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celuzlo se

Revista Literária

07 ~ Dezembro 2010
Índice
04
Armando Freitas Filho
Entre ? ! vista

BR.XXI
Ana Tanis
Literatura Brasileira Contemporânea
Bruno de Abreu Isadora Krieger
18
Annita Costa Malufe Chiu Yi Chih Reynaldo Damazio
Beth Brait Alvim Diniz Gonçalves Júnior Roberta Ferraz
Bruno Brum Edson Bueno de Camargo Thiago Ponce de Moraes

42 GEO Literatura sem Fronteiras


Ignacio Muñoz Cristi (Chile) José Landa (México) Juan José Macías (México)

Caderno Crítico
Por uma leitura fenomenológica de Édipo Rei - por Chiu Yi Chih
48
Borges e a poesia: Esse ofício do verso - por Wanderson Lima

64 O que é ? ?
? poesia?
Edson Cruz (Organizador) Beatriz Bajo
Ana Maria Ramiro Laís Chaffe

BIO Vida & Obra


72
Arthur Rimbaud - por André Dick

88 Guilherme Mansur
LÚCIDA RETINA Poesia Visual

celuzlo se
# 07 ~ Dezembro 2010
Colaboraram com esta edição:

Ana Maria Ramiro / Ana Tanis / André Dick


Contato:
celuzlose@gmail.com

André Goldfeder / Annita Costa Malufe


Armando Freitas Filho / Beatriz Bajo
Beth Brait Alvim / Bruno Brum / Bruno de Abreu
Expediente Chiu Yi Chih / Diniz Gonçalves Júnior Os textos e imagens
Edson Bueno de Camargo / Edson Cruz desta revista
Editor: Guilherme Mansur / Ignacio Muñoz Cristi poderão ser usados
Victor Del Franco Isadora Krieger / José Landa para fins não comerciais,
Juan José Macías / Laís Chaffe desde que sejam citados
Projeto Gráfico, Paulo Ferraz / Renan Nuernberger os nomes dos autores,
Diagramação e Revisão: Reynaldo Damazio / Roberta Ferraz o nome da revista
Victor Del Franco Thiago Ponce de Moraes / Wanderson Lima e o link correspondente.

02 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


Editorial
Proximidade das artes

Segundo as palavras de Armando Freitas Filho na entrevista desta


edição, ele diz que: “Sou um ser literário, digamos assim. O que incrementa
para valer minha poesia é a literatura; a leitura de poemas e da crítica,
principalmente”.

No entanto, a sua criação poética também dialoga e faz referência a


outras artes como o cinema, a música e, com mais proximidade, as artes
plásticas. E essa proximidade com as artes plásticas está presente em muitos
de seus trabalhos, a saber: Mademoiselle Furta-Cor, Dupla identidade, Sol e
carroceria, entre outros.

Gostaria de agradecer a colaboração de Renan Nuernberger e André


Goldfeder que foram responsáveis pela elaboração da entrevista.

Na seção BIO – Vida & Obra, um panorama da trajetória tortuosa e do


silêncio precoce do poeta Arthur Rimbaud, juntamente com a tradução de
quatro de seus poemas na versão de André Dick.

Boa leitura.

Victor Del Franco


Editor

Celuzlose 06

Clique aqui
http://issuu.com/celuzlose/docs/celuzlose_06
a
para ler a 6 edição

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 03


Foto: Cristina Barros Barreto
Entre ? ! vista

04 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


Entre ? ! vista

É inegável a dedicação
de Armando Freitas Filho à poesia.
Desde a sua estreia com Palavra (1963),
ele tem participado ativamente
do cenário cultural.

A partir de 1979, lança um livro


a cada três anos além das edições de autor
em parceria com outros artistas.
Seu livro mais recente é
Lar, (Companhia das Letras, 2009).

Nesta entrevista, ele fala sobre a relação


da sua poesia com as artes plásticas,
suas influências e diálogos poéticos
além de uma breve reflexão sobre
a sua trajetória e a sua produção atual.

Entrevista feita por


Renan Nuernberger e André Goldfeder

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Em termos do trabalho com a forma, e das Aprendia, na prática, que a arte podia nascer, ge-
formas de conceber a atividade artística, você nuinamente, e com igual mérito, de disposições
acha que sua relação com as artes plásticas diversas, até mesmo antagônicas: se Rubens pin-
teve impacto sobre seu trabalho como poeta? tava com os pés no chão, Roberto tinha a cabeça
Como? E o cinema, que aparece, por exemplo, nas nuvens. Por quase dez anos as exposições
sob a forma do “corte brusco / de luz” (“Na
área dos fundos”) ou em alusões a Godard
(“Godardiana”), ou a epígrafe de Fio Terra?

Sou um ser literário, digamos assim. O que


incrementa para valer minha poesia é a literatura;
a leitura de poemas e da crítica, principalmente.
Mas se isso é a verdade primeira e fundamental,
não posso deixar sem menção outros aditivos que
constituem – e como – a minha base. Conheci
Rubens Gerchman e Roberto Magalhães em
1958. O primeiro foi meu colega de colégio. Na-
quele tempo, todos nós éramos aprendizes totais.
Se sempre tive uma queda natural para apreciar
pintura e pintores, o convívio estreito com eles,
seguramente, apurou essa tendência e educou o
meu gosto para os traços mais inovadores, da
minha geração, nas artes plásticas. Pude ver, na
intimidade, o aparecimento daquelas vocações
que cresciam, como a minha, naqueles anos.

Capa de Mademoiselle Furta-Cor (1977)


livro feito com litogravuras de Rubens Gerchman

Poema "Negra"
com litogravura de
Rubens Gerchman

Mademoiselle
Furta-Cor

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caseiras de quadros, desenhos e poemas, no dois livros: Mademoiselle Furta-Cor e Dupla iden-
dia-a-dia comum, eram sujeitas a críticas à tidade. Na semana de sua morte, combinamos no
queima-roupa, quando a tinta do pincel e da telefone um terceiro: Posto policial, que espero le-
caneta ainda não tinham começado a secar, e, no var a cabo. Outro encontro, muito rico para mim,
que me diz respeito, fizeram com que eu, sem com uma artista plástica da geração anterior à
deliberação consciente, trouxesse para a minha minha, foi com Anna Letycia: tive um texto meu em
escrita, a cor e a nuança, o valor do esboço que prosa, Sol e carroceria, primorosamente ilumina-
pode, por si só, ganhar o estatuto de obra acaba- do por suas serigrafias, o que confirma o valor da
da. Mais: a suposição que a poesia moderna, ou a interdisciplinaridade no autor literário que pude
experiência poética contemporânea em geral, por ser, mesmo sentindo, o tempo todo, que o que
sua natureza intrínseca, por ser um instrumento colore e percute fundo, o que corta súbito, num
de ponta da linguagem, é o gênero que acolhe, piscar de olhos, dia e noite, é a literatura.
com mais naturalidade, aportes de outras artes.
Minha composição literária, por isso mesmo, volta
e meia, se vale, inconscientemente, dessas apro-
priações/contribuições, já que elas estão na ori-
gem da minha formação. Posso ainda dizer que,
às vezes, essas influências derivadas de outros
instrumentos de voo, como a montagem jump cut
de Godard, a percussão stravinskiana, por exem-
plo, podem ter alcance tão grande quanto o da
literatura, até por uma razão psicológica, de “des-
compressão”: por pertencerem a outros campos,
a impregnação é mais fácil, pois se dá sem a
defesa instintiva que se arma quando sentimos
que se aproxima a sombra, cúmplice e competi-
dora, que se formou com a mesma textura da sua.
Além de capas de livros meus e apresentações de
exposições de Rubens, a nossa tabelinha rendeu

Capa de Sol e carroceria (2001)


álbum feito com serigrafias de Anna Letycia

Texto e serigrafia
de Anna Letycia para
Sol e carroceria

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Lendo sua obra reunida, percebe-se que em Você publicou em Lar, (2009) poemas
muitos momentos você dialogou abertamente "autobiográficos" bastante distintos da
com a obra de seus pares: a leitura definidora tônica encontrada em poemas de Fio terra e
de A luta corporal de Gullar, o questionamento Raro mar. No entanto, os poemas mais
da rigidez da Poesia Concreta ou a aproxima- recentes que você publicou na imprensa
ção (não sem tensão) com a Poesia Marginal, aproximam-se muito mais da poética dos
etc. me parecem índices disso. No entanto, livros anteriores. Sabemos que você publica
não é possível identificar com tanta clareza um livro novo a cada três anos e imagino que
esse diálogo com a poesia produzida da 2012 não será diferente – portanto, você deve
década de 1990 em diante. Você poderia citar ter um material mais ou menos organizado
poetas de gerações mais recentes que "apare- para a futura publicação. Lar, foi uma "pau-
cem" em suas obras ou, pelo menos, jovens sa" entre dois livros formal e tematicamente
poetas que você considera interessantes? mais próximos ou algo desta experiência
estética encontra-se na poesia que você vem
O “diálogo” só foi aberto, conscientemente, a escrevendo atualmente?
partir de Numeral/Nominal (2003), antes o que
havia era “angústia da influência”, ou influência Não me parece que os poemas de Lar, (2009)
pura e simples. No meu caso, a influência seria sejam tão distintos assim dos de outros poemas
mais influenza sem cura que peguei com de livros meus. Afinal, no citado Fio terra, o poe-
Bandeira, Drummond, Cabral, Gullar. Não há ma que dá título ao volume se não é, stricto
remédios para esses vírus virulentíssimos. A sensu, um diário do autor, ele é o diário de um
saída é que pode haver mutações, novas poema que aquele autor escreve. Creio que
cepas. Em mim, salvo engano, houve, porque se desde Palavra (1963), já há indícios da memória.
não houvesse, estaria replicando, sem tirar Em De corpo presente (1975) o eu, começa a
nem pôr, as “doenças” deles. E isso não ocorre, mostrar, aqui e ali, a sua cabeça, e, progres-
a meu ver. Talvez até por serem quatro foi mais sivamente, sua cara. Ver, nesse sentido, a seção
fácil encontrar desvios, já que eles chegavam “Memorial”, por exemplo. O que houve no livro
até a mim, mesclados por natureza, me de 2009 foi uma concentração buscada e
facilitando esse princípio de amostragem conseguida. Digo na orelha que se trata mais de
“driblada”. Com a Poesia Concreta e Marginal o um “livro da memória do que de memória”. Por
que houve, realmente, foram “contrastes e isso, em vez de autobiográfico, seria “alterbio-
confrontos”. O que me causou espécie nessa gráfico”, pois os poemas ficcionalizam, o tempo
pergunta foi a constatação, que eu não tinha todo, a própria escrita, o próprio assunto, bem
realizado ainda, de que não há diálogo, dentro da chave interpretativa cunhada por
influência, contraste e confronto com a poesia Antonio Candido quando analisa a obra de
feita na década de 1990 em diante. Por certo, Graciliano Ramos: confissão e ficção. Em
há curiosidade, leitura, mas não passa daí.
Com toda a certeza, é um sinal da minha
velhice. Quem sabe, depois desse toque, desse
cutucão, vou conseguir, me arrastando, me
engalfinhar, para o bem e para o mal, com a
minha posteridade. De todo modo, posso citar
duas poetas que considero muito interes-
santes: as acompanhei de perto desde que
tinham 15 anos (elas chegaram ao livro aos 20 e
poucos e ainda falta um bocado para chegarem “No meu caso, a influência
aos 30): Alice Sant'Anna, com Dobradura e
Laura Liuzzi, com Calcanhar. Talvez precise seria mais influenza sem cura
nessa quadra de sentidos rebaixados, que só
tende a piorar, dessa proximidade, física e que peguei com Bandeira,
anímica, para sentir o sopro do novo, que me
passaria despercebido se não houvesse essa Drummond, Cabral, Gullar.”
intimidade continuada.

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Raro mar (2006), outro livro citado na pergunta, Seu projeto poético apresenta uma clara
poemas como “Espelho e cego”, “Emulação”, continuidade e consistência propositiva e
“Limpo e seco”, “Duas mesas”, “Segredo”, sua linguagem tem traços pessoais muito
“Relógio” “Noctívago”, poderiam se acomodar, definidos. Há momentos em que os cami-
sem discrepância, à sequência daqueles que nhos criativos que lhe aparecem são impre-
estão na segunda parte de Lar, assim como toda vistos? Você identifica momentos cruciais,
a suíte drummondiana e de poemas pontuais de virada, ou de revisão em sua trajetória?
sobre outros autores, também. Puxar pela me- Distingue nitidamente “momentos altos” de
mória é atividade que não tem fim, propria- sua produção?
mente. Os poemas inéditos que apareceram
nesse ano no Suplemento do Estadão, “Sabá- A posteriori, às vezes muito a posteriori, per-
tico”, são uma prova cabal disso. De fato, po- cebo essa “continuidade e consistência” que
deria publicar meu próximo livro em 2012, vocês atribuem ao meu “projeto poético”.
conforme o hábito, mas como em 2013, comple- Sinceramente, só me dei conta que havia, de
to 50 anos de poesia édita, não me custa (?) fato, uma linha orgânica que costurava um livro
esperar a data redonda para lançá-lo. Enquanto ao outro, foi quando acabei de montar Máquina
espero, procuro esmerar-me, mesmo sabendo de escrever, reunião de minha poesia até 2003.
que isso é uma quimera; mais vale a outra A sensação plena veio chegando quando o livro
opção, a de escrever outros poemas para esse foi publicado. Um pouco pela recepção e um
livro do cinquentenário, que pelo visto vai ser pouco mais pela minha percepção. O sentimen-
volumoso. to foi a de que sempre eu corria atrás de mim. Os
instantes de “virada”, “revisão”, “momentos al-
tos”, variam; por isso não posso apontar, com
segurança, este ou aquele. Se me deixasse
guiar pelos leitores ou pela crítica ficaria mais no
ar do que quando procuro esses marcos com os
meus próprios botões. Sou mais de “ejetar” do
que de “projetar”, embora reconheça, como já
disse, que a minha escrita, ou minha composi-
ção, ou meu engenho, sempre misturou cálculo
e acaso. Mas essa formulação ficou clara so-
mente de uns 12 anos para cá. Antes disso,
podia, no máximo, desconfiar e não afirmar,
como faço agora.
Foto: Alex Sant´Anna

Quando escreve sobre Drummond ou Cabral,


por exemplo, fala em termos de algo “inal-
cançável”, ou de algo que lhe é incompatível,
estranho (no caso de Cabral). O que distancia
as obras da sua geração das desses cânones
brasileiros?

Posso falar por mim, e em poucas palavras ditas


com amor e raiva: a excelência deles.

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Entre ? ! vista

Você, recentemente, assinou o manifesto de artistas e intelectuais


pró-Dilma. Pouco antes, publicou um poema na Folha de S.Paulo
sobre o caso do goleiro Bruno. Obviamente, um poema ultrapassa
a circunstância e torna-se autônomo mas não se pode ignorar a
instância primeira, o material bruto sobre o qual você trabalhou. A
pergunta, tendo em vista um exemplo extra e outro intraliterário,
é: a poesia brasileira neste início de século deveria ter uma
vocação pública? Você considera que os poetas hoje tenham se
afastado deste tipo discussão? Se sim, por que isso teria
ocorrido?

De novo, falo por mim: quando publiquei Palavra (1963), Eduardo


Portela, na resenha do livro reclamou, com razão, que minha poesia
passava ao largo do momento político que se vivia, que não o refletia
em suma. Nunca mais esqueci essa observação e procuro atender à
demanda externa, sempre que possível, dentro das minhas
possibilidades. Já em Dual (1966), entro, de uma maneira tosca, é bem
verdade, na poesia engajada. A preferi assim à outra, condoreira, tipo
Violão de rua. Os poemas mais engajados foram retirados da edição de
Máquina de escrever: achei que eles já tinham cumprido o seu papel.
Um deles, “Retrato falado”, segundo me disseram, junto com outro
poema de Mauro Gama, foram responsáveis pelo fechamento de uma
Bienal do Livro em São Paulo. Os poemas dessa exposição eram
apresentados em ampliações fotográficas, e causavam, por isso
mesmo, grande impacto. O crítico Fábio Lucas levou a exposição, se
bem me lembro, para uma mostra nos Estados Unidos. Se me for dada
a oportunidade para fazer uma nova edição de minha poesia reunida,
penso até em colocar, numa seção em separado, os poemas que retirei
dos livros Dual e Marca registrada, quando publiquei Máquina de
escrever, pois me arrependi de tê-lo feito. Minha poesia, portanto, de
1966 em diante, sempre procurou refletir o que acontecia “no sereno”.
O melhor exemplo disso, segundo penso, é “A flor da pele” (1978),
objeto da dissertação de mestrado de Mariana Quadros, foi publicado,
primeiramente, num tabloide de papel jornal, depois no livro À mão livre
(1979). O poema, “Penalidade máxima”, publicado no caderno
“Ilustríssima” da Folha de S.Paulo, que vocês aludem, e querem
publicar junto com essa entrevista, reflete o horror do caso Bruno, na
verdade faz parte de um tríptico. Achei que para o jornal o poema
cumpria melhor seu objetivo se publicado sozinho. De todo modo, foi
um poema que causou controvérsia: a recepção foi majoritariamente
positiva, e negativa ou “desconfiada”, em alguns casos. Os que não
gostaram acharam que eu “enaltecia” o goleiro, ou que o poema seria
melhor, se eu (o poema) falasse pelo “ponto de vista do cachorro”, se
entendi bem a opção estética-zoológica. Não sei se conseguiria:
apesar da idade, não sou do tempo em que os animais falavam. De
qualquer maneira, posso dizer que a observação contrária, mesmo a
mais tola, embora eu não a busque (não sou masoquista), é sempre
inesquecível, faz a gente pensar contra o adversário ou inimigo, contra
nós mesmos, enfim, o que, bem aproveitado, cria têmpera, digamos
assim. João Cabral me disse um dia que se um crítico obscuro, ou que
ele não conhecesse, ou um chauffeur de táxi, fizesse um comentário
que criticasse negativamente o que ele escrevia, não esqueceria “para
todo o sempre”. Se era assim com ele, imagine comigo.

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PENALIDADE MÁXIMA

Belo, Bruno, bronzeado pela cor e pelo sol ardente


com mais de um metro e noventa e mãos que agarram
impassível, com o olhar parado das estátuas frígidas
dos ídolos indolores, encara, sem expressão, o batedor
o tiro, à queima-roupa, indefensável, que o irá fulminar.
Em cima da linha fatal, não pisca, não move um músculo
não sente sequer sua metamorfose, que se não chega à pele
o desossa por dentro, e depois o esvazia de suas entranhas
expostas, cruas, para consumo de todos, e o horror fedorento
das suas carnes, devoradas sem nenhuma temperança
ou anestesia. Mas a dor ainda não chegou apesar do crime
começar a pesar atrás dos olhos, cada vez mais mortiços
dos ombros caídos desde nascença, mas só agora percebidos.

Direto no computador para não sujar as mãos, me entrego


intoxicado pelo mal que a divindade descrita acima exala:
suor de atleta, mistura de glória e grama, se evapora rápido
ou desanda no suor cúmplice e acre, sem auréola, dos asseclas
em sítio de fachada impecável que esconde a casa carcomida
incompleta, de tijolos aparentes, ilhada por metralhadora e mastins.
Aqui tudo é de carne apodrecida, de fúria de tiros dia afora ferido
que demora sobre o cepo sanguíneo, sob o sol estridente disparado
por facas cegas pela maldade e ferrugem que antes de cortar, mastigam
para que o sofrimento não se aplaque e permaneça aceso, esportivo
e um resto de sexo corrompido possa ainda comer, em rodízio, empalar
o corpo dominado pelo desejo predador que despedaça, e ele corresponde
preso à sua sina, disjecta membra, até o fim, espasmódica, torcida.

