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Psicologia: Teoria e Pesquisa

Jan-Abr 2000, Vol. 16 n. 1, pp. 049-054

Reestruturação Produtiva e Variabilidade


do Trabalho: Uma Abordagem da Ergonomia
Júlia Issy Abrahão1
Universidade de Brasília
RESUMO - Este artigo é um estudo teórico que discute a pertinência de incorporar no escopo de um projeto de automação/
informatização dos postos de trabalho o conceito de variabilidade. Neste sentido, ressalta a contribuição da ergonomia ao
processo de introdução de novas tecnologias que, além de modificar a natureza do trabalho, a produtividade afeta, muitas
vezes a saúde do trabalhador. A variabilidade do trabalho, decorrente da diferença entre a prescrição e a realidade, pode ser
compreendida considerando: (a) as características do trabalhador, ressaltando a noção de variabilidade inter e intra indivi-
dual, e (b) a organização do trabalho, onde destaca-se a variabilidade dos equipamentos/materiais e dos procedimentos. Ao
considerar as variabilidades na concepção de um projeto ou na situação de inovação tecnológica, propicia-se uma melhoria
das condições de trabalho, flexibilizando e reduzindo a polarização imposta pelo trabalho prescrito, cuja referência é,
geralmente, um operário médio, bem treinado, que trabalha em um posto estável.

Palavras-chave: ergonomia; variabilidade; novas tecnologias

Productive Restructuring and Variability


in the Work: Ergonomics Approach
ABSTRACT - This theoretical paper discusses de appropriateness of including the concept of variability into projects of
automating work stations. It underlines the contribution of ergonomics to the process of introducing new technologies,
which not only modify the nature of the work but frequently the health of the worker as well. The variability of work, a
consequence of the difference between prescribed norms and reality, may be understood based on (a) the characteristics of
the worker, stressing the notion of inter- and intrapersonal variability, (b) the organization of the work process, stressing the
variability of equipment, materials and procedures. By taking variability into account when elaborating a project or a
situation of technological innovation, it renders favourable improvement in working conditions due to flexibility and reduc-
tion of impositions of prescribed work norms, which usually are based on a ‘mean’ worker, well trained and working under
stable conditions.

Key Words: ergonomics; variability; new tecnologies

Este artigo tem como objetivo conduzir uma reflexão, ma social importante com reflexos nas questões de requali-
na perspectiva da ergonomia, sobre a questão da variabili- ficação, saúde e produtividade. Segundo Wisner (1987), um
dade dos homens, dos equipamentos e da matéria-prima grande número de pessoas encontra-se rejeitada pelo siste-
inserida no contexto de trabalho. ma produtivo ou situadas à sua margem em decorrência da
As novas tecnologias e seus impactos no trabalho hu- reestruturação produtiva, que exige um novo perfil do tra-
mano têm sido abordados sob vários ângulos, variando con- balhador. Vale ressaltar que esta reestruturação nem sem-
forme as áreas do conhecimento e a natureza da problemá- pre considera a variabilidade do trabalho e o trabalhador
tica analisada. A ergonomia tem sido solicitada, cada vez como o sujeito do processo de reestruturação produtiva.
mais, a atuar na análise de processos de reestruturação pro- Abrahão (1996) afirma que, atualmente, com a automa-
dutiva, sobretudo, no que se refere às questões relaciona- ção nos setores secundários e terciários da economia e com
das à caracterização da atividade e à inadequação dos pos- a introdução da robótica, os setores produtivos começam a
tos de trabalho, em especial em situações de mudanças ou perceber cada vez mais, que os meios técnicos determina-
de introdução de novas tecnologias. dos pela organização do trabalho devem ser adaptados às
A caracterização da atividade é um elemento fundamen- especificidades do funcionamento humano.
tal para instrumentalizar o desempenho dos sistemas de pro- O impacto das inovações tecnológicas sobre o modo de
dução, objetivando atingir um funcionamento estável em produção incide tanto nas relações de troca, quanto nas re-
quantidade e qualidade. A inadequação dos postos de tra- lações de produção propriamente ditas. Tais inovações alte-
balho, à população de trabalhadores, constitui um proble- ram as formas de cooperação influindo diretamente na ati-
vidade humana, na matéria prima que se aplica o trabalho e
nos meios e instrumentos utilizados (Machado, 1994). Neste
sentido, a ergonomia vem trabalhando, de forma sistemáti-
ca, no estudo da introdução destas novas tecnologias, de-
1 Endereço: SQS 202, Bloco H, Apto 602, CEP: 70.232-080 – Brasília
DF. E-mail: abrahao@unb.br monstrando a transformação do conteúdo e da natureza do

