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(Des)velamento
Ser múltiplo
Dissimulação sem deixar de Fragmentação
ser um
FERNANDO
PESSOA
Despersonalização Fingimento
LABIRINTO
Motivos poéticos:
• Panteísmo sensual;
• Deambulismo;
• “Variedade inumerável da Natureza”;
• “Aceitação calma e gostosa do mundo como ele é” (objectivismo);
• Misticismo naturalista (“amor pelas coisas em si mesmas”);
• Vivência do presente, gozando em cada impressão o seu conteúdo original (epicurismo);
• Recusa do vício de pensar (“saber ver sem estar a pensar”); combate à introspecção e à
subjectividade.
• Ausência do biográfico;
• Linguagem corrente, próxima da língua falada e da prosa;
• Ausência de rima e de esquema métrico;
• Importância dada ao substantivo concreto (ligado ao predomínio das sensações visuais) em
detrimento do adjectivo (quase despojado de valoração subjectiva);
• Tendência para a coordenação adversativa;
• Pendor discursivo e argumentativo;
• Recurso à comparação e ao paradoxo (pouca importância dada a figuras como a metáfora, a
hipérbole ou sinestesia).
Em Caeiro há a inocência e a constante novidade das coisas. Procura captar apenas o que as sensações
lhe oferecem na realidade imediata. E a sua linguagem torna-se quase infantil, sem os mecanismos da
subordinação ou da pronominalização. Mas Caeiro é também uma metáfora como a de ser “um guardador de
rebanhos” no cimo de um outeiro. E nesta metáfora constrói uma doutrina orientada para a objectividade, para a
contemplação dos objectos originais, para o conhecimento intuitivo da natureza. Para si o tempo é uno e presente.
Liberta-se de preconceitos, recusa a metafísica, o misticismo e o sentimentalismo social e individual.
Os ensinamentos de Caeiro, ao trazer o ser humano para o quotidiano e ao integrá-lo na simplicidade da
Natureza, ou ao encarnar a essência do sensacionismo, tornam-no mestre da outra humanidade: Pessoa ortónimo
e heterónimo. Ao anular o pensamento metafísico e ao voltar-se apenas para a visão total do mundo, elimina a dor
de pensar que afecta Pessoa. Para o ortónimo, para Álvaro de Campos e para Ricardo Reis, Caeiro representa o
regresso às origens, ao paganismo primitivo, à sinceridade plena. Caeiro ensinou-lhes a filosofia do não filosofar.
Fernando Pessoa ortónimo descrê da possibilidade de, pela razão, compreender o mundo tal como
Caeiro, mas enquanto este aceita, tacitamente, a realidade, o ortónimo decepciona-se e experimenta o desespero.
Álvaro de Campos, que, como Caeiro, recorre aos versos livres, é o homem da cidade, que procura aplicar
a lição sensacionista ao mundo da máquina. Mas ao não conseguir acompanhar a pressa mecanicista e a
desordem das sensações, sente uma espécie de desumanização e frustração. Falta a Campos a tranquilidade de
Caeiro.
Ricardo Reis, que adquiriu a lição do paganismo espontâneo de Caeiro, cultiva um Neoclassicismo neo-
pagão, recorrendo à mitologia greco-latina, e considera a brevidade da vida, pois sabe que o tempo passa e tudo é
efémero; Caeiro vê o mundo sem necessidade de explicações, sem princípio nem fim, e confessa que existir é um
facto maravilhoso. Caeiro aceita a vida sem pensar, Reis talvez a aceite apesar de pensar. Reis chega a ser o
contrário do Mestre, sobretudo ao vivenciar poeticamente um sensacionismo de carácter reflexivo, com a emoção
controlada pela razão. Caeiro dá especial importância ao acto de ver, mas é a inteligência que discorre sobre as
sensações, num discurso de verso livre, coloquial e espontâneo. Passeando e observando o mundo, personifica o
sonho da reconciliação com o universo, com a harmonia pagã da Natureza.
Análise do poema “Eu nunca guardei rebanhos”
O sujeito poético surge como o poeta da objectividade, das sensações imediatas. Por isso, deseja
que os seus versos levem os leitores a imaginá-lo como uma coisa natural.
Apresenta-se como pastor, como poeta da natureza, de olhos ingénuos e sempre abertos para as
coisas.
Apresenta-se, ainda, como anti-metafísico, ao negar o valor do pensamento, pensamento este que
tem um valor negativo: se não pensasse, os seus versos não teriam nada de tristeza, seriam apenas “alegres
e contentes”.
Ele afirma que “pensar incomoda como andar à chuva”, incómodo este que Fernando Pessoa nunca
conseguiu evitar. A dor de pensar sempre o torturou e, por isso, inventou muitas saídas para o drama do seu
eu, dividido entre o real e o imaginário, entre o ser e o não ser.
A fantasia mais radical de fugir à dor de pensar foi a de transferir o seu drama para o poeta bucólico
que olha e sente o mundo com a simplicidade de uma criança. Contudo, o sujeito não consegue libertar-se
da inteligência que vem perturbar a simples ideia de ver. A plena felicidade exige não só o olhar simples de
uma criança, mas também a sua inconsciência.
Este poema está em harmonia com a cultura de alguém que fez apenas o ensino primário: a
linguagem é simples e reflecte a ingenuidade de um camponês.