(novembro de 2010)

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 11


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Revendo sua trajetória desde Palavra, Em alguns depoimentos você conta que a
pode-se dizer que sua poesia absorveu cri- leitura de crítica e teoria literária sempre foi,
ticamente desde um tratamento concreto da para você, uma atividade complementar à
palavra quanto procedimentos disruptivos, leitura e a escrita de poesia. Você acredita
cultivados de modo saliente em certas cor- que essas leituras tiveram algum impacto em
rentes poéticas, por exemplo, ao longo dos certas etapas da concepção contínua de seu
anos 1970 (inacabamento como componente projeto poético, em escolhas, recusas, revi-
do resultado artístico, desestabilização da sões? Como, e em que medida, entra a refle-
forma, etc.). Por outro lado, sua dicção alta- xão sobre a literatura em seu processo cria-
mente pessoal parece manter relativamente tivo? Essas duas esferas podem ser confli-
íntegra uma voz lírica, ainda que problema- tantes no trabalho de um escritor?
tizada e interrompida por uma dinâmica que
dá corpo a uma reflexão sobre as dificul- Não fiz faculdade, num ato de insubmissão
dades da forma. Você poderia tentar situar o idiota contra o modelo familiar. Graças a Deus fiz
que enxerga como traços singulares de seu Antonio Candido, que é uma Universidade intei-
estilo face a alguns de seus interlocutores ra, a vida toda. Essas leituras da crítica vieram
(Ana Cristina Cesar, Sebastião Uchoa Leite, suprir, desordenadamente, como acontece com
Tite de Lemos)? os autodidatas, que levam muito mais tempo
para chegar aos resultados necessários e razo-
Minha poesia, creio, tem poucos pontos de áveis, minhas carências. Com toda a certeza me
contato com a poesia desses tão queridos ajudaram muito desde moço. Fui, ainda sou, um
amigos. Minha vida, ao contrário, não. Como bom leitor. Como já disse antes, não havia a
responder com alguma alteridade, se não con- intenção de um projeto; o que havia, o que há é
sigo, se não quero dar um passo atrás para ter uma vocação que precisava ser alimentada.
uma visão melhor que me distancie ainda mais Como tive a sorte de viver numa casa em que os
deles? Creio que cabe à crítica realizar essa livros e o conhecimento era o que de maior valor
operação, se ela achar necessária. se podia ter, consegui ir em frente e chegar a
Foto: Sergio Liuzzi

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este questionário. A reflexão entra pelas janelas José Miguel Wisnik caracteriza De cor como
abertas, pelas leituras e pelas conversas, pri- um mergulho “no deserto especular em que
meiro com a família, depois com os amigos. o sujeito se abisma em moldura nenhuma”.
Nunca houve conflito entre o saber adquirido e o Nesse sentido, pode ser atribuída à sua
meu ofício, a minha criação poética, muito pelo poesia, como um todo, um ímpeto fortemente
contrário. O instinto nunca foi travado pela ra- individual, de prospecção da poesia a partir
zão. Talvez por ele ter sido sempre mais forte do de uma experiência de descoberta pessoal.
que ela? Acho que não: o que houve, pensando Especialmente em seus últimos livros, con-
bem, foi um equilíbrio natural de forças, que não tudo, uma hipótese de leitura possível seria a
são opostas. de que sua indagação acerca dos limites da
linguagem poética parece enfrentar um de-
safio inscrito em um momento coletivo de
perplexidade diante da abertura total de ho-
rizontes para a criação poética, tal como a
vivenciamos hoje. Interessa a você tentar
pensar se e de qual maneira sua meditação
individual dá corpo a um questionamento,
talvez, histórico e, portanto, coletivo?

Não sinto ou não sei dessa “abertura total de


horizontes para a criação poética”. Melhor: não
sinto ou não sei se essa abertura contempla
minha criação poética. Melhor ainda: não sinto
ou não sei, porque minha criação poética sem-
pre partiu de uma espécie de confinamento, ou
de uma claustrofobia irremediável do eu lírico,
que mais se espreme do que exprime, isto é, ele
é fruto e consequência de uma situação sitiada,
ao mergulhar no “deserto especular” (sem ne-
nhum espetáculo, acrescento), que fala Zé
Miguel. Penso que essa condição tem uma
historicidade obrigatória, pois ela se arranha nas
paredes estreitas da contingência do próprio
mergulho e carrega sua imanência imediata. Se
ela vai chegar a ter uma amplitude coletiva, uma
“transcendência”, só o tempo poderá dizer. O
que sinto e sei, agora, é que esse mergulho não
desemboca em nenhum mar.
“Fui, ainda sou, um bom leitor.
Como já disse antes,
não havia a intenção de um projeto;
o que havia, o que há
é uma vocação
que precisava ser alimentada.”

Nas 4 páginas seguintes,


poemas de Armando Freitas Filho.

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PRIMEIRO LIVRO

Não parava em pé.


Não tinha qualidade
de vida bibliográfica
porque faltava
segundo o ditado
o prumo e o peso.
Sua capa retratava
as cores com as quais
o autor se vestia:
branco da camisa
calça cinza
cinto e sapatos pretos.
Era também como ele
sentia e experimentava
a existência:
contraste radical
com nuança única
sóbria, sem variação.
A mão paterna o encadernou
em pelica impecável:
para proteger do tempo
que rasga e apaga
o volume frágil
de lombada magra.
Com enxerto extra de folhas
fingidas, falsas, em branco
para encher o corpo no palco.
Para parar em pé.

(Poema inédito em livro)

Capa de Rubens Gerchman


para Palavra (1963)

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CICLO

O vento desvenda
senda noturna
despertando semente
que engendra
ritmo de ar
semovente
linha turva
curva em sombra
volteio no espaço
enleio
luz, repente
fruto
fruto crescente
– dente –
semente.

(Palavra – 1963)

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 15


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MANUAL DA MÁQUINA CDA

A máquina é de pedra e pensamento.


Funciona sem água, deslizando
seu lençol de laje e lembrança
aberto e desperto por natureza.
Tem por motor o atrito, a tração
a alavanca que levanta quem lê
e o modela, diferente, a cada passada
pois se faz também diversa:
novos perfis que se enfrentam
assimétricos, e que não esperam
o encaixe certo, feito à régua
mas o impossível, irregular, sem
efes-e-erres, com recortes irritados
se aproximando, como no boxe —
através do choque, onde se juntam —
íntimos, podendo parecer ternos
apesar dos dentes, roldanas, o amor
arranca, em chão de escorpião.
Quando revista, de perto, por dentro
a máquina — que não se passa a limpo —
se compreende um pouco do engenho
do mecanismo de suas linhas partidas.

(Numeral/Nomimal – 2003)

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ANTIQUÁRIO

Mil folhas. Mesmo em algumas das mais


passadas, um pouco do sabor, um risco
de doçura e amargo, é remanescente.
Anamnésia construída pelo fato
e pela imaginação: vai do anátema
ao enaltecimento, expressos em alta voz
até ao murmúrio cifrado no coração.
O acervo de uma vida se dispersará
depois de ela parar: alguma coisa
aqui, nesta casa, para lembrar quem se foi
fica, sem roubo nem degradação, sobrando.
O resto, espalhado na desordem dos arquivos
dos sebos e brechós, nós defeitos
na mudança para lugar nenhum
perdido no limbo, reciclável em outro corpo
e destino, longe do clamor da hora
cada vez mais afastado do limiar original
da montagem do dia, à margem do relógio
rasgado por mãos alheias, posto fora
o sonho, que se açucara, perde o gosto, e fere.

(Lar, – 2009)

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BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Ana Tanis
Paulistana e nascida em 1987. É formada em Letras pela USP
e em Psicologia pela PUC de São Paulo. Tem interesse por tudo
o que é palavra e ainda não sabe bem o que fazer com isso.
Nunca teve antes nada publicado. E-mail: anatanis@hotmail.com

Conversa de bar

Guarda este recado:


toma nota em rasgo de guardanapo.

Escuta que te advirto


evita o peso do arrependimento.

Vendo este conselho


ao preço de uma mirada:
– não aceita de estranhos sequer uma palavra.

Gasosa

é do tamanho do segredo
a dose que brindamos:
crua
prepara o copo, o gole:
a dor líquida a gente
engole
tremulando em careta
medita a garganta:
melhor a próxima:
– tomar com soda

20/11/09

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BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Insight

A lógica do espelho
não é a mesma
do travesseiro.
Pomba albina
teu verso principia.
Gesto de menina pomba, moça Germina.
Voa, alva, canta
A derradeira ave, ave revelação!
Revive, alva, venta
um sopro-ovo-canção.

10/10

Fenda

Minha pele é papel: rasga.


Fina faca fere e sangra

quando se escreve nela


a cicatriz de mim.

29/05/10

Copo pela metade

bolhas de solidão
na sua coca
com gelo e limão

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BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Annita Costa Malufe


É poeta, autora de Como se caísse devagar (Editora 34, 2008),
Nesta cidade e abaixo de teus olhos (7Letras, 2007)
e Fundos para dias de chuva (7Letras, 2004).
É doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp e publicou o ensaio
Territórios dispersos: a poética de Ana Cristina Cesar (Annablume/Fapesp, 2006).

só me apaixono pela mais distante


paisagem apertar os olhos para
achar o foco focar pela última vez
o voo diurno daquelas asas
eram momentos de dispersão momentos
de aplacar o foco aplacar a vista o desacordo
da vista só me apaixono pela paisagem
distante recobrar começos
continuações eram momentos de
dispersar escolher os objetos que se espalhavam
movimento inverso movimento
reverso da procura pelas asas que circundavam
a montanha encontrar o foco e seguir só me
apaixono daqui olhando a possibilidade da
maior distância ali onde a miopia define os passos ali
onde posso me conter posso conter os limites deste
corpo o compasso dos meus braços finos
o raio que traço deste centro apenas
geográfico apertar os olhos para achar o
foco repentino uma visão deste voo diurno o limite
da miopia é também a limitação dos passos aí onde
começam
continuam os passos no preto na turbulência aí
na paisagem mais distante a vista
desacordada a possibilidade daquilo
que chamam paixão daquilo pelo que
me apaixono olhar disperso olhar focado mas só
pela paisagem mais distante

20 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

você também
escolhe o enquadramento oblíquo
a câmera em diagonal cortando a paisagem
ligar os pontos desconexos de uma paisagem com
uma transversal o olhar oblíquo traçando
uma possibilidade de ampliar o foco ampliar
o enquadramento parece que
a diagonal tem esta função você tenta fazer
uma paisagem caber na objetiva mas
quando os limites extrapolam você precisa
inclinar levemente dobrar a paisagem
encontrar um ponto de apoio enviesado um ponto
de apoio que desloque o quadrado da lente
como se a moldura ganhasse uma mobilidade
o enquadramento oblíquo
deslocando os vértices da forma então de esguelha
há um losango há uma paisagem deslocada
tombada uma paisagem nos olhando de viés
como se ela mesma agora tombasse a cabeça ela mesma
nos olhasse
é ela agora que nos olha
o pescoço torcido o rosto quase apoiando-se no ombro
uma dúvida uma leve renúncia apenas
ou não
o que vejo talvez tenha o gesto da proximidade
talvez o deslocamento para
olhar melhor focar o que está na diagonal
da vista o que não se completa no ângulo reto o que
não cabe no ângulo reto da objetiva ela agora
tomba o rosto para nos olhar de viés é ela agora que nos olha
uma aproximação da perspectiva uma
ampliação o deslocamento dos vértices o apoio
deslocado apoie sua cabeça aqui nesta imagem apoie-se
em mim sobre meus ombros incline-se
sou eu que te olho daqui eu
que te olho de viés procurando a diagonal o foco
a fresta enviesada uma ampliação da perspectiva uma
proximidade que não cabe nos limites do ângulo reto

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 21


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Beth Brait Alvim


Nasceu eu São Paulo, 1952. Tem atuação em teatro, cinema, vídeo
e participação em oficinas, cursos e palestras sobre literatura e cultura,
além de eventos literários, debates, saraus. É responsável pelas áreas de
Literatura, Teatro, Artes Plásticas e Visuais do SESC Interlagos, São Paulo.
Publicou, com o apoio do ProAC, Visões do medo (Escrituras, 2007).
Blog: www.bethbraitalvim.blogspot.com

Líquido

índio noturno
bebo seu líquido
sua chama
que em mim tanto
acalma quanto
ferve

Leite

sou forte
meu leite de mamoeiro sadio
mamei-o todas as manhãs
até um calendário de mil anos Fruto
ficar completo
não lambuzo o beiço
nem salivo doce diante
do meu fruto predileto
a casca áspera no caminho do seu pomo
lanha-me a garganta

não lambuzo o beiço


nem salivo doce

engulo seco

22 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Sede

quando meu ser enfim palpita


já é tarde
tudo está em seu lugar
eu
que passo o dia arranjando a vida
na hora da sede
corpo fechado
viro a cara pra parede
e durmo com água na
boca
antes que amanheça a ira do já posto
arrisco um jogo e um destino
aprumo o corpo e cubro a língua de limo

sorvo o sol com raiva e gosto


chupo o sal e o açúcar dos
meninos

antes que o dia se curve à sorte


arranco os dentes da fera imposta
farejo entulhos atrás de portas
e como tudo o que me enjoa

engulo o engulho
papa amarga e grossa

até que um engasgo me cuspa


fora
Media luna
até que um aborto me vomite
sem forma
nada resta de concreto até que meu ventre se revire
do sal da úmida noite e me devolva
do meu coiote na terra
de mim lambendo suas nervuras
e dos rasgos dos seus cactos

eu ranjo do suor da eternidade


e deliro

assim mesmo de arco-íris e limbo

o amor

é meu coração cheio de lascas

deusa presa a um mural de Oaxaca

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 23


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Bruno Brum
Nasceu em Belo Horizonte, 1981. Estudou História, Letras e Design.
Escritor e designer gráfico, publicou os livros Mínima Idéia (2004)
e Cada (2007). Trabalhou no desenvolvimento da identidade visual
da ZIP (Zona de Invenção Poesia &, 2005) e
da Revista Roda – arte e cultura do atlântico negro,
editada dentro da programação do FAN entre 2006 e 2008
(Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte).
Entre 2005 e 2009, coeditou a Revista de Autofagia, periódico voltado
para a publicação de poesia e suas interfaces com as mais diversas
linguagens artísticas. Atualmente vive em São Paulo e trabalha no livro
Anaeróbica, vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2010,
na categoria poesia. A publicação do livro está prevista para o segundo
semestre de 2011. Portifólio online: http://www.brunobrum.blogspot.com

CIFRA

INTERESSANTE
Uma época não é
necessariamente um
conjunto de dias, meses Você mostrou.
ou anos, podendo ser Você acha bonito.
medida em horas, minutos, Você acha interessante.
segundos, o que sugere E por isso acha que deve ser mostrado.
muitas épocas em um Você colocou lá
mesmo dia, mês ou ano, para que todos vissem,
ou mesmo em uma mesma porque decerto supôs
hora, minuto ou segundo. que seria bonito,
Uma época não que seria interessante
é necessariamente que todos vissem.
um conjunto de ideias.

O CONTRARREGRA VÊ DRAGÕES CONTRA UM FUNDO AZUL

O cowboy sentado, folheando uma revista, inclina levemente a cabeça,


tomando o cuidado de não olhar para a câmera.

O cão pastor salta por sobre os latões de lixo, derruba o bandido e volta para
receber outro biscoito.

A multidão ergue os braços e grita um pouco mais alto na segunda tomada.

O vento passa e volta para a hélice.

O pássaro passa e volta para a caixa de ferragens.

24 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

PRIMEIRA PROPOSIÇÃO:
A MENSAGEM VERMELHA

Ao olharmos através de um vidro


vermelho, a escrita vermelha
não será vista no fundo vermelho do papel.
Cabe olhar através de um vidro
verde: assim, a escritura será vista SEGUNDA PROPOSIÇÃO:
na cor preta sobre o fundo verde HOW TO READ
do papel: o vidro verde não permite
a passagem da cor vermelha da palavra
“ventosa”. Supondo que o papel
permita a passagem
da luz e se encontre
a uma distância ípsilon
do texto, notaremos
os feixes luminosos refletidos
nas paredes brancas da página
(entre as letras)
sobrepondo-se em toda
a sua extensão.
Em consequência da estrutura
fibrosa e do grande número
de poros, a dispersão da luz
na superfície se intensifica,
tornando impossível a leitura.
Se utilizarmos cola ou água
para encher os poros,
uma vez que o índice
de refração das mesmas
é semelhante ao índice
de refração do papel,
diminuiremos a dispersão
da luz, que não sofrerá
deslocamentos sensíveis.
Assim sendo, o texto
poderá ser lido
com facilidade.

Os poemas desta página foram publicados no livro Cada (2007).


As versões aqui apresentadas são adaptações gráficas
feitas especialmente para a revista Celuzlose.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 25


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Bruno de Abreu
Nasceu em Piracicaba, interior de São Paulo (1992).
Ainda não tem livro publicado, mas mantém um blog de poesia
e variedades: http://desembocadouro.blogspot.com

seguir com os olhos a sarjeta recém


clareada, 360º
de um branco novo sob
luz de outono
encurvar
o pescoço
para enxergar o contorno depois
de quando a circunferência
vira as costas
não leva a
lugar algum, não torna
nada mais
simples
mas note
como o branco anda
ainda mais
branco
e como dói
nos olhos
seu transcender imediato
e movediço
de permanência
– meio-dia

com você eu poderia


rasgar ao vento trajetórias de calendário
sem uma dificuldade
mórbida de apostilas em espiral
e listas telefônicas

26 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

crianças

para elas
que ainda pensam com os cabelos
revoltos

não fazer ideia é distância


impercorrível

feito
– tão impossível quanto –
aforismos
damascos
ou documentários
em voice over

para elas que


ainda pensam
com os cabelos
revoltos

não fazer ideia é tão


tão estapafúrdio quanto
a total
ausência da possibilidade
de se retrucar ou
"o que não tem remédio já está remediado" –

para elas
que ainda gostam do que ainda
gostam
para elas que ainda
para elas que ainda pensam com os cabelos acham tudo bonito
revoltos sinceramente

e ainda não solenizaram com marcas e ainda não tiveram seus desejos
[permanentes remediados
o ato de franzir
o cenho tudo que é longe cabe
em qualquer jardim
ou seção de roupas de loja de
[departamentos

– para elas que ainda


pensam com os cabelos
revoltos

e procuram sóis feito rostos


com as pontas dos dedos

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 27


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Chiu Yi Chih
Nasceu em Taipei, capital de Taiwan (1982). Morou em Hong Kong, China e Macau.
É professor de filosofia e literatura, poeta, escritor e ensaísta. Bacharel em
Letras Clássicas (Grego/Português - USP) e mestre em Filosofia Antiga pela USP
com a dissertação A eudaimonía na pólis excelente de Aristóteles.
Foi premiado em 2o lugar no III Festival de Literatura da Letras USP – categoria
Poesia. Publicou poemas, ensaios literários e filosóficos em revistas como
Cronópios, Casulo, Ounão, Ágora e Zunái. Integrou a Antologia Poética das Artes.
Realizou palestras de filosofia e literatura na USP e UNICAMP. É colunista da
Revista Zunái. Atualmente trabalha com cursos de filosofia, literatura e produção
textual em institutos e faculdades. Em breve lançará o seu livro Naufrágios pela
Editora Multifoco, integrando o Selo Orpheu.

AQUELE QUE EU FIZ DE MANHÃ

para Piva, Gustavo e Irael

sem nenhuma culpa


A ALMA ESTIRADA
NAS BRASAS
eu vou saindo do Embu das Artes
como quem suga a fotografia das pétalas
eu vou colhendo uma lágrima do vento
uma retina desenterrada
as janelas deságuam as carcaças dos automóveis
eu vou contornando uma larga rolha
contraindo a gotícula do amante arco-íris
os braços da clareira
enrubescem
diante do sortilégio
anjos de Omulu martelam os ossos de algumas abelhas
eu vou arrancando
as mãos
caindo das garrafas
ferramentas se ferem
debaixo de meus cabelos
debaixo de meus sonhos
os ladrilhos me costuram
até nas cordas
abraçarei os alumínios
o Latido
latejante
rádio rico de almas
o figo da Índia
eu vou escorrendo
NA IMENSA FOGUEIRA

(Poema do livro Naufrágios)

28 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

PHILÓSOPHOS
(Poemas inéditos)

DESPERTAR DE SPINOZA

do seu sono Spinoza emerge, camaleão das flâmulas e das placentas – ele
arqueia os seus ombros de escaravelho, acende três velas para a sua vigília. no
fundo de seus olhos tudo flui: os besouros, os caracóis, os vermes, os fungos.
implacável, esse músico retalha o infinito – o que é esse ser cuja substância não
depende de outra forma, placa erigida em bronze escarlate? – ser em si e por si
cuja essência espreitamos nas Brasas da Constelação?

CRISTAL DE FREDERICO NIETZSCHE

CRISTAL NA PELE DOS VULCÕES

santidade arruinando as crostas da cordilheira

enigma-movimento

pirâmide de cem mãos poço dos magos –

Frederico Nietzsche, o próprio vulcão que caminha no precipício

onda-carvalho porta que derruba as geleiras

devasso, desvairado, destemido, depravado, destronado, descabido,


desastrado, desordenado, desterrado, desarrazoado, denodado –

o próprio precipício arrastando

os melindrosos, os invejosos, os tolos, os ciumentos

os desconsolados, os conformistas, os insensíveis, os moribundos, os


decadentes.

OVO DE DELEUZE

ladeiras, cortes, catedrais de um insaciável ovo. Deleuze no meio da mixórdia, no centro da


esmeralda, no vulcão do sonho. Deleuze, o comedor de cadáveres, o carniceiro, o açougueiro, o
ferreiro, o costureiro das almas. inengendrado & viscoso, desvio do átomo entre brumas do Oriente.
deslizando nas janelas do impensável, do inimaginável, do imemorial. flecha da pura disparidade e do
desejo que semeia os órgãos dissemelhantes. Deleuze canta, rumina, gagueja, rompe o gelo da
palavra. ele que é a máscara submersa, membrana da Memória, aquilo que nos impele, nos implode,
nos expele, nos explode. música e artéria e osso do meu desalento. ele que é um pássaro da
Mongólia, que é a irmã do meu pai, floresta dos bisões, Osíris e Ísis velando o sepulcro de Hórus.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 29


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Diniz Gonçalves Júnior


Publicou o livro Decalques (2008), tem poemas publicados
na Artéria, Suplemento Literário de Minas Gerais, Germina, Cult
entre outras revistas e sites. E-mail: dinizjunior71@hotmail.com

Tropeço

a multidão me distancia
perco de vista o outro sorriso
que julgava meu mas era engano
como esfinge a soletrar um jogo
de erros o reverso do esperado
se forte pareço caio frágil no tropeço
do espelho

miami maiden

monumento que rasga o mar


solidez dos containers expostos ao sol
dialetos de desembarque contornam o porto
cabines panoramizam o lodo da margem
as pastilhas do posto próximo
a âncora do saldanha da gama
o perfume desbotado das mulheres noturnas

30 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Balneário Flórida

a bicicleta enferruja no quarto do fundo


as conchas na moldura da churrasqueira
o quintal e o quarto quente concreto
das prateleiras o ventilador de ferro
que ainda funciona a rua das camélias
a chuva precipita na rua quase vazia
equação do sono no ócio da tarde
o mar desolado rebenta lento e os
quiosques fincados no calçadão
sentido mongaguá ou boqueirão
soletrando paisagens habituais

e as bugigangas coloridas
das feirinhas precárias

talvez um chaveiro ou nome


entalhado num totem de madeira

Fliperama Acapulco

O globo colorido reflete as luzes dos piratas de plástico


bônus reinicie a partida no átimo a ficha engole segundos
outra paisagem apache tece recordes da vida ao limite tilt.

