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História da Música: Pré-História, Idade Média, Renascimento

Profa. Maristella Pinheiro Cavini

Texto Prévio 11
Renascimento: a música na corte

Primeiras palavras.

É difícil determinar com precisão o final de um período histórico-artístico e o início de outro. O


nascimento de um novo movimento artístico não está relacionado à redução de tudo o que existiu em
movimentos artísticos anteriores. Sobre a música nos finais do séc. XIII, por exemplo, as rígidas
tradições da música litúrgica primitiva coexistiam com as complexidades intelectuais da Ars Nova e
com a alegre música do povo.
O início da Renascença, ou Renascimento, portanto, manteve a tradição musical medieval e,
associada a ela, trouxe a experiência da redescoberta da cultura greco-romana. O estudo da cultura
antiga foi tão intenso na Europa dos sécs. XV e XVI que influenciou a maneira das pessoas
conceberem a música, fazendo-as repensar sobre o papel dessa música à luz daquilo que se podia
ler nas obras dos antigos filósofos, poetas, ensaístas e teóricos musicais da Antiguidade.
Mudanças como a relação de consonância-dissonância, afinação, escolha dos modos e
associação música-texto, tornaram a música mais cativante e mais expressiva para o ouvinte, porém,
não aconteceram de um momento para o outro. Essas conquistas musicais estenderam-se por todo
o período da Renascença, que engloba os anos de 1450 a 1600, aproximadamente.
A palavra francesa Renaissance (Renascimento) foi usada pela primeira vez em 1885 por
Jules Michelet e, mais tarde, adotada pelos historiadores da arte e da música para designar o
primeiro período histórico da Idade Moderna.
A ideia de “renascimento”, portanto, não foi estranha a uma época cujos pensadores e artistas
se consideravam restauradores do saber e das glórias da Grécia e Roma antigas. Entretanto, essa
ideia tinha ainda outra faceta: a de uma nova atenção consagrada aos valores humanos, por
oposição aos valores espirituais medievais. Artistas e escritores voltaram-se tanto para os temas
profanos como religiosos e procuravam que suas obras fossem compreensíveis e agradáveis aos
homens, além de aceitáveis aos olhos de Deus.
Pela rápida evolução que a música passou ao longo da Renascença (em momentos
diferentes nos diversos países), não é possível definir um estilo musical renascentista único. A
Renascença foi mais um movimento cultural geral e um estado de espírito que um conjunto
específico de técnicas musicais.

A música na Renascença.
Contextualização política, social e artística.
A Renascença é um período de grande importância para o estudo da História e,
consequentemente, da História da Música, pois trata do despontar dos “tempos modernos”, o fim da
Idade Média e o início da Idade Moderna.

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História da Música: Pré-História, Idade Média, Renascimento
Profa. Maristella Pinheiro Cavini

Costuma-se demarcar a transição entre a Idade Média e a Renascença através da Guerra


