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Revista Literária
07 ~ Dezembro 2010
Índice
04
Armando Freitas Filho
Entre ? ! vista
BR.XXI
Ana Tanis
Literatura Brasileira Contemporânea
Bruno de Abreu Isadora Krieger
18
Annita Costa Malufe Chiu Yi Chih Reynaldo Damazio
Beth Brait Alvim Diniz Gonçalves Júnior Roberta Ferraz
Bruno Brum Edson Bueno de Camargo Thiago Ponce de Moraes
Caderno Crítico
Por uma leitura fenomenológica de Édipo Rei - por Chiu Yi Chih
48
Borges e a poesia: Esse ofício do verso - por Wanderson Lima
64 O que é ? ?
? poesia?
Edson Cruz (Organizador) Beatriz Bajo
Ana Maria Ramiro Laís Chaffe
88 Guilherme Mansur
LÚCIDA RETINA Poesia Visual
celuzlo se
# 07 ~ Dezembro 2010
Colaboraram com esta edição:
Boa leitura.
Celuzlose 06
Clique aqui
http://issuu.com/celuzlose/docs/celuzlose_06
a
para ler a 6 edição
É inegável a dedicação
de Armando Freitas Filho à poesia.
Desde a sua estreia com Palavra (1963),
ele tem participado ativamente
do cenário cultural.
Em termos do trabalho com a forma, e das Aprendia, na prática, que a arte podia nascer, ge-
formas de conceber a atividade artística, você nuinamente, e com igual mérito, de disposições
acha que sua relação com as artes plásticas diversas, até mesmo antagônicas: se Rubens pin-
teve impacto sobre seu trabalho como poeta? tava com os pés no chão, Roberto tinha a cabeça
Como? E o cinema, que aparece, por exemplo, nas nuvens. Por quase dez anos as exposições
sob a forma do “corte brusco / de luz” (“Na
área dos fundos”) ou em alusões a Godard
(“Godardiana”), ou a epígrafe de Fio Terra?
Poema "Negra"
com litogravura de
Rubens Gerchman
Mademoiselle
Furta-Cor
caseiras de quadros, desenhos e poemas, no dois livros: Mademoiselle Furta-Cor e Dupla iden-
dia-a-dia comum, eram sujeitas a críticas à tidade. Na semana de sua morte, combinamos no
queima-roupa, quando a tinta do pincel e da telefone um terceiro: Posto policial, que espero le-
caneta ainda não tinham começado a secar, e, no var a cabo. Outro encontro, muito rico para mim,
que me diz respeito, fizeram com que eu, sem com uma artista plástica da geração anterior à
deliberação consciente, trouxesse para a minha minha, foi com Anna Letycia: tive um texto meu em
escrita, a cor e a nuança, o valor do esboço que prosa, Sol e carroceria, primorosamente ilumina-
pode, por si só, ganhar o estatuto de obra acaba- do por suas serigrafias, o que confirma o valor da
da. Mais: a suposição que a poesia moderna, ou a interdisciplinaridade no autor literário que pude
experiência poética contemporânea em geral, por ser, mesmo sentindo, o tempo todo, que o que
sua natureza intrínseca, por ser um instrumento colore e percute fundo, o que corta súbito, num
de ponta da linguagem, é o gênero que acolhe, piscar de olhos, dia e noite, é a literatura.
com mais naturalidade, aportes de outras artes.
Minha composição literária, por isso mesmo, volta
e meia, se vale, inconscientemente, dessas apro-
priações/contribuições, já que elas estão na ori-
gem da minha formação. Posso ainda dizer que,
às vezes, essas influências derivadas de outros
instrumentos de voo, como a montagem jump cut
de Godard, a percussão stravinskiana, por exem-
plo, podem ter alcance tão grande quanto o da
literatura, até por uma razão psicológica, de “des-
compressão”: por pertencerem a outros campos,
a impregnação é mais fácil, pois se dá sem a
defesa instintiva que se arma quando sentimos
que se aproxima a sombra, cúmplice e competi-
dora, que se formou com a mesma textura da sua.
Além de capas de livros meus e apresentações de
exposições de Rubens, a nossa tabelinha rendeu
Texto e serigrafia
de Anna Letycia para
Sol e carroceria
Lendo sua obra reunida, percebe-se que em Você publicou em Lar, (2009) poemas
muitos momentos você dialogou abertamente "autobiográficos" bastante distintos da
com a obra de seus pares: a leitura definidora tônica encontrada em poemas de Fio terra e
de A luta corporal de Gullar, o questionamento Raro mar. No entanto, os poemas mais
da rigidez da Poesia Concreta ou a aproxima- recentes que você publicou na imprensa
ção (não sem tensão) com a Poesia Marginal, aproximam-se muito mais da poética dos
etc. me parecem índices disso. No entanto, livros anteriores. Sabemos que você publica
não é possível identificar com tanta clareza um livro novo a cada três anos e imagino que
esse diálogo com a poesia produzida da 2012 não será diferente – portanto, você deve
década de 1990 em diante. Você poderia citar ter um material mais ou menos organizado
poetas de gerações mais recentes que "apare- para a futura publicação. Lar, foi uma "pau-
cem" em suas obras ou, pelo menos, jovens sa" entre dois livros formal e tematicamente
poetas que você considera interessantes? mais próximos ou algo desta experiência
estética encontra-se na poesia que você vem
O “diálogo” só foi aberto, conscientemente, a escrevendo atualmente?
partir de Numeral/Nominal (2003), antes o que
havia era “angústia da influência”, ou influência Não me parece que os poemas de Lar, (2009)
pura e simples. No meu caso, a influência seria sejam tão distintos assim dos de outros poemas
mais influenza sem cura que peguei com de livros meus. Afinal, no citado Fio terra, o poe-
Bandeira, Drummond, Cabral, Gullar. Não há ma que dá título ao volume se não é, stricto
remédios para esses vírus virulentíssimos. A sensu, um diário do autor, ele é o diário de um
saída é que pode haver mutações, novas poema que aquele autor escreve. Creio que
cepas. Em mim, salvo engano, houve, porque se desde Palavra (1963), já há indícios da memória.
não houvesse, estaria replicando, sem tirar Em De corpo presente (1975) o eu, começa a
nem pôr, as “doenças” deles. E isso não ocorre, mostrar, aqui e ali, a sua cabeça, e, progres-
a meu ver. Talvez até por serem quatro foi mais sivamente, sua cara. Ver, nesse sentido, a seção
fácil encontrar desvios, já que eles chegavam “Memorial”, por exemplo. O que houve no livro
até a mim, mesclados por natureza, me de 2009 foi uma concentração buscada e
facilitando esse princípio de amostragem conseguida. Digo na orelha que se trata mais de
“driblada”. Com a Poesia Concreta e Marginal o um “livro da memória do que de memória”. Por
que houve, realmente, foram “contrastes e isso, em vez de autobiográfico, seria “alterbio-
confrontos”. O que me causou espécie nessa gráfico”, pois os poemas ficcionalizam, o tempo
pergunta foi a constatação, que eu não tinha todo, a própria escrita, o próprio assunto, bem
realizado ainda, de que não há diálogo, dentro da chave interpretativa cunhada por
influência, contraste e confronto com a poesia Antonio Candido quando analisa a obra de
feita na década de 1990 em diante. Por certo, Graciliano Ramos: confissão e ficção. Em
há curiosidade, leitura, mas não passa daí.
Com toda a certeza, é um sinal da minha
velhice. Quem sabe, depois desse toque, desse
cutucão, vou conseguir, me arrastando, me
engalfinhar, para o bem e para o mal, com a
minha posteridade. De todo modo, posso citar
duas poetas que considero muito interes-
santes: as acompanhei de perto desde que
tinham 15 anos (elas chegaram ao livro aos 20 e
poucos e ainda falta um bocado para chegarem “No meu caso, a influência
aos 30): Alice Sant'Anna, com Dobradura e
Laura Liuzzi, com Calcanhar. Talvez precise seria mais influenza sem cura
nessa quadra de sentidos rebaixados, que só
tende a piorar, dessa proximidade, física e que peguei com Bandeira,
anímica, para sentir o sopro do novo, que me
passaria despercebido se não houvesse essa Drummond, Cabral, Gullar.”
intimidade continuada.