Rua Domingos de Moraes, 1003

caracol de ferro
a galeria adormece
pastilha vermelha
luz desmaiada
esqueleto bruto
interdito, espaço
respiro
a foto de um pássaro
escultura de anzóis
empilhados na prateleira
um número enferrujado
tinge a margem da fotografia

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 31


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Edson Bueno de Camargo


Nasceu em Santo André - SP, 1962 e mora em Mauá - SP.
Publicou: Cabalísticos (Editora Multifoco, 2010),
De Lembranças & Fórmulas Mágicas (Edições Tigre Azul/ FAC Mauá, 2007),
O Mapa do Abismo e Outros Poemas (Edições Tigre Azul/ FAC Mauá, 2006).
Participa do grupo poético/literário Taba de Corumbê na cidade de Mauá.
Blog: http://umalagartadefogo.blogspot.com E-mail: camargoeb@ig.com.br

rosas heráldicas
manancial
teus olhos
devastam-me a pele
hoje como rosas heráldicas entrelaçadas
a poesia me abandonou e facas feitas de espelho
no deserto
na beira de uma cisterna seca cobrem minha íris de estrelas
com pedras em suspensão e cacos de vidro fúnebre
cortam minha carne
de cada seixo rolado em delicadeza
abandonado ao fundo
palavras e letras se espelham teus dedos
são meus dedos
o deserto é branco e cada ponta
celulose selvagem um dígito em fogo
tecido fibra por fibra sua púbis
seus pelos
a água espera em algum manancial marca de identidade
a língua (seca) escassa
tem pressa cada tempo
traz a hora que cobre
as pedras enchem minha boca as colheitas do trigo
em algum alívio mineral as primeiras uvas
assim como as serpentes as construções antigas
que fogem do sol escaldante
todos os reis são para sempre
o deserto é um mar que morreu um dia e mergulham um dia
o sal que ficou no esquecimento
agora dói em meus olhos
a velhice
é mergulhar em olvido
cada dia
distante de nós mesmos

32 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

tátil e cego répteis

enquanto corro vomito cobras vivas


os dedos em tuas costas elétricas cinco ao todo
répteis que caem ao chão
minhas narinas e fogem assustados
devoram tua pele e pelos ainda úmidos
naquilo que são fogo sulcam a terra
e cada contorno volátil desaparecem na poeira
é abrigo e assento para meus olhos
pajés do planalto central
tátil e cego é o amor visitam meu devaneio
nos abismos florestais saltam de dentro
ou ralas pradarias de nuvens de fumaça branca
pois tudo é triangulo e ravina cheiram a querosene e tabaco
pólvora queimada e pinga
posso lamber teu cheiro esta noite moeda cachaça para todos os santos
e nas outras e outras para juremas
e as gotas para os caboclos errantes
da chuva de pentes para cabelos para os eguns vivos quase mortos
e pedestais e pedrarias que caminham pela civilização
e têm nos olhos telas brilhantes e antenas
estar em ti
é tudo que posso e quero não se sabe
se é noite ou dia
céu vermelho sobre a cabeça
tempestade de areia do Saara
dormindo nas águas quentes do Caribe

câmeras assustadas filmam o abismo


desvelam línguas e palavras
uma menina pivete desafia a polícia
silêncios com seu corpo magro e olhos de assombro
um diamante vivo em cada pálpebra
Glauber Rocha ressuscitado em Brasília
há um abismo de palavras dirige tudo aos berros e euforia
entre eu e meu pai (como todo bom baiano
assim como havia entre ele e o seu falecido pai sorri irônico como um Caetano)
e o pai de meu pai e o seu pai
até que se chegue tudo é sonho
ao primeiro macho reprodutor de minha linhagem tudo é vermelho
como se as línguas se congelassem tudo cheira a esgoto a céu aberto
no instante da palavra tudo cheira a vidro quebrado e hospital
em que os homens são rivais
em sua progenitura as mesas dos botecos se embriagam
devoram as palavras que os poetas lhes
no entanto [derramam
como a poesia se faz de silêncios lambidas por lagartos abissais
e ausências a cidade (e suas asas)
é um poço sob os discos voadores
o calar de meu pai
também me ensinou sobre a poesia

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 33


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Isadora Krieger
aqui a escrita é também um jogo certeiro de adivinhação, a escrita me lê
antes de eu a ler, lê passado, presente, futuro e tempo inexistente,
não raras vezes sabe de mim antes que eu mesma, eu sou a obcecada,
ela cigana joga cartas com meu subconsciente, assim me antevê e depois
me traz à tona, me complica e descomplica ainda dentro da tenda,
fora dela dependendo dos meus olhos vice-versa, mas no meu caso
não existe outra escolha, a danada me cobra preço caro, com a alma inteira pago,
do contrário não há jogo, ou há jogo pouco, calcado numa metade de mergulho,
no qual os clichês fazem a festa ou o hermetismo dita as regras, e eu quero
os arcanos maiores interpretados em cima da mesa, quero os dentes de ouro
da cigana cravados todos os dias no meu braço direito, mesmo que tenha
que sangrar abundantemente, é tarde demais, já fiz o pacto,
quando nem consciência do perigo ainda tinha.

ato VIII

era eu jazida com toda loucura e candura que imploramos a Deus, uma candura
com toque essencial de perversidade para causar o tal do incômodo que nos faz
criar algo honesto provavelmente eterno, era eu jazida com os cabelos espalhados
naquela poça d'água a dor que você sempre desejou que tão exaustivamente
repetiu é a peça que falta na minha poesia engavetada, era eu jazida depois de
uma semana inteira de chuvas escolhi a dedo o anel do nosso silencioso pacto a
poça d'água mais vasta do bairro, preparei teu mimo com meses de antecedência
esperei a época certa do ano onde o canto dos pássaros é apocalíptico de tão
lindo, era eu jazida naquela poça d'água pintada com as sombras dos ipês roxos e
no meu rosto as flores boiando ao redor coroa inviolável, a certeza definitiva da
minha presença violenta na tua poesia que enfim viria acontecer graças ao choque
da minha ausência tão afetuosamente composta, era eu jazida naquela poça
d'água durante o céu crepuscular que sempre foi o horário dos teus delírios mais
dilatados, a certeza definitiva da obra-prima que te transformaria no imortal que
você sempre cobiçou ser dentro de todos os outros e que me transformaria na
imortal que sempre cobicei ser apenas dentro de você, era eu jazida com toda
loucura e candura que imploramos a Deus, era o nosso pedido finalmente
realizado nos meus olhos prestes para sempre cerrados o sorriso de gratidão
maior que por último admirei nos teus lábios.

34 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Inaptidão

eu queria escrever um poema


que te atingisse como espada a face
e fizesse dela pedacinhos imutáveis
eu queria te ver com a bunda de fora
catando agachado teus destroços
no chão com a certeza que é em vão

eu queria escrever um poema


que te arrancasse a máscara da indiferença
tão habilmente dissimulada de argúcia
e no bueiro mais próximo teu invólucro
se debatendo sem volta no espanto próprio

eu queria escrever um poema


que te perfurasse os olhos
os fizesse sangrar e não apenas chorar
a lágrima logo esquece o motivo de ser
o sangue mesmo depois de ressequido
impregna no cerne incontroláveis vestígios

eu queria escrever um poema


que te borrasse a boca de palhaço
torta de tantos circunlóquios
que te fizesse uivar como bicho selvagem
esquecido das convenções e dos protocolos eu queria escrever um poema
no estado fundamental da vida primitiva que te entortasse sem retorno o crânio
as serpentes malditas e precisas que te expulsasse deste lugarzinho cômodo
que aqui infelizmente são fantasiadas e confortável que ao longo dos anos
de bonequinhas inofensivas construístes com tamanho apreço
mero terror encoberto de amor satisfatório
eu queria escrever um poema porque permanecer apenas um instante só
que te arrebentasse as narinas é se deparar indubitavelmente
cheias das plásticas tão bem executadas com o privativo manicômio,
que te poupam de cheirar o escabroso e daí?
[do mundo
que te emprestam a ilusão de não fazeres há mais alma no inferno de dante
[parte dele do que na terra lacrada dos ditos "artistas"
mas não adianta se encharcar de perfume caro especialistas em rimbaud monet e truffaut
a tua tumba pode até ser de mármore mas ignorantes quando se trata da cigana
entretanto há sempre a mesma decomposição [maltrapilha
na carne de primeira ou não eu prefiro sem dúvida um Demônio genuíno
a um Deus limitado exigindo diploma embaixo
[do braço
eu desejo ansiosamente o teatro mágico
entrada só para loucos para raros
mas as minhas palavras só vão até um pedaço
e têm prazo curtíssimo de validade.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 35


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Reynaldo Damazio
É formado em sociologia pela USP e trabalha como editor
e crítico literário, além de coordenar oficinas de literatura e de quadrinhos.
Autor dos livros Nu entre nuvens (Ciência do Acidente, 2001)
e Horas perplexas (Editora 34, 2008).
Dirige o site Weblivros (www.weblivros.com.br).

RIDÍCULOS

é voraz
o vazio
da besta
no cio
FÁBULA PARA ANFÍBIOS
é mordaz
o sorriso Para Nícolas e Aléxis
do palhaço
sem circo o menino menor trouxe na mão o ciclone
o maior, o dragão afônico
é fugaz ambos queriam um cometa que levasse a princesa
o pavio ao nocaute
desse corpo ora, não sei cantar estrelas
ímpio embora adivinhe a partitura
o menino maior ensina
o círculo a construção de sistemas paraconsistentes
do desejo com bolas de ping-pong
o vício o menor desmancha cidades e
daquele esculpe doces de malvavisco
beijo a retórica se desfaz com o dente partido
melhor proteger os olhos de uma grande verdade
o idílio e que do sol
o ridículo talvez evitar que o porta-aviões no armário
dão no mesmo invada a geladeira
se não é possível prever a trajetória de uma partícula
então uma bolha possa explicar o conceito de poesia
disse bula, não importa
nenhuma palavra sobrevive ao caos
nem a palavra caos
dois meninos cruzam o arco da desesperança
manobras indecisas na órbita do sorvete
sinais de fenda no tempo, sob o band-aid
todas as partes, gravetos ou conchas, se encaixam
na lógica desse abraço

36 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

FÁBULA PÓS-MODERNA

MEMÓRIA DA DECOMPOSIÇÃO O sapo ronda a princesa


e não é um príncipe disfarçado
ou a consciência de beleza
A noite não deixa marcas em meu sonho; deformada pela razão prática.
os passos se perdem na calçada Mas a princesa também não
e nada pode ser mais preciso, possui reino, os recursos minguam,
mais tortuoso, a fábula se rompeu e a
que o esquecimento do desejo, máquina do mundo capenga.
o fim da fagulha entrevista no olhar
que me procurava Indiferente a apelos literários
(ao menos assim o imaginei) e argumentos filosóficos, o sapo
em dias de vento frio, quer devorar a princesa,
em noites de sede e tédio, seu corpo beatífico, sua ternura
quando a violência das ruas de virgem (como se a virgindade
gritava nos telejornais e fingíamos fora crível) diante do algoz:
que havia um mundo quase perfeito, um tema entre tantos
circunscrito entre bares, cinemas, para exegetas impotentes.
cafés, móveis baratos de um apartamento
alugado a preço de banana, Teorias sobre a pureza diáfana
no centro velho de uma metrópole da princesa foram descartadas,
que já não existe. restaram apenas os contornos
da physis, dureza de seios,
consistência de glúteos, textura
de abdômen, volúpia de pele,
tensão de bíceps, espaldas longilíneas.

A princesa sabe o desejo feroz


que provoca e finge distrair-se
COSMOGONIA com miçangas coloridas,
constelação menor no cosmo
da pélvis, sulcando estrias,
De que espaço alguém precisa veio aberto em plano volátil.
para viver? Não servirá de metáfora,
Alguns palmos, talvez, tampouco será assunto de
entre a pele e a marquise, parábolas. Apenas entrega-se.
onde arranjar as ruínas de sua história
e os detritos do corpo enfadado O sapo devora a princesa
– reserva de asco e indiferença com delicada crueldade,
na pressa de olhares – em claro-escuro, explorando
nacos de memória espalhados na a sutileza das formas.
calçada e no tempo, Fantasmas acorrem e dançam
arco de possibilidades desperdiçadas. enquanto ele a fode com gana.
Foda longa, frenética, atávica.
Olhando o céu, sem nuvens ou estrelas, a princesa antevê o nada e
em seu vazio inútil, goza copiosamente. Pântano
ela pensa fértil de estrelas e esperma.
que tudo aquilo é de ninguém
e pode ser
de qualquer um.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 37


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Roberta Ferraz
Nasceu em 1980, estudou História (USP) e Letras (PUC). É mestre
em Literatura Portuguesa (USP). Publicou desfiladeiro (Nativa, 2003),
lacrimatórios, enócoas (Oficina Raquel, 2009)
e fio, fenda, falésia (Edição das Autoras, 2010) – este livro foi publicado
com apoio do ProAC e escrito em parceria com Érica Zíngano e Renata Huber.
Blog sobre o livro: http://fiofendafalesia.blogspot.com

CINCO SUÍTES PARA EDUCAÇÃO SENTIMENTAL

este colar elisabetano esta muralha tépida


margeia o pescoço duro as veias rijas de um sangue II
atento
olhos – riscados para rápido dobrar há essa espécie estátua no balbucio dos passos
desperta às afrontas em mim essa exímia mulher a morrer, páscoa à paixão
dentro um corpo em gesso ocre ofertando sentidos sentinelas que esburacam
qualquer linha apenas linha
faz tempo nos equilibrávamos pelas prateleiras
quando já não sou mais leve peralta o tabu dos rascunhos, os olhos que evitam
quando a chispa da garganta, consumado o aterro a fala gaguejando a falta, as mãos muito íntimas
de uma angústia
seguir as pistas falhas para um bordel ou a quadriculada
mentalidade do registro telefônico como se houvesse essa espécie de dama vazia, oca, num tempo tramado
por espécies de um mais resoluto, os espinhos todos
dizer na bainha dos sonhos, há essa vigia essa noite caída
dentro a satisfazer dos sabores, essa mulher
para qualquer deslize que naturalmente vai
não somos espécies sensíveis somos cordas
entre os pés os hiatos entre as mãos dias fadigas cabelos planos de composição
concordatas páginas imaculadas há essa espécie de
lástima que não sabe
penso sugerir o verão e a caminhada
mas já percorres o futuro em que eu não sabe levar a sério tudo que não seja
terrivelmente estarei partida
vestígios –
tempo a tombar
mistério imenso de carinhos o amor como um tatame de ervas
e reunir outra simetria já um pavilhão suspenso a jasmins
mais abstrata e mais não visíveis
uma arcada para caber no nada
fria respiro tranquilo de uma morte

paralítica aponto os dedos há essa espécie de edro e duração


tua direção é um vale, ainda no alpendre de dois corpos
uma palma estocada na poeira e há entrega e rosto sem rugas
na calma de não, mais nada
aponto no vale o prepúcio
de uma fossa só
é ainda um alento, um flanco essa mínima
singradura intenção

então um hino tapando teus ouvidos – – toque,


uma toca que recolha teus olhos – e um futuro dado

a meu dentro à sorte

38 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

III sinto-me mais pronta com mãos


menos agitada e corpo menos
sei que tuas questões te mastigam turbulento sinto que cada véspera
chegamos aonde, a que confim te acorda para uma outra estrada
e não te mostra a cara
talvez na noite ratos camuflados mas seduz a um caminho de pernas
subissem a madeira de tua casa um caminho de véus e entrudo
demolida por outra casa sem que seja novo e como novo
qualquer rastro de infância apaixonado
e falso
quem é, o que quer
talvez o tempo vingue tuas talvez eu tenha que te deixar
escolhas e talvez vigie para sobreviver
tua solidão talvez para sobreviver em ti talvez
queira mais do que uma eu tenha que guardar a faca
mulher e não olhar para trás
caída sobre teus olhos
ao teu lado sem qualquer pé
que fira ao teu lado para adormecer uma crueza exasperada,
a jovem que fui a teu lado para lúcida
apreender com mais ciúme
o curso de tudo até a morte amor sem mais vácuos ou vestígios
que te alimentassem de distância
e maus pressentimentos

IV

começarei então a mentir


a rodar os olhos naquele exato segundo V
em que me perguntarias
quando está ali sentado num rodopio de álcool e esquina
eu te diria o que não será certo maquiando termos que te revertem ao abismo
tentaria sucumbir a uma mágoa olha as pernas de todas as mulheres
mais densa e te iria atormentar e escreve nomes com iniciais apenas
com a verdade desta ficção escondendo de si a membrana de um desejo
empalado a seco
começarei também a mentir – indaga
a voz como uma adaga ao lado pensa em largar a via
escuro da cama em cometer gestos sem cautela
ir ao motel no horário de almoço e depois
naquela hora agiria como tu lavar bem o couro da camisa
pergunta ainda, quando não sei se tua mentira quer dizer ao passado que se anuncia
deve servir de lenha para um outro jogo que se arrepende e que ademais
onde ninguém mais é feliz (tanta covardia)
muda-se em breve para uma
perceberei a tempo, a tempo de escapar cidade de sol
dos estilhaços de um tempo medido a
contrapelo, ensaio de um drible? olha para a mulher que te espreita em tua casa
não sei, prenhe de uma escuridão intocada
olha para ela e para o ferrão amortalhado entre os olhos
medos são versos de amor e sente que algo como algemas
sangue cotidiano de um casal rondam as paredes pintadas de branco –
que envelhece teme sair dali teme ser afogado se sair dali

mentirei então também eu a vida se passa entre um farol e um atropelamento


até que o fundo das horas finalmente entre uma espera e uma fome
se assente sobre um fechado e velho baú
de memórias entre os tantos outros
indecisos
que se morrem

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 39


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

Thiago Ponce de Moraes


É poeta e tradutor. Faz parte do Conselho Editorial da revista Zunái.
Participou dos eventos literários Simpoesia (2008 e 2010)
e Artimanhas Poéticas (2009 e 2010). Tem publicações em diversas
antologias e periódicos, com destaque para a Antologia Poetas Jovens
(no papel rascunho) 2006; Revista sèrieAlfa nº 33, 2007;
Antologia Vacamarela (trilíngue) 2007; Antologia da Poesia Brasileira do
Início do Terceiro Milénio, 2008; Fomes de Formas, 2008;
Revista Eutomia, 2010. Publicou os livros de poemas Imp. (Caetés, 2006)
e De gestos lassos ou nenhuns (Lumme Editor, 2010). Para breve
prepara um novo volume de poemas: Celacanto; além de traduções
de Emily Dickinson, Jeremy Halvard Prynne, Ralph Waldo Emerson,
Hart Crane e Basil Bunting.

ESTE É O SOLO EM QUE ESTÁS diante,


Em que te sustentas.

Na memória ainda, na hesitante e rarefeita


Memória desta data, talvez finda,
Em tua memória recordas, talvez,
Intimamente tua, clara, intolerantemente memória, em que pisas,
Recordas distante e oras há horas,
E não podes lembrar de nada intimamente,
Não podes andar por nada, mas pisas ainda e ainda oras,
Embora a memória relute sonora, intolerantemente
Com raízes, remota, em que pisas,
E tanto faz quanto não fales, nem divina nesta hora,
Nem de absoluta força, sem respirar, sem,
Em memórias, respirar o dia
Passa neste dia em que nada passa,
A cortá-las pela raiz, passos, como nada mortas, neste dia,
Somente rastros e sementes, somente
Passas em volta de palavras e voltas
A debilitar a língua em que voltas para casa.

40 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BR.XXI Literatura Brasileira Contemporânea

SOB LUZ singularmente pálida


Escreves sobre olhos submersos de palavras.

Pálida lanças da janela


Um canto que movimentas quando grafas
Esta casa.

Numa mão a lança e noutra


A caça, escrita,
Escassa.

As folhas secas deixas na entrada,


Em folhas breves guardas tua fala.

Escreves.

Este animal te ataca


Até que tuas cordas corte,
A tua voz soçobre
E apenas o ruído sobre
Das páginas que um deus traga.

AO ACASO

Em profunda fonte soam tuas estrelas.


