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Entrevista concedida a
Teresa Cristina Rego
Lucia Emilia Nuevo Barreto Bruno
Universidade de São Paulo
Conducted by
Teresa Cristina Rego
Lucia Emilia Nuevo Barreto Bruno
Faculdade de Educação - USP
148 Teresa REGO e Lucia BRUNO. Entrevista com Bernard Charlot: Desafios da educação...
tempo das Escolas Normais estava para termi- teria sucesso e que depois esqueceria as mi-
nar. Em 1985, defendi na França uma tese nhas origens. Isso foi um desafio para mim.
sobre obras já publicadas: três livros e 42 ar- Em 1968, terminei o concurso da Agre-
tigos, mais de mil páginas. Pretendia defender gação e fui dormir, porque o concurso era
uma tese de doutorado normal, mas Gilles muito difícil. No dia seguinte, ouvi no rádio
Ferry, meu “orientador”, me propôs uma Thèse que tinha começado a Revolução. Participei
d’État (que seria, no Brasil, um conjunto: dou- dos eventos, claro. Nunca ergui barricadas
torado mais livre-docência). Tive que redigir porque não é o meu estilo, mas participei de
em 15 dias, em pleno início do ano letivo, uma reuniões, ocupei a Sorbonne, distribuí panfle-
nota de pesquisa sobre tudo o que havia es- tos na porta de usinas etc.
crito. Eu escrevia à noite e a minha esposa Fui o tipo de estudante popular que
levava para alguém digitar. Nem tive tempo de pertence à esquerda quase por origem, mas
reler. Era tão ingênuo que fiz 59 páginas em nunca entrei em partido político, porque rapi-
espaço simples, quando geralmente se faz com damente entendi que, em partido político, não
espaço maior para parecer mais sério e profun- se tem liberdade para pensar. Ia ser expulso.
do! Depois, com essa tese, entrei direto como Quando tive de deixar a Tunísia, não
professor titular em Paris 8, no primeiro pedi- tinha contatos universitários, não pertencia a
do, em 1987. Isso foi importante porque não nenhuma panela universitária. Pedi uma vaga
tive que sofrer, esperar e passar a mão nas para uma universidade da África negra e obti-
costas dos “grandes professores”. Assim, estan- ve uma no Togo. Só que ela sumiu de repen-
do no topo da hierarquia, pude viver fora da te das listas oficiais. Fui sindicalista na Tunísia,
hierarquia e manter a minha liberdade de pen- do Sindicato do Ensino Superior, e uma vez
samento. ocupamos a embaixada da França lá. A Fran-
O poder nunca me seduziu. Já tive po- ça obviamente não queria enviar para África
der. Em Paris 8, dirigi a graduação e a pós-gra- um professor universitário desses!
duação. Pediram duas vezes para me candidatar Voltei para a França, para uma École
a reitor, mas não quis. Fui presidente da Asso- Normale. Lá, fiz sindicalismo de minoria para
ciação dos Pesquisadores da Educação, o equi- mudar todas as práticas, inclusive as sindicais.
valente à ANPED no Brasil, por seis anos, du- Eu tinha esse tipo de militância, sempre des-
rante dois mandatos. Mas nunca aceitei entrar confiando dos partidos.
no Conselho Universitário Nacional, que avalia Mais tarde, já na Universidade de Paris
os colegas para as carreiras. Não gosto de exer- 8, fui vereador da cidade de Saint-Denis, na
cer o poder, porque poder é responsabilidade e, periferia de Paris. Saint-Denis é uma das cida-
além disso, sinto-me um pouco ridículo. des mais populares da França, com um passa-
do operário e que tem fama de violenta. Por
Muito provavelmente, seu interesse pela sinal, foi lá que fiz a maioria das minhas pes-
educação também tinha relação com o quisas sobre a relação com o saber. Na Fran-
período político vivido na França naquele ça, o vereador tem uma atividade sociopolítica
momento histórico. Você começou a dar não remunerada e é eleito numa lista com um
aulas um ano depois de maio de 1968. programa. Apresentei-me numa lista com um
Que tipo de jovem você foi? Era engajado prefeito comunista, com socialistas, ecologis-
politicamente? tas e pessoas sem partido, como eu.
