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Uma estação no inferno

Artur Rimbaud
Antigamente, se bem me lembro, minha vida era um festim no qual todos os
corações exultavam, no qual corriam todos os vinhos.
Uma noite, sentei a Beleza em meus joelhos. - E achei-a amarga. - E injuriei-a.
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeiras. ó miséria, ó ódio, a vós é que foi confiado o meu tesouro!
Tudo fiz para que se desvanecesse em meu espírito a esperança humana.
Como um animal feroz, investi cegamente contra a alegria para estrangulá-la
Conjurei os verdugos para morder, na minha agonia, a culatra de seus fuzis.
Conjurei as pragas, para afogar-me na areia, no sangue. Fiz da desgraça a
minha divindade. Refocilei na lama. Enxuguei-me ao ar do crime. E preguei
boas peças à loucura.
E a primavera trouxe-me o horrível gargalhar do idiota. Ora, por último,
chegando a ponto de quase fazer o trejeito final, sonhei encontrar a chave do
festim antigo, no qual talvez recobraria o apetite.
A caridade é essa chave. - Esta inspiração prova que tenho sonhado!
"Sempre serás hiena, etc..." exclama o demônio que me coroou de tão amáveis
papoulas. "Vence a morte com todos os teus apetites, com todo o teu egoísmo
e todos os pecados capitais".
Ah! estou farto de tudo isso: - Mas, querido Satã, eu te conjuro a que não me
fites com pupila tão irritada! e à espera das pequenas covardias atrasadas, para
vós outros que admirais no escritor a ausência das faculdades descritivas ou
pedagógicas, para vós arranco algumas hediondas páginas do meu caderno de
condenado.
Mau Sangue
Herdo de meus antepassados, os gauleses, os olhos azuis-claros, a
fronte estreita, e a falta de jeito para a luta. Sinto que minhas roupas
são tão bárbaras quanto as deles. Apenas não unto a cabeleira.
Os Gauleses foram esfoladores de animais, queimadores de ervas, os
mais inábeis de seu tempo.
Deles, eu herdo: a idolatria e o amor ao sacrilégio; - oh! todos os
vícios: cólera, luxúria, - magnífica, a luxúria; - sobretudo mentira e
preguiça.
Detesto todas as profissões. Mestres e oficiais, todos campônios,
ignaros. A mão que empunha a pena equivale à que guia o arado. -
Que século de mãos! - Jamais me servirei das mãos! Depois, a
domesticidade leva demasiado longe. A honradez da mendicidade
exaspera-me. Os criminosos repugnam-me como castrados: quanto a
mim, estou intacto, e pouco se me dá.
Mas quem fez tão pérfida a minha língua que, até agora, tem guiado
e protegido a minha preguiça? Sem saber utilizar-me do corpo, e
mais ocioso que um sapo, tenho vivido por toda a parte. Não há
família na Europa que eu não conheça: - Estou falando de famílias
iguais à minha, que devem tudo à declaração dos Direitos do
Homem – Tenho conhecido cada filho-família!
***
Se possuísse antecedentes em um ponto qualquer da história de
França!
Mas não, nada.
Não ignoro que fui sempre de raça inferior. Não posso compreender
a revolta. Minha raça só se rebelará para saquear: como os lobos ao
animal que não mataram.
Recordo a história de França, filha primogênita da Igreja. Aldeão,
teria empreendido viagem à Terra Santa; vejo em pensamento
caminhos nas planícies suábias, panoramas de Bizâncio, muralhas de
Jerusalém: o culto de Maria, o enternecimento para com o
crucificado despertam em mim entre mil fantasias profanas. - Estou
sentado, leproso, sobre cacos de vasos e urtigas, junto a um muro
roído pelo sol. – Mais tarde, lansquenete, bivacaria sob as noites de
Alemanha.
Ah! mais ainda: danço o sabá numa incendiada clareira, com velhas

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e crianças.
Minhas lembranças detêm-se nessa terra e no cristianismo. Ver-meei
sempre nesse passado. Mas sempre sozinho; sem família; e, além
disso, que língua falarei? jamais me surpreendo nos concílios de
Cristo ou nos concílios dos Senhores, - representantes de Cristo.
Que era eu no século passado: só hoje torno a encontrar-me.
Acabaram-se os vagabundos, nada de guerras sem sentido. A raça
inferior cobriu tudo - o povo, como se diz, a razão; a nação, e a
ciência.
Oh! A ciência! Tudo se repete. Para o corpo e para a alma, - o
viático - temos a medicina e a filosofia, - os remédios das boas
mulheres e as canções populares apropriadas. E as distrações dos
príncipes e os jogos que eles interditam! Geografia, cosmografia,
mecânica, química ...
A ciência, a nova nobreza! O progresso. O mundo marcha. Por que
não havia de girar?
É a visão dos números. Vamos pata o Espírito. É certíssimo, este
oráculo, que eu faço. Compreendo, e não sabendo explicar-me sem
palavras pagãs, preferiria silenciar.
***
Retorna o sangue pagão! O Espírito está próximo; por que Cristo
não me ajuda, dando à minha alma nobreza e liberdade? Ai, o
Evangelho morreu. O Evangelho! O Evangelho.
Espero Deus avidamente. Sou de raça inferior por toda a eternidade.
Estou na praia armoricana. Que as cidades se iluminem à noite.
Minha jornada está realizada; abandono a Europa. A aragem
marinha queimar-me-á os pulmões; os climas perdidos tostar-me-ão.
Nadar, mordiscar ervas, caçar, fumar, sobretudo; beber licores fortes
como chumbo derretido, - qual faziam esses queridos antepassados
em volta do fogo
Retornarei com membros de aço, negra a epiderme, as pupilas
acesas: por minha máscara julgar-me-ão de um raça forte. Possuirei
ouro: serei ocioso e brutal. As mulheres cuidam destes ferozes
enfermos que regressam dos países quentes. Participarei dos
negócios políticos. Salvo.
Agora estou amaldiçoado, horroriza-me a pátria. O melhor é um
sono, completamente bêbado, na praia.
***
Ninguém parte. – Percorramos novamente os caminhos daqui,
carregado de meu vício que aprofundou sua raízes de sofrimento a
meu lado, desde a idade da razão, - que sobe ao céu, me golpeia,
derruba, arrasta.
A derradeira inocência e a derradeira timidez. Está dito. Não
entregar ao mundo meus desgostos e minhas traições.
Vamos! A marcha, o fardo, o deserto, o tédio e a cólera.
A quem me alugar? Que besta é preciso adorar? Que santa imagem
atacar? Que corações destruirei? Que mentira devo sustentar? Sobre
que sangue caminhar?
Mas, é melhor evitar a justiça. – A vida dura, o simples
embrutecimento, - levantar, o punho seco, a tampa do caixão, sentarse,
afogar. Assim desaparecem a velhice e os perigos: o terror não é
francês.
Ah! Sinto-me tão abandonado que estou oferecendo a qualquer
divina imagem – impulsos para a perfeição.
Ó minha abnegação, ó maravilhosa caridade! aqui em baixo,
embora!
De profundis, Domine, que estúpido sou!
***
Menino, eu admirava o presidiário intratável sobre quem se fecha
sempre a porta da prisão; visitava os albergues e as pousadas que ele
havia santificado com sua passagem; via com sua idéia o céu azul e
o trabalho florido do campo; pressentia sua fatalidade nas cidades.

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Era mais forte que um santo, tinha mais bom-senso que um viajante,
- e ele, só ele! Como testemunho de sua glória e de sua razão.
Nas estradas, nas noites de inverno, sem teto, sem roupa, sem pão,
uma voz oprimia meu coração gelado: "Fraqueza ou força: repara, é
a força. Não sabes para onde vais, nem porque vais, entra por toda a
parte, responde a tudo. Não lograrão matar-te a menos que já sejas
um cadáver". Pela manhã tinha o olhar tão perdido e o aspecto tão
morto, que aqueles que me encontravam possivelmente não me
viam.
Nas cidades, a lama parecia-me de súbito vermelha e negra, como
um espelho quando a lâmpada circula na peça contígua, como um
tesouro na floresta! Boa sorte, exclamava eu, e via um mar de
labaredas e fumaça no céu, e, à esquerda, à direita, todas as riquezas
ardendo como um milhar de relâmpagos.
Mas a orgia e a camaradagem das mulheres me estavam proibidas.
Nem ao menos um companheiro. Via-me diante de uma multidão
exasperada, em frente ao pelotão de fuzilamento, chorando a
desgraça de que não houvessem podido compreender, e perdoando!
– Como Joana d'Arc! - "Sacerdotes, professores, mestres, vós vos
enganais entregando-me à Justiça. Jamais pertenci a este povo daqui
de baixo; jamais fui cristão; eu pertenço à raça que cantava no
suplício; não compreendo as leis; não tenho senso moral; sou um
bruto: vós vos enganais".
Sim, tenho os olhos cerrados para a vossa luz. Sou uma, um negro.
Contudo posso salvar-me. Vós sois falsos negros; vós, maníacos,
ferozes, avarentos. Mercador, tu és negro; magistrado, tu és negro;
general, tu és negro; imperador, velho prurido, tu és negro; tu
bebeste um licor não selado, da fábrica de Satã. – Este povo está
inspirado pela febre e pelo câncer. Mutilados e velhos são de tal
modo respeitáveis que pedem que os cozinhem. – O mais sábio é
abandonar este continente, onde ronda a loucura para prover de
reféns estes miseráveis. Entro no verdadeiro reino dos filhos de Can.
Conheço ao menos a natureza? Conheço-me a mim próprio? – Basta
de palavras. Sepulto os mortos em meu ventre. Gritos, tambor,
dança, dança, dança, dança! Nem sequer considero que ao
desembarcarem os brancos, cairei no nada.
Fome sede, grito, dança, dança, dança, dança!
***
Os brancos desembarcam. O canhão! É preciso submeter-se ao
batismo, vestir-se, trabalhar.
Recebi no coração o toque da graça. Ah! Não o havia previsto!
Nunca pratiquei o mal. Os dias vão ser suaves, apagar-se-me-á o
remorso. Não terei suportado os tormentos da alma quase morta para
o bem, onde sobe a luz severa como os círios fúnebres. A sorte do
filho-família, esquife prematuro coberto de límpidas lágrimas. Certo,
a libertinagem é estúpida, o vício é estúpido; é preciso arrojar
distante a podridão. Mas o relógio nunca dará unicamente as horas
de dor! Vou ser raptado qual uma criança, para brincar no paraíso,
esquecido de todas as desgraças?
Depressa! há outras vidas? - O sono em meio às riquezas é
impossível. A riqueza foi sempre bem público. Só o amor divino
outorga as chaves da ciência. Vejo que a natureza não é senão um
espetáculo de bondade. Adeus quimeras, ideais, erros!
O canto razoável dos amigos eleva-se do navio salvador: é o amor
divino. - Dois amores! Posso morrer de amor terrestre, morrer de
sacrifício. Deixei almas cuja pena crescerá com minha partida!
Escolheste-me entre náufragos; os que ficam são meus amigos?
Salvei-os!
Despertou-me a razão. O mundo é bom. Abençoarei a vida. Amarei
meus irmãos. Não são promessas infantis. Nem esperança de escapar
à velhice e à morte. Deus me dá força e eu louvo a Deus.
***