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trabalho, bem como as conseqüências destas mudanças na dendo do indivíduo, ou seja, suas experiências, sua história
saúde dos sujeitos e na eficácia das organizações. e sua formação.
As modificações relativas à natureza da tarefa, em par- Nesta perspectiva, a singularidade das situações de traba-
ticular, pelos novos padrões tecnológicos têm se concreti- lho, são permeadas pelo cotejamento das características dos
zado através da automação das tarefas manuais, repetitivas indivíduos com os objetivos da produção e com o meio social
e monótonas, onde o papel reservado ao homem é, sobretu- e tecnológico que lhe é oferecido para a consecução destes
do, voltado para o controle e a manutenção do processo. objetivos.
Assim, nos processos de produção contínua, por exemplo, Para as situações de trabalho em sua totalidade e dimen-
a tarefa do operador é transformada, e ele assume o papel sões, a ergonomia utiliza uma metodologia própria de inter-
de supervisão e controle dos processos. venção – a análise ergonômica do trabalho que tem como fio
Nesta nova configuração, o operador é distanciado ain- condutor a atividade – o fazer do trabalhador inserido em
da mais do objeto de seu trabalho. A centralização dos co- um contexto real, objetivando apreender o trabalho efetiva-
mandos e dos dispositivos, bem como o desenvolvimento mente realizado, ou seja, como o homem se comporta para
dos meios de comunicação para o gerenciamento à distân- executar o que lhe é imposto pela organização do trabalho.
cia, tem como resultado a modificação da natureza da ati- Uma das contribuições importantes da análise da ativi-
vidade humana, exigindo uma forte mobilização mental para dade reside no fato das ações estarem sempre inscritas em
a compreensão do trabalho. um contexto, tornando-se impossível compreendê-las fora
Nesta perspectiva, podemos inferir que as novas tecno- dele (Wisner, 1996).
logias têm imposto cada vez mais exigências de natureza Ao traçarmos um paralelo entre a noção de atividade
cognitiva ao trabalhador. Estas se configuram por meio de adotada pela ergonomia e a perspectiva da teoria da ativi-
diferentes processos decisórios envolvidos no controle do dade de Leontiev (1964), verificamos similitudes, conside-
processo de trabalho e na resolução de problemas dele re- rando que Leontiev, não atribui à atividade um caráter está-
sultante. tico, ao contrário, ele ressalta o caráter dinâmico da ativi-
Assim, a ergonomia, reconhecida inicialmente na luta dade, considerando-a portanto, como um processo em cons-
pela saúde do trabalhador contra os acidentes e pela melhoria tante desenvolvimento. Este desenvolvimento não é linear,
das condições de trabalho, trouxe contribuições significati- tampouco direto, e sim, irregular e descontínuo. Tais ca-
vas para a adequação do sistema técnico, propiciando van- racterísticas demonstram que a atividade está inscrita em
tagens econômicas e financeiras quando da introdução das sua própria história, na medida em que resíduos de ativida-
novas tecnologias (Wisner, 1996). Na prática, em ergono- des anteriores permanecem inseridos nas novas, apontando
mia, um conjunto de conhecimentos é estruturado para res- assim, para a importância da análise histórica do desenvol-
ponder a diferentes demandas. vimento da atividade para a compreensão da situação atu-
As contribuições da ergonomia, na introdução de melho- al. Emerge então, o enfoque adotado pela ergonomia, da
rias nas situações de trabalho, se dão pela via da ação ergonô- importância de se conhecer a experiência anterior dos ope-
mica que busca compreender as atividades dos indivíduos radores, com o intuito de possibilitar a interação entre as
em diferentes situações de trabalho com vistas à sua trans- antigas e as novas atividades.
formação. Assim, o foco de ação é a situação de trabalho A integração do conceito de atividade nos projetos de
inserida em um contexto sociotécnico, a fim de desvendar situações de trabalho implica em reconhecer que estas de-
as lógicas de funcionamento e suas conseqüências, tanto vem ser concebidas considerando a diversidade da popula-
para a qualidade de vida no trabalho, quanto para o desem- ção de trabalhadores, bem como as características a ela ine-
penho da produção. rentes, ou seja, a variabilidade.
Segundo Wisner (1994a), “...uma das características Reconhecer e compreender a variabilidade inter e intra
mais notáveis dos seres vivos é a diversidade de suas rea- individual nas diferentes etapas de um projeto industrial/
ções numa dada situação” (p.19). Numa mesma popula- organizacional possibilita a introdução de elementos flexí-
ção, estas variam consideravelmente. Podemos, então, es- veis desde a concepção como, por exemplo, a valorização
perar uma grande diversidade nos níveis de tolerância às de um saber constituído ao longo do tempo, incorporado na
dificuldades das situações de trabalho. experiência do trabalhador.
Todo indivíduo chega ao trabalho com seu capital ge- Ao considerarmos a diversidade da formação, da apren-
nético, remontando o conjunto de sua história e as marcas dizagem e da experiência contribuímos para a implantação
acumuladas na vida. Traz seu modo de vida, seus costumes de suportes que favorecem o desenvolvimento continuado
pessoais, seus aprendizados. Este conjunto de fatores influ- das competências, possibilitando assim, atender às neces-
encia a forma como são abordadas as situações de trabalho sidades da reestruturação do trabalho que exigem do traba-
com as quais este indivíduo é cotejado. lhador de qualquer idade, em diferentes níveis de formação
As situações variam, pois cada uma é singular, sendo conhecimentos e habilidades para acompanhar estas mu-
caracterizada pelas diferenças individuais que são confron- danças, evitando a exclusão de pessoas portadoras de expe-
tadas aos mesmos objetivos e meios de trabalho. Assim, riências valiosas no desenvolvimento do processo de reestru-
elas se configuram como situações diferenciadas, depen- turação do trabalho.