Sempre fui de esquerda, inclusive por- No Brasil, sou um dos fundadores do
que os meus pais eram de esquerda, embora Fórum Mundial de Educação de Porto Alegre
nunca tenham se filiado a um partido políti- e ainda faço parte do Comitê Internacional,
co. Sempre ouvi na minha juventude que eu embora agora participe pouco, porque ele foi
150 Teresa REGO e Lucia BRUNO. Entrevista com Bernard Charlot: Desafios da educação...
só no Brasil. Mas a especificidade deste país é palavras: qual a relação dos alunos com a es-
que ele deve resolver todos os problemas ao cola e com o saber?
mesmo tempo e em pouco tempo. A França e Essa abordagem, essa forma de questio-
outros países da Europa tiveram um século nar, implica uma ruptura com muitos
para a constituição da escola primária e tive- questionamentos anteriores e isso é o que impor-
ram 20 anos para construir a segunda parte do ta, antes de tudo. Mas é preciso ter cuidado:
ensino fundamental. No Brasil, temos que relação com o saber não é uma resposta, é uma
fazer tudo ao mesmo tempo: terminar o ensi- forma de perguntar. Na França, já ouvi profes-
no fundamental, que foi estatisticamente re- sores dizendo: ele fracassa porque não tem re-
solvido, mas que sabemos que ainda tem pro- lação com o saber. É um erro: cada um tem uma
blemas; temos que resolver o problema do relação com o saber, inclusive quando não gos-
Ensino Médio, que é o mais grave neste mo- ta de estudar. É, ainda, uma catástrofe ideológi-
mento, porque não foi suficientemente ampli- ca, uma vez que, ao dizer que alguém não tem
ado, constituindo um gargalo entre o ensino uma relação com o saber, reintroduz-se a análi-
fundamental e o ensino superior. Além disso, se em termos de “carências”, justamente aquela
é necessário organizar uma universidade para que a noção de relação com o saber permite
a globalização. Aqui há escolas dos séculos afastar. O problema não é dizer se a relação do
XXI, XX e XIX. Às vezes, num mesmo bairro! aluno com o saber é “boa” ou não, mas, sim,
Isso significa que o discurso fora da realidade entender as contradições que o aluno enfrenta
tem consequências mais graves no Brasil do na escola. Ele vive fora da escola formas de
que na França, já que lá a distância entre a aprender que são muito diferentes daquelas que
realidade e o discurso é menor do que aqui. o êxito escolar requer. Essas contradições é que
Não é culpa de ninguém – aliás, não gosto do se deve tentar entender. Por isso, insisto muito
discurso da culpa – mas temos de resolver es- sobre a heterogeneidade das formas de aprender.
ses problemas. Há coisas que só se pode aprender na escola e,
portanto, não se deve menosprezar esta institui-
Você foi um dos primeiros autores no ção. Mas também se aprendem muitas coisas
campo da educação a chamar a atenção importantes fora da escola.
para a relação que os sujeitos, em Hoje, embaso essa ideia de heterogenei-
particular os estudantes mais pobres, dade das formas de aprender numa análise antro-
estabelecem com o saber, com aquilo pológica. O ser humano nasce incompleto, como
que é ensinado na escola. Você acha que explicam autores tão diferentes quanto Kant,
esse tema ainda precisa ser mais bem Marx, Vygotsky ou Lacan. Mas ele nasce em um
compreendido? Quais novas perguntas mundo humano, que lhe proporciona um
essa temática enseja? patrimônio. Ao se apropriar desse patrimônio, pela
Vou tentar responder da forma mais educação, a cria do homem torna-se humana. Em
simples possível. Só aprende quem estuda, outras palavras, o que caracteriza o ser humano
quem tem uma atividade intelectual. Mas só não fica dentro de cada indivíduo. Como escreveu
faço um esforço intelectual se a atividade tem Marx na VIa Tese sobre Feuerbach, a essência do
sentido para mim e me traz uma forma de ser humano é o conjunto das relações sociais. Am-
prazer. Portanto, a questão da atividade, do pliando a ideia, pode-se considerar que a essên-
sentido e do prazer é central. Ir à escola, es- cia do ser humano é tudo o que a espécie humana
tudar (ou recusar-se a estudar), aprender e criou no decorrer de sua história. Portanto, a edu-
compreender, seja na escola seja em outros cação é um processo de humanização, sociali-
lugares: qual sentido isso tem para os jovens, zação e subjetivação. Na psicologia, isso leva a
em particular nos meios populares? Em outras uma perspectiva histórico-cultural. Na sociolo-