3
O tédio já não é o meu amor. As cóleras, a libertinagem, a loucura, -
dos quais conheço todos os impulsos e todas as conseqüências - todo
o meu fardo está deposto. Apreciemos sem vertigem a extensão de
minha inocência.
Já não serei capaz de implorar o consolo de uma bastonada. Não me
acredito a caminha de umas núpcias com Jesus Cristo por sogro.
Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus. Quero a liberdade
na salvação: como alcançá-la? Os gostos fúteis abandonaram-me. Já
não preciso de sacrifícios nem de amor divino. Não tenho saudades
do século dos corações sensíveis. Cada um tem sua razão, desprezo
e caridade: retenho meu lugar no alto desta angélica escala de bomsenso.
Quanto à felicidade estabelecida, doméstica ou não... não, não
posso. Estou demasiado gasto, demasiado débil. A vida floresce pelo
trabalho, velha verdade: quanto a mim, minha vida não é
suficientemente pesada, voa e flutua distante, por cima da ação, esse
adorado eixo do mundo.
Como me sinto solteirona, falto de coragem para amar a morte.
Se Deus me concedesse a calma celeste, aérea, a oração, - como os
antigos santos -. Os santos! os fortes! os anacoretas, os artistas tais
quais já não precisamos.
Farsa contínua.! Minha inocência me faria chorar. A vida é a farsa
que todos têm que representar.
***
Basta! eis a punição. - Em marcha!
Ah! queimam os pulmões, latejam as têmporas! A noite tomba em
meus olhos, em pleno sol! O coração... os membros...
Aonde vamos? ao combate? Sou fraco! os outros avançam. Os
ferros, as armas... o tempo !...
Fogo! Fogo sobre mim! Lá! para onde me dirijo. - Covardes - Matome!
Arrojo-me entre as patas dos cavalos!
- Habituar-me-ei a isso.
Esta seria a vida francesa, o caminho da honra!
Noite de Inferno
Bebi um grande gole de veneno. - Três vezes bem-dito o conselho
que até mim chegou! Abrasam-se-me as entranhas. A violência do
veneno convulsiona-me os membros, desfigura-me, atira-me ao solo.
Morro de sede, sufoco, não posso gritar. É o inferno, a condenação
eterna! Olhai como o fogo cresce. Queimo como devo queimar! Sai,
demônio!
Havia entrevisto a conversão ao bem e à felicidade, a salvação.
Posso descrever a visão? O ar do inferno não tolera hinos! Eram
milhões de criaturas encantadoras, um suave concerto espiritual, a
força e a paz, as nobres ambições, que sei eu?
As nobres ambições!
E é ainda a vida! - Se a condenação é eterna! Um homem que quer
mutilar-se está condenado, não é assim? Acredito-me no inferno,
logo estou nele. É o cumprimento do catecismo. Sou escravo de meu
batismo. Pais, fizestes a minha desgraça e a vossa! Pobre inocente! -
O inferno nada pode contra os pagãos. - É a vida. Mais tarde, as
delícias da condenação serão mais profundas. Um crime, depressa,
que as leis humanas me precipitem no nada.
Cala-te, mas cala-te!... Esta é a vergonha, esta a repreensão: Satã que
diz que o fogo é ignóbil, que minha cólera é terrivelmente louca. -
Chega!... Segredam-me erros, magias, falsos perfumes, músicas
pueris. - E dizer-se que possuo a verdade, que vejo a justiça: tenho
um juízo são e firme, estou pronto para a perfeição... Orgulho. –
Seca-me a pele da cabeça. Piedade! Senhor, eu tenho medo. Tenho
sede, tanta sede! Ah! a infância, a erva, a chuva, o lago sobre as
pedras, a claridade da lua quando o campanário tocava meia-noite...
O diabo está no campanário, a esta hora. Maria! Virgem Santa!... -
Horror de minha idiotice.
Lá longe, não há almas honestas que me desejem o bem?... Vinde...

4
Tenho um travesseiro sobre a boca, não me ouvem, são fantasmas.
A1ém disso, que ninguém se aproxime. Cheiro a queimado, é certo.
As alucinaç5es são inumeráveis. É a que sempre tive: nenhuma fé na
história, esquecimento dos princípios. Calar-me-ei; poetas e
visionários sentiriam ciúmes. Sou mil vezes mais rico, sejamos
avaros como o mar.
Ah! o relógio da vida parou neste instante. Já não estou no mundo. -
A teologia é séria, o inferno está sem dúvida em baixo - e o céu no
alto. - Êxtase, pesadelo, sonho em meio a um ninho de labaredas.
Quanta malícia na atenção no campo... Satã, Ferdinando, corre com
os grãos selvagens... Jesus caminha sobre sarças ardentes, sem
dobrá-las... Jesus caminhava sobre as águas revoltas. A lanterna nolo
mostrou de pé, branco e as tranças negras, sobre uma onda de
esmeralda...
Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais,
morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, o nada. Sou mestre
em fantasmagorias.
Escutai!
Possuo todos os talentos. - Aqui não há nada e há alguém: não
quisera desperdiçar o meu tesouro. - Desejais que eu desapareça, que
mergulhe à procura do anel? Desejais? Fabricarei ouro, remédios.
Confiai em mim, a fé conforta, guia, cura. Vinde todos, - até as
criancinhas, - para que vos console, para que vos prodigue o seu
coração. - O coração maravilhoso! - Pobres homens, trabalhadores!
Não peço. orações; serei feliz apenas com vossa confiança.
- E pensemos em mim. Isto me faz ter raras saudades do mundo.
Minha vida foi somente doces loucuras, é lamentável.
Bah! façamos todas as caretas imagináveis.
Decididamente, estamos fora do mundo. Já não há ruídos.
Desapareceu-me o tato. Ah! meu castelo, minha Saxônia, meu
bosque de salgueiros. As tardes, as manhãs, as noites, os dias ...
Estou exausto!
Deveria ter o meu inferno pela cólera, meu inferno pelo orgulho, - e
o inferno da preguiça; um concerto de infernos.
Morro. de cansaço. É o túmulo, vou para os vermes, horror de
horrores! Satã, farsante, queres disso1ver-me com teus feitiços?
Exijo. Exijo! um golpe de tridente, uma gota de fogo.
Ah, sair de novo para a vida! Contemplar nossos aleijões! E esse
veneno, esse beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade
do mundo! Deus meu, piedade, esconde-me, estou doente! - Estou
escondido e ao mesmo tempo não o estou.
É o fogo que se 1evanta com o seu condenado.
Delírios
I
Virgem louca
O esposo infernal
Ouçamos a confissão de um Companheiro do inferno:
"Ó divino Esposo, meu Senhor, não repilas a confissão da mais
triste de tuas servas. Estou perdida. Estou bêbada. Estou impura.
Que vida!"
"Perdão, divino Senhor, perdão! Ah! perdão! Quantas lágrimas! E
quantas lágrimas ainda espero!"
"Mais tarde, conhecerei o divino Esposo!
Nasci submissa a Ele! - O outro pode bater-me agora!"
"No momento, estou no fundo do mundo, ó minhas amigas!.. não,
não sois minhas amigas... Jamais delírios nem torturas semelhantes...
É idiota:"
"Ah! sofro, grito. Sofro de verdade. Porém tudo me é permitido,
carregada de desprezo dos mais desprezíveis corações".
"Enfim, façamos esta confidência, com a reserva de repeti-la vinte
vezes ainda, - tão morta, tão insignificante!"
"Sou escrava do Esposo infernal, aquele que perdeu as virgens

5
loucas. É esse demônio mesmo. Não é um espectro, não é um
fantasma, Mas a mim, que perdi a sabedoria, que estou condenada e
morta no mundo, - não me matarão! Como vo-lo descrever! Já nem
mesmo sei falar. Estou de luto, choro, tenho medo. Um pouco de ar,
Senhor, se assim o desejas!"
"Estou viúva...- Estava viúva...- Sim, fui muito honesta antigamente
e não nasci para tornar-me esqueleto!... - Ele era quase uma
criança... Seduziram-me as suas misteriosas delicadezas. Esqueci
todo o meu dever humano para segui-lo. Que vida! A verdadeira
vida está ausente. Não estamos no mundo. Vou aonde vai ele, é
preciso. E com freqüência ele se encoleriza contra mim, contra mim,
a pobre alma. O Demônio! - É um demônio, vós o sabeis, não é
um homem".
"Ele diz: "Não amo as mulheres: sabemos que o amor está por ser
reinventado. Já não podem desejar senão uma posição segura.
Alcançada, o coração e a beleza são postos à margem: não resta
senão álgido desdém, o alimento do casamento, hoje, Ou então vejo
mulheres, com os sinais da felicidade, mulheres das quais eu poderia
fazer boas amigas, devoradas por brutos desde o primeiro momento
sensíveis como fogueiras"...
"Ouço-o fazer da infâmia uma glória, da crueldade um encanto". Eu
sou da raça antiga: meus pais eram escandinavos: traspassavam-se
as costelas, bebiam o próprio sangue. - Ferirei todo o meu corpo,
tatuar-me-ei, quero ser horrível como um mongol: verás, urrarei em
plena rua. Quero ficar louco de raiva. Nunca me mostres jóias:
arrastar-me-ia e me contorceria sobre a relva. Minha riqueza,
quisera-a toda enodoada de sangue. Nunca hei de trabalhar..." Certas
noites, seu demônio apoderando-se de mim, nós rodávamos, eu
lutava com ele! - Às noites, freqüentemente bêbado, escondia-se nas
ruas ou nas casas para assustar-me mortalmente. - "Cortar-me-ão na
verdade o pescoço; será asqueroso". Oh! esses dias em que ele quer
caminhar com aspecto de crime!"
"Algumas vezes fala, numa espécie de patoá enternecido que traz o
arrependimento, dos infelizes que certamente existem, dos trabalhos
penosos, das partidas que despedaçam os corações. Nas tascas em
que nos embriagávamos, punha-se a chorar ao pensar nos que nos
rodeiam, rebanho da miséria. Erguia os bêbados nas negras ruas.
Tinha piedade de uma mãe perversa para com os filhinhos. -
Portava-se com uma graça de menina, a caminho do catecismo. -
Afetava tudo saber: comércio, arte, medicina. - Eu o seguia, era
preciso!
"Eu via toda a decoração de que, em espírito, ele se rodeava;
vestidos, panos, móveis: eu lhe emprestava armas, outro rosto. Eu
via tudo o que lhe interessava, como ele quisera criá-lo para si
próprio. Quando me parecia que seu espírito estava inerte, eu o
acompanha, por mim mesmo, em ações estranhas e complicadas,
longe, boas ou más: estava perfeitamente segura de que nunca
penetraria em seus mundo. Ao lado de seu corpo amado adormecido,
quantas horas da noite não velei, perguntando-me porque tanto
porfiava ele em evadir-se da realidade. Jamais homem algum fez tal
voto. Advertia-me, - sem temer por ele - de que bem podia ser um
grave perigo para a sociedade. - Acaso possuirá segredos para
transformar a vida? Não, não faz mais que procurá-los, respondia a
mim mesmo. Sua caridade está enfeitiçada e retém-me prisioneira.
Nenhuma outra alma a não ser a minha teria bastante força - força de
desespero! - para suportá-la, para ser protegida e amada por ele.
Além disso, não o imaginava com outra alma: vê-se seu Anjo, nunca
o Anjo de nenhum outro, creio eu. Eu habitava em sua alma como
em um palácio que se desocupou para não se ver nele uma pessoa
menos nobre que vós: eis tudo. Ai! eu dependia por completo dele.
Mas, que queria ele de minha existência opaca e covarde? Não me
tornava melhor, se não me fazia morrer! Tristemente despeitada, eu

