma, se a cooperação proposta por ção Infantil e Ensino Fundamental – PROEPRE.
Piaget se baseia num sentimento de respeito, é Os dois grupos estudados foram chamados de
também elucidado seu lado afetivo. ambiente A, caracterizado por relações autori-
Por ocasião de uma pesquisa empírica, tárias; e B, por relações de cooperação, como
tais relações tomaram boa parte de nosso en- veremos em nossos estudos.
tusiasmo ao compreendermos como podemos Para constatar aquele pressuposto de
favorecer a formação de sujeitos mais virtuosos. que as virtudes são construídas, quando se
considera toda a dimensão humana, em seus
Uma pesquisa empírica: a aspectos morais, cognitivos e afetivos, três es-
construção da solidariedade em tudos foram realizados.
ambientes escolares No primeiro deles, utilizou-se da aplica-
ção das provas de diagnóstico do comportamen-
Tolerância, respeito, justiça, coragem, to operatório de Jean Piaget, no intuito de veri-
amizade, solidariedade são virtudes necessári- ficar um paralelo entre as estruturas cognitivas e
as à experiência humana da convivência. Uma morais dos sujeitos.
delas nos demanda um caráter especial: o sair No entanto, se a inteligência pode ser
de si e contemplar o outro em sua condição, considerada como necessária, mas não suficien-
também humana, demanda um gesto de acolhi- te do ponto de vista da evolução moral, tam-
da, de doar-se. Estamos falando da solidarieda- bém buscamos verificar se haveria aspectos do
de, que foi escolhida como virtude para ser campo socioafetivo que possibilitariam diferen-
estudada em nossa pesquisa. ças no julgamento das crianças. Para tal, utili-
Discutindo sobre como as pessoas po- zamos também uma ficha de observação de
dem construir a solidariedade, baseando-se em como se davam as relações entre professora e
pressupostos filosóficos e psicológicos, que alunos e entre as próprias crianças, o que nos
garantem que tal virtude é construída dentro de permitiu caracterizar os ambientes como coer-
cada pessoa, a qual elabora suas próprias estru- citivos ou cooperativos. Essa ficha de observa-
turas e representações da realidade na interação ção foi elaborada por nós a partir dos estudos
com o meio, nossa pesquisa buscou compreen- de Luckjanenko (1995) e caracterizou nosso
der a influência das relações vividas na escola segundo estudo.
nessa formação. Nosso problema consistia, por- No terceiro estudo, além desses instru-
tanto, em constatar se crianças, advindas de ti- mentos para a maior evidência do que pensa-
pos de relações diferentes, teriam também julga- vam as crianças, foram criados ou adaptados
mentos de solidariedade divergentes. quatro dilemas morais, contados a elas como
Para tal, foram investigados, compara- histórias em que poderiam decidir pela ação
tivamente, os julgamentos de crianças de am- solidária ou não. Esses dilemas foram divididos
bos os sexos, na faixa etária de 6 a 7 anos, em dois blocos, que atenderam a dois requisi-
provenientes de duas redes de educação muni- tos da pesquisa: constatar a solidariedade,
cipal, de classe média baixa. Foram sorteadas, quando da relação entre pares; e a solidarieda-