152 Teresa REGO e Lucia BRUNO. Entrevista com Bernard Charlot: Desafios da educação...
indivíduo e sociedade, sujeito e o individualismo – categorização ética e políti-
instituições sociais, entendendo as ca. Por exemplo, na França, o grande movimen-
instituições não no sentido normativo, to social da década de 1980 foi contra o racis-
mas como todas as relações que mo e foi liderado por uma organização cujo
definem um padrão para se reproduzir e nome era Touche pas à mon pote (Não agrida o
se institucionalizar. Essa relação, claro, meu amigo). Não é individualismo, já que se trata
é contraditória. Mas em que termos você de recusa do racismo. Mas essa recusa é pensa-
entende que essa contradição se da na lógica da individuação: o conceito de “ra-
coloca? cismo” é geral demais para mobilizar as pessoas,
Não sei se sou capaz de responder a em particular os jovens, mas a referência ao que
essa questão. Vou fazer o que se faz quando sofre um indivíduo não branco mobiliza. Como
não se sabe responder: responde-se a outra. pensar uma sociedade em que o indivíduo pas-
Quero dizer duas coisas, uma partindo da so- sou a ser uma referência central e, também, onde
ciologia e outra, da psicanálise. o sujeito sofre?
Hoje, a questão do sujeito é importan- A segunda coisa que gostaria de comen-
te para a sociologia. É uma questão política. tar remete às questões da psicanálise contem-
Em primeiro lugar, é muito interessante ana- porânea. Escrevi muito sobre a necessidade de
lisar a sociedade atual como fonte de sofri- levar em conta o sujeito. Mas descobri recen-
mento e abandono do sujeito. Nunca antes o temente, lendo coisas sobre Lacan, que a pró-
indivíduo foi tão livre e, ao mesmo tempo, pria noção de sujeito não é nada clara. O que
nunca o sujeito foi tão abandonado como é o sujeito? Quem é e o que é aquele que diz
hoje. Isso vale também quando se trata dos “Eu”? Essa é a questão que perpassa a obra de
jovens: a nossa sociedade gosta de juventude, Lacan. Muitas vezes, este último cita o que
mas não gosta dos jovens; ela valoriza tudo disse Rimbaud, um grande poeta francês: “Je
que é novo, mas não deixa espaços para os est un autre” (Eu é um outro). Se Eu é um
jovens. outro, preciso entender as suas relações com os
O próprio Bourdieu encontrou essa outros e, de forma mais ampla, com a socie-
questão do sujeito que sofre: antes de publi- dade e a cultura em que ele vive, para compre-
car A miséria do mundo , escreveu, sobre o ender o que significa ser um sujeito. E aí en-
mesmo tema, um artigo que se chamava O so- contro de novo Vygotsky.
frimento. Mas não dava para um sociólogo
falar do sujeito e Bourdieu propôs uma expli- Você tem uma grande experiência como
cação sociológica do fenômeno: quando exis- investigador. Além de desenvolver
te uma defasagem entre o habitus, isto é, as pesquisas na França, você coordenou
disposições psíquicas socialmente estruturadas, estudos na Tunísia, na República Tcheca
por um lado e, por outro, as condições de fun- e no Brasil. Em 1987, fundou a equipe
cionamento desse habitus, o sujeito sofre. A Escol (Éducation, Socialisation et
explicação é interessante, mas, a meu ver, não Collectivités Locales) a partir de um
é suficiente. Parece-me difícil falar do sujeito programa de pesquisa sobre a relação
sem levar em consideração o que nos ensina a com o saber. Gostaríamos que você
psicologia e, mais ainda, a psicanálise. fizesse um balanço deste seu trabalho
Em segundo lugar, e de forma mais geral, como pesquisador e formador de novos
a sociologia deve levar em conta aquele fenôme- pesquisadores. Que conselhos daria
no contemporâneo que chamo de individuação para um jovem pesquisador na área da
da vida e das relações. Não se deve confundir a educação?