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Título abreviado

A Noção de Variabilidade Nesta perspectiva, podemos constatar que na situação


real de trabalho, a variabilidade está sempre presente e de
As empresas, na organização do processo de trabalho, forma estrutural. Este cenário é o espaço onde se confron-
planejam e fornecem os meios necessários à produção, na tam as características do indivíduo, as exigências da pro-
medida em que dividem tarefas, estabelecem critérios, nor- dução e a organização do trabalho. Portanto, é necessário
mas e regras definindo, assim, os objetivos a serem alcança- integrar estas variações de maneira a facilitar a qualidade
dos no processo de trabalho. Muitas vezes, adotam como de vida no trabalho e a favorecer, a contento, o funciona-
referência um pressuposto herdado de Taylor, cuja máxima mento da produção.
reside na concepção de um “operário médio”, bem treinado Perrow (1967) e Wisner (1994a), em períodos distintos,
e que trabalha em um posto estável (Wisner, 1987). Porém, ressaltam que a variabilidade das tarefas pode ser avaliada
o que se observa no cotidiano é que esta estabilidade não segundo o número de exceções verificadas para o funcio-
corresponde à realidade. Os estudos demonstram uma dife- namento normal do sistema. Outro aspecto destacado pelos
rença entre o que é previsto e o que é realizado, entre o autores está relacionado ao grau de dificuldade que o tra-
desejável e o real, pois nas situações de trabalho ocorrem balhador encontra, para identificar as alterações e varia-
variações freqüentes, em decorrência de vários fatores. Den- ções dos parâmetros que ocorrem durante o processo de
tre eles, vale ressaltar a organização do trabalho bem como trabalho e que afetam o funcionamento do sistema. Estes
aqueles relacionados às características do trabalhador. fatos, na prática, têm grande importância para a ergonomia
Na perspectiva da organização do trabalho, devem ser que, há muito tempo, tem se empenhado em demonstrar
incluídos desde os materiais, os equipamentos e os proce- que as tarefas aparentemente mais monótonas e as estrita-
dimentos, até a gestão dos incidentes. Quanto às caracte- mente organizadas exigem uma adaptação permanente dos
rísticas do trabalhador, a literatura aponta as fontes de va- trabalhadores às variações das máquinas e da matéria pri-
riabilidade do indivíduo como as de natureza inter e intra ma (Wisner, 1994a, p.166). É por isto que os ergonomistas
individuais, levando-se em conta os aspectos físicos, psí- tendem a recomendar uma organização mais flexível, quan-
quicos e cognitivos, neles inseridos, a experiência como do se fala na inserção de novas tecnologias, com o objetivo
história das representações mentais, o envelhecimento como de permitir ao trabalhador responder adequadamente a es-
história biológica e outras intrinsecamente ligadas à histó- sas variações no decorrer do seu trabalho.
ria do trabalho. É neste contexto do real que a atividade A resposta dos operadores a esta variabilidade era en-
realmente ocorre e não naqueles previstos, malgrado os tendida anteriormente como o afastamento do trabalho pres-