Raro mar (2006), outro livro citado na pergunta, Seu projeto poético apresenta uma clara
poemas como “Espelho e cego”, “Emulação”, continuidade e consistência propositiva e
“Limpo e seco”, “Duas mesas”, “Segredo”, sua linguagem tem traços pessoais muito
“Relógio” “Noctívago”, poderiam se acomodar, definidos. Há momentos em que os cami-
sem discrepância, à sequência daqueles que nhos criativos que lhe aparecem são impre-
estão na segunda parte de Lar, assim como toda vistos? Você identifica momentos cruciais,
a suíte drummondiana e de poemas pontuais de virada, ou de revisão em sua trajetória?
sobre outros autores, também. Puxar pela me- Distingue nitidamente “momentos altos” de
mória é atividade que não tem fim, propria- sua produção?
mente. Os poemas inéditos que apareceram
nesse ano no Suplemento do Estadão, “Sabá- A posteriori, às vezes muito a posteriori, per-
tico”, são uma prova cabal disso. De fato, po- cebo essa “continuidade e consistência” que
deria publicar meu próximo livro em 2012, vocês atribuem ao meu “projeto poético”.
conforme o hábito, mas como em 2013, comple- Sinceramente, só me dei conta que havia, de
to 50 anos de poesia édita, não me custa (?) fato, uma linha orgânica que costurava um livro
esperar a data redonda para lançá-lo. Enquanto ao outro, foi quando acabei de montar Máquina
espero, procuro esmerar-me, mesmo sabendo de escrever, reunião de minha poesia até 2003.
que isso é uma quimera; mais vale a outra A sensação plena veio chegando quando o livro
opção, a de escrever outros poemas para esse foi publicado. Um pouco pela recepção e um
livro do cinquentenário, que pelo visto vai ser pouco mais pela minha percepção. O sentimen-
volumoso. to foi a de que sempre eu corria atrás de mim. Os
instantes de “virada”, “revisão”, “momentos al-
tos”, variam; por isso não posso apontar, com
segurança, este ou aquele. Se me deixasse
guiar pelos leitores ou pela crítica ficaria mais no
ar do que quando procuro esses marcos com os
meus próprios botões. Sou mais de “ejetar” do
que de “projetar”, embora reconheça, como já
disse, que a minha escrita, ou minha composi-
ção, ou meu engenho, sempre misturou cálculo
e acaso. Mas essa formulação ficou clara so-
mente de uns 12 anos para cá. Antes disso,
podia, no máximo, desconfiar e não afirmar,
como faço agora.
Foto: Alex Sant´Anna
PENALIDADE MÁXIMA
(novembro de 2010)
Revendo sua trajetória desde Palavra, Em alguns depoimentos você conta que a
pode-se dizer que sua poesia absorveu cri- leitura de crítica e teoria literária sempre foi,
ticamente desde um tratamento concreto da para você, uma atividade complementar à
palavra quanto procedimentos disruptivos, leitura e a escrita de poesia. Você acredita
cultivados de modo saliente em certas cor- que essas leituras tiveram algum impacto em
rentes poéticas, por exemplo, ao longo dos certas etapas da concepção contínua de seu
anos 1970 (inacabamento como componente projeto poético, em escolhas, recusas, revi-
do resultado artístico, desestabilização da sões? Como, e em que medida, entra a refle-
forma, etc.). Por outro lado, sua dicção alta- xão sobre a literatura em seu processo cria-
mente pessoal parece manter relativamente tivo? Essas duas esferas podem ser confli-
íntegra uma voz lírica, ainda que problema- tantes no trabalho de um escritor?
tizada e interrompida por uma dinâmica que
dá corpo a uma reflexão sobre as dificul- Não fiz faculdade, num ato de insubmissão
dades da forma. Você poderia tentar situar o idiota contra o modelo familiar. Graças a Deus fiz
que enxerga como traços singulares de seu Antonio Candido, que é uma Universidade intei-
estilo face a alguns de seus interlocutores ra, a vida toda. Essas leituras da crítica vieram
(Ana Cristina Cesar, Sebastião Uchoa Leite, suprir, desordenadamente, como acontece com
Tite de Lemos)? os autodidatas, que levam muito mais tempo
para chegar aos resultados necessários e razo-
Minha poesia, creio, tem poucos pontos de áveis, minhas carências. Com toda a certeza me
contato com a poesia desses tão queridos ajudaram muito desde moço. Fui, ainda sou, um
amigos. Minha vida, ao contrário, não. Como bom leitor. Como já disse antes, não havia a
responder com alguma alteridade, se não con- intenção de um projeto; o que havia, o que há é
sigo, se não quero dar um passo atrás para ter uma vocação que precisava ser alimentada.
uma visão melhor que me distancie ainda mais Como tive a sorte de viver numa casa em que os
deles? Creio que cabe à crítica realizar essa livros e o conhecimento era o que de maior valor
operação, se ela achar necessária. se podia ter, consegui ir em frente e chegar a
Foto: Sergio Liuzzi
este questionário. A reflexão entra pelas janelas José Miguel Wisnik caracteriza De cor como
abertas, pelas leituras e pelas conversas, pri- um mergulho “no deserto especular em que
meiro com a família, depois com os amigos. o sujeito se abisma em moldura nenhuma”.
Nunca houve conflito entre o saber adquirido e o Nesse sentido, pode ser atribuída à sua
meu ofício, a minha criação poética, muito pelo poesia, como um todo, um ímpeto fortemente
contrário. O instinto nunca foi travado pela ra- individual, de prospecção da poesia a partir
zão. Talvez por ele ter sido sempre mais forte do de uma experiência de descoberta pessoal.
que ela? Acho que não: o que houve, pensando Especialmente em seus últimos livros, con-
bem, foi um equilíbrio natural de forças, que não tudo, uma hipótese de leitura possível seria a
são opostas. de que sua indagação acerca dos limites da
linguagem poética parece enfrentar um de-
safio inscrito em um momento coletivo de
perplexidade diante da abertura total de ho-
rizontes para a criação poética, tal como a
vivenciamos hoje. Interessa a você tentar
pensar se e de qual maneira sua meditação
individual dá corpo a um questionamento,
talvez, histórico e, portanto, coletivo?
PRIMEIRO LIVRO
CICLO
O vento desvenda
senda noturna
despertando semente
que engendra
ritmo de ar
semovente
linha turva
curva em sombra
volteio no espaço
enleio
luz, repente
fruto
fruto crescente
– dente –
semente.
(Palavra – 1963)
(Numeral/Nomimal – 2003)
ANTIQUÁRIO
(Lar, – 2009)
Ana Tanis
Paulistana e nascida em 1987. É formada em Letras pela USP
e em Psicologia pela PUC de São Paulo. Tem interesse por tudo
o que é palavra e ainda não sabe bem o que fazer com isso.
Nunca teve antes nada publicado. E-mail: anatanis@hotmail.com
Conversa de bar
Gasosa
é do tamanho do segredo
a dose que brindamos:
crua
prepara o copo, o gole:
a dor líquida a gente
engole
tremulando em careta
medita a garganta:
melhor a próxima:
– tomar com soda
20/11/09
Insight
A lógica do espelho
não é a mesma
do travesseiro.
Pomba albina
teu verso principia.
Gesto de menina pomba, moça Germina.
Voa, alva, canta
A derradeira ave, ave revelação!
Revive, alva, venta
um sopro-ovo-canção.