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de, quando na presença de uma autoridade que semana. Aquele era o dia da classe de Júlio
não a julgue necessária. brincar no parque. Ele estava muito feliz por
Os dilemas utilizados por nós foram os isso. Se ele perdesse o dia de brincar no par-
seguintes: que, só na próxima semana poderia brincar.
Na hora do recreio, depois que Júlio tomou
1 – João é um garotinho de seis anos que o lanche, chegou o momento tão esperado.
gosta muito de pipas. Ele as confecciona Quando Júlio caminhava para o parque, um
muito bem e tem muita habilidade para soltá- garotinho de sua idade o chamou. Ele pare-
las. Na escola de João, haveria um concurso cia muito triste, pois estava sozinho e não ti-
para escolher a pipa mais bonita e o vencedor nha com quem brincar, estava com a perna
ganharia um grande prêmio. Ele quis muito engessada e não podia sair do lugar. O garo-
participar. No dia do concurso, lá estava João tinho, então, pede a Júlio que fique brincan-
fazendo sua pipa, quando se aproximou dele do com ele naquele dia. O que é melhor Júlio
um garoto de sua idade, desesperado, pois a fazer? (2 a parte) Quando Júlio estava indo
pipa dele havia sido rasgada. Esse menino para o parque, parou para ouvir sua professo-
também estava participando do concurso e, ra, que lembrou: “Júlio, hoje é dia da nossa
então, pede a João que lhe empreste um pe- classe brincar no parque. Você precisa perma-
daço de papel. João olha bem para a pipa do necer lá com seus amigos da classe”. E agora,
menino e nota que ela é muito bonita e que o que é melhor Júlio fazer?
ele pode ganhar o concurso. João queria
muito ganhar o concurso. O que você acha Os resultados encontrados
que é melhor João fazer?
2 – Ana é uma garota de seis anos. A casa em Os resultados a que chegamos demons-
que ela mora fica em uma rua com muitas tram a existência de uma evolução na disposi-
árvores altas e frondosas, nas quais ela adora ção dos sujeitos para serem solidários, ligada a
subir, principalmente na mais alta delas. Ela uma perspectiva de vivenciarem as experiênci-
sobe nela como ninguém! Um dia, ao descer as de respeito mútuo, de reciprocidade e da
de uma árvore muito alta, Ana escorrega e possibilidade de manifestarem seus sentimentos.
cai, mas não se machuca. Porém, seu pai, que Comecemos apresentando os resultados
a havia visto cair, fica muito preocupado com que atenderam a nosso objetivo de constatar o
ela e lhe pede que prometa nunca mais subir desenvolvimento cognitivo de nossos sujeitos.
em árvores. Ana, então, promete-lhe. Nesse
mesmo dia, um pouco mais tarde, Ana e seus Primeiro estudo
amigos encontram Patrícia, que está muito
aflita, pois seu gatinho subiu numa das árvo- Utilizamos as provas de diagnóstico do
res mais altas da rua e não consegue descer. comportamento operatório que se referem às
Ana é a única da turma que sabe subir na- noções de conservação de quantidades discre-
quela árvore e pode resgatar o gatinho de tas, do líquido e da massa, às noções de clas-
Patrícia. No entanto, ela se lembra da promes- sificação e seriação operatórias.
sa que fez a seu pai. O que você acha que é Constatamos uma grande diferença, em
melhor Ana fazer?1 termos dos aspectos cognitivos, na evolução dos
3 – (1 a parte) Júlio é um garotinho de seis sujeitos dos dois ambientes. Quando aplicamos as
anos de idade. Na escola em que ele estuda, provas de diagnóstico do comportamento opera-
há um parque com poucos brinquedos e tório, encontramos, no estágio pré-operatório,
como há várias classes na escola, cada uma
tem direito a brincar no parque uma vez por 1. Adaptação do dilema descrito in Turiel, E.; Enesco, I.; Linaza, Y. (1989).