Noite silenciosa e cinzas feito um corpo esvaído
Sobre o qual se erguem os dias do futuro.

Teus sonhos segues a cidade que são,


Íntima e adiante, quanto mais lenta fores
Rumo a tua morada ou Ítaca.

Não importa o teu chegar, mas o ir pela poeira dos dias,


Pelas aporias e flores ao fundo de uma tarde violenta,
Pela ideia que tens da tua chegada em euforia.

Profundo é o sofrimento do mundo,


Em manhã ou noite luminosa,
A morte e o sono irmãos.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 41


GEO Literatura sem Fronteiras

Ignacio Muñoz Cristi


Nasceu em Santiago, Chile, 1973. Antropólogo, consultor e diretor
do programa de TV na internet La Belleza de No Pensar
(http://www.youtube.com/user/autonautica) realizado pelo
Movimiento Lúdico (http://bellezadenopensar.blogspot.com) coletivo artístico
com 16 anos de existência. Os poemas aqui publicados fazem parte
do livro Con la Edad de Cristo (Andesground y ML Ediciones, 2008).
Blog: http://bioculturalia.wordpress.com

“Soy un bueno para nadie


Mi reino no es de este mundo”

Yo mismo

Resiliência na Terra
Ou uma temporada no inferno?

33 anos
33 alegres primaveras
33 tremendos invernos
33 vezes 33 mil erros dolorosos “Soy un bueno para nadie
33 vezes 33 mil ressurreições na terra Mi reino no es de este mundo”

Yo mismo
Com a idade de Cristo me medem
e não dou o largo
Com a idade de Cristo me pesam Resiliencia en la Tierra
e já se passou a velha O una temporada en el infierno?
Com a idade de Cristo me medem 33 años
[me pesam e me descartam 33 alegres primaveras
Com a idade de Cristo que salvou o mundo 33 tremendos inviernos
[me medem 33 veces 33 mil errores dolores
E eu não salvo ninguém 33 veces 33 mil resurrecciones en la tierra
além do mais Con la edad de Cristo me miden
estou para a cruz y no doy el ancho
Mas em meu sangue também há luz Con la edad de Cristo me pesan
Uma luz que vem descendo em aterrissagem y ya se me pasó la vieja
[forçada Con la edad de Cristo me miden me pesan
[y me desechan
Há tanto tonto tempo Con la edad de Cristo me que salvó al mundo
[me miden
Y yo no salvo a nadie
a lo más
estoy para la cruz
Pero en mi sangre también hay luz
Una luz que viene descendiendo en aterrizaje forzoso
Desde hace tanto tonto tiempo

(Tradução: Victor Del Franco)

42 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


GEO Literatura sem Fronteiras

Permita-me querido Leitor de Luxo que lhe conte


[uma história
Tudo começou há milhões e milhões de livros Déjame querido Lector de Lujo que te cuente una historia
Todo empezó hace miles de millones de libros

Era uma grande luz que percorreu todo o cosmos Erase una gran luz que recorrió el cosmos todo en busca de un objeto
[em busca de um objeto cualquiera serviria, una cosa entre miríadas
qualquer um serviria, uma coisa entre miríades La idea era encontrar algo que la contuviese
que pusiera borde a su veloz desenfreno
A ideia era encontrar algo que a contivesse un bendito objeto que la poseyera en un coito fenomenalmente
que pusesse limite ao seu veloz excesso [fenoménico
um bendito objeto que a possuísse em um coito y que la llevase finalmente, a dar a luz una sombra
[fenomenalmente fenomenal parir esa oscuridad que era su anhelo inverso
engendrar
e que a levasse finalmente a dar à luz uma sombra procrear en medio de la inmensa vacuidad del universo
parir essa escuridão que era seu desejo inverso
engendrar Y así fue que encontrase un día a su deseado objeto
procriar no meio do imenso vazio do universo interpuesto a medio camino
erguido, listo, para el amor dispuesto
Mas inesperada, improbabilisticamente
E assim foi que encontrara um dia seu desejado objeto tal objeto no fue físico solamente
interposto no meio do caminho ni sólo químico compuesto
erguido, pronto para o amor disposto ni tan siquiera sólo biológico
fue sino
Mas inesperado, improbabilisticamente humano,
tal objeto não era físico somente “demasiado humano”
nem apenas químico composto Un objeto cargado de antemano con más oscuridad
nem tão somente biológico de la que la luz jamás
pudo haber soñado
era sobretudo un verdadero hoyo negro que casi la devora
humano, Pero tuvieron su roce penetración y orgasmo
“demasiado humano” pariendo de inmediato
Um objeto carregado de antemão com mais escuridão Y fue así como la luz dio a luz oscuridad
Y para nuestra raza este preciado mito da cuenta del origen
que a luz jamais de la sabiduría y la tontera, aunque sobre todo de la adictiva y
pudesse haver sonhado necia compulsión de pensarlo todo
um verdadeiro buraco negro que quase a devora en contrarios
Mas tiveram seu roçar penetração e orgasmo
parindo de imediato
E foi assim que a luz deu à luz a escuridão
E para nossa raça este precioso mito explica a origem
da sabedoria e da tolice, e sobretudo da viciante e
néscia compulsão de pensar tudo
em contrários

Faltam 10 minutos
para que se acabe essa idade
Contagem regressiva Faltan 10 minutos
para que se acabe esta edad
descristificação Cuenta regresiva
ou final assunção? ¿descristificación
o final asunción?
Com a idade de Cristo
Con la edad de Cristo
para a primavera a la primavera
me fiz alérgico me hice alérgico
mas logo ressuscitei entre os mortos pero luego resucité entre muertos
me curei quem sabe como me sané quién sabe cómo
Con la edad de Cristo
Com a idade de Cristo sin embargo
no entanto pegué el viejazo
cheguei na velhice Con esta edad digo
Mas com esta idade digo filo
foda-se Con la edad de Cristo aprendí
Que nada he aprendido
Com a idade de Cristo aprendi
Que nada tenho aprendido Soy el no iniciado
El no chamán
El no poeta
Sou o não iniciado El no científico
O não xamã El no el no el no
O não poeta Una nada nada en este cuerpo
[encarnado
O não científico
O não o não o não
Um nada nada neste corpo encarnado

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 43


GEO Literatura sem Fronteiras

José Landa
Nasceu em Campeche, 1976. É autor de 12 livros publicados no México,
América Central e Espanha, tendo obtido diversos prêmios como
o José Gorostiza (Tabasco, 1994), o Hispanoamericano Quetzaltenango
(Guatemala, 2007) e o Ciudad de Lepe (Huelva, España, 2009), foi ainda
finalista do Premi Tardor (Castellón, España, 2010). É bolsista do
Fondo Nacional para la Cultura y las Artes de México. Entre seus títulos estão
Tronco abierto (FECA, Campeche, México, 1993), La confusión de las
avispas (Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, México, 1997),
Placeres como ríos (Instituto de Cultura de Sinaloa, Culiacán, 2009)
e Navegar es un pájaro de bruma (edição em francês e espanhol,
Mantis editores y Écrits des Forges, Quebec, Canadá, 2010).
Sua obra encontra-se traduzida também para o valenciano.

...

O quintal é dividido por um feixe de luz


como por um rio.
Daquele lado o mundo faz gestos, se retorce
envia sinais de fumaça.
Deste lado o tempo se detem a meditar
na margem.

O ar é um instanteiro e em cada clique surge


o rumor das pessoas.
Nos ouvidos de uma velha se repete
como uma gravação:
somos o tempo, Heráclito, e um garoto
ao seu lado guarda silêncio. ...
O rio segue, mas o garoto permanece de pé
e joga uma pedra na água El traspatio se divide por un haz de luz
que – o fazem supor – é diferente como por un río.
De aquel lado el mundo hace gestos, se retuerce
daquela que já passou. envía señales de humo.
De este lado el tiempo se detiene a meditar
O quintal é nada mais que um holograma en la ribera.
onde habitam jovens demônios e fantasmas
octogenários. El aire es un instantero y en cada clic surge
el rumor de la gente.
En los oídos de una vieja se repite
como una grabación:
somos el tiempo, Heráclito, y un muchacho
a su lado guarda silencio.
El río sigue, pero el muchacho permanece de pie
le arroja una piedra al agua
que — le hacen suponer — es diferente
a la que ya pasó.

El traspatio es nada más un holograma


donde habitan demonios jóvenes y fantasmas
octogenarios.
(Tradução: Victor Del Franco)

44 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


GEO Literatura sem Fronteiras

...

A infância é este batalhão de tartarugas em marcha


para o mangue
o telhado daquelas casas velhas e seus muros ...
vales da pátina
La infancia es este batallón de tortugas en camino
a canoa que se aventura na pesca em dias al manglar
[de tormenta. el techo de aquellas casas viejas y sus muros
valles de la pátina
Somos a trajetória que imagina a pomba la chalupa que se aventura a pescar en dias
[tormentosos.
e logo se cumpre
o lance de dados que praticam os mortos Somos la trayectoria que imagina la torcaza
com o destino dos homens y luego cumple
os dados jogados por um deus que não vê el juego del cubilete que practican los muertos
o que joga. con el destino de los hombres
los dados que arroja un dios que no ve
lo que arroja.
A infância permanece como a areia de um relógio.
Aqui junto ao pasto e a amora, os cardos La infancia permanece como la arena de un reloj.
e as sombras Aquí junto al pasto y la zarzamora, los cardos
junto a velha casa materna y las sombras
junto a la antigua casa materna
sonhamos o pecado, as infinitas formas de desejo
soñamos el pecado, las infinitas formas del deseo
o orvalho, a garoa noturna e essa lágrima el rocío, la llovizna nocturna y esa lágrima
que amanhece por descuido que amanece por descuido
sonolenta na relva. soñolienta en la hierba.

...

O riacho aproxima seu curso da tranquilidade


de um domingo no povoado. ...
Ninguém saberá do oculto desejo do riacho
para inteirar-se do que acontece entre os habitantes El arroyo acerca sus reales a la tranquilidad
visitar ruas e quartos, fecundar a pele de un domingo en el pueblo.
ressecada de homens e mulheres Nadie sabrá del oculto deseo del arroyo
por enterarse de cuanto suceda entre los habitantes
passar sua língua pelo tato lascivo de jovens visitar calles y habitaciones, fecundar la piel
com aroma de café. reseca de hombres y mujeres
pasar su lengua por el tacto lúbrico de jóvenes
O riacho tem – entre seus tantos ofícios – con aroma a café.
um pincel e uma tela celeste
El arroyo tiene — entre sus tantos ofícios —
para pintar a nudez un pincel y un telón de cielo
a Verdade sentada na beira do poço para pintar las desnudeces
esperando seu mestre que chega do monte. la Verdad sentada en el brocal del pozo
O riacho pinta e descobre, escreve e apaga en espera de su señor que llegue del monte.
mensagens de amor e de subversão. El arroyo pinta y descubre, escribe y borra
mensajes de amor y de subversión.
O universo desmorona: migalhas de prata Se desmorona el universo: migas de plata
na superfície da água e sua eterna en la superficie del agua y su eterna
mansidão. mansedumbre.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 45


GEO Literatura sem Fronteiras

Juan José Macías


Nasceu em Fresnillo, Zacatecas, 1960. Poeta, narrador e ensaísta,
coordenador de oficinas literárias, editor e promotor cultural. Parte de sua obra
poética foi traduzida para o francês. É autor, entre outros, de Sensualineal;
Ánima ascua; La Volenté de Dieu / Deo volente; Dos máscaras para Dioniso;
La venue d'Hölderlin / Viene Hölderlin; Expansión de las cosas infinitas;
El nuevo liguero de Maruja (y otros fetiches), e La experiencia del pensar: filosofía
y poesía en Antonio Porchia y Roberto Juarroz. Recebeu o Prêmio Nacional
de Poesia Ramón López Velarde (1993), o Prêmio Nacional de Poesia
Efraín Huerta (2005) e o Prêmio Nacional de Ensaio Abigaél Bohórquez (2008).
Coordena a Oficina de Crítica e Criação Literária da Universidade Autônoma
de Zacatecas.

EXPANSÃO DAS COISAS INFINITAS

EXPANSIÓN DE LAS COSAS INFINITAS

alguém me pergunta que hora escrevo meus


poemas 8
procuro essa hora entre todas as horas
mas não a encontro não está alguien me pregunta a qué hora escribo mis
poemas
espero que apareça y yo busco esa hora entre todas las horas
y no la encuentro no está
em emboscadas renúncias conjugais
em ti que não pensas aguardo a que aparezca
sobre acechos renuncias conyugales
no áspero en ti que no te piensas
no desértico en lo áspero
no lábil lo desértico
lo lábil
perto de um cacto que ignora se é o coração
cerca de un cactus que se ignora si es el corazón
de frente para a beleza que é sempre cortante de frente a la belleza que es siempre cortante
que golpeia que golpea

na contraluz das mais altas torres a contraluz de las más altas torres
erguidas por la codicia
erguidas pela cobiça por la avidez derruidas
pela avidez desmoronadas
en el demasiado adentro de los ciegos
no profundo adentro dos cegos (ellos que si tropiezan
invariablemente caen en su interior)
(eles que tropeçam em si
invariavelmente caem em seu interior) instruido para lo invisible
lo innombrable
instruído para o invisível lo innumerable
para o inominável en el sueño profundo que no llega
para o inumerável en el canibalismo de la sorpresa
en el favor del instante
no profundo sono que não chega
en la intuición
no canibalismo da surpresa el automatismo
no proveito do instante el animismo

na intuição y el día pasa


no automatismo
no animismo

e segue o dia (Tradução: Paulo Ferraz)

46 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


GEO Literatura sem Fronteiras

2
2

não aspiro mais que à decepção


escrevo para o único ilegível: a pureza no aspiro más que a la decepción
escribo para lo único ilegible: la pureza
não olho mais se olhar não for irromper no miro más si mirar no es irrumpir
no silêncio puro das coisas puras en el silencio puro de las cosas puras

escrevo para que o mundo se sustente escribo para que el mundo se sostenga
para descarregar as palavras para descargar a las palabras
del agobiante peso del sentido
do agonizante peso do sentido
escribo para la decepción
escrevo para a decepção para que los conciertos de la vida se ofrezcan
para que os concertos da vida se ofereçam con la música como disolvente
com a música como solvente

o mundo precisa de uma crise de tédio


8
o tédio é a verdadeira fisionomia da consciência
é a consciência — seu despertar el mundo necesita una crisis de tedio
até a monstruosa vacuidade do mundo
el tedio es la verdadera fisonomía de la conciencia
es la conciencia —su despertar
ser prescindíveis nos torna incomparáveis hacia la monstruosa vacuidad del mundo
não há razão para a dor
a dor para a razão ser prescindibles nos vuelve incomparables
só convém ao divino no hay razón para el dolor
o tédio nos reivindica na renúncia el dolor para la razón
sólo conviene a lo divino
el tedio nos reivindica en la renuncia
hoje a eternidade nos queria como levita
hoy la eternidad nos quisiera de levita
qualquer noite pode ser a grande ceia na casa
dos mártires cualquier noche puede ser la gran cena en la casa
de los mártires
oh os notáveis oh los notables
têm esse ar de satisfação tienen ese aire de satisfacción
quase asqueroso dos sobreviventes casi asqueroso de los sobrevivientes

para nosotros los hechizados por el tedio


para nós os enfeitiçados pelo tédio el horror continúa siendo un milagro:
o horror continua sendo um milagre:
entre las nubes lentas y el museo de las frutas
entre as nuvens lentas e o museu das frutas la belleza es un comienzo sin fin de realidad
a beleza é um começo sem fim de realidade
y todo es único
y sin importancia
e tudo é único
e sem importância

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 47


Caderno Crítico

Por uma leitura fenomenológica


de Édipo Rei
por Chiu Yi Chih

A tragédia grega nos desvela o aspecto terrível de nossa existência. Ela nos põe
diante do Desconhecido, nos força a pensar sobre a ação temporal e extratemporal.
Como diria Aristóteles na Poética, ela nos apresenta uma “ação elevada” (praxeos
spoudaias) que tem como objetivo a purificação de nossas emoções suscitando terror
1
(phobos) e piedade (eleos).

Meditando sobre a obra dos poetas e pensadores gregos como Píndaro,


Sófocles e Parmênides, o filósofo alemão Martin Heidegger refletiu sobre esse aspecto
numinoso do fascínio que pode causar o fenômeno do “terror sagrado”: a noção de
daimon (extraordinário/numinoso) é fundamental para a compreensão da relação entre
as instâncias divinas e humanas. Daimon permeia as fronteiras, os domínios e os
sentidos da ação trágica, traça relações de ambivalência entre os heróis e os deuses.

Em sua obra fenomenológica Ser e Tempo, Heidegger mostrava que a


consciência humana só podia ser elucidada na temporalidade, naquele modo
existencial de ser-no-mundo. A subjetividade humana já se encontra lançada no
mundo; ela existe e se abre para o desconhecido, e o desconhecido é terrível porque lhe
põe várias possibilidades de agir. A subjetividade não é uma consciência abstrata.
Projeta-se temporalmente (ekstaticamente como diria Heidegger) nas dimensões do
presente, passado e porvir.

De certa maneira, o herói trágico pensa, age, delibera, toma determinadas


decisões em relação ao seu porvir existencial, pretende-se livre em determinadas
ações temporais, quando justamente, num átimo, é golpeado e subjugado pelas
revelações do Nume (Daimon ou daimonion). Num instante que é o próprio instante
numinoso do imprevisto, as forças divinas/daimônicas irrompem subitamente, como um
vir-a-ser inevitável cujas determinações se lhe tornam parcialmente enigmáticas. Ora,
nem por isso essa consciência deixará de se relacionar com aquilo que lhe é estranho.
É neste sentido que o daimon é um dos principais elementos constituintes do sentido
2
trágico. Trata-se de uma potência de natureza estranha que transtorna o herói trágico
e, assim, provoca o estranhamento, o não-familiar, o vigor que se impõe e subjuga
(Heidegger). Muitas expressões derivadas de daimon que comumente aparecem nas
tragédias indicam-nos os sinais numinosos desse fenômeno de vigor originário.

1. Cf. Aristóteles, Poética (1149b24-29), na tradução de Eudoro de Souza, Ars Poetica Editora, 1993, p.37.
2. É esta noção fundamental, entre outras, que Heidegger investiga no seu livro Parmênides. Veja Parmênides,
Editora Vozes, 2008, pp.164-165.

48 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


Caderno Crítico

Segundo o professor de literatura grega Jaa Torrano, “Daímon (Nume) designa


algum Deus em sua relação com algum destino particular que esse Deus preside e que,
dado por Deus o signo da sina, cumpre-se. Assim, os indícios numinosos cumprem-se
através do domínio sensível/não-familiar, manifestando-se particularmente como os
'ritos dos Deuses' (telestas theon), 'mirados atos' (thaumata erga) cuja visão confere ao
vidente um conhecimento decisivo das imortais formas do mundo, um conhecimento
que decide definitivamente o sentido da vida mortal do vidente, desde que o mortal
entrou no domínio da forma de que há 'mirados atos' e assim numa relação determinada
por essa imortal forma.”(Cf. O sentido de Zeus).

Portanto, o “daimônico”, o numinoso, que se atualiza na “síntese das ações


praticadas” tal como Aristóteles compreendia a mimese trágica na Poética, é o próprio
ser divino que vai ao encontro daquele que já está aberto a ele. O Ser em sua aparição.
A questão é saber se o daimon se incorpora ou não ao herói e, portanto, à existência do
herói concebido como próximo aos Deuses, ou seja, enquanto fenômeno numinoso da
aparência/revelação (alétheia).

Segundo Heidegger, a questão fenomenológica da tragédia se circunscreve às


referências fundamentais do Ser, Desvelação e Aparição. Para explicitar o nexo dessas
referências, o filósofo alemão dá um exemplo extraído do coro em Édipo Rei (1189ss):

ÉDIPO:

Tis gar, tis aner pleon


tas eudaimonias pherei
e tosounton hoson dokein
kai doxant'apoklinai

Alguém já recebeu do nume


um bem não limitado a aparecer
e a declinar
depois de aparecer?3

Eis aqui a importância do verbo grego (apoklinai) que exprime o sentido de


“declinar”. O verbo aponta para uma modalidade de “existência”, a qual consiste
precisamente nessa aparição, nesse ato de permanecer e vigorar-se no Ser. A
existência de Édipo (verdade do ente) pertenceria ao daimon (Verdade do Ser), assim
como a Aparição pertenceria à Clareira do Ser. O verbo “aparecer” (dokeo) indica o
fenômeno ao qual Édipo se depara ao longo de sua trajetória. O termo doxa, segundo
Heidegger, significa a aparição ou aspecto fenomenológico em que alguém se
encontra. Nesse caso, Édipo, dispondo-se abertamente na Clareira do Ser, vê a
epifania do nume.

3. Estes versos são do Édipo Rei de Sófocles na tradução de Trajano Vieira, Ed. Perspectiva, 2001. Substituí a
palavra “demo” por “nume”. O “demo” remete às conotações do satânico, demoníaco, sentidos próprios da
moralidade cristã. O “nume” no pensamento grego se refere ao caráter epifânico do divino. O divino aparece e se
revela na epifania sagrada segundo Mircea Eliade (Cf. O sagrado e o profano;Tratado de História das Religiões).