6
lhe disse algumas vezes:
"Compreendo-te". Ele dava de ombros.
"Assim, como renovasse sem cessar meu sofrimento, e sentindo-me
a meus próprios olhos ainda mais perdida, - como diante de todos os
olhos que quisessem contemplar-me se não estivesse condenada para
sempre ao esquecimento de todos - aumentava cada vez mais minha
fome de sua bondade. Seus beijos e abraços eram um céu, um
sombrio céu no qual eu entrava, e no qual desejaria que me
abandonasse, pobre, surda, muda, cega. Eu começava a habituar-me.
Considerava que éramos duas crianças boas; livres para passear no
Paraíso da tristeza. Compreendíamo-nos. Comovidos, trabalhávamos
juntos. Mas, após uma penetrante carícia, ele observava: Quando eu
me for, que estranho te parecerá tudo porque tens passado. Quando
já não tenhas meus braços em torno de teu pescoço, mas meu
coração para reclinar-te, nem esta boca sobre teus olhos. Porque um
dia terei que partir para muito longe. Além disso, tenho que ajudar a
outros: é meu dever. Ainda que isso não seja lá muito agradável...
amada criatura". Imediatamente eu o imaginava distante, e me sentia
presa de vertigem, relegada à mais espantosa das sombras: a morte.
Obrigava-o prometer que não me abandonaria. Vinte vezes me fez
essa promessa de amante. Era tão frívolo quanto eu, quando lhe
dizia:
"Compreendo-te".
"Ah! Jamais tive ciúmes dele. Não me abandonarás, creio. Que
faria? Não possui conhecimentos, nunca trabalhará. Quer viver
sonâmbulo. Bastaria a sua bondade e caridade para dar-lhe direito no
mundo real? Por um instante, esqueço o estado lastimoso em que
caí: ele far-me-á forte, viajaremos, caçaremos nos desertos,
dormiremos sobre o empedrado de cidades desconhecidas, sem
auxílios, sem queixa. Ou ao despertar, as leis e os costumes terão
mudado, - graças a seu mágico poder; ou o mundo, permanecendo
igual, abandonar-me-á a meus desejos, a minhas alegrias, a minhas
indolências. Oh! Dar-me-ás a vida de aventuras que existe nos livros
infantis a fim de me recompensar de quanto tenho sofrido? Não
posso. Ignoro meu ideal. Declara-me que sente remorsos, que tem
esperanças: isto não deve importar-me. Fala com Deus? Talvez
devesse eu mesma dirigir-me a Deus. Estou no mais profundo
abismo, e não sei mais rezar".
"Se me explicasse suas tristezas, compreende-las-ia melhor que suas
zombarias? Ele me ataca, durante horas a fio me humilha por tudo
que me tem comovido no mundo, e fica furioso se me ponho a
chorar".
“- Estás vendo este elegante jovem que entra numa bela e tranqüila
residência? Chama-se Duval, Dufor, Armando, Maurício, que sei
eu? Uma mulher decidiu-se a amar este perverso idiota: está morta;
certo é agora uma santa, no céu. Causarás a minha morte como ele
causou a dessa mulher. É nosso destino, o dos corações caridosos..,"
Ai! dias havia em que os homens afiguravam-se-lhe joguetes de
delírios grotescos; punham-se a rir horrivelmente, por muito tempo.
- Depois recuperava seus modos de jovem mãe, de irmã mais velha.
Se fosse menos selvagem, estaríamos salvos! Mas também sua
doçura é mortal. Estou submetida a ele. - Ah! Estou louca!".
"Um dia, talvez, desaparecerá maravilhosamente; mas preciso saber
se voará para algum céu, para que eu veja, ainda que por um pouco,
a assunção de meu amiguinho".
Que casal risível!
Delírios
II
Alquimia do Verbo
Para mim. A história de uma de minhas loucuras.
De há muito, eu me vangloriava de possuir todas as paisagens
possíveis, e achava irrisórias as celebridades da pintura e da poesia

7
modernas.
Extasiava-me diante de pinturas idiotas; portais, decorações. telas de
saltimbancos, desenhos, estampas populares; literatura fora de moda,
latim de igreja, livros eróticos sem ortografia, romances de nossos
avós, contos de fadas, livros infantis, velhas óperas, ditados tolos,
ritmos ingênuos.
Sonhava cruzadas, viagens de descobertas, das quais não existem
noticias, repúblicas sem história, guerras de religião sufocadas,
revolução de costumes, deslocamento de raças e continentes:
acreditava em tudo quanto era encantamento.
Inventei a cor das vogais! - A negro, E branco, I vermelho, O azul,
U verde. - Regulei a forma e o movimento de cada consoante, e me
vangloriei de inventar, com ritmos instintivos, um verbo poético
acessível, algum dia, a todos os sentidos. Eu me reservava a sua
tradução.
De início foi apenas um estudo. Escrevia os silêncios, as noites;
anotava o inexprimível. Fixava as vertigens.
***
Longe dos pássaros, dos rebanhos, dos camponeses,
Que bebia eu, joelhos em terra, naquela mata
Rodeada de ternos bosques de aveleiras,
Numa tênue e verde bruma, ao meio-dia?
Que podia beber neste jovem Oise,
-- Olmos sem voz, relva sem flores, céu aberto! -
Que podia beber nessas amareladas cabaças, longe. de
[minha choupana
Querida? Um licor de ouro que faz transpirar?
Eu era como um torpe emblema de hospedaria.
-- Uma tempestade desterrou o céu. Dentro da noite
A água dos bosques perdia-se entre as areias virgens,
O vento de Deus lançava pedras de gelo sobre os
[charcos;
Soluçando, eu contemplava ouro - e não pude beber.
***
Às quatro da manhã, no verão,
O amoroso cansaço dura ainda.
Sob os pequenos bosques se evola
O perfume da noite de festa.
Ao longe, na ampla oficina,
Ao sol das Hespérides,
Já se agitam - em mangas de camisa -
Os Carpinteiros.
Em seus Desertos de musgo, tranqüilos,
Trabalham preciosos lambris
Nos quais a cidade.
Pintará falsos céus.
Oh, por estes Obreiros, encantadores
Súditos de um rei da Babilônia,
Abandona um instante, ó Vênus,
Os Amantes de alma coroada!
Ó Rainha dos Pastores,
Leva aos trabalhadores a aguardente
Que lhes retempere as forças
***
A velha poesia tinha boa parte na minha alquimia do verbo.
Habituei-me à alucinação simples: via com toda a sinceridade uma
mesquita em lugar de uma fábrica, uma escola d tambores com anjos
por discípulos, caleches nas estradas do céu, um salão no fundo de
um lago; os monstros, os mistérios; um título de vaudeville
provocava terrores a meus olhos.
Depois expliquei os meus sofismas mágicos com a alucinação das
palavras!

8
Acabei considerando sagrada a desordem de meu espírito. Ocioso,
vítima de acabrunhante febre, invejava a felicidade dos animais - as
lagartas, que representam a inocência dos limbos, as toupeiras, o
sono da virgindade!
Meu caráter azedava-se. Despedia-me do mundo numa espécie de
romances:
CANÇÃO DA MAIS ALTA TORRE
Que venha, que venha,
O tempo de amar.
Juntei tanta paciência
Que esqueci para sempre.
Temores e sofrimentos
Aos altos céus evolaram-se.
E uma sede malsã
Escurece-me as veias
Que venha, que venha,
O tempo de amar.
Qual descampado
Deixado ao abandono,
Coberto e florido
De incenso e joio,
Sob o feroz zumbido
Das mais sujas moscas.
Que venha, que venha,
O tempo de amar.
Amei o deserto, os pomares, adustos, as tascas miseráveis, as
bebidas fracas. Arrastava-me por becos infectos e, olhos fechados,
oferecia-me ao sol, deus do fogo.
“General, se restar um velho canhão em tuas muralhas arruinadas,
bombardeia-me com petardos de terra seca. Às vitrines das
esplêndidas lojas! Nos salões! Obriga a cidade a comer a própria
poeira. Oxida as torneiras. Enche os toucadores do pó de rubis
ardentes..."
Oh! O moscardo embriagado no mictório da hospedaria, atraído pela
borragem, e que se dissolve a um raio de luz!
FOME
Se tenho apetite, é só
De terra e pedras.
Diariamente almoço ar,
Rocha, carvões e ferro.
Minhas fomes, voltai. Pastai, fomes,
O prado das sêmeas.
Atrai o alegre veneno
Das papoulas.
Comei cascalho britado,
Pedras de velhas igrejas;
Blocos erráticos de antigos dilúvios,
Pães semeados nos vales cinzentos.
***
O lobo uivava sob a folhagem,
Cuspindo as belas penas
De seu almoço de pássaros:
Como ele, assim me consumo.
As hortaliças, os frutos
Aguardam só a colheita;
Mas a aranha do sótão,
Esta vive de violetas.
Que eu adormeça! que eu arda
Nas aras de Salomão.
A fervura escorre pela ferrugem
E se mistura ao Cedrão.
Enfim, ó felicidade, ó razão, eu separava do céu o azul, que é meio

9
negro, e vivi, centelha de ouro da luz natureza. De alegre, eu
adquiria a mais burlesca e alucinante aparência que imaginar se
possa:
Ela foi achada!
Que? a eternidade.
É o sol desfeito
Nos longes do mar.
Minha alma eterna,
Cumpre a tua promessa
Apesar da noite solitária
E do dia em chamas.
Para isso desprende-te
Dos humanos laços
Dos vãos entusiasmos!
E voa ao acaso...
-- Nada de esperança,
Nem de orietur.
Ciência e paciência,
Certo é o suplício.
Lá se foi a manhã;
Brasas de cetim,
O vosso ardor
É a obrigação.
Ela foi achada!
-- Que? - A Eternidade.
É o sol desfeito
Nos longes do mar.
***
Tornei-me um ópera fabuloso: vi que todos os seres têm a fatalidade
da felicidade: a ação não é a vida, mas uma maneira de consumir
forças, um enervamento. A moral é uma fraqueza do cérebro.
Afigurava-se-me que a cada ser outras vidas correspondiam. Esse
senhor aí não sabe o que faz: é um anjo. Essa família é um ninho de
cães. Em presença de certos homens, falei em alta voz com um
momento de uma de suas outras vidas. - Assim, amei um porco.
Nenhum dos sofismas da loucura, - a loucura que se encarcera, - foi
esquecido por mim: poderia repeti-los todos, possuo o sistema.
Minha saúde viu-se ameaçada. Sobrevinha o terror. Caía no sono
durante dias seguidos e, uma vez desperto, continuava os sonhos
ainda mais tristes e, por um caminho cheio de perigos, a minha
fraqueza conduzia-me aos confins do mundo e da Ciméria, pátria
das sombras e dos turbilhões.
Tive que viajar, distrair os encantamentos concentrados em meu
cérebro. Do mar, que eu amava como se ele me fosse lavar de uma
mancha, via emergir a cruz consoladora. Eu havia sido condenado
pelo arco-íris. A Felicidade era a minha fatalidade, o meu remorso, o
meu verme: a minha vida sempre seria demasiado imensa para
dedicá-la à força e à beleza.
A Felicidade! Seus dentes, suaves à morte, advertiam-me ao cantar
do galo, - ad matutinum, ao Christus venit, nas mais sombrias
cidades:
Ó estações, ó castelos!
Que alma há sem defeitos?
Fiz a mágica experiência
Da felicidade, da qual ninguém escapa.
Saudemo-la a cada vez
Que canta o galo gaulês.
Ah! Já não terei mais desejos:
Pois ela velará por minha vida.
Este encanto criou corpo e alma
E dispersou os esforços.
Ó estações, ó castelos!