individuação – processo psicológico e social – e Criei uma equipe de pesquisa – a ES-
154 Teresa REGO e Lucia BRUNO. Entrevista com Bernard Charlot: Desafios da educação...
a) vocês devem ter uma metodologia pertinente ço do movimento social.
para responder a suas questões centrais; e b) vocês Darwin sempre carregava consigo um
devem trabalhar com rigor. Sabendo isso, vocês caderninho para anotar as objeções essenciais à
não precisam pedir autorização ao orientador, sua teoria, porque os argumentos a favor ele
embora possam pedir conselhos. Parem de pergun- não ia esquecer, mas as objeções sim. Isso é
tar se podem ou não podem fazer algo. Reflitam: pesquisa. Além do mais, a pesquisa é um pra-
com dados coletados assim, conseguem responder zer quando se tem uma pergunta não respon-
à sua questão central de forma rigorosa? Se po- dida, quando há um pouco de suspense, quando
dem, façam.” Acho que, no Brasil, há uma depen- se encontram contradições. Assim, é pesquisa
dência forte demais do orientador. Como formar viva e dá prazer pesquisar. Pesquisa sem igno-
“mestres” com alunos por demais obedientes? rância não é pesquisa, pesquisa sem esforços
A terceira coisa que diria, e que sempre não existe, pesquisa sem prazer não vale a pena.
digo, é a seguinte: o trabalho específico do pes- A primeira pergunta que faço a quem
quisador em ciências humanas é identificar e pede a minha orientação é: “O que você quer
pensar sobre contradições. Não é dizer que o saber que ainda ninguém sabe, inclusive eu?”.
povo está certo. Aliás, o povo não está nem aí Essa pergunta é o primeiro passo naquela
com essa legitimação que o pesquisador julga lhe aventura que constitui a pesquisa.
conferir. Descobri isso e logo me livrei do discurso
marxista oficial e comecei a desenvolver um pen- No contexto brasileiro, você é um
samento marxista, quando escrevi, com uma co- daqueles autores que conseguem
lega, um livro sobre a história da formação dos transitar, com muita competência, pelo
operários, na França, de 1789 a 1984. Descobri mundo da academia e do cotidiano
que não existe um empresariado, mas pelo me- escolar. Embora seja um intelectual, você
nos três – o grande, o médio e o dono de uma é muito ouvido e respeitado pelos
loja – e que os três nem sempre têm os mesmos profissionais que atuam nas redes de
interesses. Descobri ainda que o sindicalismo re- ensino. A que você atribui isso?
volucionário, quando nasceu, era sempre sexista Em primeiro lugar, a minha questão da
e às vezes racista. Encontrei a contradição, o meu relação com o saber está na encruzilhada da
mundo pré-organizado desmoronou e pude co- questão do sujeito, da desigualdade social e do
meçar a pensar. saber. É a mesma questão que o professor
Explico isso aos estudantes brasileiros. enfrenta na sala de aula. Em segundo lugar,
Muitas vezes, eles pretendem fazer uma pes- falo de situações e práticas que o professor co-
quisa, mas já têm uma resposta política, o que nhece, inclusive quando teorizo. O professor
os impede de pesquisar. Eles vão a campo com não recusa a teoria quando ela teoriza situa-
muitas certezas e poucas dúvidas. Explico que ções, problemas, práticas; ele rejeita a teoria
a diferença entre a militância e a pesquisa, sem objeto identificável, aquela teoria em que
inclusive quando se é militante, é a questão da o autor apenas fala a outros autores de teori-
contradição. O militante, pelo menos o mili- as. Em terceiro lugar, depois de ter defendido
tante tradicional, não pode levar em conta a os professores como sindicalista e de tê-los cri-
opinião do adversário, não pode tentar enten- ticado como jornalista, acabei por entender
der de qual ponto de vista o adversário está qual postura considero justa. Sei da dificuldade
certo, porque isso vai impedir a ação militan- de ser professor, sobretudo na sociedade con-
te. Pelo contrário, o trabalho do pesquisador é temporânea, e estou solidário com os profes-
evidenciar as contradições, inclusive aquelas sores. Sei também que as práticas escolares
que existem no seu campo. É assim que ele atuais não são satisfatórias. Mas afastei qual-
pode ajudar o povo e contribuir para o avan- quer discurso sobre a “culpa”, já que agora