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Caderno Crítico

Tal valorização da noção de “aparição” é fundamental à visão fenomenológica da


tragédia. A tragédia se essencializa através desse jogo ambíguo do aparecer no qual,
justamente por ser do domínio da aparência e da abertura, o que o ente é, acaba
apenas se mostrando num “aspecto”. É por isso que Édipo “declina”, digamos assim,
nesse aspecto singular do Ser. Esse paroxismo arrasta consigo a própria potência do
daimon. Em contrapartida, Édipo pode ser atraído por ela, vigorando até se consumar
na verdadeira revelação, isto é, na plenitude e na Verdade do Ser, que em grego se diz
Alétheia, Desvelação.

Ora, como melhor explicitar o caráter numinoso da desvelação, senão pela força
daimônica que, na tragédia, é representada pelas forças divinas que avançam e se
precipitam, levando consigo em sua constelação simbólica os signos catamórficos da
queda, do mergulho no abismo, com suas imagens isomórficas: as trevas, a ausência
da luz, o “Destino ou a Moira funesta” (dusdaimoni moirai, 1303)? Assim, Édipo se
defronta com “o horror não-audível, não-visível” (deinon, oud'akouston,
oud'epopsimon, 1312), com “a nuvem-negror” (nefos apotropon, 1313), cujo “vai-e-vem
é intraduzível, sem domador, sem norte” (epiplomenon aphaton adamaton te kai
dusouriston on, 1314-5).

Com efeito, após o reconhecimento de sua verdadeira identidade – o fato de ser


assassino do pai e esposo de sua mãe –, o coro manifesta a Édipo o sentido daimônico,
desvelando a nulidade (to meden) da sua condição mortal (geneai broton, v1186).

CORO:

Estirpe humana,
o cômputo do teu viver é nulo.
Alguém já recebeu do nume
um bem não limitado a aparecer (dokein)
e a declinar (apoklinai)
depois de aparecer (doksant')?
És paradigma (paradeigma),
o teu nume (daimona) é paradigma, Édipo:
mortais não participam do divino.4

Assim, a condição numinosa é consignada ao Édipo pelo paradeigma. A palavra


paradeigma é junção de para e deiknymi, que significa respectivamente, ao lado e
mostrar-se. O daimon, portanto, pode ser visto como aquilo que se mostra ao lado, que
se manifesta visivelmente próximo. O verbo está na voz média com o sentido de
expor-se, mostrar-se. Vemos aí o aspecto fenomenológico da aparição. Este campo
semântico permite-nos assim ver o próprio ser do daimon caracterizado como aquilo
que se mostra ao lado e, sobretudo, aquilo que se manifesta visivelmente, tal qual uma
visão numinosa.

4. São os versos 1188-1195.

50 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


Caderno Crítico

O coro é restritivo quanto à participação dos mortais nos desígnios divinos,


mas apresenta como “paradigma” esse modo de identidade entre um ser e outro,
entre o herói e o seu próprio “paradigma”, o seu próprio “daimon”. A afirmação do coro
é duplamente enfática: “És paradigma (paradeigma), o teu nume (daimona) é
paradigma, Édipo.”

Por outro lado, o próprio sentido numinoso muitas vezes se revela aos mortais,
5
como quando no diálogo Fédon de Platão, Sócrates declara: “Os Deuses são
aqueles sob cuja guarda estamos, e nós, homens, somos uma propriedade dos
Deuses” (to theous einai hemon tous epimeloumenos kai hemas tous anthropous hen
ton ktematon tois theois einai, 62b). O daimon de Sócrates aparece-lhe tão intimamente
próximo que até o filósofo tem a convicção de que a morte lhe foi enviada por ordem
divina (62c). Essa proximidade é explicitada com esse sentido de “um estar ao lado
do outro” como um servo em relação ao seu dono (62e), ou como o sábio em relação
aos deuses (63b).

Sócrates sabe que o ser-filósofo demanda uma relação próxima ao seu objeto de
desejo, a sabedoria (69b). Isso quer dizer que esta só será possível após toda a
preparação para a morte (67e), e consequentemente, após a purificação (69c). Por
isso, diz Sócrates: “Todo aquele que atinja o Hades como profano e sem ter sido iniciado
terá como lugar de destinação o Lodaçal, enquanto aquele que houver sido purificado e
iniciado morará, uma vez lá chegado, com os Deuses. É que, como vês, segundo a
expressão dos iniciados nos mistérios: 'numerosos são os portadores de tirso, mas
poucos os Bacantes” (69c). Com efeito, poucos são os que mantêm uma relação
paradigmática com o daimon, de modo a estarem como bacantes em relação ao Baco,
como filósofos em relação à sabedoria. Tal correlação dialética do ente com o seu Ser,
que na filosofia platônica se exprimiu com sua doutrina de participação (metexis),
apresenta-se na tragédia grega como nexo fundamental das relações entre os seres
divinos (Deuses, numes) e os homens mortais. Tal “participação” e “intermediação”
pressupõe uma hermenêutica dos sinais divinos, isto é, uma compreensão ontológica
da abertura do ente em que se revelam as possibilidades que o Ser lhe aponta.

É, pois, possível interpretar o sentido dos acontecimentos trágicos a partir


daquilo que na linguagem desde a filosofia antes de Platão se concebeu como a
condição de todo ser, a saber, que aquilo que determina ontologicamente a
essencialização do ser é o modo de abertura em que o homem já se encontra lançado.
O homem é interpelado pelo Ser. É capaz de apreender as significações daquilo que lhe
aparece a partir de sua disposição existencial.

5. Cf. Platão, Diálogos, Abril Cultural, 1983 (trad. e notas de José Cavacante de Souza, Jorge Paleikat
e João Cruz Costa).

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 51


Caderno Crítico

Portanto, não convém interpretar a trajetória do herói restringindo-a a um destino


predeterminado, mas como um modo de intermediação de um ente para com aquilo que
lhe é desconhecido. Os signos que são transmitidos pelos oráculos e pela fala do coro
iluminam o sentido de sua existência plena. É por meio da linguagem e do próprio existir
temporal que o herói caminha rumo às possibilidades de seu ser-no-mundo. Assim, o
próprio herói é paradigma cujo ser só se revela se temporalizando. Seu ser é o deixar
aparecer aquilo que lhe vem ao encontro, seja através de reconhecimentos,
reviravoltas, sinais numinosos – o deixar estar presente aquilo com o que se relaciona,
ser absorvido naquilo que lhe diz respeito, corresponder e responder à solicitação do
mundo circundante.

Pois, se não houvesse os efeitos das intermediações, da presença numinosa e


das solicitações do mundo circundante, não existiria nem sequer uma possível
apreensão do sentido trágico por parte do herói, e nem se faria presente a capacidade
de suportá-lo, de conservá-lo em si mesmo, porquanto só a partir dessa ruína ele pode
carregar em si a numinosa vontade de potência e estendê-la aos outros limites. A
vontade de potência (pathos) é algo que o herói já traz consigo; é aquela hybris,
excesso de vontade que o impele aos desastres (synforas).

CORO:

Olhai, o grão-senhor, tebanos, Édipo,


decifrador do enigma insigne. Teve
o bem do Acaso – Týkhe – , e o olhar de inveja
de todos. Sofre à vaga do desastre.
Atento ao dia afinal, homem nenhum
afirme: eu sou feliz!, até transpor
– sem nunca ter sofrido – o umbral da morte.

As múltiplas peripécias heroicas não serão as determinações da vontade de


potência aqui designada pela Týkhe? Nietzsche anteviu, em seu Nascimento da
tragédia, uma forma trágica de ser. No seu eterno retorno e desejo de eternidade, essa
vontade supera todos os limites e é solicitada a penetrar em todas as esferas da
existência. Édipo aceita a destruição da morte e as provações sem temor ou hesitação.

ÉDIPO:

(...)
Que eu parta para o monte cujo nome
se liga a mim: Citero – meu sepulcro! –,
como meu pai e minha mãe queriam.
O que em vida buscaram (destruir-me – apollýten), tenham mortos!
Mas direi: nem me arruinará (pertho) doença,
nem outra causa.
6
Que a Moira me encaminhe ao meu destino!

6. Versos 1451-1458.

52 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


Caderno Crítico

A abertura do ser em Heidegger assimila a vontade de potência que Nietzsche


via na tragédia grega: a alegria de existir contém em germe a alegria da destruição. A
diferença é que em Nietzsche se vislumbra um horizonte com conotações menos
metafísicas, uma vez que não se postula uma Verdade do Ser. Em Nietzsche, o homem
é livre, aberto às suas multiplicidades nômades e potenciais, pois não se atrela a
nenhuma espécie de verdade ontológica. Heidegger ainda vê uma relação de
pertencimento do homem em relação a uma compreensão pré-ontológica do Ser. O
homem é solicitado a existir à maneira de uma “antena” que capta os sinais da Verdade.
Parece-me que Nietzsche vai mais longe que Heidegger. Vislumbra, pela primeira vez
na história do homem, o fim de toda a metafísica. O homem é essa criatura finita que
precisa se transtornar, metamorfoseando-se em suas múltiplas virtualidades,
assumindo a sua vontade de potência, o seu pathos dionisíaco de ser.

Édipo, em cujo seio se desvela essa crise de destruição, depois do qual não
resta senão o exílio, é conclamado pelo Nume a assumir todas as determinações
negativas dessa vontade de potência. A existência do herói é compreendida pela
questão do Ser, mesmo que de forma velada. É nesse sentido que Heidegger tem razão
ao pensar que o homem é uma presença de ser-no-mundo sensível ao apelo da
Verdade do Ser. Mas, por outro lado, se há uma interpelação por parte da Verdade do
Ser, essa “chamada” exige do herói a ultrapassagem, a autossuperação.

O ser humano deve assumir e se tornar a sua vontade de potência. É nesse outro
aspecto que se consuma o fascínio nietzscheano pela afirmação da vontade de
potência. Eterno sim à vida e à morte: o que se chama destino do herói (Moira) deixa de
ser um destino preestabelecido, contingência ou mero acaso. A potência numinosa do
daimon é o poder-ser que se torna vivo para aquele que lhe está aberto e, portanto, para
todo humano mortal solicitado pelo Divino. Na visão sagrada e dionisíaca da vida,
transcorre apenas o fluxo da Vida, a vontade de potência ilimitada. O poder-ser da
tragédia humana se torna dialética do fenômeno, desvelação de uma força inaudita.

Chiu Yi Chih é professor de filosofia e literatura, poeta, escritor e ensaísta.


Bacharel em Letras Clássicas (Grego/Português - USP) e mestre
em Filosofia Antiga pela USP com a dissertação
A eudaimonía na pólis excelente de Aristóteles.
Realizou palestras de filosofia e literatura na USP e UNICAMP.
Atualmente trabalha com cursos de filosofia, literatura
e produção textual em institutos e faculdades. Em breve lançará
o seu livro Naufrágios pela Editora Multifoco, integrando o Selo Orpheu.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 53


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Borges e a poesia:
Esse ofício do verso
por Wanderson Lima

1
A verdade é que não tenho revelações a oferecer. Passei minha vida lendo,
analisando, escrevendo (ou treinando minha mão na escrita) e desfrutando.
Descobri ser esta última coisa a mais importante de todas. “Sorvendo” poesia,
cheguei a uma determinada conclusão sobre ela. De fato, toda vez que me
deparo com uma página em branco, sinto que tenho de descobrir a literatura
para mim mesmo. Mas o passado não é de valia alguma para mim. Assim, como
disse, tenho apenas minhas perplexidades a lhes oferecer. Estou perto dos
setenta. Dediquei a maior parte de minha vida à literatura, e só posso lhes
oferecer dúvidas.

O trecho acima se encontra na abertura de uma das obras mais cativantes e


menos conhecidas de Jorge Luis Borges: Esse ofício do verso (trad. bras., 2000, SP,
Companhia das Letras). Publicado pela primeira vez em inglês, This craft of verse (este
o seu título original) nasceu de palestras proferidas por Borges, entre 1967 e 1968, na
Universidade de Harvard, nas famosas Charles Eliot Norton Lectures. Tardou a virar
livro: só em 2000 veio a lume, inicialmente nos Estados Unidos.

Como O arco e a lira (Lo arco y la lira) para Octavio Paz, como o ABC da literatura
(ABC of reading) para Ezra Pound, Esse ofício do verso é, para Borges, a súmula do seu
credo poético. O leitor atento das incompletíssimas Obras Completas de Borges
(lançando no Brasil pela Editora Globo, a partir de 1999, seguindo os rígidos ditames da
Emecé) dificilmente encontrará alguma novidade neste livro, porém tudo o que Esse
ofício concentra em suas 158 páginas (falo da edição brasileira) encontra-se
pulverizado em centenas de ensaios, contos, entrevistas e prólogos que Borges
escreveu até a sua morte, em 1986.

O fragmento que abre este texto, se não oferece grandes pistas sobre a
concepção de poesia em Borges, dá-nos com precisão o tom do estilo adotado pelo
escritor em suas comunicações. Quem está acostumado com o tom panfletário,
apaixonado e prescritivo, adotado pela vanguarda aqui e alhures, deve ficar curioso ou
até aborrecido com o sermo humilis do escritor argentino. Da Retórica aristotélica à
Análise do Discurso francesa, o tom e a persona que o escritor constrói em seu texto
(oral ou escrito) recebe o nome de ethos. O ethos não corresponde, necessariamente,
ao que o sujeito é na vida privada, nem deve ser confundido com vigarice: trata-se de
um recurso de persuasão, que visa gerar um clima empático entre o escritor (ou o
orador) e seu público. Penso que o tom humilde e hesitante do ethos borgeano em Esse
ofício do verso (reconhecível também em outros escritos do autor) deve-se, ao menos,
a dois fatores, um circunstancial e um estilístico, que merecem nossa atenção, já que
afetam nosso modo de ler o texto.

54 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


Caderno Crítico

O aspecto circunstancial diz respeito ao fato de as comunicações terem sido


proferidas no estrangeiro, nos EUA, levando Borges a redobrar sua cautela, a
selecionar exemplos massivamente retirados do universo literário anglofônico, a
simular titubeios impensáveis em alguém que realizou sua primeira tradução do inglês
ao castelhano aos nove anos de idade (um conto de Oscar Wilde). Já àquela altura
bastante mitificado pela imprensa, Borges cria com seu sermo humilis um clima de
cumplicidade com seu público. Tal clima permitirá ao escritor argentino destilar erudição
sem parecer pedante e encetar comentários polêmicos sem gerar animosidade.
Enquanto as vanguardas retorciam a linguagem para, em geral, dizer mesmices,
Borges, no seu estilo castiço, construía pontos de vista profundos e polêmicos, capazes
de minar nossas crenças mais entranhadas. O mister do ethos humilde borgeano não
era outro, pois, senão eufemizar o peso das afirmações que deslocam concepções
amplamente aceitas. Esse ofício do verso é assim um livro de deslocamentos, mas não
é um livro polêmico – e aí reside sua dificuldade. É preciso não se deixar seduzir pelo
tom menor de Borges e achar que nele só cabem ideias “menores”, ainda que vivazes e
enunciadas com elegância clássica. A Borges repugnava o estilo do “filosofar a
martelos” – profético, peremptório, polêmico – que vem de Nietzsche e é retomado
abusivamente no pós-estruturalismo francês, onde nietzschianamente já se decretou a
morte do homem, o fim da metafísica, a morte do autor, a morte do romance, o
assassinato do real e a morte do cinema.

Pretendo, a seguir, apontar e discutir alguns desses “deslocamentos” presentes


nas comunicações que perfazem Esse ofício do verso. Não se trata de um resumo
linear da obra; o que desejo é responder, consciente da parcialidade da resposta, já que
meu corpus restringe-se àquele livro, o que Borges pensou sobre o fazer literário, com
enfoque maior para a poesia.

2
Esse ofício do verso é composto de seis comunicações que, juntas, abordam os
mais variados problemas de teoria literária e poética. O estilo, além de se calcar no
sermo humilis conforme apontei, evita o tom abstrato dos tratados de poética ou das
obras de filosofia estética. Para Borges, os teóricos da literatura e os filósofos escrevem
sobre poesia “como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma
paixão e um prazer” (p. 11). Blasfêmia seria, portanto, imitar a atitude do cirurgião
perante poesia. Borges analisa o fenômeno poético de dentro: sua teoria poética é seu
credo poético. Dono de uma memória mil vezes aludida como descomunal, Borges – o
olhar distante e firme de cego, como mostra a foto da época reproduzida no frontispício
da edição brasileira –, convoca poemas e fragmentos críticos de várias latitudes e
idiomas para tornar concretas suas afirmações teóricas. Assim, antes de ser tratado de
poética, uma investigação sistemática geradora de conceitos, Esse ofício do verso é
uma introdução à leitura da poesia. Uma introdução, porém, avessa ao receituário,
colocando-se antes como um abecedário do refinamento da sensibilidade para a
recepção da poesia.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 55


Caderno Crítico

“O enigma da poesia”, a primeira comunicação, se desalinha das crenças mais


tácitas da noção romântico-burguesa (digo, individualizante, calcada na ideia de
originalidade, juridicamente protegida) de autoria; paralelo a isso, põe em questão ainda o
culto do livro como lócus supremo da poesia e o culto deificador dos chamados clássicos.
Para Borges, a beleza é errante e ocasional: pode estar no livro do autor clássico mas
também nas situações corriqueiras do dia-a-dia. O livro é mera “ocasião para beleza” (p. 19),
que nasce não do eu profundo do autor nem depende inteiramente de sua vontade, mas
que é fruto do contato do leitor com a obra: “a arte acontece cada vez que lemos um
poema” (p. 15). Neste ponto, não há como não lembrar de Emir Rodriguez Monegal,
quando argumenta que a obra de Borges delineia uma “poética da leitura”, isto é, fixa a
leitura como operação central do fazer literário: a leitura (incluso aqui a tradução) é a lídima
invenção literária.1 A consideração do livro como objetivo imortal e de culto, diz-nos Borges,
chega-nos do Oriente com sua noção de Sagrada Escritura. Para os antigos – por
exemplo, para Platão e Sêneca –, o livro era mero paliativo. Além disso, sempre se soube
que o “autor” do livro não é de verdade o senhor absoluto do que está ali: cada época
produz uma “mitologia” (termo do próprio Borges) que demonstra a relativa e questionável
autoridade do autor: os gregos conclamavam as musas; os hebreus o Espírito Santo; e a
“nossa não tão bela mitologia” (p. 18) o subconsciente e correlatos. “Se um poema foi
escrito por um grande poeta ou não, isso só importa aos historiadores da literatura” (p. 24).
Tal como Paul Valéry, Borges vindica uma história da poesia sem menções a autores:
2
“Melhor seria, talvez, que os poetas fossem anônimos” (p. 24).

“A metáfora”, a segunda comunicação, consiste basicamente numa repetição, com


pequenas variações, de um breve capítulo que Borges escrevera para História da
eternidade (Historia de la eternidad, 1953), também denominado “A metáfora”. A tese
defendida por Borges nesta lição é de uma simplicidade e de uma iluminação ímpares: “[...]
embora possam ser encontradas centenas e mesmo milhares de metáforas, todas elas
podem ser reconduzidas a uns poucos modelos simples” (p. 49) – havendo, claro, umas
poucas exceções. Analisa alguns desses modelos: os que associam olhos e estrelas;
mulher e flor; tempo e rio; vida e sonho; morte e sono; incêndio e batalha. Existindo apenas
“uma dúzia desses modelos” (p. 41), todas as outras são “meros casos arbitrários” (p. 42),
quiçá pouco eficazes. Uma tentativa de exceção que Borges nos apresenta e trata com
bastante humor vem de e.e.cummings; na juventude, cummings cometeu o seguinte
verso: “'god's terrible face, brighter than a spoon' [a terrível face de deus, mais luzente que
uma colher]” (p. 42). Borges comenta de forma hilária: “Lamento bastante pela colher, pois
se sente, claro, que ele pensou primeiro numa espada, ou numa vela, ou no sol, ou num
escudo, ou em algo que tradicionalmente brilha; e então disse: 'Não – afinal sou moderno,
vou meter aqui uma colher'” (p. 42). Porém, o mais interessante desta seção parece ser a
análise concreta da eficácia de metáforas colhidas em diversos poetas e tradições; a certa
altura, quando está comentando metáforas que associam olhos e estrelas, Borges afirma:
“Se levarmos o pensamento lógico a sério, temos aqui [nos exemplos que citara] a mesma
metáfora. Porém o efeito em nossa imaginação é bem diverso” (p. 32). O efeito da
metáfora na imaginação do leitor: eis o que Borges persegue, essa força viva da metáfora
que a teoria tradicional em geral negligencia. Ou seja, o Borges de Esse ofício do verso,
nesta e nas outras comunicações, propugna uma crítica pragmática e aprimoradora do gosto.

1. Ver MONEGAL, Emir Rodriguez. Borges: uma poética da leitura. São Paulo: 1980.
2. Fico me perguntando como a primeira vez que li este livro, não atentei devidamente para o impacto da
seguinte frase: “[...] não precisamos nos preocupar muito com o destino dos clássicos, porque a beleza está
sempre conosco”(p. 23). Pelo que expus do pensamento de Borges, ela soa congruente; porém, nem é preciso
ser um pertinaz defensor do cânone para se especular com certo temor sobre suas consequências.