10/10
Fenda
29/05/10
bolhas de solidão
na sua coca
com gelo e limão
você também
escolhe o enquadramento oblíquo
a câmera em diagonal cortando a paisagem
ligar os pontos desconexos de uma paisagem com
uma transversal o olhar oblíquo traçando
uma possibilidade de ampliar o foco ampliar
o enquadramento parece que
a diagonal tem esta função você tenta fazer
uma paisagem caber na objetiva mas
quando os limites extrapolam você precisa
inclinar levemente dobrar a paisagem
encontrar um ponto de apoio enviesado um ponto
de apoio que desloque o quadrado da lente
como se a moldura ganhasse uma mobilidade
o enquadramento oblíquo
deslocando os vértices da forma então de esguelha
há um losango há uma paisagem deslocada
tombada uma paisagem nos olhando de viés
como se ela mesma agora tombasse a cabeça ela mesma
nos olhasse
é ela agora que nos olha
o pescoço torcido o rosto quase apoiando-se no ombro
uma dúvida uma leve renúncia apenas
ou não
o que vejo talvez tenha o gesto da proximidade
talvez o deslocamento para
olhar melhor focar o que está na diagonal
da vista o que não se completa no ângulo reto o que
não cabe no ângulo reto da objetiva ela agora
tomba o rosto para nos olhar de viés é ela agora que nos olha
uma aproximação da perspectiva uma
ampliação o deslocamento dos vértices o apoio
deslocado apoie sua cabeça aqui nesta imagem apoie-se
em mim sobre meus ombros incline-se
sou eu que te olho daqui eu
que te olho de viés procurando a diagonal o foco
a fresta enviesada uma ampliação da perspectiva uma
proximidade que não cabe nos limites do ângulo reto
Líquido
índio noturno
bebo seu líquido
sua chama
que em mim tanto
acalma quanto
ferve
Leite
sou forte
meu leite de mamoeiro sadio
mamei-o todas as manhãs
até um calendário de mil anos Fruto
ficar completo
não lambuzo o beiço
nem salivo doce diante
do meu fruto predileto
a casca áspera no caminho do seu pomo
lanha-me a garganta
engulo seco
Sede
engulo o engulho
papa amarga e grossa
o amor
Bruno Brum
Nasceu em Belo Horizonte, 1981. Estudou História, Letras e Design.
Escritor e designer gráfico, publicou os livros Mínima Idéia (2004)
e Cada (2007). Trabalhou no desenvolvimento da identidade visual
da ZIP (Zona de Invenção Poesia &, 2005) e
da Revista Roda – arte e cultura do atlântico negro,
editada dentro da programação do FAN entre 2006 e 2008
(Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte).
Entre 2005 e 2009, coeditou a Revista de Autofagia, periódico voltado
para a publicação de poesia e suas interfaces com as mais diversas
linguagens artísticas. Atualmente vive em São Paulo e trabalha no livro
Anaeróbica, vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2010,
na categoria poesia. A publicação do livro está prevista para o segundo
semestre de 2011. Portifólio online: http://www.brunobrum.blogspot.com
CIFRA
INTERESSANTE
Uma época não é
necessariamente um
conjunto de dias, meses Você mostrou.
ou anos, podendo ser Você acha bonito.
medida em horas, minutos, Você acha interessante.
segundos, o que sugere E por isso acha que deve ser mostrado.
muitas épocas em um Você colocou lá
mesmo dia, mês ou ano, para que todos vissem,
ou mesmo em uma mesma porque decerto supôs
hora, minuto ou segundo. que seria bonito,
Uma época não que seria interessante
é necessariamente que todos vissem.
um conjunto de ideias.
O cão pastor salta por sobre os latões de lixo, derruba o bandido e volta para
receber outro biscoito.
PRIMEIRA PROPOSIÇÃO:
A MENSAGEM VERMELHA
Bruno de Abreu
Nasceu em Piracicaba, interior de São Paulo (1992).
Ainda não tem livro publicado, mas mantém um blog de poesia
e variedades: http://desembocadouro.blogspot.com
crianças
para elas
que ainda pensam com os cabelos
revoltos
feito
– tão impossível quanto –
aforismos
damascos
ou documentários
em voice over
para elas
que ainda gostam do que ainda
gostam
para elas que ainda
para elas que ainda pensam com os cabelos acham tudo bonito
revoltos sinceramente
e ainda não solenizaram com marcas e ainda não tiveram seus desejos
[permanentes remediados
o ato de franzir
o cenho tudo que é longe cabe
em qualquer jardim
ou seção de roupas de loja de
[departamentos
Chiu Yi Chih
Nasceu em Taipei, capital de Taiwan (1982). Morou em Hong Kong, China e Macau.
É professor de filosofia e literatura, poeta, escritor e ensaísta. Bacharel em
Letras Clássicas (Grego/Português - USP) e mestre em Filosofia Antiga pela USP
com a dissertação A eudaimonía na pólis excelente de Aristóteles.
Foi premiado em 2o lugar no III Festival de Literatura da Letras USP – categoria
Poesia. Publicou poemas, ensaios literários e filosóficos em revistas como
Cronópios, Casulo, Ounão, Ágora e Zunái. Integrou a Antologia Poética das Artes.
Realizou palestras de filosofia e literatura na USP e UNICAMP. É colunista da
Revista Zunái. Atualmente trabalha com cursos de filosofia, literatura e produção
textual em institutos e faculdades. Em breve lançará o seu livro Naufrágios pela
Editora Multifoco, integrando o Selo Orpheu.
PHILÓSOPHOS
(Poemas inéditos)
DESPERTAR DE SPINOZA
do seu sono Spinoza emerge, camaleão das flâmulas e das placentas – ele
arqueia os seus ombros de escaravelho, acende três velas para a sua vigília. no
fundo de seus olhos tudo flui: os besouros, os caracóis, os vermes, os fungos.
implacável, esse músico retalha o infinito – o que é esse ser cuja substância não
depende de outra forma, placa erigida em bronze escarlate? – ser em si e por si
cuja essência espreitamos nas Brasas da Constelação?
enigma-movimento
OVO DE DELEUZE
Tropeço
a multidão me distancia
perco de vista o outro sorriso
que julgava meu mas era engano
como esfinge a soletrar um jogo
de erros o reverso do esperado
se forte pareço caio frágil no tropeço
do espelho
miami maiden
Balneário Flórida
e as bugigangas coloridas
das feirinhas precárias
Fliperama Acapulco
caracol de ferro
a galeria adormece
pastilha vermelha
luz desmaiada
esqueleto bruto
interdito, espaço
respiro
a foto de um pássaro
escultura de anzóis
empilhados na prateleira
um número enferrujado
tinge a margem da fotografia
rosas heráldicas
manancial
teus olhos
devastam-me a pele
hoje como rosas heráldicas entrelaçadas
a poesia me abandonou e facas feitas de espelho
no deserto
na beira de uma cisterna seca cobrem minha íris de estrelas
com pedras em suspensão e cacos de vidro fúnebre
cortam minha carne
de cada seixo rolado em delicadeza
abandonado ao fundo
palavras e letras se espelham teus dedos
são meus dedos
o deserto é branco e cada ponta
celulose selvagem um dígito em fogo
tecido fibra por fibra sua púbis
seus pelos
a água espera em algum manancial marca de identidade
a língua (seca) escassa
tem pressa cada tempo
traz a hora que cobre
as pedras enchem minha boca as colheitas do trigo
em algum alívio mineral as primeiras uvas
assim como as serpentes as construções antigas
que fogem do sol escaldante
todos os reis são para sempre
o deserto é um mar que morreu um dia e mergulham um dia
o sal que ficou no esquecimento
agora dói em meus olhos
a velhice
é mergulhar em olvido
cada dia
distante de nós mesmos
Isadora Krieger
aqui a escrita é também um jogo certeiro de adivinhação, a escrita me lê
antes de eu a ler, lê passado, presente, futuro e tempo inexistente,
não raras vezes sabe de mim antes que eu mesma, eu sou a obcecada,
ela cigana joga cartas com meu subconsciente, assim me antevê e depois
me traz à tona, me complica e descomplica ainda dentro da tenda,
fora dela dependendo dos meus olhos vice-versa, mas no meu caso
não existe outra escolha, a danada me cobra preço caro, com a alma inteira pago,
do contrário não há jogo, ou há jogo pouco, calcado numa metade de mergulho,
no qual os clichês fazem a festa ou o hermetismo dita as regras, e eu quero
os arcanos maiores interpretados em cima da mesa, quero os dentes de ouro
da cigana cravados todos os dias no meu braço direito, mesmo que tenha
que sangrar abundantemente, é tarde demais, já fiz o pacto,
quando nem consciência do perigo ainda tinha.