dos Cem Anos (1453), entretanto, um novo clima já era sentido desde o final do século XIV, na Itália,
com Dante, Petrarca e Bocaccio. Nesta época, as estruturas feudais já estavam decadentes e o
crescimento de um pensamento livre e individualista favoreceu o desenvolvimento do espírito
científico, contrário às superstições e às rotinas medievais. Dessa maneira, os progressos técnicos
propiciaram o aparecimento de novos bens de consumo e o comércio tornou-se a força motriz da
ação política.
Bennett (1986) comenta que há uma grande diferença entre o pensamento medieval e
renascentista, que tem como fortes características: o grande interesse científico; o interesse e
redescobrimento do saber e cultura dos antigos gregos e romanos; as grandes descobertas e
explorações além de terras europeias; e os avanços nas Ciências e Astronomia.
Na primeira metade do século XV, os pintores descobrem a perspectiva, os arquitetos compõem a
luz e as sombras, fazem as fachadas cantar e dispõem suas construções harmoniosas em
paisagens urbanas concebidas para o prazer, os poetas e músicos buscam a suavidade na
perfeição técnica, enquanto uma curiosidade fecunda estimula os intercâmbios internacionais e as
aspirações humanistas [...]. (CANDÉ, 1994, p.306).
O movimento renascentista teve início no séc. XV, na Itália, provavelmente porque nesta
época a península itálica ainda estava dividida em uma quantidade de cidades-estado e pequenos
principados consideráveis e em frequente guerra uns com os outros. Os governantes procuravam o
engrandecimento próprio e de suas cidades erguendo construções decoradas com as novas obras
de arte e artefatos antigos vindos da Grécia e Oriente, mantendo conjuntos vocais e instrumentais, e
recebendo com ostentação os soberanos de Estados vizinhos.
Segundo Grout & Palisca (2007), os cidadãos livres dos deveres feudais e isentos de
obrigações militares, acumulavam riquezas através do comércio e ofícios, e apesar das atividades
religiosas serem importantes para essa nova classe social, a prosperidade da família, a aquisição e
embelezamento de propriedades, a educação dos filhos aos moldes clássicos e a realização pessoal
através dos estudos, do exercício de cargos públicos e do sucesso, eram o fundamento de suas
vidas. Até mesmo papas e cardeais, após a volta da sede da Igreja à Roma, para conseguirem
manter um alto nível de atividade e mecenato cultural. Alguns dos melhores músicos, artistas e
eruditos renascentistas, principalmente os da escola franco-flamenga, foram patrocinados por
cardeais e príncipes de famílias como os Médicis (Florença), os Este (Ferrara), os Sforza (Milão) e os
Gonzaga (Mântua).
Essas ações e posturas políticas, sociais e culturais revelam a influência do Humanismo, que
teve início, na Renascença, com a redescoberta da cultura greco-romana. Os estudiosos
humanistas, ligados ou não à Igreja, eram artistas, historiadores, pensadores, nobres ou protegidos
por mecenas que divulgaram, de modo mais sistemático e científico, os novos conceitos, situando o
homem como senhor de seu destino e da busca de seu conhecimento.

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A divulgação desses novos conceitos foi facilitada pela melhoria técnica da imprensa1, onde
livros poderiam ser publicados em quantidades maiores e mais rapidamente.
O Humanismo traz ao homem o reconhecimento de seu livre arbítrio, afastando-o da postura
teocêntrica medieval, que determinava um comportamento místico e religioso, para uma postura
antropocêntrica, de comportamento racionalista.
Na Renascença também há um processo de reformas religiosas, que iniciaram pelos abusos
cometidos pela Igreja Católica e pela mudança de visão de mundo, resultado das influências do
Humanismo.

O Renascimento musical.
A Renascença presenciou um dualismo de ideias para a concepção da música aos moldes do
“homem moderno”: de um lado, os estudiosos da literatura antiga que pretendiam que a música
“moderna” fosse repensada aos moldes do que poderia ser lido nas obras dos antigos poetas,
filósofos e teóricos musicais; de outro, os críticos e músicos como Gioseffo Zarlino (1517-1590), que
defendiam orgulhosamente os progressos já alcançados pela técnica contrapontística da época.
Os defensores da música moderna, entretanto, não abominavam as ideias humanistas, mas
não pretendiam retomar as tradições musicais greco-romanas tais como se apresentavam e como
queriam os humanistas, mas sim, somente buscavam nas teorias da Antiguidade um estudo para
aprofundar seus conhecimentos e não mais como base para a aprendizagem profissional, como
acontecia até então.
Grout & Palisca (2007) comentam que o marco que assinala o início dos estudos sobre os
primórdios gregos da teoria musical sob uma nova ótica, foi a leitura do tratado de Boécio na escola
de Vittorino de Feltre para jovens nobres e talentosos (fundada em 1424 na corte de Mântua),
enquanto texto clássico e não mais como base para a aprendizagem profissional. A partir desse
momento, os mais importantes tratados musicais gregos foram redescobertos em manuscritos
trazidos para o Ocidente e entre estes estavam os tratados de Bacchius Senior, Aristides Quintiliano,
Cláudio Ptolomeu, Euclides e outro atribuído a Plutarco. Também eram conhecidos os
“Deipnosofistas” de Ateneu (obra que possui uma longa passagem sobre a música), os 8 livros da
“Política” de Aristóteles e passagens relativas à música dos diálogos de Platão, em particular da
“República” e das “Leis”. Todos estes textos estavam traduzidos em latim já no final do séc. XV,
apesar de que algumas traduções eram apenas para uso particular de estudiosos.
Franchino Gaffurio (1451-1522), um dos maiores estudiosos da música na Renascença, teve
contato com algumas destas traduções e fez uma releitura dos conhecimentos e da teoria grega em
suas obras mais importantes: “Theorica musice” (1492), “Practica musice” (1496) e “De harmonia
musicorum instrumentorum opus” (1518). Os escritos de Gaffurio foram os que mais influenciaram a
música do final do séc. XV e início do séc. XVI, estimulando o pensamento sobre temas como os