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A terceira comunicação chama-se “Narrar uma história” e reflete sobre as


consequências advindas do declínio do poeta épico. Borges interpreta por uma ótica
estritamente negativa a guinada lírica da poesia pós-clássica; para ele, a palavra poeta,
em nosso tempo, foi fracionada: “[...] hoje em dia, quando falamos de um poeta,
pensamos em alguém que profere tais notas líricas, à maneira de passados, como 'With
ships the sea was sprinkled far and nigh,/ Like stars in heaven [De navios o mar estava
salpicado por toda parte,/ Como estrelas no céu] (Wordsworth) [...]. Ao passo que os
antigos, quando falavam de um poeta – um 'fazedor' –, pensavam nele não somente
como quem profere essas agudas notas líricas, mas também como quem narra uma
história” (p. 51). Esse poeta a que Borges lamenta seu desaparecimento, esse poeta
que não cindiu o cantar e o contar, esse é o poeta épico. A posição que Borges esboçará
sobre as consequências do desaparecimento da épica se aproxima bastante do que
pensaram sobre o assunto Lukács, Bakhtin e especialmente Benjamin, no famoso
ensaio sobre o declínio do narrador. A exposição de Borges, porém, segue um ritmo e
um encadeamento de ideias muito próprios, expondo suas ideias sem abuso de
remissões, aliás, consoante também aos protocolos da comunicação oral. Além disso,
todos os três autores aludidos vêm da tradição marxista, a que Borges sempre
discordou dos princípios e nutriu antipatia.

A poesia de nossa época é uma poesia extirpada, e o poeta um sujeito que


esqueceu a arte de narrar: a sua voz agora, íntima, interior, é uma voz pesarosa,
melancólica. O desaparecimento da figura do “fazedor”, do poeta pleno, cantador e
contador, produziu uma cisão na literatura: de um lado temos o poema lírico e a elegia e
de outro temos o narrar uma história, cuja forma mais prestigiada é o romance. Borges,
porém, considera, ainda que com alguma hesitação, o romance uma degeneração da
épica. Para ele, a distinção qualitativa mais notória entre a epopéia e o romance não
vem a ser a diferença entre prosa e verso; o fator distintivo central está na figura do
herói. Na epopeia, trata-se de “um homem que é modelo para todos os homens” (p. 56);
a essência do romance centra-se, por outro lado, na “aniquilação de um homem, na
degeneração do caráter” (p. 56). Ou seja: as narrativas de nossa época abdicaram do
heroísmo, da vitória, da felicidade. Seu mister deixou de ser o de narrar uma aventura
que congregue a comunidade e passou a se guiar pelo critério da inventividade (de
novas técnicas narrativas, de novos enredos). Invariavelmente, porém, é a história de
uma queda.

Sendo assim, o romance não consegue aplacar nossa sede de aventura e


heroísmo. “As pessoas” – afirma Borges – “estão famintas e sedentas de épica” (p. 60).
Se não o romance, quem então procurou suprir essa nossa carência estrutural de
narrativas heroicas? Numa época em que vogavam as críticas mais unilaterais e
devastadoras sobre a assim chamada “cultura de massa”, Borges não hesita em
responder: “[...] foi Hollywood que abasteceu o mundo de épica. Por todo o globo,
quando as pessoas assistem a um faroeste – observando a mitologia de um cavaleiro, e
o deserto, e a justiça, e o xerife, e os tiroteios etc. –, imagino que resgatem o sentimento
épico, quer tenham consciência disso ou não” (p. 60).

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 57


Caderno Crítico

A quarta comunicação, “Música da palavra e tradução”, constitui-se, em sua


essência, de uma contestação da ideia de tradução sintetizada no trocadilho italiano
“Traduttore, traditori”. Borges, neste ponto apresentando pontos de contato com
Benjamin e com Derrida, questiona a primazia do texto original: “[...] a diferença entre
uma tradução e o original não é a diferença dos próprios textos. Suponho que, se não
soubéssemos qual era o original e qual era a tradução, poderíamos julgá-los com
equidade. Mas, infelizmente, não podemos. E assim a obra do tradutor sempre é tida
como inferior – ou, o que é pior, é sentida como inferior – ainda que, verbalmente, a
versão seja tão boa quanto o texto” (p. 71). O ideal seria, pensa Borges, a tradução ser
“considerada como algo em si mesmo” (p. 79).

Antes, na primeira conferência, o argentino solapara a noção de autoria


combatendo o endeusamento do autor, ao predicar que: 1) o autor não é senhor
absoluto do seu dizer (tanto que, ao longo do tempo, noções “mitológicas” como a
Musa, o Espírito Santo e o subconsciente evidenciaram essa diminuição, ou mesmo
depreciação, da ideia romântico-burguesa de autoria); 2) a beleza é caprichosa e
inconstante, está presente até nos atos corriqueiros, não sendo uma dádiva doada aos
“clássicos”. Agora, a ideia de autonomia dos textos se radicaliza: uma tradução não
deve ser julgada como subproduto do original. Para Borges, nenhuma condicionante
determina peremptoriamente o sentido do poema, nem as forças sociais, nem as
vicissitudes biográficas de quem o escreveu, nem a tradição (ou tradições) em que ele
se insere, nem a suposta primazia do texto original – o poema deve ser lido/julgado
como produto autônomo, ainda que não se trate de um objeto incondicionado, fruto do
acaso ou do milagre. Mas, e quando as liberdades que o tradutor toma afetam o
conteúdo dos textos? Borges dirá, na comunicação seguinte, que o sentido é mero
adendo ao verso, que sentir a beleza de um poema é um ato que antecede (e tem a
primazia sobre) o esforço de pensar em seu sentido. A patrulha ideológica, neste ponto,
dá aquele risinho entre o desprezo e a censura: como imaginar um poema não
condicionado pelas condições materiais etc etc? Ora, o franco esteticismo de Borges é
mais complexo do que sonha as diversas vertentes materialistas e economicistas
imaginam.3

3. Luiz Costa Lima analisa como o esteticismo borgeano, dando sequência a um projeto literário que se inicia em
Flaubert, funda um “monismo do ficcional” a partir do qual os outros saberes (Ciência, Religião, Filosofia) são
submetidos ao crivo da ficção. Dessa maneira, Borges subverte, com sua literatura, o “controle do imaginário”
que acompanhou a fundação e o desenvolvimento da literatura na modernidade: de controlada, a literatura passa
a ser controladora. Engana-se, portanto, a crítica materialista quando lê o esteticismo borgeano como
refinamento inócuo ou pura alienação. Vale lembrar que Costa Lima vê perigos nesse monismo do ficcional que
Borges inaugura, que não deixa de ser um reducionismo perigoso. Prova-o a estetização da teoria promovida
pelos pensadores pós-modernos que, consciente ou não do débito a Borges, retiram grande parte de suas
tópicas das narrativas, ensaios e poemas borgeanos. Ver Costa Lima, L. O fingidor e o censor: no Ancien
Régime, no Iluminismo e hoje. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988, pp. 257-306.

58 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


Caderno Crítico

Borges, não tenhamos dúvida, sabia dos condicionamentos externos – como


comprova a aguda análise que Beatriz Sarlo faz deste autor a partir da noção de
estética da margem (orillas).4 Porém, temia reduzir a poesia a “sintoma” ou panfleto.
Temia com razão: presenciamos hoje a redução da literatura à condição de arma
branca na arena da política cultural, como se vê no ensaísmo panfletário perpetrado
pelos teóricos dos Cultural studies. Porém, todo guerreiro precisa dormir; e Borges, que
fora profético e guerreiro em tantas afirmações, errou feio quando previu: “Chegará o
dia em que os homens cuidarão muito pouco dos acidentes e circunstâncias da beleza;
cuidarão da beleza em si mesma” (p. 81). À crítica universitária hoje só as
circunstâncias da beleza interessa, pois a beleza, em si, é considerada um cavalo de
Troia que o homem europeu, branco, heterossexual, rico, magro e adulto usa para
domesticar as minorias.

Ainda dentro do tópico da tradução, Borges focaliza um subtema dos mais


polêmicos: a questão da tradução literal. Contrariando a difundida opinião de
Matthew Arnold, para quem a tradução literal produz apenas estranhamentos e
bizarrias, Borges demonstra, através de variados exemplos em diferentes línguas,
que “uma tradução literal pode criar uma beleza toda sua” (p. 77). No entanto, esta
circunstancial beleza que a tradução ao pé da letra pode criar não é a razão para
Borges prescrevê-la. Pelo contrário, lembra-nos que esta forma de tradução, ainda
que possua uma origem teológica remota, é um vício tipicamente moderno: “[...] muitos
de nós só aceitam traduções literais, porque queremos dar a cada um o que é seu. Isso
teria parecido um crime aos tradutores em épocas passadas. Eles pensavam em
algo bem mais valioso. Queriam provar que o vernáculo era capaz de um grande
poema como o original” (p. 77).

4. In: Borges, un escritor en las orillas. Madrid: Siglo XXI, 2007. Para Beatriz Sarlo, Borges delineia seu projeto
literário a partir da indagação sobre como produzir literatura numa nação culturalmente periférica, ou seja, faz da
condição periférica uma estética. Nas palavras de Sarlo: “Borges reinventa un pasado cultural y rearma una
tradición literaria argentina en operaciones que son contemporáneas a su lectura de las literaturas extranjeras.
Más aún: puede leer como lee las literaturas extranjeras, porque está leyendo o ha leído la literatura rioplatense.
En Borges, el cosmopolitismo es la condición que hace posible inventar una estrategia para la literatura
argentina; inversamente, el reordenamiento de las tradiciones culturales nacionales lo habilita para cortar, elegir y
recorrer desprejuiciadamente las literaturas extranjeras, en cuyo espacio se maneja con la soltura de un marginal
que hace libre uso de todas las culturas. Al reinventar una tradición nacional Borges también propone una lectura
sesgada de las literaturas occidentales. Desde la periferia, imagina una relación no dependiente respecto de la
literatura extranjera, y está en condiciones de descubrir el 'tono' rioplatense porque no se siente un extraño entre
los libros ingleses y franceses. Desde un margen, Borges logra que su literatura dialogue de igual a igual con la
literatura occidental”.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 59


Caderno Crítico

Não sendo a mais rica nem a mais complexa, a quarta comunicação,


“Pensamento e poesia” é, no entanto, capital por ser nela onde Borges melhor clarifica
as raízes de sua concepção de poesia. Naturalmente, não se pode esperar de um
ensaísta, quanto mais de um com senso de humor refinado e cético, definições
científicas (para Borges, aliás, as definições são não só falsas como desnecessárias).
Sem alarde, fiel ao ethos que escolheu desde a primeira conferência, Borges avança
com sutileza e humildade – mas nem por isto deixa de polemizar com as posições sobre
poesia que eram a moda do dia, como a Jakobson e seus asseclas formalistas e
estruturalistas. Cabe lembrar que o esteticismo borgeano não é formalista, não reduz a
poesia a jogo verbal nem restringe o poema de sua capacidade referencial. Por outro
lado, também não aceita a ideia de poesia como prosa adornada, com a qual, diz ele, se
“tenta pegar um conjunto de moedas lógicas e transformá-las em mágica” (p. 83-84). O
que então é a poesia segundo Borges? Nada menos que um retorno às fontes
primevas, uma ressacralização da língua: “as palavras [começaram] como mágica e
[são] reconduzidas à mágica pela poesia” (p. 97). Os vocábulos, em seu princípio,
mantêm um laço concreto e eivado de mistério com o que designam: “Talvez tenha
havido um momento em que a palavra 'light' parecia lampejar e a palavra 'night' era
escura” (p. 86-87); a poesia repõe à palavra essa dimensão pulsante, íntegra, sacral.
Sobre este aspecto, é conveniente lembrar que Borges era frequentador assíduo das
obras do misticismo jadaico, a Cabala, mística em que não só as palavras, mas até as
letras isoladas, são instrumentos de criação e de revelação discerníveis aos iniciados.5

O barateamento das palavras, o seu esvaziamento, vem da ilusão do dicionário,


que nos alimenta a utopia de que cada palavra pode ser trocada por outra, como se o
sentido fosse uma espécie de moeda de troca. Retruca Borges a essa falsa lógica: “[...]
sabemos – e o poeta há de sentir – que toda palavra subsiste por si mesma, que cada
palavra é única” (p. 97).

5. Devemos salientar, no entanto, que a relação de Borges com a Cabala não é a de um crente. Costa Lima (Op. cit)
observa que, na Cabala e na Gnose, Borges tem “acesso a um conjunto de parâmetros com os quais se [opõe] à
tradição formada pelo logos da filosofia clássica grega, pela teologia monoteísta e pela razão iluminista” (p. 280).
Saul Sosnowski, estudioso da Cabala, assinala que o “interesse de Borges [pela Cabala] se enraíza no artifício
da linguagem, nos processos hermenêuticos que refletem realidades que podem ou não ser arbitrárias, mas que
satisfazem a imaginação do criador, que entabulam um diálogo e que projetam um desafio para os iniciados” (p. 18).
Ver SOSNOWSKI, S. Borges e a Cabala: a busca do verbo. São Paulo: Perspectiva, 1991.

60 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


Caderno Crítico

A sexta e última conferência apresenta um tom pessoal e confessional cuja


franqueza é pouco comum em Borges, sabido senhor dos labirintos. Não diria que “O
credo de um poeta”, o título dessa última conferência, contenha revelações
bombásticas – revelações que estejam ausentes de outros materiais seus
autobiográficos ou que tenham sido desconhecidas daquele que considero seu melhor
biógrafo, Emir Rodriguez Monegal. No entanto, contém uma súmula da formação de um
leitor muito especial e de como esse leitor foi construindo um cânone muito
idiossincrático e eclético. Essa vindicação de Borges por escritor multicultural, cujo
patrimônio é toda a tradição ocidental, como está bem expressa no famoso e debatido
“El escritor argentino y la tradición”, levou George Steiner a agrupá-lo entre os
“esperantistas”, isto é, aqueles escritores que se sentem em casa nas tradições
literárias constituídas em outros idiomas que não o seu, como é o caso de Samuel
Beckett e Vladimir Nabokov. Vários textos de Borges, em verso e em prosa, são escritos
como paródia ou pastiche de textos de escritores ingleses, alemães ou franceses.
Nestes casos, afirmar Steiner, “a outra língua 'transparece', dando ao verso de Borges e
a suas Ficções luminosidade e universalidade” (p. 17).6

3
É estranho quando, nessa sexta e última conferência, Borges afirma: “Não acho
que a inteligência tenha muito a ver com o trabalho de um escritor. Acho que um dos
pecados da literatura moderna é ser muito autoconsciente” (p. 123). Ora, neste caso
poucos escritores da segunda metade do século XX, poucos mesmos, foram tão
pecadores como Borges: se sua literatura não se restringe ao puro espaço intertextual
como postulam muitos teóricos da pós-modernidade e do pós-estruturalismo, por
exemplo John Barth e Paul de Man, é difícil duvidarmos que ela deriva, como afirma
Davi Arrigucci, “da tradição de lucidez moderna”,7 aquela que reconhece o pensamento
como elemento integrante do corpo da literatura, produzindo frequentemente obras que
contêm o conteúdo e seu comentário, a mímesis e a poiesis. Borges, como bem
percebeu seu compatriota Ricardo Piglia, conjuga, de modo tenso mas frequentemente
bem disfarçado, as habilidades do narrador (da tradição oral) com as do escritor (o
8
erudito refinado, que escreve poemas e contos eivados de referências culturais).
Quando Borges reclama que o poeta volte a ser um “fazedor”, na terceira conferência,
não é outro o seu desejo senão o de encontrar uma síntese capaz de conciliar
definitivamente aquela contradição. Me parece, porém, que Borges não a resolve; me
parece ainda que esta não resolução reforça a complexidade e a beleza dessa obra.

6. Ver STEINER, G. Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. São Paulo: Companhia das Letras:
1990, pp. 33-43.
7. In: ARRIGUCCI, D. “Borges ou do conto filosófico”. Prefácio a Ficções, de Jorge Luis Borges (São Paulo,
Globo, 1999).
8. In: PIGLIA, R. "Borges: el arte de narrar”. In: Cuadernos de Recienvenido, São Paulo, USP, n. 12, 1999.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 61


Caderno Crítico

Mais ainda. Há nas conferências que formam Esse ofício do verso um projeto
velado que Borges partilha com outros escritores-ensaístas, como Ítalo Calvino e
Octavio Paz, mas que nele, a meu ver, se evidencia com mais robustez: aliviar a
tradição literária da carga opressora com que não raras vezes ela vem revestida. Disso
resultam dois ganhos ao leitor: o primeiro é a sensação, hoje obstruída pelos estudos
culturais, de que a poesia (a literatura de um modo geral) é inclusiva; de que ela forja um
espaço onde fala o Homem, e fala com desejos de escuta, escuta que abre, para
lembrar a expressão de um caro ensaísta amigo, uma transversal no tempo. O segundo
ganho deriva do primeiro: a leitura deixa de ser uma estratégia de ativismo político, ou
uma luta de egos, ou um deciframento passivo, para se tornar um ato cooperativo, um
autêntico diálogo.

Talvez haja muito otimismo em Borges quanto a essa livre circulação do leitor
pelo espaço literário. Aliás, mais que uma circulação: colaboração. “A escrita” – diz
secamente – “é uma espécie de colaboração” (p. 124). Na tentativa de tornar a tradição
literária livre de qualquer postura opressiva ou agônica – cujos pontos extremos hoje
são a ideologização excessiva dos culturalistas e marxistas de um lado e, no outro, o
embate edipiano subjacente à ideia de angústia da influência elaborada por Harold
Bloom –, Borges não hesita em proscrever a história da literatura. Reverberando
algumas ideias de Nietzsche sobre os perigos de uma excessiva consciência histórica
para nossa capacidade criativa, dirá o escritor argentino: “Ter consciência da história da
literatura [...] é realmente uma forma de incredulidade [...]. Se digo comigo, por
exemplo, que Wordsworth e Verlaine foram poetas muito bons do século XIX, talvez
caia no perigo de pensar que o tempo de algum modo os destruiu [...]. Acho que a ideia
antiga – que podemos conceder perfeição à arte sem levar em conta as datas – era mais
corajosa” (p. 119).

62 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


Caderno Crítico

Diria, igualmente, que a aposta de Borges – na negação da autoridade autoral,


na generosidade cega da beleza, na primazia da música sobre o sentido, na
autossuficiência do poema, no reatamento entre o cantar e o narrar, na força
ressacralizante da palavra poética, na insubordinação do texto traduzido, na
capacidade coautoral da leitura – é corajosa, e essa coragem compensa sua excessiva
credulidade num tipo de leitor que ele sabia estar em franco declínio.

Wanderson Lima (Valença, PI, 1975) é poeta, ensaísta e professor (UESPI).


Publicou, entre outros, Balé de Pedras (poesia, Prêmio Torquato Neto, 2005)
e, em coautoria com Alfredo Werney, Reencantamento do mundo
(crítica de cinema, 2008). É redator da revista de cinema RUA.
É coeditor da revista dEsEnrEdoS http://www.desenredos.com.br
e mantém o blog O fazedor http://blogdowandersonlima.blogspot.com
onde escreve sobre cinema e literatura.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 63


O que é
?
? poesia?

O que é
poesia?
Foto: Giorgio Rocha

Edson Cruz (Ilhéus, BA, Brasil)


é poeta, editor e revisor.
Estudou Psicologia, Música e Composição
e, atualmente, estuda Letras
na Universidade de São Paulo.
Foi um dos fundadores do portal de literatura
Cronópios (www.cronopios.com.br)
e editor até maio de 2009.
Livros publicados:
Sortilégio (Demônio Negro/Annablume, 2007) e
O que é poesia? (Confraria do Vento/Calibán, 2009).
Blog: http://sambaquis.blogspot.com
E-mail: sonartes@gmail.com

52 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


O que é
?
? poesia?

?
Calidoscópio da poética
contemporânea
A poesia é, de longe, a linguagem de maior potência de significação
– “a mais condensada forma de expressão verbal”, no dizer de Pound –, e não é de
espantar a variedade de leituras, de idiossincrasias, de práticas que permeiam a
poética contemporânea e, evidente, a sua recepção. Tão diversas como o são os
próprios seres e seus interesses.

Ainda que todas as artes tenham a sua especificidade e complexidade,


os poetas acreditam que a sua seja a mais complexa e inescrutável de todas.
Bafejados pelas musas, os poetas são os seres mais suscetíveis do planeta.
Eles carregam a responsabilidade, ou a pretensão, de serem as antenas da raça.
E, cá pra nós, alguns realmente o são.

Isso posto, perguntar-lhes à queima-roupa “o que é poesia?” poderia soar


como provocação, ou, no mínimo, como um erro de avaliação e de foco.
E, de fato, alguns assim o entenderam. No entanto, muitos poetas decidiram
encarar o desafio da pergunta.

Assim surgiu o projeto, no blog Sambaquis (http://sambaquis.blogspot.com),


que instaurou o diálogo entre gerações, tradições, poetas e poéticas de forma
despretensiosa e instigante.

A consequência desse projeto é o livro O que é poesia?,


editado pelos jovens valorosos da Confraria do Vento
em parceria com a editora Calibán.
No primeiro volume foram selecionados 45 poetas
(de nacionalidade, calibragem e quilometragem diversas),
porém, ainda há muitos outros que, possivelmente,
farão parte de um segundo volume.