ato VIII
era eu jazida com toda loucura e candura que imploramos a Deus, uma candura
com toque essencial de perversidade para causar o tal do incômodo que nos faz
criar algo honesto provavelmente eterno, era eu jazida com os cabelos espalhados
naquela poça d'água a dor que você sempre desejou que tão exaustivamente
repetiu é a peça que falta na minha poesia engavetada, era eu jazida depois de
uma semana inteira de chuvas escolhi a dedo o anel do nosso silencioso pacto a
poça d'água mais vasta do bairro, preparei teu mimo com meses de antecedência
esperei a época certa do ano onde o canto dos pássaros é apocalíptico de tão
lindo, era eu jazida naquela poça d'água pintada com as sombras dos ipês roxos e
no meu rosto as flores boiando ao redor coroa inviolável, a certeza definitiva da
minha presença violenta na tua poesia que enfim viria acontecer graças ao choque
da minha ausência tão afetuosamente composta, era eu jazida naquela poça
d'água durante o céu crepuscular que sempre foi o horário dos teus delírios mais
dilatados, a certeza definitiva da obra-prima que te transformaria no imortal que
você sempre cobiçou ser dentro de todos os outros e que me transformaria na
imortal que sempre cobicei ser apenas dentro de você, era eu jazida com toda
loucura e candura que imploramos a Deus, era o nosso pedido finalmente
realizado nos meus olhos prestes para sempre cerrados o sorriso de gratidão
maior que por último admirei nos teus lábios.
Inaptidão
Reynaldo Damazio
É formado em sociologia pela USP e trabalha como editor
e crítico literário, além de coordenar oficinas de literatura e de quadrinhos.
Autor dos livros Nu entre nuvens (Ciência do Acidente, 2001)
e Horas perplexas (Editora 34, 2008).
Dirige o site Weblivros (www.weblivros.com.br).
RIDÍCULOS
é voraz
o vazio
da besta
no cio
FÁBULA PARA ANFÍBIOS
é mordaz
o sorriso Para Nícolas e Aléxis
do palhaço
sem circo o menino menor trouxe na mão o ciclone
o maior, o dragão afônico
é fugaz ambos queriam um cometa que levasse a princesa
o pavio ao nocaute
desse corpo ora, não sei cantar estrelas
ímpio embora adivinhe a partitura
o menino maior ensina
o círculo a construção de sistemas paraconsistentes
do desejo com bolas de ping-pong
o vício o menor desmancha cidades e
daquele esculpe doces de malvavisco
beijo a retórica se desfaz com o dente partido
melhor proteger os olhos de uma grande verdade
o idílio e que do sol
o ridículo talvez evitar que o porta-aviões no armário
dão no mesmo invada a geladeira
se não é possível prever a trajetória de uma partícula
então uma bolha possa explicar o conceito de poesia
disse bula, não importa
nenhuma palavra sobrevive ao caos
nem a palavra caos
dois meninos cruzam o arco da desesperança
manobras indecisas na órbita do sorvete
sinais de fenda no tempo, sob o band-aid
todas as partes, gravetos ou conchas, se encaixam
na lógica desse abraço
FÁBULA PÓS-MODERNA
Roberta Ferraz
Nasceu em 1980, estudou História (USP) e Letras (PUC). É mestre
em Literatura Portuguesa (USP). Publicou desfiladeiro (Nativa, 2003),
lacrimatórios, enócoas (Oficina Raquel, 2009)
e fio, fenda, falésia (Edição das Autoras, 2010) – este livro foi publicado
com apoio do ProAC e escrito em parceria com Érica Zíngano e Renata Huber.
Blog sobre o livro: http://fiofendafalesia.blogspot.com
IV
Escreves.
AO ACASO
Yo mismo
Resiliência na Terra
Ou uma temporada no inferno?
33 anos
33 alegres primaveras
33 tremendos invernos
33 vezes 33 mil erros dolorosos “Soy un bueno para nadie
33 vezes 33 mil ressurreições na terra Mi reino no es de este mundo”
Yo mismo
Com a idade de Cristo me medem
e não dou o largo
Com a idade de Cristo me pesam Resiliencia en la Tierra
e já se passou a velha O una temporada en el infierno?
Com a idade de Cristo me medem 33 años
[me pesam e me descartam 33 alegres primaveras
Com a idade de Cristo que salvou o mundo 33 tremendos inviernos
[me medem 33 veces 33 mil errores dolores
E eu não salvo ninguém 33 veces 33 mil resurrecciones en la tierra
além do mais Con la edad de Cristo me miden
estou para a cruz y no doy el ancho
Mas em meu sangue também há luz Con la edad de Cristo me pesan
Uma luz que vem descendo em aterrissagem y ya se me pasó la vieja
[forçada Con la edad de Cristo me miden me pesan
[y me desechan
Há tanto tonto tempo Con la edad de Cristo me que salvó al mundo
[me miden
Y yo no salvo a nadie
a lo más
estoy para la cruz
Pero en mi sangre también hay luz
Una luz que viene descendiendo en aterrizaje forzoso
Desde hace tanto tonto tiempo
Era uma grande luz que percorreu todo o cosmos Erase una gran luz que recorrió el cosmos todo en busca de un objeto
[em busca de um objeto cualquiera serviria, una cosa entre miríadas
qualquer um serviria, uma coisa entre miríades La idea era encontrar algo que la contuviese
que pusiera borde a su veloz desenfreno
A ideia era encontrar algo que a contivesse un bendito objeto que la poseyera en un coito fenomenalmente
que pusesse limite ao seu veloz excesso [fenoménico
um bendito objeto que a possuísse em um coito y que la llevase finalmente, a dar a luz una sombra
[fenomenalmente fenomenal parir esa oscuridad que era su anhelo inverso
engendrar
e que a levasse finalmente a dar à luz uma sombra procrear en medio de la inmensa vacuidad del universo
parir essa escuridão que era seu desejo inverso
engendrar Y así fue que encontrase un día a su deseado objeto
procriar no meio do imenso vazio do universo interpuesto a medio camino
erguido, listo, para el amor dispuesto
Mas inesperada, improbabilisticamente
E assim foi que encontrara um dia seu desejado objeto tal objeto no fue físico solamente
interposto no meio do caminho ni sólo químico compuesto
erguido, pronto para o amor disposto ni tan siquiera sólo biológico
fue sino
Mas inesperado, improbabilisticamente humano,
tal objeto não era físico somente “demasiado humano”
nem apenas químico composto Un objeto cargado de antemano con más oscuridad
nem tão somente biológico de la que la luz jamás
pudo haber soñado
era sobretudo un verdadero hoyo negro que casi la devora
humano, Pero tuvieron su roce penetración y orgasmo
“demasiado humano” pariendo de inmediato
Um objeto carregado de antemão com mais escuridão Y fue así como la luz dio a luz oscuridad
Y para nuestra raza este preciado mito da cuenta del origen
que a luz jamais de la sabiduría y la tontera, aunque sobre todo de la adictiva y
pudesse haver sonhado necia compulsión de pensarlo todo
um verdadeiro buraco negro que quase a devora en contrarios
Mas tiveram seu roçar penetração e orgasmo
parindo de imediato
E foi assim que a luz deu à luz a escuridão
E para nossa raça este precioso mito explica a origem
da sabedoria e da tolice, e sobretudo da viciante e
néscia compulsão de pensar tudo
em contrários
Faltam 10 minutos
para que se acabe essa idade
Contagem regressiva Faltan 10 minutos
para que se acabe esta edad
descristificação Cuenta regresiva
ou final assunção? ¿descristificación
o final asunción?