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30,43% dos sujeitos do ambiente A, caracterizado distribuídas em questões que destacaram a re-
como um ambiente coercitivo, e nenhum sujeito lação professor-aluno (por exemplo, se havia
do ambiente B, caracterizado como um ambiente punições, gritos, ameaças...), a relação entre os
cooperativo. Em transição, encontramos 69,57% pares (se havia trabalhos em grupos, oportuni-
dos sujeitos do ambiente A e 56,52% dos sujeitos dades de escolhas, se os alunos utilizavam ar-
do ambiente B, embora os níveis de transição gumentos verbais para resolver seus conflitos...)
oscilassem nesse último ambiente, numa pontua- e quanto à estruturação do dia de aula (se havia
ção mais elevada, próxima à do estágio operató- regras formuladas pelo grupo, se a disposição
rio. O mais relevante é que, dentre a amostra que física da sala permitia a interação entre os
tivemos, não encontramos sujeitos operatórios no pares...). Para uma análise mais clara, atribuímos
ambiente A, enquanto 43,48% dos sujeitos do am- pontos que nos permitiram pensar esses ambi-
biente B demonstraram um pensamento reversível. entes em níveis de cooperação e seu contrário.
Tal dado nos leva a inferir quanto à Foram atribuídos pontos de 1 a 3 para cada
necessidade de um pensamento operatório para item, numa escala crescente de propostas mais
considerar o outro, pois encontramos uma si- coercitivas a propostas de maior cooperação.
milaridade entre esse aspecto do psiquismo e o Encontramos, conforme tal classificação,
desenvolvimento moral de nossos sujeitos, o ambiente A com 76 pontos e o ambiente B
como veremos a seguir. com 162 pontos, o que nos permitiu considerá-
Em nenhum momento, porém, podemos lo como um ambiente altamente cooperativo, a
afirmar que esta se constitua em uma condição partir da seguinte escala, expressa no Quadro 1.
suficiente, principalmente para a solidariedade que, Pela somatória dos pontos, pudemos
como virtude, perpassa por domínios cognitivos e definir o ambiente A como um ambiente coerci-
afetivos. Isso porque encontramos, também entre os
sujeitos do ambiente A que não apresentaram um
pensamento operatório, julgamentos de solidarieda-
de. Como explicar? Tal fato nos leva a considerar
outros aspectos, ligados às questões socioafetivas,
que poderão explicar juízos mais elevados entre os tivo, cujas relações são baseadas num tipo de
sujeitos do ambiente cooperativo. respeito unilateral, em que a autoridade impõe as
Nos quatro dilemas apresentados aos 46 regras, emite julgamentos sobre as crianças e se
sujeitos participantes da pesquisa, suas respostas utiliza de castigos e punições para seu desenvol-
nos permitiram concluir que as crianças que vimento moral. Em contrapartida, o ambiente B,
vivenciam experiências de escolhas, de tomadas caracterizado pelas experiências de reciprocidade,
de decisão e de relações de confiança com a de respeito mútuo, em que a autoridade divide
autoridade estão muito mais próximas, ao menos com os alunos a possibilidade de formulação de
em seus juízos, de evidenciarem a solidariedade. regras e sanciona seus comportamentos de forma
Tal conclusão é ainda mais clara quando obser- a fazê-los compreender o valor das normas esti-
vamos as relações interpessoais que se faziam puladas pelo grupo, é então distinguido por nós
presentes nas salas de aula dos dois ambientes. como ambiente cooperativo2 .
Nosso terceiro estudo responde à pro-
Segundo estudo blemática que evidenciamos nessa pesquisa:
haveria diferenças no julgamento de situações
Para compor tal observação das rela- morais de solidariedade de crianças advindas de
ções interpessoais, utilizamos uma ficha de ambientes morais diferentes?
observação que nos permitiu caracterizar os
dois tipos de ambientes. As observações foram 2. A ficha de observação encontra-se publicada em Tognetta, 2003, p. 192.

58 Luciene R. P. TOGNETTA e Orly Z. M. de ASSIS. A construção da solidariedade...


Terceiro estudo ambos os ambientes, pudemos constatar que as
respostas, distribuídas em níveis, reforçam nossa
De forma sucinta, apresentamos um afirmação de que é preciso um ambiente cujas
resumo dos dados encontrados para cada dile- relações sejam cooperativas e cujos sentimen-
ma que foi apresentado aos sujeitos. São dile- tos sejam manifestados para que se evidencie a
mas que apresentam situações em que a soli- solidariedade.
dariedade, por decisão do sujeito, pode ou não Como dissemos, distribuímos as catego-
acontecer. rias encontradas para cada dilema em níveis: o
As respostas de nossas crianças foram primeiro deles engloba as categorias cuja carac-
organizadas em categorias e, depois, separadas terística é a ausência total de solidariedade; o
em níveis, que nos permitiram destacar a evo- segundo, aquelas que refletem uma certa admis-
lução desde a ausência da solidariedade até sua são da solidariedade ou a determinação de con-
presença mais sentida. dições para que ela aconteça. No terceiro nível,
mais evoluído, consideramos as categorias que
Parte 1 – A solidariedade entre pares indicam a ação solidária ligada ao dever ou à
reciprocidade, supondo que os juízos emitidos
Comecemos por aqueles dilemas em podem ser frutos de experiências interiorizadas
que não há o peso maior de um sobre o outro, das falas dos adultos e, por esse motivo, ainda
entre pares, “implicando a afirmação de que as ocupam um nível anterior ao último, quando
respostas ou não de solidariedade estarão ba- nos parece clara a decisão pela solidariedade. No
seadas no princípio do auto-reconhecimento” último nível, portanto, consideramos que a ação
(Tognetta, 2003). São dilemas que excluem solidária é determinada pela disposição própria
qualquer forma de autoridade. do sujeito, que não se sente ofendido nem apre-
O primeiro diz respeito a um personagem senta restrições para a solidariedade.
que gostava muito de pipas e era um ótimo Apresentamos, a seguir, as categorias
confeccionador desse brinquedo. Ia participar de que encontramos nas respostas das crianças
um concurso, concorrendo a um grande prêmio, entrevistadas. Para o dilema da pipa, foram as
o qual desejava muito ganhar, e tinha que deci- seguintes:
dir entre emprestar um pedaço de papel a um Vejamos os resultados obtidos: nenhu-
outro garoto, que poderia vencer o concurso, ou ma resposta das crianças advindas do ambien-
não. “O que seria melhor fazer?”, foi a pergunta te A foi encontrada no quarto nível para o di-
que fizemos a nossos entrevistados.
O terceiro dilema, outro entre pares,
como vimos, apresenta a história de um garoto
que gostava muito de ir ao parque, no entanto,
em sua escola não havia um grande número de
brinquedos, o que fazia com que cada dia da
semana fosse reservado à presença de uma das
salas no tão desejado local. Ele tem de decidir
entre ir ao parque ou ficar com um garoto que lema da pipa, enquanto obtivemos sete respos-
está com a perna engessada e lhe pede que tas, nesse nível, das crianças do ambiente B.
brinque com ele. Novamente, a pergunta que se Esse é o dado mais significativo. Outro dado,
faz é como seria melhor o personagem proceder. ainda nesse dilema, é que 76,19% das respos-
A partir desses dilemas, depois de cate- tas classificadas no nível 1 foram apresentadas
gorizarmos as respostas de nossas crianças, por crianças do ambiente A, contra 23,81% das
encontramos um fato bastante importante. Em crianças do ambiente B.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.1, p. 49-66, jan./abr. 2006 59