156 Teresa REGO e Lucia BRUNO. Entrevista com Bernard Charlot: Desafios da educação...
muito, de conseguir fontes de dem dos seus estudantes. Em um colóquio in-
financiamento etc.)? Existe uma ternacional organizado por nosso Grupo Edu-
diferença muito grande de outras épocas cação e Contempo-raneidade (EDUCON), uma
em que viveu? professora universitária enviou trezes trabalhos,
Essa pressão existe na França também, sempre com outro autor, que eram os seus es-
mas acho que está pior no Brasil. Confesso tudantes. Isso não faz sentido. Sempre me re-
que, às vezes, fico perplexo ao observar as re- cusei a assinar um texto com os meus
gras de avaliação da produtividade dos pesqui- orientandos e continuo a recusar-me. Mas eles
sadores. A minha pesquisa sobre os jovens de ficam magoados. Digo que eu não contribuí
Sergipe, realizada a pedido da UNESCO de para o texto e eles contra-argumentam que os
Brasília e do Governo de Sergipe, gerou um ajudei. Mas ajudá-los é o meu trabalho e o tex-
relatório de 700 páginas com base em 3052 to é deles.
questionários aplicados e 33 grupos focais,
mas não vale nada segundo os critérios da Em um dos últimos livros que você
CAPES, porque foi publicada sem número de publicou no Brasil ( Relação com o saber,
INSS! Apesar de o relatório de pesquisa ser a formação dos professores e
base de trabalho do pesquisador, no Lattes, globalização: questões para a educação
não há lugar para registrar relatório de pesqui- hoje , Artmed, 2005), você afirma que os
sa. Tem que colocar em “outras produções”. livros não são escritos somente para os
Temos que ensinar os jovens a produzir rela- leitores, que eles são também,
tórios de pesquisa e, com base neles, publicar primeiramente, fonte de realização e de
artigos. O problema é que os estudantes de prazer que o autor se propicia.
mestrado devem publicar artigos antes de de- Gostaríamos que você falasse sobre sua
fender a sua dissertação, já que esse é um dos relação com o mundo dos livros, com a
critérios de avaliação dos Núcleos de Pós-Gra- leitura e com a escrita.
duação pela CAPES. Além disso, de acordo com Não releio o que publico, o que resulta
as regras de avaliação vigentes, os livros não às vezes em situações curiosas, com pessoas
valem mais do que um artigo, o que, na área que conhecem o que escrevi mais do que eu.
das ciências humanas, é um absurdo. Os pes- Uma vez, uma brasileira que participava do
quisadores devem ser avaliados, mas estranho meu seminário, na Paris 8, disse algo que per-
alguns dos atuais critérios de avaliação. cebi que era de A mistificação pedagógica .
Em1994, Andrew Wiles demonstrou o Afirmei que não concordava e ela retrucou que
teorema enunciado por Fermat no século XVII, eu é que tinha escrito aquilo. Respondi-lhe que
que muitos grandes matemáticos não tinham não é porque escrevi algumas besteiras que ela
conseguido demonstrar. Até então, Wiles era con- tinha que repeti-las [risos]. Ela ficou magoa-
siderado perdido pela pesquisa: não publicava, da, mas seis meses depois, quando foi se des-
não frequentava os colóquios. Apenas se dedica- pedir, agradeceu-me dizendo que aquilo tinha
va à sua tentativa de demonstração. Nem sei se sido a coisa mais importante que ela aprendera.