Com a idade de Cristo
Con la edad de Cristo
para a primavera a la primavera
me fiz alérgico me hice alérgico
mas logo ressuscitei entre os mortos pero luego resucité entre muertos
me curei quem sabe como me sané quién sabe cómo
Con la edad de Cristo
Com a idade de Cristo sin embargo
no entanto pegué el viejazo
cheguei na velhice Con esta edad digo
Mas com esta idade digo filo
foda-se Con la edad de Cristo aprendí
Que nada he aprendido
Com a idade de Cristo aprendi
Que nada tenho aprendido Soy el no iniciado
El no chamán
El no poeta
Sou o não iniciado El no científico
O não xamã El no el no el no
O não poeta Una nada nada en este cuerpo
[encarnado
O não científico
O não o não o não
Um nada nada neste corpo encarnado
José Landa
Nasceu em Campeche, 1976. É autor de 12 livros publicados no México,
América Central e Espanha, tendo obtido diversos prêmios como
o José Gorostiza (Tabasco, 1994), o Hispanoamericano Quetzaltenango
(Guatemala, 2007) e o Ciudad de Lepe (Huelva, España, 2009), foi ainda
finalista do Premi Tardor (Castellón, España, 2010). É bolsista do
Fondo Nacional para la Cultura y las Artes de México. Entre seus títulos estão
Tronco abierto (FECA, Campeche, México, 1993), La confusión de las
avispas (Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, México, 1997),
Placeres como ríos (Instituto de Cultura de Sinaloa, Culiacán, 2009)
e Navegar es un pájaro de bruma (edição em francês e espanhol,
Mantis editores y Écrits des Forges, Quebec, Canadá, 2010).
Sua obra encontra-se traduzida também para o valenciano.
...
...
...
na contraluz das mais altas torres a contraluz de las más altas torres
erguidas por la codicia
erguidas pela cobiça por la avidez derruidas
pela avidez desmoronadas
en el demasiado adentro de los ciegos
no profundo adentro dos cegos (ellos que si tropiezan
invariablemente caen en su interior)
(eles que tropeçam em si
invariavelmente caem em seu interior) instruido para lo invisible
lo innombrable
instruído para o invisível lo innumerable
para o inominável en el sueño profundo que no llega
para o inumerável en el canibalismo de la sorpresa
en el favor del instante
no profundo sono que não chega
en la intuición
no canibalismo da surpresa el automatismo
no proveito do instante el animismo
2
2
escrevo para que o mundo se sustente escribo para que el mundo se sostenga
para descarregar as palavras para descargar a las palabras
del agobiante peso del sentido
do agonizante peso do sentido
escribo para la decepción
escrevo para a decepção para que los conciertos de la vida se ofrezcan
para que os concertos da vida se ofereçam con la música como disolvente
com a música como solvente
A tragédia grega nos desvela o aspecto terrível de nossa existência. Ela nos põe
diante do Desconhecido, nos força a pensar sobre a ação temporal e extratemporal.
Como diria Aristóteles na Poética, ela nos apresenta uma “ação elevada” (praxeos
spoudaias) que tem como objetivo a purificação de nossas emoções suscitando terror
1
(phobos) e piedade (eleos).
1. Cf. Aristóteles, Poética (1149b24-29), na tradução de Eudoro de Souza, Ars Poetica Editora, 1993, p.37.
2. É esta noção fundamental, entre outras, que Heidegger investiga no seu livro Parmênides. Veja Parmênides,
Editora Vozes, 2008, pp.164-165.
ÉDIPO:
3. Estes versos são do Édipo Rei de Sófocles na tradução de Trajano Vieira, Ed. Perspectiva, 2001. Substituí a
palavra “demo” por “nume”. O “demo” remete às conotações do satânico, demoníaco, sentidos próprios da
moralidade cristã. O “nume” no pensamento grego se refere ao caráter epifânico do divino. O divino aparece e se
revela na epifania sagrada segundo Mircea Eliade (Cf. O sagrado e o profano;Tratado de História das Religiões).
Ora, como melhor explicitar o caráter numinoso da desvelação, senão pela força
daimônica que, na tragédia, é representada pelas forças divinas que avançam e se
precipitam, levando consigo em sua constelação simbólica os signos catamórficos da
queda, do mergulho no abismo, com suas imagens isomórficas: as trevas, a ausência
da luz, o “Destino ou a Moira funesta” (dusdaimoni moirai, 1303)? Assim, Édipo se
defronta com “o horror não-audível, não-visível” (deinon, oud'akouston,
oud'epopsimon, 1312), com “a nuvem-negror” (nefos apotropon, 1313), cujo “vai-e-vem
é intraduzível, sem domador, sem norte” (epiplomenon aphaton adamaton te kai
dusouriston on, 1314-5).
CORO:
Estirpe humana,
o cômputo do teu viver é nulo.
Alguém já recebeu do nume
um bem não limitado a aparecer (dokein)
e a declinar (apoklinai)
depois de aparecer (doksant')?
És paradigma (paradeigma),
o teu nume (daimona) é paradigma, Édipo:
mortais não participam do divino.4
Por outro lado, o próprio sentido numinoso muitas vezes se revela aos mortais,
5
como quando no diálogo Fédon de Platão, Sócrates declara: “Os Deuses são
aqueles sob cuja guarda estamos, e nós, homens, somos uma propriedade dos
Deuses” (to theous einai hemon tous epimeloumenos kai hemas tous anthropous hen
ton ktematon tois theois einai, 62b). O daimon de Sócrates aparece-lhe tão intimamente
próximo que até o filósofo tem a convicção de que a morte lhe foi enviada por ordem
divina (62c). Essa proximidade é explicitada com esse sentido de “um estar ao lado
do outro” como um servo em relação ao seu dono (62e), ou como o sábio em relação
aos deuses (63b).
Sócrates sabe que o ser-filósofo demanda uma relação próxima ao seu objeto de
desejo, a sabedoria (69b). Isso quer dizer que esta só será possível após toda a
preparação para a morte (67e), e consequentemente, após a purificação (69c). Por
isso, diz Sócrates: “Todo aquele que atinja o Hades como profano e sem ter sido iniciado
terá como lugar de destinação o Lodaçal, enquanto aquele que houver sido purificado e
iniciado morará, uma vez lá chegado, com os Deuses. É que, como vês, segundo a
expressão dos iniciados nos mistérios: 'numerosos são os portadores de tirso, mas
poucos os Bacantes” (69c). Com efeito, poucos são os que mantêm uma relação
paradigmática com o daimon, de modo a estarem como bacantes em relação ao Baco,
como filósofos em relação à sabedoria. Tal correlação dialética do ente com o seu Ser,
que na filosofia platônica se exprimiu com sua doutrina de participação (metexis),
apresenta-se na tragédia grega como nexo fundamental das relações entre os seres
divinos (Deuses, numes) e os homens mortais. Tal “participação” e “intermediação”
pressupõe uma hermenêutica dos sinais divinos, isto é, uma compreensão ontológica
da abertura do ente em que se revelam as possibilidades que o Ser lhe aponta.
5. Cf. Platão, Diálogos, Abril Cultural, 1983 (trad. e notas de José Cavacante de Souza, Jorge Paleikat
e João Cruz Costa).
CORO:
ÉDIPO:
(...)
Que eu parta para o monte cujo nome
se liga a mim: Citero – meu sepulcro! –,
como meu pai e minha mãe queriam.
O que em vida buscaram (destruir-me – apollýten), tenham mortos!