Dá um pedaço de papel para ela [...]. Constatamos pelas respostas de VIN
Ué, ela ganhou? Ela não tem culpa, não tem que não há problemas quanto às disposições
culpa, ganhou, ganhou, diria ALU, uma criança para ser solidário. Talvez a experiência do par-
do ambiente B, afirmando que a ação solidária que conte muito para as crianças do ambiente
deveria acontecer. Essa é uma resposta clara de B, acostumadas a momentos de espontaneida-
nível 4 (6a categoria), porque indica que mesmo de, que se distinguem pela não intervenção
com as nossas contra-argumentações sobre direta do adulto. Um dado relevante é que, em
como ficaria nossa personagem principal, a qual nossas observações, pudemos notar que às
queria tanto ganhar o concurso, vendo a outra crianças do ambiente A, das relações ditas au-
garota ganhá-lo, continua evidenciando a dispo- toritárias, são reservados apenas quinze minu-
sição pela solidariedade sem nenhuma perda. tos restantes do recreio, por dia, para o parque.
Para tantos outros, a ação solidária não A tal dado, acrescente-se a falta das experiên-
aconteceria porque: Ele ia ficar sem prêmio [...]. cias simbólicas das propostas de faz-de-conta,
É melhor não emprestar, como afirmava LEO, do tão importantes ao desenvolvimento das crian-
ambiente A. Assim como tantas outras crianças, ças, quando podem se relacionar diretamente
acostumadas ao individualismo, ao silêncio ab- entre seus pares, além de consigo mesmo.
soluto, LEO compreende que um desejo próprio Dessa forma, em contrapartida, MARC,
deve ser maior que a ação solidária. do ambiente A, sugere que o personagem vá ao
Quanto ao dilema 3, que apresentava a parque porque gosta muito. Quando questiona-
história do garoto com a perna engessada, do sobre como ficaria o garoto com a perna
engessada, constatamos que a solidariedade
fere um desejo próprio de MARC: Chama outro
menino para brincar com ele. Quando questio-
namos: Chamar outro menino? E se nenhum
outro menino quisesse brincar com ele?, MARC
nos responde: Aí ele não brinca com ninguém.
Quando destacamos a presença da au-
toridade no processo de resolução do dilema,
os resultados que obtivemos não foram muito
foram encontradas as seguintes categorias: diferentes.
Para esse dilema do garoto da perna
engessada, temos dados semelhantes: no nível Parte 2 – Solidariedade e
4, mais evoluído, temos 78,26% das respostas enfrentamento da autoridade
entre as crianças do ambiente B e 21,74 % das
respostas entre as crianças do ambiente A, en- O primeiro dilema que apresentamos às
quanto que para o primeiro nível, menos evo- crianças conta a história de uma personagem
luído, em que a ausência da solidariedade se que adorava subir em árvores e o fazia como
constata, 92,86 % das respostas foram apre- ninguém. Certo dia, quando caiu do alto de
sentadas pelas crianças do ambiente A, contra uma árvore, o pai lhe fez prometer que nunca
7,14% de respostas do ambiente B. mais subiria. Ela teria que decidir entre subir
Para VIN, do ambiente B: Então, mas se novamente na árvore para salvar um gatinho
ele não fosse hoje, só depois de uma semana. ou respeitar a promessa. “O que seria melhor
Quando contra-argumentamos afirmando que o fazer?”, foi a pergunta que fizemos às crianças.
garoto gostava muito de brincar no parque, VIN Novamente, suas respostas foram cate-
nos responde: Ah, mas ele brinca com o meni- gorizadas e encontrados os quatro níveis já dis-
no, ele tá com a perna quebrada . tinguidos anteriormente.

