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LITERATURA DE AUTORIA FEMININA: IDENTIDADE E DIFERENÇA1

ZOLIN, Lúcia Osana


Docente da Universidade Estadual de Maringá

RESUMO

O presente artigo ocupa-se de apresentar à comunidade o projeto de pesquisa em


desenvolvimento “Literatura de autoria feminina: identidade e diferença”. Trata-se de uma
pesquisa que envolve três docentes do DLE-UEM, além da coordenadora, e sete discentes.
Inscreve-se no âmbito dos estudos de gênero e tem por objetivo central analisar um corpus
constituído de narrativas de autoria feminina, por meio de um olhar crítico atento às marcas
discursivas que apontam para as particularidades desses textos. Dessa forma, ao clássico
conjunto de valores instituídos e legitimados que caracterizam a literatura canônica —
marcados por preconceitos de cor, de raça, de classe social e de sexo — busca-se acrescentar
outros, resgatados de textos literários escritos por mulheres e reavaliados no contexto de
tendências críticas contemporâneas, como a crítica feminista. Trata-se, portanto, de refletir
sobre a literatura por meio de um processo orientado pelo intuito de revisão dos pressupostos
estéticos e ideológicos que regem a formação do cânone literário brasileiro. Para realizarmos
esta tarefa, estamos buscando subsídios em discussões empreendidas por teóricos interessados
em debater e questionar o primado da identidade sobre a diferença, por meio da
problematização de conceitos como feminismo, identidade, diferença, cânone, desconstrução,
cultura, discurso, etc.

PALAVRAS-CHAVE: autoria feminina, feminismo, identidade, diferença., cânone.

INTRODUÇÃO
No contexto do pensamento feminista, desenvolvido a partir de 1960/70, muitos são os
estudiosos(as), e intelectuais em geral, que têm atuado como agentes de um discurso crítico
que tem feito emergir a consciência histórica da mulher como ser marginalizado nas e pelas
práticas sociais hegemônicas. Trata-se do desejo de redefinição de identidades (estético-
social-histórico-políticas) construídas e cristalizadas nos espaços tradicionais de enunciação,
que impõe o debate sobre a diferença e sobre os sentidos de valores como liberdade, cidadania
e ética, negociados no interior de nossos discursos.
Em se tratando de crítica literária, muitas tendências, nas últimas décadas, têm
colocado a relação texto/sociedade no centro de suas discussões. No que se refere à posição

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Área Temática De Extensão: Cultura
ÁREA DO CNPq: Lingüística, Letras E Artes.
social da mulher e sua presença no universo literário, esta visão deve muito ao feminismo, que
pôs a nu as circunstâncias sócio-históricas entendidas como determinantes na produção
literária. Do mesmo modo que fez perceber que o estereótipo feminino negativo, largamente
difundido na literatura e no cinema, constitui-se num considerável obstáculo na luta pelos
direitos da mulher.
Estudos acerca de textos literários canônicos mostram inquestionáveis
correspondências entre sexo e poder: as relações de poder entre casais espelham as relações de
poder entre homem e mulher na sociedade em geral; a esfera privada acaba sendo uma
extensão da esfera pública. Ambas são construídas sobre os alicerces da política, baseados nas
relações de poder.
Também a crítica literária feminista é profundamente política na medida em que
trabalha no sentido de interferir na ordem social. Trata-se de um modo de ler a literatura
confessadamente empenhado, voltado para a desconstrução do caráter discriminatório das
ideologias de gênero, construídas, ao longo do tempo, pela cultura. Ler, portanto, um texto
literário tomando como instrumentos os conceitos operatórios fornecidos pela crítica feminista
implica investigar o modo pelo qual tal texto está marcado pela diferença de gênero, diferença
esta que não existe fora do contexto ideológico, mas como parte de um processo de
construção social e cultural.
Considerando as circunstâncias sócio-históricas como fator determinante na produção
da literatura, uma série de críticos(as) feministas, principalmente na França e nos Estados
Unidos, tem promovido, desde a década de 1970, debates acerca do espaço relegado à mulher
na sociedade, bem como das conseqüências, ou dos reflexos daí advindos, para o âmbito
literário.
O objetivo desses debates, se os contemplarmos de modo amplo, é a transformação da
condição de subjugada da mulher. Trata-se de tentar romper com os discursos sacralizados
pela tradição, nos quais a mulher ocupa, à sua revelia, um lugar secundário em relação ao
lugar ocupado pelo homem. Tais discursos não só interferem no cotidiano feminino, mas
também acabam por fundamentar os cânones críticos e teóricos tradicionais e masculinos que
regem o saber sobre a literatura. Assim, a crítica feminista trabalha no sentido de desconstruir
a oposição homem/mulher, entendida no mesmo sentido que a relação dominador/dominada,
numa espécie de versão do pós-estruturalismo.
A pesquisa que estamos desenvolvendo se insere no contexto da crítica feminista.
Trata-se, inicialmente, de nos acercarmos de argumentos teóricos capazes de nos subsidiar,
num segundo momento, no trabalho de análise e interpretação de textos literários de autoria
feminina. O objetivo é refletir sobre as peculiaridades destes textos que, por transgredirem, na
maioria das vezes, os valores instituídos e legitimados das obras canônicas, concorrem para
com a afirmação do seu não-valor estético.
Estamos contando, no desenvolvimento deste projeto, com a colaboração de dez
outros pesquisadores, sendo três docentes e sete discentes. São eles: Profª. Dra. Miriam Hisae
Yaegashi Zappone, Profª. Dra. Rosa Maria Graciotto Silva, Profª. Ms. Eliane Batista Costa e
os acadêmicos do curso de Letras da UEM Andrea Maller Pires das Neves, Cássia Rita
Conejo, Carolina Maldonado Teodoro, Ernandes Gomes Ferreira, Patrícia Bertachini Talhari,
Roberta Fresneda Vilibor e Marta Yumi Ando.