Mas direi: nem me arruinará (pertho) doença,
nem outra causa.
6
Que a Moira me encaminhe ao meu destino!
6. Versos 1451-1458.
Édipo, em cujo seio se desvela essa crise de destruição, depois do qual não
resta senão o exílio, é conclamado pelo Nume a assumir todas as determinações
negativas dessa vontade de potência. A existência do herói é compreendida pela
questão do Ser, mesmo que de forma velada. É nesse sentido que Heidegger tem razão
ao pensar que o homem é uma presença de ser-no-mundo sensível ao apelo da
Verdade do Ser. Mas, por outro lado, se há uma interpelação por parte da Verdade do
Ser, essa “chamada” exige do herói a ultrapassagem, a autossuperação.
O ser humano deve assumir e se tornar a sua vontade de potência. É nesse outro
aspecto que se consuma o fascínio nietzscheano pela afirmação da vontade de
potência. Eterno sim à vida e à morte: o que se chama destino do herói (Moira) deixa de
ser um destino preestabelecido, contingência ou mero acaso. A potência numinosa do
daimon é o poder-ser que se torna vivo para aquele que lhe está aberto e, portanto, para
todo humano mortal solicitado pelo Divino. Na visão sagrada e dionisíaca da vida,
transcorre apenas o fluxo da Vida, a vontade de potência ilimitada. O poder-ser da
tragédia humana se torna dialética do fenômeno, desvelação de uma força inaudita.
Borges e a poesia:
Esse ofício do verso
por Wanderson Lima
1
A verdade é que não tenho revelações a oferecer. Passei minha vida lendo,
analisando, escrevendo (ou treinando minha mão na escrita) e desfrutando.
Descobri ser esta última coisa a mais importante de todas. “Sorvendo” poesia,
cheguei a uma determinada conclusão sobre ela. De fato, toda vez que me
deparo com uma página em branco, sinto que tenho de descobrir a literatura
para mim mesmo. Mas o passado não é de valia alguma para mim. Assim, como
disse, tenho apenas minhas perplexidades a lhes oferecer. Estou perto dos
setenta. Dediquei a maior parte de minha vida à literatura, e só posso lhes
oferecer dúvidas.
Como O arco e a lira (Lo arco y la lira) para Octavio Paz, como o ABC da literatura
(ABC of reading) para Ezra Pound, Esse ofício do verso é, para Borges, a súmula do seu
credo poético. O leitor atento das incompletíssimas Obras Completas de Borges
(lançando no Brasil pela Editora Globo, a partir de 1999, seguindo os rígidos ditames da
Emecé) dificilmente encontrará alguma novidade neste livro, porém tudo o que Esse
ofício concentra em suas 158 páginas (falo da edição brasileira) encontra-se
pulverizado em centenas de ensaios, contos, entrevistas e prólogos que Borges
escreveu até a sua morte, em 1986.
O fragmento que abre este texto, se não oferece grandes pistas sobre a
concepção de poesia em Borges, dá-nos com precisão o tom do estilo adotado pelo
escritor em suas comunicações. Quem está acostumado com o tom panfletário,
apaixonado e prescritivo, adotado pela vanguarda aqui e alhures, deve ficar curioso ou
até aborrecido com o sermo humilis do escritor argentino. Da Retórica aristotélica à
Análise do Discurso francesa, o tom e a persona que o escritor constrói em seu texto
(oral ou escrito) recebe o nome de ethos. O ethos não corresponde, necessariamente,
ao que o sujeito é na vida privada, nem deve ser confundido com vigarice: trata-se de
um recurso de persuasão, que visa gerar um clima empático entre o escritor (ou o
orador) e seu público. Penso que o tom humilde e hesitante do ethos borgeano em Esse
ofício do verso (reconhecível também em outros escritos do autor) deve-se, ao menos,
a dois fatores, um circunstancial e um estilístico, que merecem nossa atenção, já que
afetam nosso modo de ler o texto.
2
Esse ofício do verso é composto de seis comunicações que, juntas, abordam os
mais variados problemas de teoria literária e poética. O estilo, além de se calcar no
sermo humilis conforme apontei, evita o tom abstrato dos tratados de poética ou das
obras de filosofia estética. Para Borges, os teóricos da literatura e os filósofos escrevem
sobre poesia “como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma
paixão e um prazer” (p. 11). Blasfêmia seria, portanto, imitar a atitude do cirurgião
perante poesia. Borges analisa o fenômeno poético de dentro: sua teoria poética é seu
credo poético. Dono de uma memória mil vezes aludida como descomunal, Borges – o
olhar distante e firme de cego, como mostra a foto da época reproduzida no frontispício
da edição brasileira –, convoca poemas e fragmentos críticos de várias latitudes e
idiomas para tornar concretas suas afirmações teóricas. Assim, antes de ser tratado de
poética, uma investigação sistemática geradora de conceitos, Esse ofício do verso é
uma introdução à leitura da poesia. Uma introdução, porém, avessa ao receituário,
colocando-se antes como um abecedário do refinamento da sensibilidade para a
recepção da poesia.
1. Ver MONEGAL, Emir Rodriguez. Borges: uma poética da leitura. São Paulo: 1980.
2. Fico me perguntando como a primeira vez que li este livro, não atentei devidamente para o impacto da
seguinte frase: “[...] não precisamos nos preocupar muito com o destino dos clássicos, porque a beleza está
sempre conosco”(p. 23). Pelo que expus do pensamento de Borges, ela soa congruente; porém, nem é preciso
ser um pertinaz defensor do cânone para se especular com certo temor sobre suas consequências.
3. Luiz Costa Lima analisa como o esteticismo borgeano, dando sequência a um projeto literário que se inicia em
Flaubert, funda um “monismo do ficcional” a partir do qual os outros saberes (Ciência, Religião, Filosofia) são
submetidos ao crivo da ficção. Dessa maneira, Borges subverte, com sua literatura, o “controle do imaginário”
que acompanhou a fundação e o desenvolvimento da literatura na modernidade: de controlada, a literatura passa
a ser controladora. Engana-se, portanto, a crítica materialista quando lê o esteticismo borgeano como
refinamento inócuo ou pura alienação. Vale lembrar que Costa Lima vê perigos nesse monismo do ficcional que
Borges inaugura, que não deixa de ser um reducionismo perigoso. Prova-o a estetização da teoria promovida
pelos pensadores pós-modernos que, consciente ou não do débito a Borges, retiram grande parte de suas
tópicas das narrativas, ensaios e poemas borgeanos. Ver Costa Lima, L. O fingidor e o censor: no Ancien
Régime, no Iluminismo e hoje. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988, pp. 257-306.
4. In: Borges, un escritor en las orillas. Madrid: Siglo XXI, 2007. Para Beatriz Sarlo, Borges delineia seu projeto
literário a partir da indagação sobre como produzir literatura numa nação culturalmente periférica, ou seja, faz da
condição periférica uma estética. Nas palavras de Sarlo: “Borges reinventa un pasado cultural y rearma una
tradición literaria argentina en operaciones que son contemporáneas a su lectura de las literaturas extranjeras.
Más aún: puede leer como lee las literaturas extranjeras, porque está leyendo o ha leído la literatura rioplatense.
En Borges, el cosmopolitismo es la condición que hace posible inventar una estrategia para la literatura
argentina; inversamente, el reordenamiento de las tradiciones culturales nacionales lo habilita para cortar, elegir y
recorrer desprejuiciadamente las literaturas extranjeras, en cuyo espacio se maneja con la soltura de un marginal
que hace libre uso de todas las culturas. Al reinventar una tradición nacional Borges también propone una lectura
sesgada de las literaturas occidentales. Desde la periferia, imagina una relación no dependiente respecto de la
literatura extranjera, y está en condiciones de descubrir el 'tono' rioplatense porque no se siente un extraño entre
los libros ingleses y franceses. Desde un margen, Borges logra que su literatura dialogue de igual a igual con la
literatura occidental”.