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Johannes Gensfleisch Gutenberg (c.1398-1468): inventor da impressão com caracteres mecânicos
móveis, uma nova maneira de impressão de livros, mais rápida, e que foi considerado o evento mais
importante da Idade Moderna.
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modos, a consonância e dissonância, o propósito e parâmetros do sistema tonal, a afinação, as


relações entre música e palavra e a harmonia da música, do homem, do espírito e do cosmos.
Toda a movimentação ao redor da redescoberta dos tratados musicais da Antiguidade, fomentou
uma maior criação musical e, consequentemente, uma maior procura por música para se tocar e cantar.
A partir da metade do séc. XV foram compilados e copiados manuscritos com o repertório local de
cada centro cultural e outros tantos manuscritos foram copiados e oferecidos como presentes em
aniversários, casamentos e outras ocasiões. Esse processo era dispendioso e nem sempre transmitia
fielmente as obras do compositor.
Essa questão se resolveu somente com os progressos da arte da imprensa, que tornou possível
uma difusão muito maior e mais exata da música escrita. Por volta de 1473, a arte de imprimir livros com
caracteres móveis foi aplicada aos livros litúrgicos com notação neumática. No final do séc. XV surgiram
em vários livros de teoria ou manuais de ensino, exemplos de música impressa com blocos de
madeira, mas a primeira coletânea de peças polifônicas impressa com caracteres móveis só foi
editada em Veneza por Otaviano de Petrucci (1466-1539), em 1501.
Grout & Palisca (2007) comentam que em 1523, Petrucci já havia publicado 59 volumes,
incluindo reimpressões, de música vocal e instrumental com uma clareza e perfeição notáveis. Seu
método era o da tripla impressão: uma primeira impressão para as linhas da pauta, uma segunda
para a letra da música e uma terceira para as notas. Era um processo lento, difícil e caro, por isso,
alguns impressores do séc. XVI reduziram-no a duas impressões, uma para letra e outra para a
música. A impressão única, com caracteres que imprimiam pautas, notas e texto de uma só vez, foi
praticada por volta de 1520, em Londres, por John Rastell (1475-1536). Esse sistema foi aplicado
sistematicamente em larga escala por Pierre Attaignant (1494-1552), em Paris, somente a partir de
1528.
A imprensa musical foi um acontecimento sem igual na História da Música: ao invés de um
reduzido número de manuscritos cuidadosamente copiados à mão, mas sujeitos a equívocos e
variantes, os músicos tinham à disposição uma grande produção de música nova, mais barata que
os manuscritos equivalentes e de uma precisão uniforme. Outro aspecto positivo foi que “[...] a
existência de cópias impressas significava que muitas obras musicais se conservavam, podendo ser
interpretadas e estudadas pelas gerações seguintes”. (GROUT & PALISCA, 2007, p.192).

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