Os poetas que agora integram esta seção


da revista Celuzlose são alguns daqueles que, por motivos
editoriais, não se fizeram presentes no primeiro volume do livro.

Confira as respostas dadas por Ana Maria Ramiro,


Beatriz Bajo e Laís Chaffe a esse velho e, ainda,
legítimo questionamento.

Edson Cruz
Organizador

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 65


O que é
?
? poesia?

?
Ana Maria Ramiro
Nasceu em São Paulo (1972). Publicou os livros Menina-Poesia (1999)
e Desejos de Gaia (2007). Em 2006, organizou e traduziu a plaquete
Para Fazer um Talismã, com poemas de quatro autoras argentinas:
Alejandra Pizarnik, Elizabeth Azcona Cranwell, Dolores Etchecopar e
Olga Orozco. Participou da antologia 8 femmes (2007) e da Antologia
de poesia brasileira do início do terceiro milênio (2008), lançada
em Portugal. Tem poemas, traduções e ensaios publicados nas revistas
literárias Zunái, Critério, Coyote, Grumo, entre outras.
Blog: Folhas de Girapemba http://girapemba.blogspot.com
E-mail: ana.ramiro@uol.com.br

O que é poesia para você?

O estado permanente de tensão individual que se resolve


aparentemente com a escrita, a procura angustiante daquilo que se
esconde e se esvai e que, por essa mesma razão, dá sentido a essa
busca, ao processo poético. Para mim, três palavras-chave têm sido
a base para o fazer poético: pulsão, concisão e descoberta (um novo
olhar sobre a linguagem) e, claro, muita reescrita.

66 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


O que é
?
? poesia?

?
O que um iniciante no fazer poético
deve perseguir e de que maneira?

Acho fundamental ler muito, dos clássicos (aqueles que permanecem "novos")
aos contemporâneos, estabelecer um paideuma, mas também acho necessário
um certo distanciamento do cânon e do campo literário, que muitas vezes acaba
criando uma amarra condicionante, um instrumento de padronização.
Os poetas não devem nunca deixar de lado a ideia de reformular constantemente
a própria linguagem, e isso serve para todos, iniciantes ou não. A poesia, como
aspecto da linguagem, é matéria viva e ninguém passa uma vida inteira fazendo,
falando, escrevendo as mesmas coisas. Ser fiel a um leitmotiv, mas com
possibilidade de desvios. Reinventar-se.

Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais


para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

Minha inclinação para a poesia se iniciou na adolescência e me lembro que a leitura


de Alberto Moravia e de Baudelaire (As flores do mal) me apresentou uma escrita
enérgica, anímica, além de expandir a minha compreensão para a existência de uma
estrutura textual. A partir daí, outras leituras foram fundamentais:
Uma temporada no inferno, do Rimbaud, A Divina Comédia (mais tarde li na versão
original e o prazer foi redobrado ao descobrir como a linguagem arcaica contextualiza
historicamente a obra de Dante, mas ao mesmo tempo é uma surpresa estética
para o leitor contemporâneo), O livro das horas, do Rilke, muito da obra
do Pessoa, do Drummond, alguns poemas específicos de Cecília Meireles,
João Cabral e os concretistas. Mais tarde descobri poetas ingleses, franceses,
irlandeses, americanos, mexicanos, sul-americanos, poetas orientais...
e sigo nessas descobertas. Devo mencionar ainda algumas obras e autores singulares,
sui generis, tanto da poesia como da ficção e, nesse sentido, seriam muitos os
exemplos, desde o Popol Vuh, passando por Sóror Juana Inés de La Cruz,
E. A. Poe, Joyce, Clarice Lispector, a poesia em dialeto de Pasolini,
os orikis de Antonio Risério... Todas essas leituras me provocaram em determinado
aspecto e momento, me incitaram a dissecá-las, mais do que outras tantas, e de alguma
forma se tornaram um palimpsesto, o amálgama que utilizo quando penso em poesia.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 67


O que é
?
? poesia?

?
Beatriz Bajo
Nasceu em São Paulo/SP, 1980. Poeta, revisora, tradutora, professora
de língua portuguesa e literatura, especialista em Literatura Brasileira (UERJ)
e aluna especial do mestrado em Letras (UEL). Participou de antologias
e mantém publicações em revistas literárias como Coyote e Polichinello
e em espaços virtuais como Portal Cronópios, Germina Literatura
e Confraria do Vento. Traduziu o livro Respiración del laberinto, do poeta
mexicano Mario Papasquiaro, pelo Coletivo Dulcinéia Catadora e trabalha
atualmente com uma novela, também mexicana, pela editora LetraSelvagem.
Livros publicados: a face do fogo (Selo [e] editorial, 2010) uma parceria da
Annablume com o selo Demônio Negro; : a palavra é (Atritoart/Kan, 2010).
Morou por 17 anos no Rio de Janeiro (RJ) e vive há 4 em Londrina.
Edita a seção literária do site Armadilha Poética http://www.armadilhapoetica.com
membro do conselho editorial do Projeto Macabéa http://www.trapiches.com.br
e insiste em cultivar o blog http://lindagraal.blogspot.com
e-mail: beahbajo@hotmail.com

O que é poesia para você?

Poesia é o tesão da inteligência, é o orgasmo que provoca a recuperação da alma.


Poesia é algo que me salva do afogamento ou do incêndio. Lembro que desde quando
comecei a escrever e fazia isso com certa frequência (sem trema, agora, mas tremendo
ao acaso... rs), o ato de produzir era imperativo... porque não podia dormir, era como estar
engasgada de nuvem, tropeçando no sol das palavras que se acenderiam se eu pegasse
o caderninho... somente se vomitasse os versos que atravessavam meu sono.
Depois, gozava de espelhamento e a leveza deixa-me em outro movimento eufórico
e em seguida mais brando, até a singeleza. Tem sido assim, desde sempre.
Posteriormente, vieram os estudos, o aprofundamento, a academia e os “papas” do lirismo
insistentemente desmentindo o que sinto de antes: de que poesia é o blábláblá do trabalho
(sim, de parto), da transpiração (ora, o orgasmo). Nada disso me pega porque leio poemas
que não me transformam, mas são apadrinhados pelo cânone, então, fodam-se as teorias
e os intelectualismos poéticos. Quero comover-me. Para mim, poesia é uma morte,
por isso, uma salvação... um resgate da gente, um perdoar-se.

68 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


O que é
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? poesia?

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O que um iniciante no fazer poético
deve perseguir e de que maneira?

Deve perseguir a espontaneidade... técnicas para impressionar leitor


não valem de nada... é necessário que a poesia incendeie...
é imprescindível provocar dores, espasmos, estupefações.
O segredo é sempre caminhar ainda mais pra dentro...
escrever de olhos fechados para o mundo, construir imagens impossíveis
e que representem os sentimentos que impulsionaram o ato...
não levar preocupações para o poema... não se importar com escolas
e oficinas, obedecer o que caminha bem dentro e que nunca
ninguém leu ainda... respeitar as palavras, não as escravizar,
sobretudo, respeitar os assuntos de cada um.

Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais


para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

Engraçado isso, mas a poesia primeira veio de Clarice Lispector...


desesperei quando li Água viva, lá estava tudo o que procurava há tempos.
O maior de todos é Drummond, por tudo que me atormenta ainda hoje,
o que mais vem me tocando é “Tarde de maio”. Brecht mudou muita coisa
em mim com “Poemas de um manual para habitantes das ciudades”.
Bem, para não ficar muita extensa a lista, cito um último poeta
que me atordoou, Fabiano Calixto. Seu livro, Sangüínea
(agora com trema e tudo... rs), é maravilhoso, mas destaco
“versos de circunstância”.

Beijo no ventre dos versos.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 69


O que é
?
? poesia?

?
Laís Chaffe
Nasceu em Porto Alegre. Idealizou e está à frente do selo editorial
Casa Verde (www.casaverde.art.br - prêmio Açorianos de Editora
Destaque no Rio Grande do Sul, 2006) e da Série Lilliput (dedicada
a minicontos). Organizou as antologias Contos de bolso, Contos de bolsa
e Contos de algibeira e fez a coordenação editorial do livro
Contos comprimidos - todos de minicontos. Jornalista e autora
de Não é difícil compreender os ETs (contos, AGE, 2002), participou das
antologias Contos do novo milênio (organização Charles Kiefer, 2006),
Poemas no ônibus (2002 e 2004), entre colchetes fica
mais confortável (contos, 2001) e Histórias de trabalho (1999 e 2004).
Site: www.chaffe.com.br E-mail: lais@chaffe.com.br

O que é poesia para você?

Poesia
desejo salivando
em frente à mesa
vazia.

70 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


O que é
?
? poesia?

?
O que um iniciante no fazer poético
deve perseguir e de que maneira?

Pra qualquer poeta eu diria o que digo pra mim mesma, também iniciante:
vive, lê muito, lê, lê, le(minski).
Mais do que compreender, tem de assimilar como numa transfusão
os versos do poeta:

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

(Paulo Leminski)

Repetiria ainda o que ouvi do Fabrício Carpinejar numa oficina literária:


“Vocês têm de dar à mentira a dignidade da lembrança”.
Na mesma ocasião, ele lembrou que a gente tem que atravessar o nosso nojo.
E ter a brevidade de um desaforo. Fico por aqui, então.

Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais


para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

Qual pessoa mario me drummond?

Vamos aos poemas:


A mesa. Poema de sete faces. Consolo na praia. Aniversário.
Autopsicografia. Da vez primeira em que me assassinaram.

Ah, eram só três, né? Ok.

Gutfreind a todos.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 71


BIO Vida & Obra

André Dick

72 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BIO Vida & Obra

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 73


BIO Vida & Obra

Rimbaud:
das viagens ao silêncio,
do silêncio às viagens
por André Dick

1. Poeta das viagens

O poeta Jean-Nicolas Arthur Rimbaud é, para a França, o que Dante Alighieri é


para a Itália, e Goethe, para a Alemanha, ficando em alguns exemplos máximos: um
poeta que trabalhou sua língua de modo universal. Seu desejo certamente foi a
indeterminância, como observa Marjorie Perloff em seu estudo The Poetics of
indeterminacy: Rimbaud to Cage. Como os poetas referidos, Rimbaud deixou também
uma obra não só impactante como também extraordinária, uma “injeção de juventude
na poesia” (Paulo Leminski). Não por ser um modelo de caminho a ser seguido, mas
pela própria negação a tudo, o exemplo verdadeiro de marginal, quando isso ainda não
era tratado como rótulo. Isso é claro não só através de sua obra, mas por sua
importância mais de um século após sua morte. Rimbaud, para muitos, morreu em vida,
por ter deixado a poesia ainda jovem, mas pode-se dizer que, com isso, soube ir além,
aonde nenhum poeta ousou.

O ponto mais enigmático da poesia francesa do século XIX se encontra, afinal,


em sua obra, embora haja os Pauls (o Verlaine e, sobretudo, o Valéry), Charles
Baudelaire, com suas “flores do mal” e Stéphane Mallarmé, com seu “lance de dados”
para fazer com que essa afirmação seja duvidosa. Para nós, brasileiros, a obra de
Rimbaud é, infelizmente, pouco conhecida, muito em razão de o Simbolismo, quase
confundido com o Decadentismo, época literária da qual Rimbaud foi o principal
precursor (o manifesto de tal escola se deu apenas em 1886, cinco anos antes de
Rimbaud morrer) nunca ter recebido um grande espaço em nossa literatura. Nossos
grandes simbolistas foram os catarinenses Cruz e Sousa, Ernani Rosas e Emiliano
Perneta (os dois últimos menos conhecidos), o gaúcho Eduardo Guimaraens, o baiano
Pedro Kilkerry e o mineiro Alphonsus de Guimaraens, o mais popular dos citados – seu
poema “Ismália” está em muitos livros escolares, com versos característicos do
momento simbolista: “E como um anjo pendeu / As asas para voar... / Queria a luz do
céu, / Queria a luz do mar...”.

Nascido em Charleville, cidadezinha do interior da França, em 1854, longe das


grandes metrópoles, dos grandes meios de circulação da cultura (que, para Rimbaud,
ficava em qualquer lugar, menos em Charleville) e da África, para onde partiu mais
tarde, deixando a poesia em último plano, Rimbaud foi uma espécie de poeta contra o
sedentarismo. Em sua juventude, sua rebeldia e seu ímpeto de liberdade já chamavam
atenção, sobretudo no colégio, onde costumava impressionar seus professores com
poemas em latim, pelos quais ficaria conhecido inicialmente. Entre fugas de Charleville,
pedidos de publicação de alguns poemas seus ao inspirador Theodore Banville e
versos, muitos versos, desde os dez anos de idade, Rimbaud amadureceu. Em 1869,
ele iniciou sua obra, com “As dádivas dos órfãos”, que foi publicado na Revue Pour
Tous, em janeiro de 1870, poema longo e, por vezes, piegas.

74 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BIO Vida & Obra

A convite do poeta Paul Verlaine, para quem havia mandado alguns versos, foi
morar na capital da vanguarda literária, Paris, em 1871, levando, embaixo do braço, o
poema pelo qual ficaria mais conhecido, o antológico “O barco ébrio”, composto quando
tinha em torno de 15, 16 anos. Na Paris dos poetas e outros artistas mais avançados no
tempo, cercou-se de personalidades literárias e se iniciou na droga predileta daquele
período: o haxixe, atrás de seu “desregramento dos sentidos”.

Seu melhor amigo em Paris, neste período, foi justamente Paul Verlaine.
Rimbaud, afinal, se hospedou na casa dos sogros de Verlaine. A dupla compunha o
“Círculo Zútico”, um clube de artistas, sobretudo poetas, cuja maior diversão era passar
as noites fazendo festa entre bons e maus versos, aplausos e vaias.

Foi nessa amizade também, entre Rimbaud e Verlaine, que cresceu um


envolvimento perigoso, pois o segundo era casado e arranjou problemas com a esposa
ao circular com Rimbaud pela noite parisiense. Esse envolvimento acabou rendendo
também ao poeta idas e vindas no trajeto Charleville-Paris. Numa dessas idas a Paris,
em 1873, Rimbaud tomou um tiro de Verlaine que quase lhe fez perder a utilidade da
mão esquerda. O caso chegou a parar na polícia. Mas a trajetória de Rimbaud não ficou
só nisso: ele viveu aventuras em países como Bélgica (aonde fora com Verlaine),
Inglaterra (onde teve uma vida miserável em Londres), Alemanha (onde virou preceptor
dos filhos de um médico em Stuttgart), Itália (de onde foi expulso) e Holanda (onde se
engajou no exército), entre outros países, nunca fixando lugar, sempre um eremita, um
aventureiro.

Disposto a fugir da Europa branca e aristocrática, cheia de manias e bibelôs, e


encontrar novos povos, novas culturas, um novo universo, enfim – mesmo com a mãe
querendo trazê-lo de volta à convivência familiar –, Rimbaud tomou o caminho da
África. A vida do poeta, então, tomou os contornos de uma jornada sem fim, mais do que
já era, tão ou mais trepidante que sua prosa, registrada em Uma temporada no inferno e
em Iluminações – que é um marco na literatura ocidental no final do século XIX,
influência direta na obra de outros escritores modernos, sobretudo os beats americanos
dos anos 60, que espalharam pelo mundo a cultura junkie. Para Michael Hamburger, na
época em que escreveu, por exemplo, Iluminações e Uma temporada no inferno,
Rimbaud “estava antecipando o surrealismo, o dadaísmo e até a pop art mais recente”.1

1. HAMBURGER, Michael. A verdade da poesia. Trad. Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Cosac Naify,
2007, p. 65.

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BIO Vida & Obra

Na África, Rimbaud passou, entre outros lugares, por Chipre, Egito, Harar,
Somália, Ugadine, Bubasse e Etiópia, tornando-se o primeiro homem a desbravar o rio
Ugadine, o que lhe deu oportunidade de realizar relatos de viagem, publicados pela
revista Sociéte de Géographie. Nesse ambiente, Rimbaud foi o homem que traficou
armas, exportou ouro, marfim, peles e café, participando da construção de um palácio e
cruzando desertos – só a travessia do deserto da Somália durou, a cavalo, vinte dias.
Em meio a tudo isso, o principal objetivo: a penetração na Abissínia. Segundo Roland
Barthes, o “Poeta e o Viajante (figura ainda romântica) foram substituídos por outro
2
papel: o de colono e geógrafo (verdadeira antítese do Poeta)”. Desse modo,
“Rimbaud abandona um Desejo (o de Escrever), mas o substitui por outro, igualmente
violento, radical, e, eu diria, louco: viajar”.3 Ou seja, ele foi tudo aquilo que ninguém
espera de um poeta.

Em 1879, ano em que contraiu febre tifoide, ele deu a seguinte declaração sobre
a literatura e, especificamente, sobre a poesia, ao seu amigo inseparável Ernest
Delahaye: “já nem penso mais nisso”. Como se tudo que escrevera até então
pertencesse ao acaso, relegando o passado e sua juventude apenas para os
admiradores da poesia. Foi o único poeta que descobriu a arte do silêncio – a maioria é
procurado pelo silêncio – retomado quase meio século depois pelo norte-americano
John Cage.

Talvez Rimbaud, o simbolista francês por excelência e com coração de caçador,


seja a peça-chave para compreender os passos de uma futura vanguarda, entre
futurismos, vorticismos, dadaísmos e outros ismos; e também quisesse nos comunicar
algo além da sua poesia, embora isso seja difícil, tal a amplitude que ela atingiu. Isto é,
talvez Rimbaud tenha pretendido separar suas facetas, uma delas voltada para a vida
literária e a outra, para a terra estrangeira, quase inevitável em sua vida.

Quando Rimbaud, castigado por um tumor cancerígeno no joelho direito,


agravado por uma antiga sífilis, teve a perna amputada num hospital de Marselha, a 22
de maio de 1891, após varar o deserto que separa os montes de Harar do porto de Zeilá
e passar por Aden, podemos perceber que toda essa trajetória rumava para algum
significado. O poeta faleceu no dia 10 de dezembro do mesmo ano. Seu último desejo
(ser inumado em Aden, cidade que adorava) não foi atendido: por ironia do destino, a
mãe resolveu enterrá-lo em sua cidade natal, de onde fugiu a vida toda. Assistiram
sozinhas ao seu enterro a mãe e a irmã.

2. BARTHES, Roland. A preparação do romance II: a obra como vontade: notas de curso no Collège de France
1979-1980. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 55.
3. Ibidem, p. 54.

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BIO Vida & Obra

2. Silêncio moderno

Em seu livro Estrutura da lírica moderna, Friedrich localiza características


semelhantes entre Baudelaire e Rimbaud: o abandono à religião, a transcendência
vazia, a protelada separação do eu poético do eu empírico (é de Rimbaud o conhecido
axioma da modernidade “Je est un autre”), o interesse pelo desconhecido, pela magia e
a fuga calculada da burguesia – característica romântica, como vimos –, a música
dissonante dos versos, a necessidade de refletir sobre a poesia (Uma temporada no
inferno mostra bem isso), a presença da cidade. Mas, como é habitual em sua tese,
Friedrich converte tudo em possibilidades do poeta de querer acabar com uma tradição
e iniciar outra.

Segundo Friedrich, Rimbaud adota em seus versos a desumanização: “O eu que


fala nas poesias de Rimbaud não pode ser concebido a partir da pessoa do autor, assim
como o eu de Les fleurs du mal”.4 O argumento é prejudicado por insistir em se dissociar
a poesia da vida existencial: ou seja, a linguagem está afastada da vida e não traz
sentimento, pois este faz parte do ser humano, e o poeta moderno é alguém que sofre
apenas por si mesmo, o que revelaria sua desumanidade. Hugo Friedrich comenta o
fato de que os textos de Rimbaud “mostram que ele começa com a revolta e termina
com o martírio de não poder escapar à coação da herança cristã”.5 O seu axioma “É
preciso ser absolutamente moderno”, no entanto, faz com que Uma temporada no
inferno seja a principal representação desse abandono da tradição cristã, ou seja, não
vendo mais Deus como o sentido final. A obra de Rimbaud busca a “transcendência
vazia” em razão de ela trabalhar com a imagem de que Deus está ausente da realidade
apresentada pelo mundo.6

Por ter começado a separação anormal entre o sujeito poético e o eu empírico,


7
que impediria de entender a lírica moderna como expressão biográfica, Friedrich
considera que a poesia de Rimbaud, então, seria “desumanizada”, pois não fala a
ninguém. É como se se constituísse num monólogo em que o “Eu imaginado cedeu
8
lugar a uma expressão sem o Eu”. No entanto, essa expressão sem o Eu descende de
uma visão romântica, como a própria posição de Rimbaud, ao elogiar seus
antecessores, como veremos melhor mais adiante, ao tratarmos da impessoalidade.

4. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a
meados do século XX. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 69.
5. Ibidem, p. 67.
6. Ibidem, p. 75.
7. Ibidem, p. 69.
8. Ibidem, p. 70.