5. Devemos salientar, no entanto, que a relação de Borges com a Cabala não é a de um crente. Costa Lima (Op. cit)
observa que, na Cabala e na Gnose, Borges tem “acesso a um conjunto de parâmetros com os quais se [opõe] à
tradição formada pelo logos da filosofia clássica grega, pela teologia monoteísta e pela razão iluminista” (p. 280).
Saul Sosnowski, estudioso da Cabala, assinala que o “interesse de Borges [pela Cabala] se enraíza no artifício
da linguagem, nos processos hermenêuticos que refletem realidades que podem ou não ser arbitrárias, mas que
satisfazem a imaginação do criador, que entabulam um diálogo e que projetam um desafio para os iniciados” (p. 18).
Ver SOSNOWSKI, S. Borges e a Cabala: a busca do verbo. São Paulo: Perspectiva, 1991.
3
É estranho quando, nessa sexta e última conferência, Borges afirma: “Não acho
que a inteligência tenha muito a ver com o trabalho de um escritor. Acho que um dos
pecados da literatura moderna é ser muito autoconsciente” (p. 123). Ora, neste caso
poucos escritores da segunda metade do século XX, poucos mesmos, foram tão
pecadores como Borges: se sua literatura não se restringe ao puro espaço intertextual
como postulam muitos teóricos da pós-modernidade e do pós-estruturalismo, por
exemplo John Barth e Paul de Man, é difícil duvidarmos que ela deriva, como afirma
Davi Arrigucci, “da tradição de lucidez moderna”,7 aquela que reconhece o pensamento
como elemento integrante do corpo da literatura, produzindo frequentemente obras que
contêm o conteúdo e seu comentário, a mímesis e a poiesis. Borges, como bem
percebeu seu compatriota Ricardo Piglia, conjuga, de modo tenso mas frequentemente
bem disfarçado, as habilidades do narrador (da tradição oral) com as do escritor (o
8
erudito refinado, que escreve poemas e contos eivados de referências culturais).
Quando Borges reclama que o poeta volte a ser um “fazedor”, na terceira conferência,
não é outro o seu desejo senão o de encontrar uma síntese capaz de conciliar
definitivamente aquela contradição. Me parece, porém, que Borges não a resolve; me
parece ainda que esta não resolução reforça a complexidade e a beleza dessa obra.
6. Ver STEINER, G. Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. São Paulo: Companhia das Letras:
1990, pp. 33-43.
7. In: ARRIGUCCI, D. “Borges ou do conto filosófico”. Prefácio a Ficções, de Jorge Luis Borges (São Paulo,
Globo, 1999).
8. In: PIGLIA, R. "Borges: el arte de narrar”. In: Cuadernos de Recienvenido, São Paulo, USP, n. 12, 1999.
Mais ainda. Há nas conferências que formam Esse ofício do verso um projeto
velado que Borges partilha com outros escritores-ensaístas, como Ítalo Calvino e
Octavio Paz, mas que nele, a meu ver, se evidencia com mais robustez: aliviar a
tradição literária da carga opressora com que não raras vezes ela vem revestida. Disso
resultam dois ganhos ao leitor: o primeiro é a sensação, hoje obstruída pelos estudos
culturais, de que a poesia (a literatura de um modo geral) é inclusiva; de que ela forja um
espaço onde fala o Homem, e fala com desejos de escuta, escuta que abre, para
lembrar a expressão de um caro ensaísta amigo, uma transversal no tempo. O segundo
ganho deriva do primeiro: a leitura deixa de ser uma estratégia de ativismo político, ou
uma luta de egos, ou um deciframento passivo, para se tornar um ato cooperativo, um
autêntico diálogo.
Talvez haja muito otimismo em Borges quanto a essa livre circulação do leitor
pelo espaço literário. Aliás, mais que uma circulação: colaboração. “A escrita” – diz
secamente – “é uma espécie de colaboração” (p. 124). Na tentativa de tornar a tradição
literária livre de qualquer postura opressiva ou agônica – cujos pontos extremos hoje
são a ideologização excessiva dos culturalistas e marxistas de um lado e, no outro, o
embate edipiano subjacente à ideia de angústia da influência elaborada por Harold
Bloom –, Borges não hesita em proscrever a história da literatura. Reverberando
algumas ideias de Nietzsche sobre os perigos de uma excessiva consciência histórica
para nossa capacidade criativa, dirá o escritor argentino: “Ter consciência da história da
literatura [...] é realmente uma forma de incredulidade [...]. Se digo comigo, por
exemplo, que Wordsworth e Verlaine foram poetas muito bons do século XIX, talvez
caia no perigo de pensar que o tempo de algum modo os destruiu [...]. Acho que a ideia
antiga – que podemos conceder perfeição à arte sem levar em conta as datas – era mais
corajosa” (p. 119).
O que é
poesia?
Foto: Giorgio Rocha
?
Calidoscópio da poética
contemporânea
A poesia é, de longe, a linguagem de maior potência de significação
– “a mais condensada forma de expressão verbal”, no dizer de Pound –, e não é de
espantar a variedade de leituras, de idiossincrasias, de práticas que permeiam a
poética contemporânea e, evidente, a sua recepção. Tão diversas como o são os
próprios seres e seus interesses.
Edson Cruz
Organizador
?
Ana Maria Ramiro
Nasceu em São Paulo (1972). Publicou os livros Menina-Poesia (1999)
e Desejos de Gaia (2007). Em 2006, organizou e traduziu a plaquete
Para Fazer um Talismã, com poemas de quatro autoras argentinas:
Alejandra Pizarnik, Elizabeth Azcona Cranwell, Dolores Etchecopar e
Olga Orozco. Participou da antologia 8 femmes (2007) e da Antologia
de poesia brasileira do início do terceiro milênio (2008), lançada
em Portugal. Tem poemas, traduções e ensaios publicados nas revistas
literárias Zunái, Critério, Coyote, Grumo, entre outras.
Blog: Folhas de Girapemba http://girapemba.blogspot.com
E-mail: ana.ramiro@uol.com.br
?
O que um iniciante no fazer poético
deve perseguir e de que maneira?
Acho fundamental ler muito, dos clássicos (aqueles que permanecem "novos")
aos contemporâneos, estabelecer um paideuma, mas também acho necessário
um certo distanciamento do cânon e do campo literário, que muitas vezes acaba
criando uma amarra condicionante, um instrumento de padronização.
Os poetas não devem nunca deixar de lado a ideia de reformular constantemente
a própria linguagem, e isso serve para todos, iniciantes ou não. A poesia, como
aspecto da linguagem, é matéria viva e ninguém passa uma vida inteira fazendo,
falando, escrevendo as mesmas coisas. Ser fiel a um leitmotiv, mas com
possibilidade de desvios. Reinventar-se.
?
Beatriz Bajo
Nasceu em São Paulo/SP, 1980. Poeta, revisora, tradutora, professora
de língua portuguesa e literatura, especialista em Literatura Brasileira (UERJ)
e aluna especial do mestrado em Letras (UEL). Participou de antologias
e mantém publicações em revistas literárias como Coyote e Polichinello
e em espaços virtuais como Portal Cronópios, Germina Literatura
e Confraria do Vento. Traduziu o livro Respiración del laberinto, do poeta
mexicano Mario Papasquiaro, pelo Coletivo Dulcinéia Catadora e trabalha
atualmente com uma novela, também mexicana, pela editora LetraSelvagem.
Livros publicados: a face do fogo (Selo [e] editorial, 2010) uma parceria da
Annablume com o selo Demônio Negro; : a palavra é (Atritoart/Kan, 2010).
Morou por 17 anos no Rio de Janeiro (RJ) e vive há 4 em Londrina.
Edita a seção literária do site Armadilha Poética http://www.armadilhapoetica.com
membro do conselho editorial do Projeto Macabéa http://www.trapiches.com.br
e insiste em cultivar o blog http://lindagraal.blogspot.com
e-mail: beahbajo@hotmail.com
?