esforços da organização na sua tentativa de estabilização crito e, portanto, como um risco à qualidade da produção e
do processo ou ainda da normatização. aos equipamentos. Entretanto, com os avanços da psicolo-
A atividade compreende vários artefatos tais como ins- gia cognitiva, este afastamento é hoje entendido como uma
trumentos, signos, procedimentos, máquinas, métodos, re- forma de gestão desta variabilidade. Wisner (1996) afirma
gras e formas de organização do trabalho. Entretanto, uma que o operador constitui a todo momento, o problema que
das características importantes destes artefatos é o seu pa- ele tem a resolver. Esta construção se apoia tanto nas vari-
pel de mediação entre o trabalhador e o objeto do trabalho ações da máquina, do ambiente, da matéria prima e das
(Wisner, 1997; Rabardel, 1995 e Monoud, 1970). relações sociotécnicas, quanto nas competências do pró-
A mediação entre o objeto e objetivo, segundo Engeström prio operador.
(1987), é estabelecida através de um terceiro elemento - ar- A compreensão da competência dos trabalhadores está
tefato. Portanto, a relação entre o sujeito e o objeto tem relacionada à sua capacidade de regulação, ou seja, gerir a
como mediador os artefatos que podem ser instrumentais variabilidade de acordo com as situações. Quanto maior a
utilizados no processo de transformação, sejam eles, mate- variabilidade das situações, menor a probabilidade de an-
riais ou intelectuais. Por exemplo, a relação entre o sujeito tecipação, exigindo assim, maior competência dos traba-
e o coletivo tem como mediador as regras que compreen- lhadores para a passagem de uma operação prescrita à uma
dem as normas explicitas ou implícitas, as convenções e as ação situada (contextualizada). Esta competência possibi-
relações sociais no seio do coletivo. A relação entre o obje- lita, também, redefinir a atividade, favorecendo a reconsti-
to e o coletivo tem como mediador a divisão de trabalho tuição de situações anteriores por meio de reformulações,
que qualifica a organização explicita e implícita em rela- utilizando para isto recursos do próprio contexto como, por
ção ao processo de transformação do objeto em produto. exemplo, o apelo à competência de outros trabalhadores, a
Cada um destes mediadores é constituído historicamente e elaboração de novos parâmetros para esta atividade ou, até
de forma diferente. mesmo, a utilização eventual de uma estratégia operatória
Muitas vezes, os artefatos são criados e transformados antiga. Esta capacidade de regulação constitui uma compe-
durante o desenvolvimento da atividade e trazem em si uma tência, que é necessário considerar nas diferentes etapas de
cultura particular, resíduo histórico deste desenvolvimen- um projeto industrial ou organizacional, objetivando atin-
to. Assim sendo, a atividade constitui por si só o contexto gir um funcionamento que possibilite uma produção está-
significativo mínimo para a compreensão das ações de tra- vel em quantidade e qualidade.
balho. Neste sentido, é possível que o objeto e o objetivo só A análise ergonômica do trabalho permite identificar,
se revelem no processo do fazer. por intermédio da observação do contexto real de trabalho,