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A seguir, vejamos as categorias encontra- tégias que nos fazem acreditar em sua busca por
das nas respostas das crianças para o dilema do não desobedecer à ordem do pai, mas cumprir
gatinho. Notemos que, como nos demais dilemas, com a ação solidária. Tais respostas encontram
essas categorias são apresentadas numa evolução, um equilíbrio entre as crianças dos dois ambien-
desde a ausência total da solidariedade, agora pela tes: 29,54% do ambiente A e 34,04% do ambi-
obediência, pelo medo do castigo, até quando há ente B. Um exemplo da busca por alternativas é
uma disposição tão certa para tal ação que, mes- a resposta de CAM do ambiente B:
mo os contratos, no caso em questão, com o pai,
precisam ser quebrados porque há uma necessida- “Cata uma escada.”
de maior a ser cumprida ou, então, quando a Ai, mas não tem escada que pegue aquele gato,
confiança predomina sobre o medo da autoridade. de tão alta que é aquela árvore, CAM.
No primeiro nível, como nos dilemas “Mas aí compra três escadas, daí gruda, daí dá.”
anteriores, a solidariedade não é manifestada,
em virtude da determinação da autoridade. Porém, constatamos que nas duas ca-
71,43% das respostas desse nível foram dadas tegorias distintas do nível 4 (a confiança de
que a autoridade permitirá que a ação aconte-
ça, devido à exigência de se tomar uma atitu-
de que atenue o sofrimento do dono do gato
ou a quebra do contrato estabelecido com o
pai, porque um princípio maior está sendo fe-
rido) há uma grande diferença entre os dois
ambientes.
Nesse último nível, nenhuma resposta
por sujeitos do ambiente A e 28,57% por su- das crianças do ambiente A foi encontrada, en-
jeitos do ambiente B. Para esses sujeitos, “não quanto que houve 12 respostas das crianças do
subir, porque ele tem que obedecer ao pai” ambiente B. Elas acreditam na força de sua
(LUI, ambiente A) é resposta comum. relação de confiança com a autoridade, mesmo
No segundo nível, encontramos as ca- quando é necessária a quebra do contrato,
tegorias que admitem a solidariedade, porém, conforme MAI, também do ambiente B:
por ações contestáveis, mentem ou tapeiam a
autoridade. Para EVE, do ambiente A: “É melhor ela subir e pegar o gatinho e falar:
Ô pai, o gatinho subiu lá e eu tive que pegar”.
“Ela sobe escondido”. E o que você acha que o pai dela vai fazer?
Mas ela prometeu para o pai dela que não iria ‘Brigar com ela.”
subir! É? Mas mesmo assim ela sobe?
“Ela fala que vai brincar na esquina e sobe na “Sobe.”
árvore.”
Mas, a Ana pode subir? Quando contamos o dilema do garoto
“Pode, sem o pai dela saber.” que encontra o outro com a perna engessada,
destacamos uma segunda parte onde a profes-
Num nível mais evoluído, as categorias sora chega bem no momento em que, supos-
expressam as tentativas das crianças de concilia- tamente, nosso personagem decide ficar com o
rem a ação solidária e a obediência ao contrato menino que não podia sair do lugar. A profes-
estabelecido com a autoridade. As crianças suge- sora, então, diz que ele deve ir para o parque,
rem pegar uma vassoura para retirar o gato da já que é o dia de sua turma estar lá. Pergunta-
árvore, chamar bombeiros e tantas outras estra- mos, a partir desse fato, o que seria melhor o

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.1, p. 49-66, jan./abr. 2006 61


personagem fazer. Como vimos, é nosso quar- “Falar: professora, eu posso levar a menininha
to dilema. A seguir, apresentamos as categori- comigo lá no parque? [...] Essa menininha tá
as encontradas, muito parecidas com aquelas com a perna engessada, deixa eu brincar com
do dilema anterior. ela? Ela tá muito sozinha. Aí a professora vai
ficar com dó e vai deixar.”