MATERIAL E MÉTODOS
O material usado no desenvolvimento do projeto é essencialmente bibliográfico. Os
métodos utilizados são: 1) leitura e fichamento de textos teóricos que, de alguma forma,
resgatam a problemática das relações de gênero, sejam eles de cunho filosófico, sejam de
cunho crítico-literário; 2) discussão dos textos acima referidos pelos participantes do projeto
em reuniões especialmente convocadas para este fim; 3) elaboração de artigos que
contemplem análises de textos literários de autoria feminina realizadas à luz das discussões
referidas.

RESULTADOS
Considerando que nosso projeto está, ainda, em sua fase inicial, não temos os
resultados concluídos, no entanto espera-se, para os próximos meses, a elaboração de cerca de
onze artigos (um para cada participante do projeto) desenvolvidos sobre o modo de
construção de figuras femininas em narrativas de autoria feminina. As obras selecionadas
como corpus destes artigos são: A ousadia dessa mulher (romance), Bisa Bia, Bisa Bel, de
Ana Maria Machado; Angélica e Fazendo Ana Paz (narrativas infanto-juvenis), de Lygia
Bojunca Nunes; “A moça tecelã” (conto), de Marina Colassante; As virtudes do tempo
(romance), de Inês de Oliveira Rodrigues Gonçalves; As parceiras (romance), de Lya Lyft; O
boca do inferno (romance), de Ana Miranda; Valsa negra (romance), de Patrícia Melo; “O
grande-pequeno Jozú” (conto), de Hilda Hilst; e Quarto de despejo, de Carolina Maria de
Jesus.