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quais são as variáveis que o operador busca para compre- Neste sentido, a atividade atua como um agente
ender os problemas aos quais ele é confrontado e, desta integrador desta multiplicidade de fatores no processo de
forma, associar os processos cognitivos que ele mobiliza trabalho, em especial, da integração das características di-
na execução do seu trabalho. Estes dados são fundamentais ferenciadas e variáveis.
para a melhoria do dispositivo técnico, da organização e da Portanto, ao considerar a variabilidade, busca-se um
formação. equilíbrio entre as características dos sujeitos e o seu ambi-
Segundo Laville (1976/1977), o objetivo do estudo da ente de trabalho visando obter os resultados esperados pela
atividade do trabalhador é conhecer as funções que este produção, dentro das melhores condições possíveis. Segundo
mobiliza e compreender as modalidades de utilização des- Weill-Fassina (1990), o trabalho é considerado uma condu-
tas funções. ta finalística que o sujeito apreende e é dirigida por uma
Os modelos que habitualmente são utilizados nas inter- meta cuja consecução deve se adaptar às exigências do
venções ergonômicas buscam estabelecer uma relação en- ambiente material e social.
tre a atividade e a multiplicidade de fatores que a determi- A análise ergonômica do trabalho possibilita o estabe-
na, ou seja, procuram integrar a atividade com estes fato- lecimento das relações entre a atividade e os seus diferen-
res. Por exemplo, compreender como se processa a inter- tes níveis de determinantes.
relação entre as características da população (variabilidade Como integrar a noção de variabilidade, se conside-
intra e inter-individual) com aquelas oriundas do contexto rarmos a singularidade de cada situação estudada, a vari-
do trabalho (organização, tecnologia, gerenciamento, den- abilidade natural do homem e, por vezes, a volatilidade da
tre outros). ação? Quais as conseqüências desta integração para o pro-
Por que é importante considerar estas características cesso de trabalho?
no projeto, seja no momento da concepção ou da introdu-
ção de novas tecnologias? Em outros termos, para que de- A Integração das Características da População
veria servir uma analise das características da população
em um projeto industrial/organizacional? O trabalho é uma atividade desenvolvida por homens e
Às vezes, o modo de funcionamento deteriorado de uma mulheres, para suprir o que não é determinado pela organi-
unidade é caracterizado pela multiplicidade e diversidade zação do trabalho. Por isto, não é suficiente o trabalhador
entre o prescrito (o que é estabelecido pela organização do seguir somente as prescrições, é necessário interpretar, cor-
trabalho) e o real (atividade). Perrow (1967), sociólogo rigir, adaptar e às vezes criar. Para atender às exigências da
americano da área organizacional, realizou um estudo onde, situação de trabalho, ele está constantemente submetido a
já naquela época, demonstrou a importância da variabili- um processo de regulação interna. A sua inteligência se
dade das atividades nas contingências da organização do manifesta ao suprir as lacunas da prescrição e ao transitar
trabalho, bem como a importância das empresas conside- pela variabilidade da situação de trabalho, das ferramentas,
rarem este elemento nas etapas de um projeto industrial/ do objeto de trabalho e da organização real do trabalho.
organizacional. Ao transitar nestas situações, o trabalhador utiliza es-
Os erros da produção atribuídos, muitas vezes, à incom- tratégias individuais, denominadas modos operatórios, bem
petência dos trabalhadores, são frutos do desconhecimento como estratégias coletivas, caracterizadas pelo comparti-
da empresa sobre as reais situações do trabalho, assim como lhar da atividade de trabalho com a hierarquia e com os
à variabilidade das atividades às quais os operadores são seus pares.
confrontados. Neste enfoque, a literatura é consensual e A atividade de um operador de processo contínuo, por
aponta para a importância de se considerar, nas diferentes exemplo, consiste, basicamente, em obter, processar e ar-
etapas de um projeto industrial/organizacional, as caracterís- mazenar informações oriundas de pontos diferentes, de na-
ticas da população e as competências exigidas para cada tureza diversa e de conteúdos distintos. A partir disso, ele
situação a fim de prevenir o risco de um funcionamento constrói seu problema para, posteriormente, agir sobre o
técnico de forma degradada, comprometendo as competên- funcionamento do processo. Para que esta ação seja efici-
cias já estabelecidas. ente é preciso que ele tenha acesso à uma representação
A atividade de trabalho, entendida neste contexto, como atualizada (tempo real) do estado funcional do sistema.
o modo segundo o qual cada um dos indivíduos se relaciona Esse operador, raramente, age sozinho. Ele confronta
com os objetivos propostos, com a organização do trabalho e seus indicadores e indícios com as representações mentais
com os meios que ele dispõe para realizá-los. Este modo que outros operadores constróem do processo, para assim
configura um conjunto sempre singular de determinações, efetivar o seu diagnóstico. Nesse sentido, o trabalho de equi-
denominado modo operatório, ou seja, seqüências de ação, pe, regulado por um coletivo de trabalho, constitui um dos
de gestos, de sucessivas buscas e tratamento de informações, fatores determinantes para a execução do trabalho. Esse
de comunicações verbais ou gráficas e de identificação de coletivo, se apoia, de um lado, na competência dos operado-
incidentes. Enfim, significa a mobilização de suas represen- res e de outro, tão importante quanto o primeiro, nos limi-
tações mentais, de suas estratégias operatórias e das suas tes impostos pelas práticas de segurança.
competências. Este fazer, reafirmamos, é o que caracteriza a Segundo Vigotsky (1996), um princípio regulatório am-
atividade efetivamente realizada pelo sujeito. plamente difundido no comportamento humano é o da signifi-