As conclusões a que chegamos com a


apresentação dos dilemas são claras: o último
nível, que apresenta categorias em que a dispo-
sição para a solidariedade está presente, foi
encontrado com muito mais freqüência nos jul-
Vinte e duas respostas das crianças do gamentos das crianças do ambiente B. Como
ambiente A e sete do ambiente B são encontra- vimos por essa análise, em dois dos quatro di-
das no primeiro nível, representando 75,86% e lemas discutidos não houve respostas das crian-
24,41%, respectivamente, das respostas assim ças do ambiente A contidas nesse último nível.
distinguidas, em que a ação solidária não Parece-nos relevante destacar um dado
acontece pela obediência à ordem adulta. En- fundamental nesse momento em que acabamos
contramos apenas uma resposta entre as crian- de concluir os resultados sobre os quatro dile-
ças do ambiente A no último nível, em que há mas apresentados às crianças: pode parecer ao
a confiança ou a quebra do contrato, enquan- leitor que as classificamos, portanto, em solidá-
to quinze respostas do ambiente B caracteriza- rias ou não solidárias.
ram 93,75% das respostas para esse nível. Quando utilizamos uma análise estatís-
Consideramos essas respostas como tica, chamada Análise Discriminante, podemos
ações solidárias porque excluem todo elemen- acentuar que, embora nossos resultados com-
to de submissão que a autoridade pressupõe. provassem que a maioria das respostas de ní-
Para Piaget, a relação entre pares contribui para veis considerados superiores, em termos de
a descentração. Não é por acaso, portanto, que presença de julgamentos de solidariedade, foi
as crianças do ambiente A apresentam tamanha encontrada entre sujeitos do ambiente B, não
dificuldade em se desvencilhar da obediência podemos classificá-los dessa forma.
cega à autoridade adulta. Tal análise estatística consistiu em en-
Dessa forma, as crianças, advindas de contrar uma certa similaridade entre as respos-
ambientes em que a autoridade do professor tas dos sujeitos de cada ambiente e separá-las
não é reduzida ao mínimo possível nas toma- em dois grupos distintos, os quais atendessem
das de decisão e resolução de conflitos inter- àquilo que têm em comum, ou seja, verificou-
pessoais, apresentam-se muito menos pro- se se o sujeito apresentava respostas que fazi-
pensas a exercer sua autonomia, não como am parte das características destacadas por seu
desobediência, mas com a legitimação da ne- grupo ou não.
cessidade da solidariedade, demonstrada em Dessa forma, foi possível predizer que
seus argumentos e justificativas. Assim res- mesmo que a maioria absoluta das respostas
ponde ALU, do ambiente B, ao dilema do dos sujeitos do ambiente A estivesse de acor-
garoto com a perna engessada, na presença do com as características coercitivas, havia uma
da professora: pequena parcela de respostas que se apresen-
tavam mais propensas ao outro grupo. O mes-
Então a professora falou assim para Júlia: mo ocorreu com as respostas dos sujeitos do
“Júlia, é hora de ir para o parque” e agora, ambiente B, que estavam de acordo com as
ALU, o que é melhor Júlia fazer? características de um ambiente cooperativo.