DISCUSSÃO
Se nos Estados Unidos e na Europa, o início dos estudos ligados à mulher e sua
representação na literatura datam dos anos 70, no Brasil até recentemente, o tema não era
considerado objeto legítimo de pesquisa. Segundo o Boletim do GT Mulher e Literatura da
ANPOLL (2000), a consolidação de trabalhos desta natureza nas instituições acadêmicas
brasileiras data de meados dos anos 80, quando grupos de pesquisadores passaram a se reunir
para desenvolver estudos, apresentar resultados de pesquisas e discutir textos teóricos
relativos ao tema.
Esta consolidação deveu-se à criação de associações de estudo, grupos de trabalho e de
seminários sobre o tema: em 1984, foi criada a Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL), em que se integra o GT Mulher e Literatura,
composto por professores pesquisadores do tema; em 1985, foi criado o Seminário Nacional
Mulher & Literatura que se caracteriza pela divulgação de trabalhos e pesquisas nos meios
acadêmicos, por seu caráter interdisciplinar, pelo deslocamento por diferentes instituições
brasileiras de ensino superior e pelo empenho em possibilitar a atualização dos pesquisadores
do tema por meio de intercâmbio com especialistas nacionais e estrangeiros; a Associação
Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), criada em 1986, também tem contribuído
para a consolidação dos estudos de gênero no Brasil, na medida em que boa parte dos
trabalhos apresentados nos encontros refere-se a esta temática, constituindo-se, portanto, num
espaço privilegiado para divulgação de pesquisas.
Na avaliação da coordenação do GT Mulher e Literatura da ANPOLL, estas diversas
oportunidades de encontro dos pesquisadores do tema têm permitido o intercâmbio de
experiências entre pesquisadores de diversas instituições e nacionalidades, a divulgação de
resultados de pesquisas e trabalhos críticos, além do estabelecimento de linhas de pesquisa
nos cursos de pós-graduação e departamentos de língua e literatura, constituindo-se em
referência obrigatória para a área.
O resultado positivo destas iniciativas pode ser constatado tendo em vista o substancial
aumento de seminários específicos sobre a mulher, de cursos de extensão e pós-graduação, de
teses e monografias e de publicações sobre o tema. Trata-se de um trabalho voltado para a
reconstrução e crítica de modelos tradicionais que tornam compreensiva e instigadora a
perspectiva feminina nos estudos literários e que, em última análise, tem revertido
progressivamente o quadro de carência que caracterizava os estudos ligados ao tema Mulher e
Literatura no Brasil.
As linhas de pesquisa em que enquadram estes trabalhos, derivadas de duas grandes
tendências da crítica feminista internacional, a anglo-americana e a francesa, são as seguintes:
1) Resgate: a) pesquisa e constituição de um corpus significativo da produção
desconhecida de literatura de autoria feminina do passado, tornadas invisíveis pela
mediação crítica, quase exclusivamente masculina, a partir de uma postura
revisionista, que dê um novo olhar sobre velhos textos. b) Estudo deste corpus para
desconstruir os saberes hegemônicos, buscando outros.
2) Teorias e críticas: Aprofundamento de leituras teóricas que subsidiem o discurso crítico
com vistas a análises feministas do fenômeno literário em seu sentido restrito, de obras
específicas, e, no sentido amplo,em termos de inserção de obras no contexto da história
literária e crítica e no movimento geral da cultura, a partir de pontos de vista que levem em
conta identidades e diferenças no contexto nacional e transnacional.
3) Interdisciplinaridade: Leitura da produção literária de autoria feminina e dos
modos de representação da mulher marcados por interrelações discursivas entre
literatura e as disciplinas que contribuam para esclarecer a posição histórica, política,
social, psíquica ou outras, das escritoras.
4) Representação: Análise dos modos de representação da mulher nos textos literários
produzidos por mulheres ou homens a partir de uma visão crítica feminista.

O crescimento de estudos ligados a estas linhas de pesquisa, desenvolvidos por


pesquisadoras(es) de todo o país, atestados pelas constantes publicações de antologias,
dicionários, ensaios, coletâneas de estudos críticos, anais de congressos, etc., permite falar,
nesse início de século, na crítica literária feminista no Brasil como algo consolidado.
No entanto, a despeito disso, os escritos de mulheres, assim como aqueles
relacionados às minorias étnicas e sexuais e dos segmentos sociais menos favorecidos, são
relativamente pouco difundidos na maioria das instituições brasileiras. É como se essas vozes
Outras não fossem dignas de figurar nos currículos escolares, inclusive naqueles dos cursos
de Letras.
Nesse sentido, nosso projeto, que se insere na linha de pesquisa “Teorias e críticas”,
no contexto da Crítica feminista, pretende contribuir para com o trabalho desenvolvido por
estudiosos(as) de diversas instituições, nacionais e estrangeiras, acerca do tema “Mulher e
Literatura”; estudiosos(as) esses(as) conscientes de que os alunos (e também o profissional
das Letras) podem e devem conhecer, não apenas os textos literários canônicos, mas também
outros tipos de textos, provenientes de outros segmentos sócio-culturais, a fim de que possam
se tornar leitores críticos, capazes de questionar ideologias e contribuir para mudanças de
mentalidades.

CONCLUSÃO
Como nosso projeto está em desenvolvimento, não podemos, ainda, falar em
conclusões; o que temos até o presente momento são hipóteses: ao discutir e analisar o modo
de construção das personagens femininas que constituem os textos literários selecionados
(suas ações, seus pressupostos ideológicos e o modo como são resolvidos os conflitos que
permeiam suas trajetórias), jogamos com a hipótese de que as escritoras questionam e/ou
transpõem os códigos estéticos e retóricos da literatura canônica, marcados por preconceitos
de cor, de raça e, sobretudo, de gênero. As estratégias mais recorrentes de que tais escritoras
lançariam mão a fim de desafiar o cânone literário e comportamental, erigido sobre os valores
ideológicos dominantes, é o que pretendemos reconhecer e apontar ao término da pesquisa.

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