10
A hora de sua fuga, ah!
Será a hora da morte.
Ó estações, ó castelos!
***
Tudo isto passou. Hoje eu sei saudar a beleza.
O Impossível
Ah! essa vida de minha infância, o largo caminho sobre qualquer
tempo, sobrenaturalmente sóbrio, mais desinteressado que o melhor
dos mendigos, orgulhoso de não ter pátria, nem amigos, que
idiotice! - E somente agora o compreendo.
- Tive razão ao desprezar esses bons sujeitos que não perderiam
ocasião de uma carícia, parasitas do asseio e da saúde de nossas
mulheres, hoje que elas tão pouco se entendem conosco.
Tive razão de todos os meus desprezos: por isso me evado!
Evado-me?
Eu me explico.
Ainda ontem suspirava: "Céus! somos tantos os condenados cá em
baixo! Quanto a mim faz tanto tempo que pertenço a essa legião!
Conheço-os um por um. Aliás nos reconhecemos sempre;
detestamo-nos. Ignoramos a caridade Somos, porém, corteses;
nossas relações com o mundo corretíssimas". É assombroso. O
mundo! Os mercadores, os ingênuos! - Não estamos desonrados. -
Mas os eleitos, como nos receberiam? Pois há criaturas intratáveis e
joviais, os falsos eleitos, posto que necessitemos audácia ou
humildade para abordá-las. São os únicos eleitos. Não são os
abençoadores!
Ao recobrar dois cêntimos de razão, - isso passa logo!- constato que
os meus males vêm de não haver a tempo refletido que estamos no
Ocidente. Os pântanos ocidentais! Não que acredite alterada a luz,
gasta a forma, desviado o movimento... Bom! Eis que meu espírito
quer a todo o transe ocupar-se com todos os desenvolvimentos
cruéis que sofreu o espírito desde a morte do Oriente... Meu espírito
assim o quer!
...Acabaram-se os dois cêntimos de razão! O espírito é autoridade,
ele exige que eu permaneça no Ocidente. Seria preciso fazê-lo calar
para eu terminar como desejara.
Mandava ao diabo as palmas dos mártires, os esplendores da arte, o
orgulho dos inventores, o ardor dos salteadores; retornava ao Oriente
e à sabedoria primitiva e eterna. - Até parece um sonho de grosseira
preguiça!
Todavia, não pensava na delícia de escapar aos sofrimentos
modernos. Não tinha em mira a sabedoria bastarda do Alcorão. -
Mas não é um suplício real depois desta declaração da ciência, que o
cristianismo, o homem se engane, se prove evidências, infle de
prazer ao repetir essas provas e só assim viva? Tortura sutil, nécia;
fonte de minhas divagações espirituais. Talvez a natureza pudesse
aborrecer-se! O Sr. Sabe-Tudo nasceu com o Cristo.
Não será isto porque cultivamos a bruma? Ingerimos febre com os
nossos legumes aquosos. E a embriaguez! O tabaco! e a ignorância e
as dedicações! - tudo isto está muito distante do pensamento da
sabedoria do Oriente, a pátria primeira? Para que um mundo
moderno, se tais venenos se engendram?
Argumentarão os homens da Igreja: "Está certo. Mas queres te
referir ao Éden. Ora, nada conclui a teu favor na história dos povos
orientais". - Mas é isso mesmo; é ao Éden que me refiro! Que
significa para o meu sonho, esta pureza das raças antigas!
E os filósofos: "O mundo não tem idade. A humanidade desloca-se
tão somente. Estás no Ocidente, livre porém de habitar o teu Oriente,
por mais antigo que o desejes - e de aí habitar a teu bel prazer. Não
sejas um vencido". - Filósofos, vós pertenceis ao vosso Ocidente.
Espírito meu, cautela. Abandona os meios violentos de salvação.
Exercita-te! - Ah! a ciência não anda assaz ligeira para nós.

11
- Mas compreendo que meu espírito dorme.
Se estivesse sempre desperto, a partir deste instante, alcançaríamos
logo a verdade que provavelmente nos rodeia com seus anjos em
pranto!... - Se até agora tivesse estado desperto, seria porque não
havia cedido aos instintos deletérios numa época imemorial!...
- Se houvesse estado sempre desperto, eu vogaria em plena
sabedoria!...
Ó pureza! pureza!
É este minuto de vigília que me revelou a visão da pureza! - Pelo
espírito vai-se a Deus!
Dilacerante infortúnio!
O Relâmpago
O trabalho humano! é a explosão que ilumina o meu abismo de
quando em quando.
"Nada é vaidade; em direção à ciência e para a frente!" exclama o
moderno Eclesiastes, isto é, Toda a gente. E todavia os cadáveres
dos maus e dos ociosos caem sobre o coração dos outros... Ah!
depressa, mais depressa; lá longe, além, muito além da noite, estas
recompensas futuras, eternas... escaparemos delas ?
Que posso fazer? Conheço o trabalho; e a ciência é demasiado
vagarosa. Que a oração voa e que a luz explode... bem o vejo. É
assaz simples e faz calor demais; passarão sem mim. Tenho o meu
dever; como muitos, sentir-me-ia orgulhoso pondo-o de lado Está
gasta a minha vida. Vamos! finjamos, folguemos, ó piedade! E
existiremos enquanto nos divertirmos, a sonhar amores monstruosos
e universos fantásticos, enquanto nos lamentarmos e disputarmos
contra as aparências do mundo, saltimbanco, mendigo, artista,
bandido, - sacerdote! Sobre meu leito de hospital, o cheiro do
incenso me fez tão poderoso; guardião dos perfumes sagrados,
confessor, mártir...
Reconheço ai a sórdida educação de minha infância. Que importa!. .
. Viver meus vinte anos, se mais outros vinte anos eu ainda viver...
Não! Não! no momento eu me revolto contra a morte! O trabalho
afigura-se-me ofensivo demais ao meu orgulho: minha traição ao
mundo seria um suplício assaz breve. No derradeiro instante,
atacarei à direita, à esquerda...
Então, - oh!. - pobre alma querida, será perdida por nós a eternidade.
Manhã
Não é verdade que uma vez vivi urna juventude amável, heróica,
fabulosa, digna de gravar-se em páginas de ouro? Incomparável
ventura! Por que crime, por que erro, vim a ser castigado com a
fraqueza de hoje? Vós que pretendeis que os animais solucem de
dor, que os doentes desesperem, que os próprios mortos sofram
pesadelos, procurai aclarar os motivos da minha queda e do meu
sonho. Quanto a mim, não posso melhor explicar-me do que um
mendigo com seus monótonos Pater e Ave Maria. Eu não sei mais
falar.
Todavia, agora, creio ter encerrado o relato de meu inferno. Era, não
há negar, o inferno; o antigo, aquele cujas portas o filho do homem
descerrou. Do mesmo deserto, na mesma noite, meus olhos sempre
cansados se voltam para a estrela de prata, sempre, sem que os Reis
da vida, se comovam, os três magos, o coração, a alma, o espírito.
Quando iremos enfim, para além das praias e das montanhas, saudar
o nascimento do trabalho novo, da sabedoria nova, a fuga dos
tiranos e dos demônios, o desaparecimento da superstição; quando
iremos adorar - os primeiros! - a Natividade sobre a terra?
O canto dos céus, a marcha dos povos! Escravos, não amaldiçoemos
a vida.
Adeus
O outono já! - Mas por que ter saudades de um eterno sol, se
estamos empenhados na descoberta da claridade divina, - longe dos
que morrem nas estações?

12
O outono. Nossa barca elevada nas brumas imóveis navega em
direção ao porto da miséria, a cidade enorme de céu sujo de fogo e
lodo. Ah! Os farrapos podres, o pão ensopado de chuva, a
embriaguez, os mil amores que me trazem crucificado! Não acabará
um dia este vampiro, tirano de milhões de almas e de corpos mortos
que serão ju1gados! Revejo-me de pele corroída pelo lodo e pela
peste, cabelos e axilas cheios de piolhos, e piolhos mais gordos
ainda no coração, estendido entre desconhecidos sem idade, sem
sentimento... Bem poderia acabar aí... A horrenda evocação!
Abomino a miséria.
E temo o inverno por ser a estação do conforto!
- Por vezes descortino no céu praias infinitas cobertas de alvas
nações festivas Enorme navio de ouro, por cima de mim, agita suas
bandeiras multicores à brisa da manhã. Criei todas as festas, todos os
triunfos, todos os dramas. Experimentei inventar novas flores, novos
astros, novas carnes, novas línguas. Acreditei adquirir poderes
sobrenaturais. Ora bem! eis que devo enterrar minha imaginação e
minhas lembranças! Que bela glória de artista e narrador arrebatada!
Eu! eu que me acreditava mago ou anjo, fora e cima de toda a moral,
acabo rendido à terra, com um cumprir, e a áspera realidade a
abraçar. Campônio!
Engano-me? acaso será a caridade irmã da morte para mim?
Enfim, pedirei perdão por ter-me alimentado de mentira. E vamos.
Mas nem uma mão amiga! e onde pedir socorro?
***
Sim, a nova hora é, pelo menos, assaz severa.
Pois já posso afirmar que alcancei vitória: o ranger de dentes, o silvo
do fogo, os suspiros pestilentos moderam-se. Apagam-se todas as
lembranças sórdidas. Evolam-se as derradeiras queixas, - ciúme dos
mendigos, dos salteadores, dos amigos da morte, dos retardados de
toda casta -. Condenados, se eu me vingasse!
Cumpre ser absolutamente moderno.
Nada de cânticos: manter a posição conquistada. Noite de pedra! o
sangue seco suja-me o rosto, e não posso contar com coisa alguma
atrás de mim, a não ser este horrível arbusto!... O combate espiritual
é tão brutal quanto a batalha dos homens; mas a visão da justiça é
unicamente o prazer de Deus.
Entretanto, é chegada a véspera. Recebamos todos os influxos do
vigor e da ternura verdadeira. E, à aurora, revestidos de ardente
paciência, entraremos as esplêndidas cidades.
Que dizia eu de mão amiga! Já é imensa vantagem poder sorrir dos
velhos amores mentirosos e envergonhar essas duplas de
embusteiros - vi lá longe o inferno das mulheres; - e ser-me-á dado
possuir a verdade numa alma e num só corpo.
Abril - Agosto, 1873