62 Luciene R. P. TOGNETTA e Orly Z. M. de ASSIS. A construção da solidariedade...


Esse fato demonstra nossa preocupação em Tornou-se evidente, nessas investiga-
não classificar os sujeitos em solidários ou não, ções, que a relação de confiança com a autori-
de acordo com o ambiente, significando que a dade é fundamental na formação de julgamen-
solidariedade depende, também, de outros fa- tos por solidariedade. Como vimos, as crianças
tores além do ambiente escolar. do ambiente cujas relações eram autoritárias,
Por outro lado, tais constatações, realiza- baseadas em discursos do professor ou em cas-
das em nosso estudo, revelam a importância do tigos e punições, não julgavam possível que
tipo de relações estabelecidas na escola. Embora uma ação solidária acontecesse caso a autoridade
tenhamos apresentado os dados de nossa pesqui- fosse contrária, uma vez que não tinham a ex-
sa bastante resumidos, destacando apenas os periência da confiança, do argumentar, do jus-
níveis mais diferenciados (quando a solidarieda- tificar e esperar que o outro as compreendesse.
de não é encontrada e quando as disposições para É possível que a criança que sinta tal
tal virtude se fazem presentes), acreditamos que relação de confiança, em detrimento de uma re-
tais revelações podem confirmar nossas hipóteses lação de obediência e de castigo, sinta vergonha
de que um ambiente onde as crianças possam se daquilo que causou seu comportamento. Sentin-
expressar livremente, sem coerções e possam di- do vergonha, tal criança poderá construir para si
zer o que sentem, possam decidir e opinar, será o valor de se tornar responsável por suas ações.
mais promissor para a solidariedade. Caso contrário, se as ações do adulto impuserem
As discussões, que firmamos no início uma conduta pela humilhação, não há valor moral
deste artigo, parecem tomar um sentido mais que se conserve. A representação de si, que a
concreto diante dos dados apresentados: a criança constrói pela humilhação, será sempre de
solidariedade, a tolerância, a justiça e o respei- caráter destrutivo (La Taille, 1996).
to, que tanto desejamos, dependem de uma Quando as crianças experimentam serem
construção progressiva do próprio sujeito que tratadas afetivamente, nas relações de coopera-
age. Parece-nos evidente que as instituições ção e de confiança, podem construir sua auto-
que educam ocupem um papel fundamental estima, o gostar de si, o autoconhecimento, o
nessa formação. Nas palavras de Piaget (1998), entender o que sentem e o autocontrole, o sa-
não é um tipo de respeito comum por uma ber controlar suas emoções e seus sentimentos.
regra exterior que cria a solidariedade, mas sim A esse ponto, o leitor deve estar se per-
“a colaboração na constituição da regra co- guntando: como, de fato, sabendo das caracte-
mum. Tampouco é o respeito coletivo pela rísticas que compõem a moral, podemos contri-
palavra adulta que cria a compreensão, mas a buir, como educadores, para a sua formação?
discussão e o controle mútuo”. Quando as crianças com as quais traba-
Com tais resultados emitidos e se uma lhamos têm a possibilidade de pensarem sobre
virtude pode ser ensinada “mais pelo exemplo suas ações, de reconstituí-las, ao expressarem
que pelos livros”, como diria Comte-Sponville o que poderiam ter feito para que um determi-
(1995), há esforços de nossa parte em encontrar nado comportamento inadequado não aconte-
uma suposta “pedagogia das virtudes”. Uma cesse, estamos favorecendo a construção das
pedagogia que considere tanto a dimensão estruturas de pensamento (Mantovani de Assis,
cognitiva da moral, quanto a sensibilidade ne- 1998). Por outro lado, quando permitimos que
cessária para pensar bem como para sentir e, as crianças se sintam acolhidas, pelo respeito
dessa forma, poder encontrar caminhos que mútuo, pela disposição do adulto em não as
permitam evocar os domínios afetivos dessa punir e, sim, auxiliá-las a encontrar soluções
moral. Uma pedagogia que considere a coope- para seus conflitos, estamos favorecendo tal
ração como princípio fundamental, conforme construção das representações de si mesmo, de
pudemos constatar em nossa pesquisa. que tratamos anteriormente.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.1, p. 49-66, jan./abr. 2006 63