O que um iniciante no fazer poético
deve perseguir e de que maneira?
?
Laís Chaffe
Nasceu em Porto Alegre. Idealizou e está à frente do selo editorial
Casa Verde (www.casaverde.art.br - prêmio Açorianos de Editora
Destaque no Rio Grande do Sul, 2006) e da Série Lilliput (dedicada
a minicontos). Organizou as antologias Contos de bolso, Contos de bolsa
e Contos de algibeira e fez a coordenação editorial do livro
Contos comprimidos - todos de minicontos. Jornalista e autora
de Não é difícil compreender os ETs (contos, AGE, 2002), participou das
antologias Contos do novo milênio (organização Charles Kiefer, 2006),
Poemas no ônibus (2002 e 2004), entre colchetes fica
mais confortável (contos, 2001) e Histórias de trabalho (1999 e 2004).
Site: www.chaffe.com.br E-mail: lais@chaffe.com.br
Poesia
desejo salivando
em frente à mesa
vazia.
?
O que um iniciante no fazer poético
deve perseguir e de que maneira?
Pra qualquer poeta eu diria o que digo pra mim mesma, também iniciante:
vive, lê muito, lê, lê, le(minski).
Mais do que compreender, tem de assimilar como numa transfusão
os versos do poeta:
um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
(Paulo Leminski)
Gutfreind a todos.
André Dick
Rimbaud:
das viagens ao silêncio,
do silêncio às viagens
por André Dick
A convite do poeta Paul Verlaine, para quem havia mandado alguns versos, foi
morar na capital da vanguarda literária, Paris, em 1871, levando, embaixo do braço, o
poema pelo qual ficaria mais conhecido, o antológico “O barco ébrio”, composto quando
tinha em torno de 15, 16 anos. Na Paris dos poetas e outros artistas mais avançados no
tempo, cercou-se de personalidades literárias e se iniciou na droga predileta daquele
período: o haxixe, atrás de seu “desregramento dos sentidos”.
Seu melhor amigo em Paris, neste período, foi justamente Paul Verlaine.
Rimbaud, afinal, se hospedou na casa dos sogros de Verlaine. A dupla compunha o
“Círculo Zútico”, um clube de artistas, sobretudo poetas, cuja maior diversão era passar
as noites fazendo festa entre bons e maus versos, aplausos e vaias.
1. HAMBURGER, Michael. A verdade da poesia. Trad. Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Cosac Naify,
2007, p. 65.
Na África, Rimbaud passou, entre outros lugares, por Chipre, Egito, Harar,
Somália, Ugadine, Bubasse e Etiópia, tornando-se o primeiro homem a desbravar o rio
Ugadine, o que lhe deu oportunidade de realizar relatos de viagem, publicados pela
revista Sociéte de Géographie. Nesse ambiente, Rimbaud foi o homem que traficou
armas, exportou ouro, marfim, peles e café, participando da construção de um palácio e
cruzando desertos – só a travessia do deserto da Somália durou, a cavalo, vinte dias.
Em meio a tudo isso, o principal objetivo: a penetração na Abissínia. Segundo Roland
Barthes, o “Poeta e o Viajante (figura ainda romântica) foram substituídos por outro
2
papel: o de colono e geógrafo (verdadeira antítese do Poeta)”. Desse modo,
“Rimbaud abandona um Desejo (o de Escrever), mas o substitui por outro, igualmente
violento, radical, e, eu diria, louco: viajar”.3 Ou seja, ele foi tudo aquilo que ninguém
espera de um poeta.
Em 1879, ano em que contraiu febre tifoide, ele deu a seguinte declaração sobre
a literatura e, especificamente, sobre a poesia, ao seu amigo inseparável Ernest
Delahaye: “já nem penso mais nisso”. Como se tudo que escrevera até então
pertencesse ao acaso, relegando o passado e sua juventude apenas para os
admiradores da poesia. Foi o único poeta que descobriu a arte do silêncio – a maioria é
procurado pelo silêncio – retomado quase meio século depois pelo norte-americano
John Cage.
2. BARTHES, Roland. A preparação do romance II: a obra como vontade: notas de curso no Collège de France
1979-1980. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 55.
3. Ibidem, p. 54.
2. Silêncio moderno
4. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a
meados do século XX. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 69.
5. Ibidem, p. 67.
6. Ibidem, p. 75.
7. Ibidem, p. 69.
8. Ibidem, p. 70.
9. Ibidem, p. 63.
10. Ibidem, p. 70.
11. BARTHES, op. cit., p. 57.
Em seguida, Friedrich procura explicar as minúcias que ele tinha com detalhes
de composição:
Finalmente, conclui:
22. RIMBAUD, Arthur. Carta dita do vidente. In: ______. Uma estadia no inferno/Poemas escolhidos/A carta do
vidente. Trad. Daniel Fresnot. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 79.
23. Ibidem, p. 80.
24. Ibidem, p. 80. (Grifos do autor).
A impessoalidade não tem a ver com uma fuga ao “eu psicológico” (visto que
esse tem a subjetividade alargada), nem anula a consciência e a responsabilidade do
escritor, que se dá devido às circunstâncias de sua existência; ele sabe que a criação
tem a consciência de um trabalho com as palavras, e não de uma possessão por
palavras. O trabalho poético não tem um caráter sobrenatural: é, sim, guiado por um
trabalho de construção – e, no caso de Rimbaud, das inúmeras viagens. Por isso,
podemos entender o contrário de Alfonso Berardinelli, que escreve: “O
desenraizamento da arte, sua abstratização por meio de procedimentos
'despoticamente' formalistas e absolutizantes, que aniquilam toda possibilidade de
determinação espaço-temporal, é obra sobretudo de poetas como Rimbaud e Mallarmé
25
e de pintores como Cézanne”. Esses procedimentos que aniquilariam “toda
possibilidade de determinação espaço-temporal” são inviáveis nas obras de Rimbaud e
Mallarmé justamente pela correspondência, que encontramos nelas, com a vida.
25. BERARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. Org. Maria Betânia Amoroso. Trad. Maurício Santana Dias.
São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 74.
26. CAMPOS, Augusto de. Alguns Rimbauds. In: _______. Rimbaud livre. Trad. Augusto de Campos. 2. ed.
São Paulo: Perspectiva, 1993, pp. 15-16.
4 poemas de Rimbaud
(Tradução: André Dick)
Sensação
Março, 1870
Sensation
Mars, 1870
L'éternité
Âme sentinelle,
Murmurons l'aveu
De la nuit si nulle
Et du jour en feu.
Là pas d'espérance,
Ela está retrovada. Nul orietur.
Quem? – A eternidade. Science avec patience,
O mar some na calada Le supplice est sûr.
Com o sol que parte.
Elle est retrouvée.
Quoi? – L'Éternité.
Alma sentinela, C'est la mer allée
Murmura seu chamado Avec le soleil.
De uma noite nula
De um dia queimado.
Mai, 1872
Dos atos humanos,
Impulsos de coração,
Você se livra de enganos
Voando então.
Lá não há esperança
E não há destino.
Ciência e paciência,
O suplício é vizinho.
Maio, 1872
No Cabaré Verde
(às cinco horas da tarde)
Outubro, 1870
Au Cabaret-Vert
(cinq heures du soir)
Octobre, 1870
Ma bohème (Fantaisie)
Guilherme Mansur
Poeta e tipógrafo. Publicou HAICAVALÍGRAFOS,
BANDEIRAS - TERRITÓRIOS IMAGINÁRIOS, BENÉ BLAKE,
BARROCOBEAT, BICHOS TIPOGRÁFICOS
e GATIMANHAS & FELINURAS (em parceria com Haroldo de Campos).
Vive e trabalha em Ouro Preto, Minas Gerais.
E-mail: guimamba@gmail.com
DESCASCAVEL