13
Iluminuras
Artur Rimbaud
DEPOIS DO DILÚVIO
Assim que a idéia do Dilúvio sossegou,
Uma lebre se deteve entre trevos e campânulas cambiantes, e fez sua prece ao
arco-íris, através da teia de aranha.
Oh! as pedras preciosas que se escondiam, — e as flores que já olhavam.
Na grande rua suja açougues se abriram, e barcos foram lançados nos degraus
do mar lá no alto como nas gravuras.
O sangue correu, no Barba-Azul, — nos matadouros, — nos circos, onde o
selo de Deus empalidecia as janelas. O sangue e o leite correram.
Castores construíram. “Mazagrans” enfumaçaram os botecos.
Na imensa mansão de vidros ainda gotejantes, meninos de luto admiram
imagens maravilhosas.
Uma porta bateu, — e sobre a praça da vila, o menino girou os braços,
compreendidos os cata-ventos e galos dos campanários de toda parte, sob um
temporal cintilante.
Madame *** instalou um piano nos Alpes. A missa e as primeiras comunhões
foram celebradas nos cem mil altares da catedral.
As caravanas partiram. E o Splendide-Hotel foi erguido no caos de gelo e da
noite polar.
Desde então, a Lua ouviu o uivo dos chacais nos desertos de timo, — e
écoglas de tamancos grunhindo no pomar. Depois, na floresta violeta,
florescente, Êucaris me disse que era a primavera.
— Lago, salte, — Espuma, role sobre aponte e por cima desses bosques; —
panos negros e órgãos, — trovão e raio, — subam e rolem; — águas e tristeza,
subam e renovem esses Dilúvios.
Pois desde que dissiparam, — Oh as pedras preciosas se enterrando, e as
flores se abrindo! — tudo é um tédio! E a Rainha, a Feiticeira que acende sua
brasa num pote de barro, não vai querer jamais nos contar tudo o que sabe, e
que nós ignoramos.
INFÂNCIA
I
Este ídolo, de olhos negros e crina amarela, sem pais nem corte, mais nobre do
que fábulas, mexicanas e flamengas; seu domínio, arrogância verdeazul, se
espraia por praias batizadas, por ondas sem navios, com ferozes nomes gregos,
celtas, eslavos.
Nos confins da floresta — flores de sonho tilintam, explodem, resplendem, —
menino de lábios laranja, cruzando as pernas no dilúvio branco que brota dos
prados, sua nudez em sombra, de viés, vestida de arco-íris, mar, e flora.
Damas que giram nos terraços à beira-mar; infantas e gigantas, negras e
soberbas no musgo verdegris, jóias eretas no solo fértil dos bosquezinhos e
jardinzinhos em degelo — mães jovens e irmãs mais velhas, cheias de olhares
peregrinos, sultanas, princesas de trajes e passos tirânicos, estrangeirinhas e
pessoas docemente infelizes. Que tédio, a hora do “que corpo” e do “meu
bem”.
II
É ela, a pequena morta, atrás das roseiras. — A jovem mãe já falecida desce a
sacada. — A carruagem do primo grita sobre o — O irmãozinho está (lá na
Índia!) diante do poente, num campo de cravos.— Os velhos foram sepultados
em pé na muralha de alelises.
O enxame de folhas douradas rodeia a mansão do general. Eles estão no Sul.
— Segue-se a rua vermelha até chegar ao albergue vazio, O castelo está a
venda, as persianas estão caindo. — O padre deve ter levado a chave da igreja.
— Ao redor do parque, as casas dos vigias estão vazias.
As paliçadas são tão altas que só se vê os cimos sussurrando. Além disso,
não há nada lá dentro para ser visto.
prados remontam às vilas sem galos, sem bigornas. A represa está aberta. Ó
os Calvários e os moinhos do deserto, as ilhas e as moendas.
Flores mágicas zumbiam. As colinas o ninaram. Bichos circulavam sobre o
alto mar feito eternas lágrimas quentes.
III

14
Nos bosques tem um pássaro, você pára e cora com seu coro.
Tem um relógio que não toca nunca.
Tem uma brecha no gelo com um ninho de bichos brancos.
Tem uma catedral que sobe e um lago que desce.
Tem uma pequena carruagem abandonada na moita, ou que passa correndo,
decorada.
Tem uma trupe em trajes de comédia, espiada pela trilha da floresta.
E então, quando você tem fome e sede, tem sempre alguém que te manda
passear.
IV
Eu sou o santo, rezando no terraço, — como os animais pacíficos pastando
junto ao mar da Palestina.
Eu sou o sábio na poltrona sombria. Os galhos e a chuva se jogam contra a
vidraça da biblioteca.
Eu sou o andarilho da grande estrada entre os bosque anões; o rumor das
represas cobre meus passos. Me demoro vendo a triste fuligem dourada do
pôr-do-sol.
Eu bem podia ser a criança abandonada no cais de partida pro alto mar, o
caipira rodando as alamedas, sua cabeça roçando o céu.
Os caminhos são ásperos. Montesinhos se enchem de giestas. O ar está
parado. Que longe os pássaros e as fontes! Isso só pode ser o fim do mundo,
avançando.
V
Que me aluguem enfim este túmulo caiado, com linhas de cimento em relevo
— bem fundo na terra.
Cotovelos na mesa, a lâmpada ilumina muito bem esses jornais que releio de
idiota, esses livros sem interesse. —
A uma distância enorme acima da minha sala subterrânea, casas se enraízam,
brumas se reúnem. A lama é vermelha ou negra. Cidade monstro, noite sem
fim!
Menos alto, os esgotos. Dos lados, apenas espessura do globo. Talvez abismos
de azul, poços de fogo. São talvez nestes níveis que luas e cometas, fábulas e
mares, se encontrem.
Nas horas amargas, imagino bolas de safira, de metal. Eu sou o mestre do
silêncio. Por que uma aparência de respiradouro desbotaria num canto da
abóbada?
CONTO
Um Príncipe se aborrecia por só se dedicar a perfeição de generosidades
vulgares. Ele previa estonteantes revoluções do amor, e desconfiava que suas
mulheres pudessem bem mais que uma complacência enfeitada de céu e luxo.
Queria ver a verdade, a hora do desejo e da satisfação essenciais. Fosse ou não
uma aberração de piedade, ele queria. Pelo menos ele tinha um grande poder
humano.
Todas as mulheres que o conheceram foram assassinadas. Saque no jardim da
beleza! Sob o sabre, elas o abençoaram. Ele nem encomendava outras.
— As mulheres reapareciam.
Ele matou todos que o seguiam, depois da caça ou das librações.
— Todos o seguiam.
Ele se divertiu degolando os bichos de luxo. Mandou incendiar palácios.
Avançava nas pessoas e as decepava em pedaços. — A multidão, os telhados
dourados, bichos bonitos, ainda existiam.
Pode alguém se extasiar na destruição, rejuvenescer na crueldade! O povo não
murmurou. Ninguém se ofereceu ao concurso de suas vistas.
Uma noite ele cavalgava confiante. Um Gênio surgiu, beleza inefável,
inconfessável mesmo. De sua fisionomia e sua presença emanava a promessa
de um amor múltiplo e complexo! De alegria inominável, insuportável
mesmo! O Príncipe e o Gênio se aniquilaram, quem sabe, em saúde essencial.
Como não morreriam disso? Eles, enfim, morreram juntos.
Mas o Príncipe morreu, em seu palácio, numa idade normal. O Príncipe era o
gênio. O Gênio era o Príncipe.
Ao nosso desejo falta a música sábia.
DESFILE

15
Patifes sólidos. Muitos já exploram vossos mundos. Sem carências, e pouca
pressa em aplicar suas brilhantes faculdades e sua experiência de vossas
consciências. Que homens maduros! Olhos vidrados como noite de verão,
vermelhos e negros, tricolores, aço salpicado de estrelas douradas; faces
disformes, plúmbeas, pálidas, em brasa; rouquidões burlescas! os passos
cruéis dos ouropéis! — Alguns são jovens, — mas como encarariam
Querubim? — munidos de vozes medonhas e truques perigosos. São enviados
amarrados pras cidades, fantasiados com um luxo que dá nojo.
Oh! O mais violento Paraíso da careta furiosa! Nada comparável a seus
Faquires e outra tantas teatrais bufoneiras. Em trajes improvisados com sabor
de pesadelo, encenam litanias, tragédias de malandros e semideuses cheios de
graça, como jamais foram a história ou as religiões. Chineses, Hotentotes,
ciganos, otários, hienas, Moleques, velhas demências, demônios sinistros,
misturam os modos populares, maternais, com poses e ternuras bestiais.
Interpretariam peças novas, canções “para moças”. Mestres jograis, eles
transformam o lugar e as pessoas, e usam a comédia magnética. Os olhos
ardem, o sangue canta, ossos se dilatam, escorrem lágrimas e fitas de carmim.
Sua folia ou seu terror dura um minuto, ou meses inteiros.
Só eu tenho a chave desse desfile selvagem.
ANTIQUE
Gracioso filho de Pan! Em volta de tua fronte coroada de florzinhas e bagas
teus olhos, gemas preciosas, se movem. Manchada de fezes cinzas, a cova das
faces. Tuas presas reluzem. Teu peitinho parece uma cítara, sininhos circulam
no bronze dos teus braços. Teu coração bate nesse ventre onde dorme o duplo
sexo. Passeie pela noite, mexe essa coxa, docemente, mexe essa outra, e essa
perna torta.
BEING BEAUTEOUS
Diante de uma neve, um Ser de Beleza de alto talhe. Sibilações de morte e os
círculos de música surda levitam seu corpo adorado, e ele se expande e treme
como um espectro; feridas escarlates e negras rebentam nas carnes soberbas.
As cores próprias da vida ficam foscas, dançam e se desatam ao redor da
Visão, sobre o estaleiro. E os frissons se elevam e rugem, e o sabor delirante
desses efeitos se estocam com as sibilações de morte e as músicas roucas que
o mundo, ao nosso encalço, lança sobre nossa mãe de beleza, — ela levanta,
ela recua. Oh! nossos ossos revestidos por um novo corpo de amor.
***
Ó a face cinza, escudo de crina, braços de cristal! O canhão de que me atiro
nessa briga das árvores com a brisa!
VIDAS
I
Ó as enormes avenidas do país santo, os terraços do templo! O que foi feito do
brâmane que me explicou os Provérbios? Desde então, ainda vejo as velhas de
lá! Me lembro das horas de prata e do sol rente aos rios, a mão da campina no
meu ombro, de nossas carícias de pé sobre planícies de pimenta. — Um vôo
de pombos escarlates troveja em volta de meu pensamento. — Exilado aqui,
tive um palco onde encenar as obras-primas dramáticas de todas as literaturas.
Eu te mostraria as riquezas inauditas. Observo a história dos tesouros que
encontrastes. Eu vejo a seqüência! Minha sabedoria é tão orgulhosa quanto o
caos. Que é meu nada, perto do estupor que te espera?
II
Sou um inventor bem mais merecedor do que todos que me antecederam, um
músico mesmo, que descobriu algo assim como a clave do amor. Hoje em dia,
cavalheiro de uma campina amarga com um céu sóbrio, tento me emocionar
com a lembrança da infância mendiga, da aprendizagem ou da chegada em
tamancos, polêmicas, das cinco ou seis viuvezas, e de algumas bodas, onde
minha cabeça dura me impediu de seguir o diapasão dos camaradas. Não
choro mais minha velha porção de alegria divina: o ar sóbrio dessa campina
amarga sacia e ativa meu ceticismo atroz. Mas, já que não se pode fazer uso
desse ceticismo, e aliás, por estar envolvido num conflito novo, — espero
virar um louco muito perigoso.
III
Num celeiro aonde me prenderam aos doze anos, conheci o mundo e ilustrei a