Da mesma forma, quando as crianças se participação efetiva na assembléia da qual fa-
acostumam a expressar o que sentem, suas do- zem parte (Mantovani de Assis, 1996). Sim, a
res, suas angústias, num conflito entre pares, sala de aula é uma grande assembléia que re-
legitimam uma experiência extremamente rele- solve, que legisla, estabelecendo, cumprindo e
vante do ponto de vista psicológico: aprendem cobrando combinados ou regras (Araújo, 2000).
que o que sentem ou pensam é tão importante No entanto, como vimos anteriormente,
que precisa ser dito. Quando tratamos de elencar é preciso ainda que se considere um outro as-
os pressupostos de uma pedagogia das virtudes, pecto imprescindível: a afetividade. Talvez essa
estamos certos de sua dimensão afetiva. seja a chave para entender o porquê de a edu-
Ora, a idéia é a seguinte: digamos que, cação ainda se queixar tanto da indisciplina por
nesse momento, estamos considerando uma vir- parte de seus alunos. Quando a escola, ou qual-
tude como um valor. E como construímos um quer instituição que educa, favorece a expressão
valor? Todo valor é uma projeção de sentimen- dos sentimentos, a contraposição aos sentimen-
tos. Quando permitimos que as crianças expe- tos do outro, está permitindo que as crianças
rimentem expressar o que sentem, num confli- construam as representações necessárias para
to entre pares, estamos permitindo que se in- uma ação virtuosa, como pudemos constatar
dignem, que sintam raiva. Porém, ao se indig- entre as crianças provenientes do ambiente B de
narem, apresentando ao outro as razões de tal nossa pesquisa, acostumadas a fazê-lo.
indignação, estamos favorecendo que elas pos- Diferente do que muitos pensam, traba-
sam construir, para si, um gostar de si que não lhar com a afetividade na escola não significa
permita que a façam sofrer e, ao mesmo tem- acarinhar e relevar comportamentos inadequa-
po, um respeito pelo outro, porque lhes damos dos. O carinho ou a atenção que damos às cri-
as razões para desaprovar suas ações. anças encontram-se na possibilidade de que elas
Nesse sentido, o fato de indignar-se construam sua estima própria e seu autocontrole,
permite que se construa o valor do diálogo, da regulando suas ações e permitindo que, pelo
tolerância, do perdão, do arrependimento, da exercício desse falar de si, possam tornar-se
amizade como conseqüência das ações não futuramente adultos equilibrados e sensíveis às
violentas, que podem ser impedidas quando as necessidades do outro.
transformamos em expressão de sentimentos. Digamos que a solidariedade pede em-
Queremos dizer que é preciso permitir a raiva, patia com o estado afetivo do outro, mas essa
instigando a criança a encontrar maneiras de só é conquista de um estado de equilíbrio em si
expressar o que sente, sem violência. porque tal disposição para uma ação virtuosa
Na verdade, as virtudes que desejamos ver acontece quando não se deseja nada em troca.
estampadas nas ações cotidianas de nossos alunos É a superação de si, é estar bem consigo para
não são fáceis de serem conquistadas. São dispo- estar e buscar o bem para os outros.
sições internas que precisam ser construídas a cada Necessariamente, uma virtude depende
conflito com o meio, a cada experiência que per- dos sentimentos que são projetados nos objetos,
mita reunir a dimensão moral, cognitiva e afetiva em nosso caso, nos sujeitos que esperam pela
de suas realizações, portanto, com cooperação. ação solidária. Por sua vez, somente um ambiente
Ao professor, educador em especial, cooperativo poderá assegurar esses estados de
cabe a tarefa de considerar a ampla dimensão empatia com o outro (Mantovani de Assis, 1996).
do psiquismo humano: se a moral depende da Portanto, temos duas condições a obser-
razão, as crianças devem encontrar na escola var quanto ao aspecto da criança vir a ser mais
um ambiente que propicie desafios a sua inte- solidária: esquecer as queixas de que as pessoas
ligência, que lhes permita tomar decisões, fazer não são boas e considerar que elas possam estar
escolhas, resolver seus conflitos, o que requer melhores é nossa primeira condição; a segunda é

64 Luciene R. P. TOGNETTA e Orly Z. M. de ASSIS. A construção da solidariedade...


nos dispormos também a sermos virtuosos, Nosso desejo é que as discussões apre-
considerarmo-nos humildes o bastante para enxer- sentadas possam tornar-se um fomento para
garmos o quanto ainda temos a aprender quanto pensar a moral de forma a buscar a maior e
ao psiquismo humano e à construção da moral. melhor realização humana: a felicidade.

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Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.1, p. 49-66, jan./abr. 2006 65


SMITH, A. Teoria dos sentimentos morais
morais. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

TOGNETTA, L. A construção da solidariedade e a educação do sentimento na escola


escola. Campinas: Mercado de Letras/FAPESP,
2003.

Recebido em 19.01.05
Modificado em 22.12.05
Aprovado em 14.02.05

Luciene Regina Paulino Tognetta é doutora pelo Instituto de Psicologia-USP. Membro do Laboratório de Psicologia Genética
da Faculdade de Educação da Unicamp e do GEPEM/Unesp.

Orly Zucatto Mantovani de Assis é professora titular da Faculdade de Educação – Unicamp. Coordenadora do Laboratório
de Psicologia Genética da Unicamp e Coordenadora do PROEPRE (Programa de Educação Infantil e Ensino Fundamental).

66 Luciene R. P. TOGNETTA e Orly Z. M. de ASSIS. A construção da solidariedade...

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