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 77


BIO Vida & Obra

É pertinente procurar entender por que esse gesto de equilibrar a linguagem


com o pensamento é vista pelo teórico alemão como desumanização da poesia. Tal
“monólogo” ocorre, para ele, não mais porque “a inspiração divina o subjuga”, mas
porque “subjugação vem agora de baixo”, ou seja, o “eu emerge e é desarmado por
9
camadas profundas coletivas”. O autor, então, trataria os homens “como estrangeiros
sem pátria ou como caricaturas”.10 O que ele quer dizer, na verdade, é que o poeta
moderno, por não querer mais aspirar ao divino, ao sublime, acaba por se rebaixar
(o termo é importante, por isso o destacamos) à humanidade. Só que, por isso,
paradoxalmente, Friedrich o trata como desumano.

Outro dado problemático na análise empreendida por Friedrich é que ele


imagina ter existido uma pessoa chamada Arthur Rimbaud independente da poesia
feita por Arthur Rimbaud. Mas nessa reflexão encontra-se um paradoxo: como pode um
sujeito pensar apenas em si mesmo, como ele parece querer comprovar, e o que ele
escreve não dizer nenhum respeito a ele, expressando um Não Eu? De que modo
aquele imaginário referido por Friedrich, no qual o autor trataria apenas de si mesmo,
não é íntimo; pelo contrário, corresponde a uma “realidade neutra”, existente apenas na
página e impedida de ter tido um contato com a realidade “natural”, ou com qualquer
sentimento? Adquirindo vida própria a linguagem poética, temos, numa dicotomia, o
homem Rimbaud e a linguagem Rimbaud. Porém, o eu empírico não é apenas o
homem “que confessa seus segredos” ao leitor; ele também revela a linguagem de um
homem – e, no caso de Rimbaud, suas viagens mais densas. Barthes avalia a ruptura
de Rimbaud de maneira mais produtiva, baseando-se em suas fases (a primeira,
preenchida pela poesia, e a segunda, quando parte para a África), quando diz:

Rimbaud é moderno (fundador da Modernidade) não por seus


escritos – ou menos por seus escritos do que pelo
deslumbramento, o jeté de sua ruptura. Não é nem mesmo a
radicalidade, a pureza, a liberdade da ruptura, que é moderna; é
que ela permite ver, torna visível que o sujeito – o sujeito da
linguagem – está fendido, esquizoide, como uma via em que cada
trilho corre e segue diretamente diante dele, um paralelo ao outro;
como se Rimbaud tivesse tido, nele, dois “condicionamentos”
estanques: um para a poesia (através do liceu), outro para a
viagem [...]; ele falou duas linguagens descontínuas: entre o
poeta, o viajante, o colono e o crente final [...], não há junção, e é
essa esquize que age como uma tentação moderna: Maquiavel
fala de Lourenço de Médicis (grave e voluptuoso), e diz que havia
11
nele dois seres diferentes: “juntos por uma inconcebível junção”.

9. Ibidem, p. 63.
10. Ibidem, p. 70.
11. BARTHES, op. cit., p. 57.

78 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BIO Vida & Obra

Friedrich pretende estabelecer que em Rimbaud, no entanto, a realidade e a


irrealidade não existem; foram fundidas num mundo fantasioso: “Estamos num mundo
12
cuja realidade existe só na língua”. Sendo assim, homens tão restritos a seu próprio
mundo, como Rimbaud e Baudelaire, não querem mais receber os conteúdos do mundo, e
sim “impor sua criação”.13 Como em Baudelaire, as visões de sonho de Rimbaud “se valem
14
do inorgânico para se enrijecerem e escaparem no desconhecido” e, sobretudo,
ultrapassar a realidade. Esse desconhecido “já não pode ser saciado pela fé, pela filosofia
ou pelo mito, é [...] polo de uma tensão que, porque o polo está vazio, rechaça a
realidade”,15 que, destruída, constitui “o sinal caótico da insuficiência do real em geral,
16
como também da inacessibilidade do 'desconhecido'”. Não há dúvida de que é um olhar
negativo sobre a modernidade, sobretudo porque pretende ligar essa transcendência
vazia a uma aversão pela herança cristã. Mas de que realidade ele fala? Podemos pensar,
nesse caso, em uma “realidade da linguagem”, uma realidade que existe a partir da
linguagem. No entanto, para Friedrich, essa escolha faz com que as imagens
rimbaudianas não sejam mais para a “inteligência”, mas para os sentidos, uma crítica
direta ao fato de que Deus precisa ser aquele que é imposto e não aquele que é sonhado.
17
Elas seriam, portanto, “curvas puras da fantasia e da linguagem absoluta”, valendo-se
Friedrich do exemplo de Iluminações, cujos textos não pensariam no leitor, como se o
escrito adequado fosse feito para o público. Nesse sentido, Augusto de Campos indica:

A peripécia vital de Rimbaud, única, pela radicalidade – a do


adolescente genial que, em três ou quatro anos, queimou todas
as etapas do fazer numa obra mínima (e máxima), tão densa e tão
intensa que levou à renúncia e ao silêncio o poeta superdotado –,
merece um tributo especial e uma reflexão permanente. Quando
o escrever é mero degrau para os assomos da vaidade ou do
poder [...], será útil rememorar o caso-limite Rimbaud, a perfeição
do que ele fez, tão jovem, e o desprendimento com que deixou de
fazer, tão cedo.18

No entanto, Friedrich, preocupado com a filologia do texto, escreve:

Desde 1871, a poesia de Rimbaud transformou-se, cada vez


mais, em monólogo. Conservaram-se esboços de algumas
passagens das obras em prosa. Confrontando-se estes esboços
com as redações definitivas, vê-se em que direção Rimbaud
mudou. Os períodos tornam-se ainda mais concisos, a omissão
de conexões torna-se mais ousada, os grupos bizarros de palavra
19
ainda mais frequentes.
12. FRIEDRICH, op. cit., p. 80.
13. Ibidem, p. 81.
14. Ibidem, p. 82.
15. Ibidem, p. 76.
16. Ibidem, p. 76.
17. Ibidem, p. 82.
18. CAMPOS, Augusto de. Alguns Rimbauds. In: ______. Rimbaud livre. Trad. Augusto de Campos. 2. ed.
São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 20-21.
19. FRIEDRICH, op. cit., p. 90. (Grifos meus).

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BIO Vida & Obra

Em seguida, Friedrich procura explicar as minúcias que ele tinha com detalhes
de composição:

Informações de época relatam que ele (Rimbaud) costumava


consumir maços inteiros de papel, antes que uma redação o
satisfizesse, que tinha escrúpulos de colocar ou não uma vírgula
ou de suprimir um adjetivo, e que colecionava palavras raras ou
desusadas para, depois, servir-se delas em seus textos. Todos
estes fatos comprovam que Rimbaud não trabalhava de maneira
20
distinta da dos clássicos da clareza.

Finalmente, conclui:

As obscuridades em forma de monólogo não são repentes


incontrolados, mas arte consciente e, como tal, de todo coerente
numa poesia cuja paixão pelo “desconhecido”, não se podendo
realizar, conhece apenas o caminho de subverter e de tornar
estranho o que é conhecido.21

Lendo esses fragmentos, pode-se questionar o que explica a tentativa anterior


de Friedrich considerar a arte moderna como distinta daquela que efetua a clareza ou
da figura do autor como contrária àquela que efetivamente compõe, através da
elaboração, a sua obra. Talvez Friedrich queira destacar que o autor moderno quer a
irrealidade, o sonho, a fantasia. Mas tal caminho já não era proposto pelos românticos,
interessados em transformar a realidade através de uma negação completa da mesma,
buscando uma natureza superior à existência? Poderia ser dito que então o romantismo
queria, na verdade, reproduzir o pensamento de mudança para a sociedade, caminho
negado sobretudo pelos simbolistas. Mas esses, de algum modo, não estariam, na
visão de Friedrich, querendo fazer o mesmo, ao ignorar a realidade ao seu redor?

20. Ibidem, p. 90. (Grifos meus).


21. Ibidem, p. 90.

80 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BIO Vida & Obra

Na “Carta dita ao vidente”, de Rimbaud, há uma homenagem clara aos seus


antecessores quando ele escreve que o romantismo nunca foi bem julgado, sobretudo
pelos críticos. Quando Rimbaud escreve “Eu é um outro”, ele conclui, no entanto, que
isso é resultado do conhecimento do homem: “[...] ele procura a sua alma, a inspeciona,
a tenta, a aprende. Quando a sabe, deve cultivá-la; isto parece simples: em todo
cérebro há um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; há bem
22
outros que se atribuem o seu progresso intelectual!”. O poeta, daí, faz-se vidente “por
meio de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos”, ou seja, “ele
procura ele mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para só guardar as
quintessências”.23 Nessa busca pela “impessoalidade” – e assim a viagem é tanto para
dentro quanto pelo mundo –, diz Rimbaud, o poeta

[...] precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, onde ele


se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o
grande maldito – e o supremo Sábio! – Pois ele chega ao
desconhecido! Porque ele cultivou a sua alma, já rica, mais do
que nenhum! Ele chega ao desconhecido, e quando,
enlouquecido, ele acabaria por perder a inteligência de suas
24
visões, ele as viu!

Rimbaud acaba por considerar os românticos também videntes, mesmo que


eles não tenham se dado conta disso. Como se percebe, sua visão não está longe
daquela oferecida por Longino. O poeta é visto como um representante da humanidade,
ao contrário do que expõe, como dito anteriormente, Friedrich; mas Rimbaud, ao
contrário dos românticos, entende isso como um potencial natural de qualquer ser
humano, de se conhecer interiormente quando interessado em produzir versos e não
deixar a cargo da natureza a responsabilidade de a obra existir.

É importante, assim, contornar a ideia de que a impessoalidade se liga à


intransitividade, que garantiria “à obra um valor geral, que supera o individual e o
circunstancial”. A impessoalidade só existe pela maneira como o autor se constrói, de
forma pessoal, com seu “eu psicológico” (portanto individual, quando sabe de sua
multiplicidade e divisão) em diálogo com a vida (o “circunstancial”).

22. RIMBAUD, Arthur. Carta dita do vidente. In: ______. Uma estadia no inferno/Poemas escolhidos/A carta do
vidente. Trad. Daniel Fresnot. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 79.
23. Ibidem, p. 80.
24. Ibidem, p. 80. (Grifos do autor).

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BIO Vida & Obra

A impessoalidade não tem a ver com uma fuga ao “eu psicológico” (visto que
esse tem a subjetividade alargada), nem anula a consciência e a responsabilidade do
escritor, que se dá devido às circunstâncias de sua existência; ele sabe que a criação
tem a consciência de um trabalho com as palavras, e não de uma possessão por
palavras. O trabalho poético não tem um caráter sobrenatural: é, sim, guiado por um
trabalho de construção – e, no caso de Rimbaud, das inúmeras viagens. Por isso,
podemos entender o contrário de Alfonso Berardinelli, que escreve: “O
desenraizamento da arte, sua abstratização por meio de procedimentos
'despoticamente' formalistas e absolutizantes, que aniquilam toda possibilidade de
determinação espaço-temporal, é obra sobretudo de poetas como Rimbaud e Mallarmé
25
e de pintores como Cézanne”. Esses procedimentos que aniquilariam “toda
possibilidade de determinação espaço-temporal” são inviáveis nas obras de Rimbaud e
Mallarmé justamente pela correspondência, que encontramos nelas, com a vida.

Exemplo desse caminho é quando Friedrich parte do pressuposto de que o


homem Rimbaud, mesmo não conhecendo o mar, pôde fazer o poema “O barco ébrio”,
o que mostraria que o poeta não considera a realidade. Sob outro ponto de vista,
mostra-se a humanidade do poeta em dividir seu imaginário com a fantasia, que, ao
mesmo tempo, provém da realidade, mediada, obviamente, pela linguagem, não
transposta, mas reinventada. As imagens de “O barco ébrio” revelam um talento
incomum para descrever uma tormenta marítima. Importante não desconsiderar a
análise de Friedrich sobre o poema, com diversos acertos, independente dos caminhos
que ele segue para chegar a essa análise. Ao analisar a linguagem de ruptura e
inovação de “O barco ébrio”, ela só mostra por que Rimbaud é um dos maiores poetas
da modernidade – pois entrega seu imaginário à corrente tumultuada das observações
do cotidiano e de leituras. Como escreve Augusto de Campos, trata-se de um
“biopoema, varado por um sopro cósmico e premonitório, que infunde uma
dramaticidade implacável à holovisão do navio-poeta. Como negar a congruência do
poema com os futuros passos da vida de Rimbaud – suas viagens disparatadas, sua
ruptura com o mundo civilizado da Europa, seu isolamento final, sua renúncia à poesia,
seu silêncio – projetados na alegoria do barco anárquico, vidência ratificada pela
violência?”.26

25. BERARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. Org. Maria Betânia Amoroso. Trad. Maurício Santana Dias.
São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 74.
26. CAMPOS, Augusto de. Alguns Rimbauds. In: _______. Rimbaud livre. Trad. Augusto de Campos. 2. ed.
São Paulo: Perspectiva, 1993, pp. 15-16.

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BIO Vida & Obra

Nesta seleção de traduções, optei justamente pelo Rimbaud das jornadas. Em


“Minha boêmia (Fantasia)”, Rimbaud se descreve: veste um paletó com bolsos sem
costura, um único par de calças (ainda por cima, com um furo), tendo como albergue a
Ursa-Maior (isto é, o espaço sideral) e se vendo como um Pequeno-Polegar que, ao
invés de jogar migalhas de pão pelo caminho, espalha rimas ao seu redor. Em
“Sensação”, um dos poemas que Rimbaud enviou, em 1870, a um de seus
inspiradores, Théodore de Banville, que poderia publicá-lo no Le parnasse contempain
e acabou não publicando. A expressão “cabeça desnuda” retrata o verão europeu,
quando se pode andar descalço e sem chapéu. É um dos meus poemas preferidos de
Rimbaud. Sua composição é curta, concisa, irônica e atrevida. “No cabaré verde” é
outro poema de Rimbaud que foi escrito numa de suas tantas jornadas, desta vez pela
Bélgica. Cogita-se que o cabaré verde do poema realmente tenha existido na
cidadezinha de Rimbaud, Charleroi. E, se não existiu, coube a Rimbaud criá-lo. E
seleciono “A eternidade”, da fase que aproxima Rimbaud de um poeta provençal:
sucessão de rimas raras e imagens simbolistas atemporais. Das viagens ao silêncio, do
silêncio às viagens: Rimbaud.

André Dick nasceu em Porto Alegre/RS. Publicou três livros de poesia,


Grafias (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2002),
Papéis de parede (Belo Horizonte: Funalfa; Rio de Janeiro: 7Letras, 2004)
e Calendário (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010).
Tem um livro inédito: O equilíbrio do dia, que recebeu
a Bolsa de Estímulo à Criação Literária da Funarte, em 2008.
Publica, com Nicole Cristofalo, ensaios e traduções
no blog Dado Acaso - http://dadoacaso.blogspot.com

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 83


BIO Vida & Obra

4 poemas de Rimbaud
(Tradução: André Dick)

Sensação

Nas tardes de verão, irei pelo caminho,


Pelo trigo, sobre a grama miúda:
Um frescor aos meus pés, sozinho,
E o vento a banhar minha cabeça desnuda.

Sigo em silêncio, não pensando em nada:


Meu amor procura em minha alma abrigo,
Boêmio, irei longe, muito longe, pela estrada,
Alegre – como se levasse uma mulher comigo.

Março, 1870

Sensation

Par les soirs bleus d'été, j'irai dans les sentiers,


Picoté par les blés, fouler l'herbe menue:
Rêveur, j'en sentirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.

Je ne parlerai pas, je ne penserai rien,


Mais l'amour infini me montera dans l'âme;
Et j'irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, heureux – comme avec une femme.

Mars, 1870

84 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BIO Vida & Obra

L'éternité

Elle est retrouvée.


Quoi? – L'Éternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.

Âme sentinelle,
Murmurons l'aveu
De la nuit si nulle
Et du jour en feu.

Des humains suffrages,


Des communs élans,
Là tu te dégages
Et voles selon.

Puisque de vous seules,


Braises de satin,
A eternidade Le Devoir s'exale
Sans qu'on dise: enfin.

Là pas d'espérance,
Ela está retrovada. Nul orietur.
Quem? – A eternidade. Science avec patience,
O mar some na calada Le supplice est sûr.
Com o sol que parte.
Elle est retrouvée.
Quoi? – L'Éternité.
Alma sentinela, C'est la mer allée
Murmura seu chamado Avec le soleil.
De uma noite nula
De um dia queimado.
Mai, 1872
Dos atos humanos,
Impulsos de coração,
Você se livra de enganos
Voando então.

Pois apenas delas,


Brasas de cetim,
O Dever se exala
E não diz: enfim.

Lá não há esperança
E não há destino.
Ciência e paciência,
O suplício é vizinho.

Ela está retrovada.


Quem? – A eternidade.
O mar some na calada
Com o sol que parte.

Maio, 1872

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 85


BIO Vida & Obra

No Cabaré Verde
(às cinco horas da tarde)

Oito dias depois, minhas botinas rasgadas


Pelas pedras do caminho: em Charleroi, entrei
– No cabaré verde: peço torradas
Com manteiga e presunto, feito um rei.

Descansado, jogo as pernas sobre a mesa


Verde: contemplo os traços mais ingênuos
De uma tapeçaria. – E, grande surpresa,
Uma garota de seios grandes, olhos plenos

– Não será um beijo que a deixe menos meiga! –


Sorridente, me traz torradas de manteiga
Com presunto, num prato colorido.

O presunto é rosa e branco, perfume de dente-


de-alho. Me dê um chope, com seu sabor excelente
Que doura um raio de sol ferido.

Outubro, 1870

Au Cabaret-Vert
(cinq heures du soir)

Depuis huit jours, j'avais déchiré mes bottines


Aux cailloux des chemins. J'entrais à Charleroi.
− Au Cabaret-Vert: je demandai des tartines
De beurre et du jambon qui fût à moitié froid.

Bienheureux, j'allongeai les jambes sous la table


Verte: je contemplai les sujets très naïfs
De la tapisserie. − Et ce fut adorable,
Quand la fille aux tétons énormes, aux yeux vifs,

− Celle-là, ce n'est pas un baiser qui l'épeure! −


Rieuse, m'apporta des tartines de beurre,
Du jambon tiède, dans un plat colorié,

Du jambon rose et blanc parfumé d'une gousse


D'ail, − et m'emplit la chope immense, avec sa mousse
Que dorait un rayon de soleil arriéré.

Octobre, 1870

86 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


BIO Vida & Obra

Ma bohème (Fantaisie)

Je m'en allais, les poings dans mes poches crevées;


Mon paletot aussi devenait idéal;
J'allais sous le ciel, Muse ! et j'étais ton féal;
Oh! là là! que d'amours splendides j'ai rêvées!

Mon unique culotte avait un large trou.


– Petit-Poucet rêveur, j'égrenais dans ma course
Des rimes. Mon auberge était à la Grande Ourse.
– Mes étoiles au ciel avaient un doux frou-frou

Et je les écoutais, assis au bord des routes,


Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes
De rosée à mon front, comme un vin de vigueur;

Où, rimant au milieu des ombres fantastiques,


Comme des lyres, je tirais les élastiques
De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur!

Minha boêmia (Fantasia)

Já me ia, com as mãos no bolso sem costura


Meu paletó assim ficava ideal
Sob o ceú, musa!, eu fui seu amigo principal
Oh! Que coisa! Sonhando amores com bravura!

O meu único par de calças tinha um furo


– Pequeno polegar de rimas ao redor.
Meu albergue fica na Ursa-Maior
– Meus astros no céu rangem murmúrios.

Sentado, eu os ouvia, à beira das rotas


Em noites de setembro, nas quais senti as gotas
Da rosa à minha frente, como o vinho da razão.

Onde, rimando em meio a paisagens fantásticas


Eu tomava, como dos lírios, as botinas elásticas
Dos sapatos feridos, um pé preso no meu coração!

Celuzlose 07 - Dezembro 2010 87


LÚCIDA RETINA Poesia Visual

Guilherme Mansur
Poeta e tipógrafo. Publicou HAICAVALÍGRAFOS,
BANDEIRAS - TERRITÓRIOS IMAGINÁRIOS, BENÉ BLAKE,
BARROCOBEAT, BICHOS TIPOGRÁFICOS
e GATIMANHAS & FELINURAS (em parceria com Haroldo de Campos).
Vive e trabalha em Ouro Preto, Minas Gerais.
E-mail: guimamba@gmail.com

DESCASCAVEL

— a cobra é feita de inúmeros


mínimos múltiplos músculos — ósculos venenosos, olhos vidrados
— a cobra cobra caro com veneno — a cor é a bandeira da coral —
o chocalho é o sino da cascavel — soa o chocalho — uma picada
— no meio de uma picada aberta — a cobra abre picadas por entre o mato e mata —
a mata se funde à geometria no corpo da cobra — a cobra troca de pele e de desenhos
— a cobra para na toca e dorme sem parar — a cobra risca o chão ao acaso —
o ocaso da cobra é o gavião — a cobra está entre a pressa e a presa
— a cobra pega presas porque é preciso — a cobra é precisa, matemática, calculista —
a cobra é feita de números —

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LÚCIDA RETINA Poesia Visual

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LÚCIDA RETINA Poesia Visual

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LÚCIDA RETINA Poesia Visual

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LÚCIDA RETINA Poesia Visual

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LÚCIDA RETINA Poesia Visual

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