16
comédia humana. Numa adega aprendi a história. Em alguma festa de noite,
numa cidade do Norte, cruzei todas as mulheres dos pintores antigos. Numa
velha passagem de Paris, me ensinaram as ciências clássicas,. Numa morada
magnífica cercada por todo o Oriente, terminei minha imensa obra e passei
meu ilustre retiro. Fermentei meu sangue. Minha dívida foi remida. Nem
quero mais pensar nisso. Sou mesmo do além, e nada de mensagens.
PARTIDA
Vi demais. A visão se revia pelos ares.
Tive demais. Sons de cidade, à tarde, e ao sol, e sempre.
Soube demais. As paradas da vida. — Ó Sons e Visões!
Partida entre afetos e ruídos novos!
REALEZA
Numa bela manhã, em meio à gente doce, um homem e uma mulher soberbos
gritavam pela praça pública: “Amigos, quero que ela seja rainha!” Ela ria e
tremia. Ele falava aos amigos de revelação, de uma provação terminada. Eles
desmaiavam um no outro.
De fato, eles foram reis por uma manhã inteira, em que tapeçarias carminadas
se estenderam sobre as casas, e a tarde inteira, em que eles avançaram do lado
do jardim das palmeiras.
UMA RAZÃO
Um toque de seus dedos no tambor detona todos os sons e inicia a nova
harmonia.
Um passo seu é o levante de novos homens e sua marcha.
Sua cabeça se vira: o novo amor! Sua cabeça se volta, — o novo amor!
“Mude nossa sorte, livre-se das pestes, a começar pelo tempo”, cantam essas
crianças. “Não importa onde, eleve a substância de nossas fortunas e desejos”,
lhe imploram.
O sempre chegando, indo a todo canto.
FRASES
Quando se reduzir a um só bosque negro para nossos quatro olhos atônitos, —
a uma praia para duas crianças fiéis, — a uma mansão musical para nossa
clara simpatia, — vou te encontrar.
Haja aqui embaixo só um velho solitário, calmo e bonito, em meio a um “luxo
incrível”, — vou estar a teus pés.
Assim que eu realize todas as tuas fantasias, — sendo eu aquela que sabe
torturar-te, — vou te estrangular.
***
Quando a gente é forte, — quem se afasta? muito fresco, — quem cai no
ridículo? Quando a gente é mau, que fariam de nós?
Se arrume, dance, ria, — Nunca pude mesmo jogar o Amor pela janela.
***
— Minha amiga, mendiga, criança-monstro! Pra você é tudo igual, essas malamadas
e suas intrigas, e meu embaraço. Junte-se a nós com sua impossível
voz! único bajulador desse vil desespero.
Manhã nublada, julho. Um gosto de cinzas flutua no ar; — aroma de madeira
suando na lareira, — flores mofadas — a confusão dos passeios — a neblina
dos canais pelos campos — agora, que tal os joguinhos e o incenso?
***
Estendi cordas de campanário, a campanário; guirlandas de janela a janela;
correntes de ouro de estrela a estrela, e danço.
***
O lago lá em cima se esfuma sem cessar. Que feiticeira vai subir do poente
branco? Que frondescências violetas vão descer?
***
Enquanto recursos públicos se evaporam em festas de fraternidade, um sino de
fogo rosa soa nas nuvens.
***
Avivando um cheiro bom de tinta da China, uma poeira negra chove
docemente em minha vigília. — Diminuo a luz do lustre, me jogo na cama, e,
voltando pro lado da sombra, vejo vocês, minhas meninas! minhas rainhas!
OPERÁRIOS
Ó a morna manhã de fevereiro. O vento sul importuno veio reavivar nossas

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lembranças de indigentes absurdos, nossa jovem miséria.
Henrika vestia uma saia xadrez branca e marrom, em moda no século passado,
uma boina com fitas e um lenço de seda. Era bem mais triste do que um luto.
Dávamos um giro nos subúrbios. tempo nublado, e esse vento do Sul excitava
todos os odores ruins de jardins arrasados e campos secos.
E isso parecia cansar mais a mim que à minha mulher. Numa poça deixada
pela cheia o mês passado, numa trilha lá em cima, ela me mostrou alguns
peixinhos.
A cidade, com suas fumaças e ruídos de ofícios, nos seguia tão longe nos
caminhos. Ó outro mundo, morada abençoada por céu e sombras ! O vento Sul
me fez lembrar miseráveis incidentes de infância, meus desesperos de verão, a
horrível quantidade de força e de ciência que o destino sempre afastou de
mim. Não! não passaremos o verão neste país mesquinho onde nada mais
seremos que noivos órfãos. Quero que este braço teso não arraste mais uma
imagem querida.
AS PONTES
Céus de cristal gris. Bizarro desenho de pontes, estas retas, aquelas em arco,
outras descendo em ângulos oblíquos sobre as primeiras, e essas figuras se
renovam nos outros circuitos iluminados do canal, mas todas tão longas e
leves que as margens, cheias de cúpulas, afundam e encolhem. Algumas
dessas pontes ainda estão cheias de barracas, outras sustentam mastros, sinais,
frágeis parapeitos. Acordes menores se cruzam, e somem, as cordas escalam
os barrancos. Distingue-se uma roupa vermelha, talvez outros trajes e
instrumentos musicais. São árias populares, trechos de concertos senhoriais,
restos de hinos públicos? A água é gris e azul, larga como um braço de mar.
— E um raio branco, desabando do alto do céu, aniquila esta comédia.
CIDADE
Sou um efêmero e não muito descontente cidadão de uma metrópole que
julgam moderna porque todo estilo conhecido foi excluído das mobílias e do
exterior das casas bem como do plano da cidade. Aqui você não nota rastros
de nenhum monumento de superstição. A moral e a língua estão reduzidas às
expressões mais simples, enfim! Estes milhões de pessoas que nem têm
necessidade de se conhecer levam a educação, o trabalho e a velhice de um
modo tão igual que sua expectativa de vida é muitas vezes mais curta do que
uma estatística maluca encontrou para os povos do continente. Assim como,
de minha janela, vejo novos espectros rolando pela espessa e eterna fumaça de
carvão, — nossa sombra dos bosques, nossa noite de verão! — as novas
Erínias, na porta da cabana que é minha pátria e meu coração, já que tudo
aqui parece isto, — Morte sem lágrimas, nossa filha ativa e serva, um Amor
desesperado, e um Crime bonito uivando na lama da rua.
RASTROS
À direita a aurora de verão desperta as folhas e os vapores e os ruídos deste
canto do parque, e as encostas à esquerda retêm em sua sombra violeta os mil
rastros rápidos da trilha úmida. Desfile de feitiços. De fato: carros carregados
de animais de madeira dourada, de mastros e telas de cores berrantes, no
grande galope de vinte cavalos de circo malhados, e os meninos, e os homens
sobre seus mais incríveis animais; — vinte veículos, corcundas, com bandeiras
e flores como as carroças antigas ou dos conto de fadas, cheias de crianças
enfeitadas para uma pastoral suburbana. — Até caixões sob seus dosséis
noturnos ostentando penachos de ébano, na cadência do trote de grandes éguas
azuis e negras.
CIDADES
Que cidades! É um povo para o qual foram montados Apalaches e Líbanos de
sonho! Chalés de cristal e madeira deslizam sobre trilhos e polias invisíveis.
Crateras ancestrais circundadas de colossos e palmeiras de cobre rugem
melodiosamente dentro dos fogos. As festas do amor badalam nos canais
suspensos atrás dos chalés. Matilhas de sinos gritam nas gargantas.
Associações de cantores gigantes chegam em trajes e adereços cintilantes
como a luz nos cimos. Sobre as plataformas, em meio a precipícios, os
Rolands buzinam sua bravura. Sobre as passarelas do abismo e os tetos dos
albergues, o arder do céu hasteia os mastros. O colapso das apoteoses
concentra os campos das alturas onde centaurinas seráficas evoluem entre as

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avalanches. Acima do nível das mais altas cristas, um mar atormentado pelo
eterno nascimento de Vênus, repleto de frotas orfeônicas e do murmúrio de
pérolas e conchas preciosas, — às vezes o mar se escurece com brilhos
mortais. Nas encostas, safras de flores imensas bramem como nossas armas e
taças. Cortejo de Mabs em robes russos, opalinas, trepam nas ravinas. E lá em
cima, as patas nas sarças e cascatas, cervos sugam os seios de Diana. bacantes
de subúrbio soluçam e a lua queima e uiva. Vênus penetra nas cavernas de
ferreiros e eremitas. Torres de sinos cantam as idéias das pessoas. A música
desconhecida escapa dos castelos de osso. Todas as lendas evoluem e élans
invadem os burgos. O paraíso de tempestades despedaça. Selvagens dançam
sem cessar a festa da noite. E, uma hora, desci na agitação de um bulevar em
Bagdá onde companhias cantaram a alegria do trabalho novo, sob uma brisa
espessa, circulando sem poder iludir os fantasmas fabulosos dos montes, onde
se devia reencontrar.
Que braços bons, que hora adorável vão me devolver essa religião de onde
vêm meus sonos e meus movimentos mais sutis?
VAGABUNDOS
Irmão miserável! Quantas vigílias atrozes eu lhe devo! “Eu não me entregava
com fervor a este negócio. Caçoava de sua doença. Por minha culpa
voltaríamos ao exílio, à escravidão”. Ele me achava um pé frio, e de uma
inocência bizarra demais, e adicionava razões inquietantes.
Eu respondia rindo deste doutor satânico, e acabava ganhando a janela. Eu
criava, além do campo atravessado por bandas de música rara, os fantasmas do
futuro luxo noturno.
Depois dessa distração ligeiramente higiênica, me deitava numa esteira. E,
quase toda noite, assim que dormia, o pobre irmão se levantava, boca podre,
olhos esbugalhados, — como ele se sonhava! — e me arrastava pela sala,
uivando o sonho de sua mágoa idiota.
Eu tinha prometido, de fato, do fundo do coração, recuperar seu estado
primitivo de filho de Sol, — e vadiávamos, alimentados pelo vinho das
cavernas e pelo biscoito do caminho, eu com pressa de achar o lugar e a
fórmula.
CIDADES
A acrópole oficial excede as mais colossais concepções da barbárie moderna.
Impossível exprimir o dia fosco produzido por este céu imutavelmente cinza,
o brilho imperial dos edifícios, e a neve eterna do chão. Com um gosto
singular para o exagero, todas as maravilhas clássicas da arquitetura foram
reproduzidas. Assisto a exposições de pintura em locais vinte vezes mais
vastos que Hampton Court. Que pintura! um Nabucodonosor norueguês
mandou construir as escadarias dos mistérios; os funcionários que pude ver
são mais arrogantes que ***, e tremi ante o aspecto dos guardas dos colossos e
dos mestres-de-obras. Com o agrupamento de edifícios em Squares, pátios e
jardins privados, eles dispensaram os cocheiros. Os parques representam a
natureza primitiva trabalhada com arte soberba. O bairro alto tem partes
inexplicáveis: um braço de mar, sem barcos, estende sua toalha de granizo
azul entre o cais estocado de candelabros gigantes. Uma pequena ponte
conduz à uma passagem secreta logo abaixo da cúpula da Saint-Chapelle. Essa
cúpula é uma armação artística de aço com cerca de quinze mil pés de
diâmetro.
Em alguns pontos das passarelas de cobre, das plataformas, das escadarias
que contornam os mercados e os pilares, acreditei ter uma idéia da
profundidade da cidade! Eis o prodígio que não pude explicar: quais os níveis
dos outros bairros acima ou abaixo da acrópole?
Para o estrangeiro de nosso tempo, o reconhecimento é impossível. O bairro
comercial é um circus num só estilo, com galerias em arcos. Não se vêem
mais as lojas, mas a neve na calçada está pisada; alguns nababos, tão raros
como os passeantes em Londres domingo de manhã, dirigem-se a uma
diligência de diamantes. Alguns divãs de veludo vermelho: bebidas polares
são servidas a um preço que varia de oitocentas a oito mil rúpias. À idéia de
procurar teatros nesse circus, me respondo que essas lojas devem conter os
dramas mais sombrios. Acho que há uma polícia. Mas a lei deve ser tão
estranha que desisto de fazer uma idéia dos aventureiros daqui.