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cação, através do qual as pessoas, no contexto de seus esfor- níveis de competência, nos fornece subsídios para a com-
ços para solucionar um problema, criam ligações temporári- preensão das exigências de qualificação dos indivíduos, pois
as e dão significado a estímulos previamente neutros (p. 98). permite descrever e explicar as condutas de regulação dos
A competência permite ao indivíduo atribuir um signi- indivíduos, considerando o contexto sociotécnico no qual
ficado para a ação nas situações de trabalho. Segundo está inserido.
Vergnaud (1985), a competência de um indivíduo pressu- As competências podem ser analisadas sob dois ângu-
põe um repertório de procedimentos ou métodos alternati- los, aqueles exigidos pelas tarefas (formalizadas) e aqueles
vos, que lhe permite se adaptar de forma mais fina às dife- operacionalizados em função das condições reais da reali-
rentes situações que se apresentam. Isto ocorre em função zação do trabalho (vivenciadas). Weill-Fassina, Rabardel e
do valor que ele atribui às diferentes variáveis da situação. Dubois, (1993) chama a atenção para o fato de que o nível
Assim, o operador é capaz de adotar o procedimento corre- de complexidade de uma tarefa para determinado operador
to em menor espaço de tempo, com menor custo operacional depende de sua competência. As abstrações, as antecipa-
e de forma menos aleatória, o que lhe permite transitar com ções, o tratamento de um número elevado de dados, as in-
maior ou menor grau de dificuldade na diversidade das si- terferências e as coordenações, segundo a mesma autora,
tuações às quais é confrontado. Nessa perspectiva, as com- constituem algumas das dimensões da complexidade das
petências são descritas do ponto de vista da atividade, pos- tarefas. A passagem à antecipação é uma atividade de natu-
sibilitando a compreensão da própria ação. reza cognitiva, o que significa esquematização, diagnósti-
Se nós admitirmos que toda a ação é inscrita no tempo e co, teste de hipóteses, enfim, abstrações em situação.
que ela sofre evolução contínua, podemos afirmar que a A transição do pensamento situacional para o pensa-
experiência favorece a reconstituição de um novo evento a mento taxonômico conceitual, segundo Vigotsky, citado por
partir de situações vivenciadas anteriormente. Este fato é o Luria (1994), está relacionada a uma mudança básica no
que é visível e passível de formalização. A experiência per- tipo de atividade que o indivíduo está envolvido (p. 70).
mite, inclusive, a regulação dos efeitos das más condições Ele afirma, no seu trabalho sobre a formação de conceitos,
do trabalho, na medida em que contribui no processo de que o “pensamento categorial” e a “orientação abstrata”
antecipação dos incidentes. são conseqüências de uma reorganização fundamental da
Desta forma, ele modifica procedimentos, elabora so- atividade cognitiva que ocorre sob o impacto de um fato
luções e avalia alternativas, realizando a gestão de eventu- novo, social.
ais incidentes que podem ser previstos, evitados, identifi- A característica principal do pensamento categorial ou