publicou a sua demonstração com INSS... Hoje, Às vezes, leio um pedacinho do que pu-
o seu nome pertence à história da matemática. bliquei, porque preciso, mas não vou repetir a
A pressa que estamos sofrendo não deixa tem- minha vida toda a mesma coisa. Apenas quan-
po para amadurecer ideias importantes, temos do terminamos um livro é que sabemos o que
que correr de um tema para outro, conforme as queríamos escrever. Mas não devemos refazer o
oportunidades de publicar. O que resta dessas livro, o qual assim nunca acabaria. Devemos
publicações? Pouquíssimas coisas. Alguns cole- continuar o itinerário e escrever outro livro. Por
gas, para sobreviverem academicamente, depen- isso é que disse que se escreve em primeiro lu-
158 Teresa REGO e Lucia BRUNO. Entrevista com Bernard Charlot: Desafios da educação...
básica: para uma criança, qual o sentido de grupo de pesquisa sobre as relações com os
aprender, quer na escola, quer fora? Essa é a saberes, com 12 subgrupos, mais de 70 pesqui-
questão da relação com o saber, no singular. sadores (12 doutores em várias disciplinas,
Mas filosofia, história, matemática, física, in- mestrandos, graduandos, professores do ensi-
glês, educação física etc. são matérias escola- no básico). É uma pesquisa calma, sem pressa,
res bem diferentes e cada uma tem a sua começada há quase dois anos e que precisará
normatividade interna. Por exemplo, em mate- provavelmente de mais dois anos. Que eu saiba,
mática, um símbolo não pode ter dois significa- essa questão ainda não foi pesquisada de for-
dos. Essa não é uma insuportável normatização ma sistemática e interdisciplinar como estamos
imposta pela burguesia, mas sim uma norma sem fazendo. Uma questão nova merece tempo.
a qual não há mais atividade matemática possí- Ademais, esse grupo constitui um ótimo lugar
vel. A poesia, pelo contrário, caracteriza-se pela de formação dos jovens para a pesquisa. De for-
ambiguidade. Gostaria de entender as relações dos mação “concreta”: construímos juntos um ques-
alunos com esses campos diferentes de saberes ou tionário, ensinei o que é uma análise longitu-
de cultura. dinal, como categorizar etc. Mostrando e fazen-
Estamos desenvolvendo uma pesquisa do com eles. Para quem quisesse, ensinei até
de campo sobre esse tema, na UFS, no Grupo como utilizar Excel, em vez de perder horas
EDUCON, fundado e liderado por minha espo- calculando percentuais. A pesquisa é, antes de
sa, Veleida Anahí da Silva. Constituímos um tudo, uma aprendizagem, um artesanato. E não
uma aula sobre historicismo, fenomenologia,
marxismo e estruturalismo – é útil saber o que
é, mas isso não é formação para a pesquisa.
Em um ano e meio, já coletamos mais
de 3.000 questionários com questões abertas.
Não temos nenhum financiamento, o que sig-
nifica que tenho tempo para pesquisar em vez
de perder tempo fazendo relatório para o CNPq
[risos]. Também não atraímos os caçadores de
bolsas: nessa pesquisa, não se pode ganhar
nada, apenas formação e prazer. Não quero
agredir ninguém, sei por experiência que não
é nada fácil ser professor universitário no Bra-
sil, mas um problema fundamental da pesquisa
educacional brasileira é que, muitas vezes, ela
é feita por bolsistas, que não têm formação,
com orientadores que não têm tempo para
cuidar deles. Depois o professor arruma mais
ou menos, mas ele tem pouco contato direto
com os dados, não mergulha nos detalhes,
aqueles detalhes que, muitas vezes, são fontes
de ideias novas. Qual é o código a ser aplica-
do a essa resposta? É esse ou outro? É o que
chamo de trabalhar “no porão da pesquisa”. E
acho que o orientador de uma pesquisa ampla
como a nossa deve participar, de uma forma
ou de outra, dessas microdecisões aparente-
mente técnicas, mas que, de fato, são essen-
ciais na coleta e análise dos dados.
Quanto ao meu projeto para o futuro, é
Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. especial, p. 147-161, 2010 159
simples: continuar vivendo, pesquisando, publican-
do.