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O subúrbio, tão elegante quanto uma rua bonita de Paris, é privilegiado por
um ar de iluminação. O elemento democrático totaliza algumas centenas de
almas. Lá também as casas não vêm numa seqüência; o subúrbio se perde
bizarramente no campo, o "Condado" que enche o ocidente eterno de florestas
e plantações prodigiosas onde os cavalheiros selvagens caçam suas crônicas
sob a luz que se criou.
VIGÍLIAS
I
É o descanso iluminado, nem febre nem langor, na cama ou no prado.
É o amigo nem frágil nem ardente. O amigo.
É a amada nem torturadora nem torturada. A amada.
O ar e o mundo a se buscar. A vida.
— Então era essa?
E o sonho refresca.
II
A iluminação volta à árvore de cimento. Dos dois extremos da sala, quaisquer
cenários, elevações harmônicas se juntam. A muralha diante do vigia é uma
sucessão psicológica de cortes de frisos,zonas atmosféricas e de acidências
geológicas. — Sonho intenso e rápido de grupos sentimentais com seres de
todos os caracteres em meio a todas as aparências.
III
As lâmpadas e os tapetes da vigília simulam o rumor de ondas, de noite, ao
longo do casco e ao redor do steerage.
O mar da vigília são como os seios de Amélia.
As tapeçarias, à meia altura, matas de tricô tingidas de esmeralda, onde se
atiram as pombas da vigília.
A placa negra da lareira, sóis reais das praias: Ah! poços de magia; única
visão da aurora, agora.
MÍSTICA
No declive da escarpa anjos giram suas togas de lã sobre relvas de aço e
esmeralda.
Prados de chamas saltam até as mamas dos montes. À esquerda, o humo dos
sulcos é pisado por todos os homicidas e todas as batalhas, e todos os ruídos
do desastre traçam sua curva. Atrás do sulco à direita, a linha dos orientes, dos
progressos.
E enquanto a faixa no alto do quadro se forma do rumor giratório e saltitante
das conchas do mar e das noites humanas, a doçura florida das estrelas e do
céu e do resto desce diante da escarpa, como um cesto, — contra nossa face, e
faz um abismo azul em flor lá embaixo.
AURORA
Eu abracei a aurora de verão.
Nada ainda se mexia na fachada dos palácios. A água estava morta.
Acampamentos de sombras não deixavam a trilha do bosque. Eu marchava,
despertando hálitos vivos e cálidos, e as pedrarias espiavam, e as alas se
levantavam sem um som.
A primeira missão foi, num atalho já cheio de centelhas frescas e pálidas, uma
flor que medisse seu nome.
Sorri para a loira wasserfall que se descabelava através dos pinheiros;
reconheci a deusa no cimo de prata.
Então, um a um, levantei os véus. Nas alamedas, agitando os braços. Pela
planície, onde a denunciei ao galo. Na cidade grande ela fugia entre cúpulas e
campanários, e correndo como um mendigo entre docas de mármore, eu a
caçava.
No alto da trilha, perto de um bosque de louros, eu a envolvi com seu monte
de véus, e senti um pouco seu corpo imenso. A aurora e a criança caíram na
beira do bosque.
Ao acordar, meio-dia.
FLORES
De um degrau de ouro, — entre cordões de seda, gazes grises, veludos verdes
e discos de cristal que escurecem como bronze sob o sol, — vejo a digital se
abrir num tapete de filigranas de prata, de olhos e cabelos.
Peças de ouro amarelo semeadas sobre a ágata, pilares de mogno sustentando

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uma cúpula de esmeraldas, buquês de branco cetim e hastes sutis de rubis
rodeiam a rosa d’água.
Como um deus de enormes olhos azuis e jeitos de neve, o céu e o mar atraem
aos terraços de mármore a turba de rosas jovens e fortes.
NOTURNO VULGAR
Um sopro abre fendas operádicas nas paredes, — embaralha o eixo dos tetos
podres, — dispersa os limites dos foyers, — eclipsa vidraças. — Pelas
videiras, apoiando o pé numa gárgula, — desci nesse coche de uma época bem
indicada pelos espelhos convexos, almofadas bojudas e sofás distorcidos.
Carro funerário do meu sono, solitário, casa de pastor de minha tolice, o
veículo vira sobre o mato da grande estrada desaparecida: e num defeito no
alto do espelho, à direita, giram pálidas figuras lunares, folhas, seios; — Um
verde e um azul escuros invadem a imagem. Desatrelagem perto de uma
mancha de cascalho.
— Aqui vão assoviar às tempestades, e às Sodomas, — e às Solimas, — e aos
animais ferozes e aos exércitos,
— (Postilhões e animais de sonho vão voltar sob as matas mais sufocantes
para me afogar até os olhos na nascente de seda) — E a nos enviar, açoitados
por ondas crispadas e bebidas derramadas, rolando entre latidos de dogues...
— Um sopro dispersa os limites do foyer.
MARINHA
As carroças de cobre e prata —
As proas de prata e aço —
Espalmam espumas, —
Esgarçam maços de sarças.
As correntezas da roça,
E os sulcos imensos do refluxo,
Fluem em círculos rumo a leste,
Rumo às hastes da floresta, —
Rumo aos fustes do quebra-mar,
Cujo ângulo é ferido por turbilhões de luz.
FESTA DE INVERNO
A cascata canta atrás das barracas da ópera-cômica. Girândolas se prolongam,
nos quintais e nas aléias vizinhas ao Meandro, — os verdes e rubros do
crepúsculo. Ninfas de Horácio com perucas do Primeiro Império, — Cirandas
Siberianas, Chinesas de Boucher.
ANGÚSTIA
Será possível que Ela me faça perdoar as ambições continuamente esmagadas,
— que um final feliz compense os anos de indigência, — que um dia de
sucesso nos adormeça sobre o vexame de nossa fatal incompetência.
(Ó aplausos! diamante! — Amor! força! — maiores do que glórias e alegrias!
— de qualquer jeito, por toda parte, — demônio, deus — Juventude deste ser;
eu!)
Que os acidentes de feitiços científicos e os movimentos de fraternidade social
sejam queridos como a restituição progressiva da sinceridade primeira?...
Mas a Vampira que nos faz gentis nos manda divertir com o que ela deixa, ou
então que fiquemos mais malandros.
Rolar até ferir, pelo ar e pelo mar exaustos; até os suplícios, pelo silêncio do ar
e das águas mortais; até as torturas de riso, em meu silêncio atrozmente
murmurante.
METROPOLITANO
Do estreito de índigo aos mares de Ossian, sobre o laranja e o rosa da areia
que banhou o céu bordô, acabam de subir e se cruzar bulevares de cristal
habitados de repente por jovens famílias pobres que se alimentam nas
quitandas. Nada de riqueza. — A cidade!
Fogem direto do deserto de betume em debandada, com lençóis de névoas
escalonadas em bandos pavorosos no céu que se recurva, recua e desce feito
da fumaça mais sinistra que o Oceano de luto possa produzir, elmos, rodas,
barcos, ancas. — A batalha!
Levanta a cabeça: esta ponte de madeira, pensa; as últimas hortas da Samaria;
essas máscaras iluminadas sob a lanterna fustigada pela noite fria; ondina
tonta em vestes farfalhantes, no leito do rio; esses crânios luminosos com

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estacas de ervilhas — entre outras fantasmagorias — a campina.
Trilhas tricotadas de grades e muros, contendo a força seus pequenos bosques,
e flores atrozes que trazem nomes de dores e amores, Damasco danado de
langores, — possessões de aristocracias feéricas ultra-Renanas, Japonesas,
Guaranis, prontas agora para receber a música dos antigos — e há albergues
que não vão abrir nunca mais — e há princesas, e se não estás tão abatido,
estude estrelas — o céu.
Na manhã onde, com Ela, tu te abatias entre estilhaços de neve, esses lábios
verdes, os granizos, as bandeiras negras e os raios azuis, e os perfumes
púrpuras do sol dos pólos, — tua força.
BÁRBARO
Bem depois dos dia e das estações, pessoas e países,
A bandeira em carne viva sobre a seda de oceanos e flores árticas; (elas não
existem.)
Livre das velhas fanfarras do heroísmo — que ainda nos atacam cabeça e
coração — longe dos velhos assassinos —
Oh! A bandeira em carne viva sobre a seda de oceanos e flores árticas; (elas
não existem.)
Doçuras!
As brasas, chovendo em rajadas de geada, — Doçuras! — os fogos na chuva
de vento de diamantes lançada pelo coração terrestre eternamente carbonizado
para nós. — Ó mundo! —
(Longe dos velhos refúgios e das velhas chamas, que se ouve, e se sente,)
As brasas e as espumas. Música, abismos invertidos e choque de flocos de
gelo contra os astros.
Ó doçuras, ó mundo, ó música! E lá, as formas, os suores, os cabelos e os
olhos, flutuando. E as lágrimas brancas, borbulhantes, — ó doçuras! — e a
voz feminina que chega ao fundo dos vulcões e grutas árticas.
A bandeira...
SALDO
Vende-se o que os Judeus não venderam, o que nem a nobreza nem o crime
provaram, o que o amor maldito e a honestidade infernal das massas ignoram;
o que nem a ciência nem o tempo reconhecem;
As vozes restauradas, o despertar fraterno de todas as energias corais e
orquestrais e suas aplicações instantâneas; ocasião única de liberar nossos
sentidos!
Vende-se Corpos sem preço, de qualquer raça, de qualquer mundo, de
qualquer sexo, de qualquer descendência! Riquezas brotando a cada passo!
Saldo de diamantes sem controle!
Vende-se anarquia para as massas; satisfação irreprimível para amadores
superiores; morte atroz para os fiéis e os amantes!
Vende-se casas e migrações, esportes, magias e comfortos perfeitos, e o ruído,
o movimento e o futuro que eles fazem!
Vende-se aplicações de cálculo e saltos inauditos de harmonia. Achados e
termos sem suspeita, entrega imediata,
Impulso insensato e infinito aos esplendores invisíveis, às delícias insensíveis,
— e seus segredos enlouquecedores para cada vício — e uma alegria
assustadora para a multidão.
Vende-se Corpos, vozes, a inquestionável opulência imensa, que nunca será
vendida. Os vendedores têm muitos estoques para liquidar! Os viajantes não
precisam ter pressa para entregar as encomendas!
FAIRY
Por Helena conspiraram as seivas ornamentais nas sombras virgens e as
luminosidades impassíveis no silêncio astral. O ardor do verão foi confiado a
pássaros mudos e a preguiça pedida a uma barca fúnebre sem preço singrando
golfos de amores mortos e perfumes esmaecidos.
— Após o instante da canção das lenhadoras, do rumor do temporal sobre a
ruína dos bosques, dos tinidos de sinos de vacas ao eco dos vales, e do grito
das estepes.
— Pela infância de Helena sombras e pelúcias arrepiaram, — e o seio dos
pobres, e as lendas do céu.
E seus olhos e sua dança ainda superiores, aos brilhos preciosos, às frias