cados e até corrigidos. Este processo, exige condutas de abstrato, segundo Luria (1994), está relacionada com a ca-
regulação interna, que podem resultar em aumento da car- pacidade dos sujeitos transitarem livremente de uma cate-
ga de trabalho que varia em função, dentre outros fatores, goria para outra. Já no pensamento concreto ou situacional,
daqueles decorrentes da experiência. os sujeitos classificam os objetos não em categorias lógi-
Assim, a atividade, como fio condutor da análise cas, mas os incorporam às situações gráfico-funcionais
ergonômica, adota como base de sustentação o fundamen- reproduzidas de memória.
to e a gênese das experiências e das competências solicita- Vigotsky (1996) distinguiu duas formas fundamentais
das no processo do fazer e que estruturam as tarefas no de experiência que deram origem a dois grupos de concei-
contexto organizacional. tos diferentes, contudo interdependentes, o “científico” e o
Quando integramos no projeto de trabalho a noção de “espontâneo”. O grupo dos conceitos “científicos” tem sua
variabilidade (experiências, formação) a distância entre o origem nas atividades altamente estruturadas e especializa-
prescrito e o real toma um outro significado, o de campo de das da instrução escolar e são conceitos logicamente defi-
atividade de construção de resposta relevante, especialmente nidos. O grupo dos conceitos “espontâneos” emerge da re-
no que concerne ao processo de aprendizagem e à melhoria flexão do sujeito sobre a sua experiência cotidiana. Os con-
das condições de trabalho. A prescrição polariza uma for- ceitos “espontâneos”, segundo Vigotsky, seguem um cami-
ma de agir. nho ascendente em direção a uma maior abstração, deline-
A ausência do reconhecimento da interação, entre os pla- ando assim o caminho para os conceitos científicos no seu
nos do trabalho prescrito e do trabalho real, é um fator nega- desenvolvimento descendente em direção ao concreto.
tivo para a produtividade, pois, além de não favorecer um Nesta perspectiva, distinguimos duas formas possíveis
espaço adequado para o processo de aprendizagem necessá- de aprendizagem na formação de conceitos: uma sistema-
ria, nega todos os processos de regulação executados pelos tizada pela via da instituição escolar e, a outra, a aprendi-
operadores quando estes são os meios que permitem aos ope- zagem espontânea, decorrente das vivências do sujeito.
radores estabelecerem relações privilegiadas entre as infor- A compreensão destes conceitos quando da introdução
mações presentes no ambiente, suas próprias ações e seus de novas tecnologias, é importante, pois torna-se difícil não
resultados. Neste sentido, a integração dos resultados da aná- considerarmos neste processo os conceitos espontâneos dos
lise ergonômica constitui um suporte muito importante para operadores, quando são submetidos às novas tecnologias.
os processos de capacitação/qualificação dos operadores. Se tal dinâmica não é considerada, o processo de aprendi-
A análise ergonômica, quando abordada sob a ótica do zagem se inicia tendo como base os conceitos científicos
processo de aprendizagem e articulada com os diferentes que exigem maior capacidade de abstração. Entretanto,

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quando da introdução de uma nova tecnologia, o processo Assim, compreender a variabilidade, significa repensar
de formação deve se iniciar tomando como base o repertó- a reestruturação do trabalho, resgatando o papel do homem
rio oriundo dos “conceitos espontâneos”, retidos pela po- como sujeito desse processo, buscando o equilíbrio entre
pulação de trabalhadores, fazendo com que a passagem à suas capacidades e seus limites.
abstração seja facilitada. O processo conduzido desta for-
ma permite ao operador transitar do concreto ao abstrato e Referências
facilita a elaboração de ligações preferenciais nas situa-
ções de resolução de problemas. Abrahão, J. (1996). Ergonomia, Organização do trabalho e apren-
Esta possibilidade de abstração contribui favoravelmente dizagem. Em UFMG/Dep. Qualidade da Produção, Produ-
para a capacidade de antecipar os incidentes durante o pro- ção dos homens. (pp. 41-57) Belo Horizonte.
cesso, demonstrando, assim, o papel essencial dos opera- Engeström, Y. (1987). Learning by expanding. Helsinki: Orienta-
dores para gerir a distância entre o trabalho prescrito e aquele Konsultit.
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características singulares, mediante processos, muitas ve- Leontiev, A. (1964). O Desenvolvimento do Psiquismo. São Pau-
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Luria, A.R. (1994). O Desenvolvimento Cognitivo. São Paulo: Icone.
criatividade com anos de experiência socialmente distribu-
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almente, transformá-las, é indispensável dispor de um ins- Monoud, P. (1970). Structuration de l’instrument chez l’enfant.
trumento metodológico que possibilite, especialmente, apre- Delachaux et Niestlé, Lausanne.
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blemas, fornecendo parâmetros não só para a transforma- 245-252.
ção de sistemas técnicos, como também para a organização Vigotski, L.S. (1996). A formação social da mente. O desenvolvi-
do trabalho, a formação e a transferência de tecnologia. mento dos Processos Psicológicos Superiores. Em M. Cole, V.
John-Steiner, S. Scribner & E. Souberman (Orgs.) (J. Cipola
À Guisa de Conclusão Neto, L.S.M. Barreto & C.S. Afeche, Trads.) São Paulo: Martins
Fontes.
Quando integramos as noções de variabilidade, a dis- Weill-Fassina, A. (1990). Conduites Cognitives en Situation de
tância entre o previsto e o realizado toma outro significa- Travail. Em Dadoy, M., Henry. C.I., Hillan, B., Tressac, G.,
do, torna-se um fator positivo para a produtividade e incor- Troussier, J.F., Weill-Fassina, A. (Orgs.) Les analyses du
pora as competências do trabalhador. Segundo Wisner travail enjeux et formes. Paris: EREQ.
Weill-Fassina, A., Rabardel, P. & Dubois, P. (1993). Representations
(1987), uma noção muito mais fundamental da organiza-
pour l’action. Toulouse: Octares.
ção do trabalho, e muito mais temível em suas conseqüên-
Wisner, A. (1987). Por dentro do trabalho: Ergonomia, método e
cias, é a de uma referência tomada sobre um homem mé- técnica. (F. Gomide Vezza, Trad.) São Paulo: FTD/Oboré.
dio, bem treinado, que trabalha em um posto estável. Wisner, A. (1994a). A inteligência no trabalho: textos seleciona-
Desvendar o caminho pelo qual o operador constrói os dos de Ergonomia. (I. Ferreira & R. Leal, Trads.) São Paulo:
problemas com os quais é confrontado pode constituir uma Fundacentro.
alternativa para melhor explicar os erros e acidentes do que, Wisner, A. (1994b) La cognition et l´action située: conséquences
simplesmente, identificar as condições sob as quais os pro- pour l´analyse ergonomique de travail et l´anthropotechnolo-
blemas são resolvidos. Desta forma, salientamos a contri- gie. Association canadieenne d´ergonomie, I: 1-13; Ergonom-
buição da análise ergonômica do trabalho que pode gerar ics, 38: 1542-1583.
recomendações nesta direção, pois ela possibilita a com- Wisner, A. (1996). Questions épistémologiques en ergonomie et
en analyse du travail. Em: Daniellou, F. (Org.). L’ergonomie
preensão das estratégias de construção do problema, as li-
en quête de ses principes – Débats épistémologiques. Toulouse:
mitações da organização do trabalho e os elementos a se- Octarès Editions.
rem incorporadas no treinamento. Wisner, A. (1997). Aspects psychologiques de l’anthropotechnolo-
Podemos finalizar afirmando que ao assimilarmos e in- gie. Le Travail Humain, 60 (3), 229-254.
tegrarmos a noção de variabilidade, incluímos, também, o
dimensionamento dos postos de trabalho, o ritmo biológi- Recebido em 14.01.2000
co, a lateralidade, a antropometria, o ambiente físico, bem Primeira decisão editorial em 15.02.2000
como, as estratégias organizacionais adotadas nos projetos Versão final em 23.08.2000
industriais/organizacionais. Aceito em 10.10.2000 !

54 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Abr 2000, Vol. 16 n. 1, pp. 049-054

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