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influências, ao prazer da cena e dos raros momentos.
GUERRA
Criança, certos céus aguçaram minha ótica: todos os caracteres matizaram
minha fisionomia. Os fenômenos me emocionaram. — Hoje, a inflexão eterna
dos momentos e o infinito das matemáticas me perseguem por este mundo
onde suporto todos os sucessos civis, respeitado pela infância estranha e por
imensos carinhos. — Sonho com uma Guerra, de direito ou de força, com uma
lógica nada previsível.
Tão simples quanto uma frase musical.
JUVENTUDE
I
DOMINGO
Cálculos à parte, a inevitável descida do céu, e a visita de recordações e uma
sessão de ritmos ocupa a casa, a cabeça e o mundo do espírito.
— Um cavalo dispara no turfe suburbano, entre plantações e reflorestamentos,
atacado pela peste carbônica. Uma miserável dama de drama, em qualquer
lugar do mundo, chora depois de abandonos improváveis. Criminosos
desfalecem depois da tempestade, dos porres e porradas. Crianças sufocam
maldições nas margens dos rios.
— Retomemos o estudo ao ruído da obra devorante que se expande e sobe das
massas.
II
SONETO
Homem de constituição ordinária, não era a carne o fruto suspenso no jardim,
ó dias infantis! o corpo, um tesouro para se desperdiçar; ó amar, perigo ou
poder de Psique? A terra continha encostas férteis em príncipes e artistas, e a
descendência e a raça nos levando a crimes e lutos: ó mundo, vossa fortuna e
vosso risco. Mas agora, obra acabada, você, seus cálculos, você, suas
impaciências, não são mais que vossa dança e vossa voz, nem fixas nem
forçadas, ainda que um duplo evento de invenção e de sucesso uma razão, na
humanidade fraterna e discreta, pelo universo sem imagens; — a força e o
direito refletem a dança e a voz, somente agora apreciadas.
III
VINTE ANOS.
Vozes instrutivas exiladas... A ingenuidade física amargamente domada...
Adagio. Ah! o egoísmo infinito da adolescência, o otimismo estudioso: como
se encheu de flores nesse verão! Árias e formas morrendo... Um coral, que
acalme a impotência e a ausência! um coral de copos, de melodias noturnas...
Na verdade, nervos velozes saem à caça.
IV
Estás ainda na tentação de Antônio. Brincadeiras de pouco cuidado, tiques de
orgulho pueril, o abatimento e o pavor. Mas tu te pões a trabalhar: todas as
possibilidades harmônicas e arquiteturais vão se comover ao redor de tua
cadeira. Seres perfeitos, imprevisíveis, vão se oferecer às tuas experiências.
Em tuas imediações, fluirão em sonhosa curiosidade das antigas multitudes e
luxos ociosos. Tua memória e teus sentidos serão o único alimento de teu
impulso criativo. Quanto ao mundo, quando tu saíres, o que ele será? Em todo
o caso, nada dessas aparências atuais.
PROMONTÓRIO
A aurora dourada e o pôr-do-sol arrepiante cruzam nosso brick ao largo dessa
vila e de suas dependências que formam um promontório tão extenso quanto o
Épiro e o Peloponeso, ou mesmo a enorme ilha do Japão, ou mesmo a Arábia!
Templos iluminados pelo retorno das teorias, das vistas imensas da defesa dos
modernos litorais; dunas ilustradas de flores quentes e de bacanais; dos
grandes canais de Cartago e os Embankments de uma Veneza duvidosa; a
erupção gelatinosa de Etnas e a fissura de flores e águas glaciais; lavatórios
rodeados de álamos da Alemanha; declives de parques singulares pendendo
das cabeças das Árvores do Japão; e as fachadas circulares dos “Royal” ou dos
“Grand” de Scarbro’ e do Brooklyn; e seus railways flanqueiam, cruzam e
pendem sobre as disposições deste Hotel, escolhidas na história das mais
elegantes e mais colossais construções da Itália, América, Ásia, em cujas
janelas e terraços, agora cheio de luzes, de bebidas e brisas chiques, estão

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abertos ao espírito dos viajantes e dos nobres — permitindo, durante o dia, a
todos as tarantelas do litoral, — e até mesmo aos ritornellos dos vales ilustres
da arte, decorar maravilhosamente as fachadas do Palácio-Promontório.
CENAS
A antiga Comédia prossegue em seus acordes e divide seus Idílios:
Bulevares de teatro.
Um longo cais de madeira de um canto a outro do campo rochoso onde a
multidão bárbara evolui sob árvores saqueadas.
Nos corredores de gaze negra, seguindo os passos dos transeuntes com
lanternas e folhas.
Os pássaros da trama se precipitam sobre um pontilhão de alvenaria movido
pelo arquipélago repleto das embarcações dos espectadores.
Cenas líricas, acompanhadas de flautas e tambores, se inclinam nos nichos
dispostos sob os tetos ao redor dos salões de clubes modernos ou salas do
Oriente antigo.
Manobra feérica no alto do anfiteatro coroado de matas, — Onde se agita e
modula aos Beócios, à sombra das florestas móveis, sobre a divisória das
culturas.
A ópera-cômica se divide sobre o palco no ângulo de intersecção de dez
divisórias que se erguem da galeria às luzes.
TARDE HISTÓRICA
Em qualquer tarde, por exemplo, em que se encontra o turista ingênuo,
indiferente aos nossos horrores econômicos, a mão de um maestro anima o
cravo das campinas; joga-se cartas no fundo do lago, espelho que evoca
rainhas e favoritas; há santas, véus, e fios de harmonia, e os cromatismos
lendários, sobre o pôr-do-sol.
Ele treme à passagem de caçadas e hordas. A comédia goteja sobre palcos de
relva. E o embaraço dos pobres e dos fracos nesses planos estúpidos!
Escrava de sua visão, a Alemanha se projeta rumo às luas; os desertos tártaros
se iluminam; antigas revoluções fervilham no centro do Celeste Império; pelas
escadas e cadeiras de pedra, um pequeno mundo lívido e chato, África e
Ocidentes, vão se edificar. E depois de um ballet de mares e noites
conhecidas, uma química barata, e melodias impossíveis.
A mesma magia burguesa onde quer que a mala do correio nos remeta! Até
um físico principiante sente que é impossível submeter-se a essa atmosfera
pessoal, bruma de remorsos físicos, cuja constatação já é uma aflição.
Não! O instante da estufa, de mares revoltos, conflagrações subterrâneas, o
planeta devastado e conseqüentes extermínios, certezas apontadas na Bíblia e
pelas Nornas com tão pouca malícia, e que caberá à gente séria vigiar. — No
entanto, isso não será o efeito de uma lenda!
BOTTOM
A realidade sendo espinhosa demais pro meu grande caráter, — me vi na casa
de Madame, um imenso pássaro azul cinza voando até as molduras do teto e
arrastando as asas nas sombras da tarde. Eu fui, aos pés do sobrecéu que
sustentava suas jóias adoradas e suas obras-primas físicas, um imenso urso de
gengivas violetas e pelos grisalhos de mágoa, os olhos fixos nos cristais e
consoles de prata.
Tudo se fez sombra e aquário ardente. De manhã, — aurora bélica de junho,
— corri pros campos, burro, trombeteando e brandindo minha dor, até que
Sabinas de subúrbio se jogaram no meu peito.
H
Todas as monstruosidades violentam os gestos atrozes de Hortênsia. Sua
solidão é erótica mecânica, sua lassidão, dinâmica amorosa. Sob a vigilância
de uma infância, ela tem sido, no verão de numerosas épocas, a higiene
ardente das raças. Sua porta está aberta à miséria. Lá, a moralidade desses
seres atuais se desincorpora em sua paixão ou em sua ação. — Ó terrível
frisson de amores noviços no chão de sangue e transparente hidrogênio!
achem Hortênsia.
***
MOVIMENTO
O movimento oscilante nas margens das quedas do rio.
O abismo na popa,

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A rapidez da rampa,
A passagem imensa da correnteza
Levam por luzes inauditas
E novidade química
Os viajantes rodeados pelas trombas do vale
E do strom.
Esses são os conquistadores do mundo
À procura da fortuna química pessoal;
Esporte e conforto viajam com eles;
Eles levam a educação Das raças, classes e bichos, nesse navio
Repouso e vertigem
À luz diluviana
Nas noites terríveis de estudo.
pois entre os aparelhos, o sangue, as flores, o fogo, as jóias,
dos registros agitados dessa nave fugitiva,
— Se vê, rolando como um dique além da rota hidráulica motriz,
monstruoso, luz que não tem fim, — seu estoque de estudos;
Impelidos ao êxtase harmônico,
E o heroísmo da descoberta.
Nos acidentes atmosféricos mais imprevisíveis,
Um casal de jovens isola-se na arca.
— É permitida essa selvageria primitiva? —
E canta, se situa.
DEVOÇÃO
Para minha irmã Louise Vanaen de Voringhem: — Sua boina azul voltada
para o mar do Norte. — Para os náufragos.
Para minha irmã Léonie Aubois d'Ashby. Bah! — a erva do verão barulhenta e
fétida. — Para a febre de mães e filhos.
Para Lulu, — demônio — que guardou um gosto por oratórios dos tempos de
Les Amies e sua educação precária. Para os homens!
— Para madame ***.
Para o adolescente que fui. Para o velho santo, retiro ou missão.
Para a alma dos pobres. Para o alto clero.
E também para qualquer culto num tal lugar de culto memorial e entre tais
eventos que nos obriguem a se render, seguindo as aspirações do momento ou
nosso próprio vício sério.
Esta tarde, na Circeto de altos gelos, pegajosa como peixe, iluminada como os
dez meses da noite vermelha, — (seu coração âmbar e spunk), — por minha
solitária prece muda como essas regiões da noite, anteriores às bravuras mais
violentas que esse caos polar.
A todo preço e em todos os ares, até mesmo nas viagens metafísicas. — Mas
não agora.
DEMOCRACIA
“A bandeira se agita na paisagem imunda, e nossa gíria abafa os tambores.
“Nos centros, alimentaremos a mais cínica prostituição. Massacraremos as
revoltas lógicas.
“Em países dóceis e picantes! — a serviço das mais monstruosas explorações
industriais ou militares.
“Adeus aqui, não interessa onde. Legionários de boa vontade, nossa filosofia
será feroz; ignorantes sobre ciência, esgotados pelo conforto; que esse mundo
se rebente.
“Esse é o verdadeiro avanço. Em frente, marche!”
GÊNIO
Ele é o afeto e o presente pois abriu a mansão ao inverno espumante e ao
rumor do verão, ele que purificou a bebida e os alimentos, ele que é o charme
dos lugares em fuga e a delícia super-humana das estações. Ele é afeto e o
futuro, a força e o amor que nós, pisando sobre ódios e tédios, vemos passar
num céu de tempestades e bandeiras de êxtase.
Ele é o amor, na perfeita medida reinventada, razão maravilhosa e
imprevisível, e a eternidade: adorável máquina de qualidades fatais. Sentimos
o terror de sua concessão e da nossa: ó prazer de nossa saúde, élan de nossos
sentidos, afeto egoísta e paixão por ele, ele que nos ama em sua vida infinita...

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E nós o invocamos e ele viaja... E se a Adoração se vai, soa, sua promessa
ressoa: “Para trás essas superstições, esses corpos antigos, esses casais e
idades. Esta é uma época que naufragou!”
Ele não irá mais embora, nem de novo descerá de nenhum céu, e nem
completará a redenção das raivas femininas e das alegrias dos homens e de
todo este pecado: porque está feito, ele estando, estando amado.
Ó seus suspiros, suas cabeças, suas corridas; a terrível velocidade da perfeição
das formas e da ação.
Ó fecundidade do espírito e a imensidão do universo!
Seu corpo! A liberação sonhada, a explosão da graça invadida por uma nova
violência! sua visão, sua visão! Todo velho ajoelhar e as penas se absolvem à
sua passagem.
Seu dia! a abolição de todos sofrimentos sonoros e móveis de uma música
mais intensa.
Seu passo! as migrações mais vastas que as antigas invasões.
Ó ele e nós! o orgulho mais bondoso que as caridades perdidas.
Ó mundo! cristalina canção de novas sinas.
Ele nos conheceu a todos e todos amou. Saibamos, nesta noite de inverno, de
cabo a cabo, do polo turbulento ao castelo, da multidão à praia, de olhar a
olhar, força e afetos lassos, chamá-lo, e vê-lo, e mandá-lo embora, e sob as
marés e de cima dos desertos de neve, seguir suas visões, seu sopro, seu corpo,
seu dia.

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