Todavia, algumas expressões, apesar de reflectirem a ingenuidade do eu, contêm comparações,
personificações e metáforas. Aqui começamos a ver sinais de contradição, mesmo porque o sujeito se
visualiza em termos metafóricos: um pastor de cajado na mão guardando o seu rebanho. Emprega ainda a
metáfora quando afirma “escrevo versos no papel que está no meu pensamento” e a comparação em “é
como se os guardasse”,”pensar incomoda como andar à chuva”. Nota-se que, apesar de Caeiro não querer
fazer literatura, há expressividade literária neste texto.
O tempo verbal dominante é o presente, de aspecto durativo, para assinalar as sensações do poeta
e o situar no momento em que vive, sem pensar no passado ou no futuro. O gerúndio é também frequente e
exprime a simultaneidade e o fluir das sensações. Predominam os verbos sensitivos e as frases estão
ligadas por coordenação em harmonia com o desfilar dos factos sensitivos que o eu vai enumerando.
O sujeito poético abre o poema assumindo-se como “guardador de rebanhos”; os rebanhos são os
seus pensamentos e os pensamentos são as sensações, daí que a inteligência esteja posta de parte.
Na primeira estrofe, quando o sujeito poético afirma que pensa “com os olhos e com os ouvidos…”,
poder-se-ia fazer uma intertextualidade com Cesário Verde, no poema “Cristalizações”, quando refere “lavo,
refresco, limpo os meus sentidos. / E tangem-me excitados, sacudidos / O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o
olfacto”. A diferença está em que Cesário Verde não exclui o papel da inteligência – imaginação na
elaboração dos seus poemas.
Neste poema de Alberto Caeiro predominam os substantivos em relação aos adjectivos, os verbos
estão no Presente, porque a realidade para este heterónimo é o presente, o passado é uma abstracção e o
futuro não passa de uma ilusão. Predominam as orações coordenadas, porque traduzem o fluir natural do
mundo real na retina do sujeito poético. Os versos são irregulares, o ritmo é longo e lento, o que está em
harmonia com o fluir lento e calmo da vida na Natureza, que nunca tem pressa.
Não há dúvida de que este segundo poema de “O Guardador de Rebanhos” encerra a principal
mensagem da poesia de Caeiro, ou seja, a essência da filosofia poética que é centrada numa natureza
inocente. Ao afirmar que “O meu olhar é nítido como um girassol” e que “pensar é estar doente dos olhos”,
há um princípio claro que se deduz – os sentidos devem ter primazia sobre o pensamento. É esta a base do
sensacionismo. Pensar seria reduzir a originalidade do olhar ao óbvio rotineiro onde as coisas são registadas
como aparições intelectuais. “O mundo não se fez para pensarmos nele (…) mas para olharmos para ele e
estarmos de acordo”. Olharmos para o mundo e estarmos de acordo com ele é entrarmos na contemplação,
ou seja, no êxtase da criação e percebermos a dinâmica do que acontece e se renova diariamente.
Por este poema podemos conhecer a raiz e a natureza da concepção poética de Caeiro. São nítidas
e claras no poema as seguintes posições: 1 – a prioridade do olhar sobre o pensar; 2 – a novidade do ver; 3
– o pasmo essencial como chave do olhar e do ver; 4 - conhecer é nascer ou renascer; 5 – nascer a cada
momento é uma meta da visão poética de Caeiro; 6 – a eterna novidade do mundo; 7 – o contraste entre o
ver e o pensar; 8 – pensar é estar doente dos olhos; 9 – a grande base de caracterização da visão poética de
Caeiro é o axioma: não tenho filosofia, tenho sentidos; 10 – amor à Natureza; 11 – amar é a eterna
inocência; 12 – a única inocência é sentir.
Análise do poema “Há metafísica bastante em não pensar em nada”
Neste poema, o sujeito poético transmite a ideia principal de que podemos até imaginar algo
sobrenatural, porém, sendo naturais, só podemos assimilar algo natural. Além disso, podemos até tentar
concluir algo pensando, mas é evidente a vitória das percepções/ sensações em relação aos maiores
pensamentos. Como exemplo, é referido o sol, que, pela sua inocência, só pode trazer benefícios. Assim
justifica a racionalidade como o meio para as maldades humanas.
Em relação à vida, o seu sentido é não ter sentido esclarecido nenhum, isto é, as dúvidas e os
mistérios é que lhe concedem uma certa graça.
Procurar princípios e causas básicas para satisfazer a sede de conhecimento acaba por ser inútil,
quando se pode contemplar as coisas e deixar as sensações dominarem-nos, sem qualquer necessidade de
explicação.
Relativamente à metafísica, serve apenas para amar a existência e não desvendá-la. De forma
simples e clara, mostra que não se pode separar tanto a vida natural da crença sobrenatural, como se
respeitar e contemplar a todos e ao universo fosse diferente de contemplar e respeitar a mente que os
planeou. Questiona, então, sobre a denominação da palavra “Deus”, usando sabiamente o verbo “conhecer”
e mostrando que, se separarmos o natural e o sobrenatural, acabaremos tornando-os separados mesmo: o
natural será conhecido e o sobrenatural desconhecido. Esta é a maneira mais fácil de tornar-se ateu.
A definição de Deus neste poema aproxima-se do panteísmo, doutrina filosófica segundo a qual só o
mundo é real e Deus é a soma de todas as coisas e nelas se manifesta. Assim, as flores, as árvores, os
montes, o sol e o luar são manifestações da própria divindade. Pode-se, desta forma, falar de uma
verdadeira “religião da Natureza”.
Logo no início do poema chama-se a atenção para um processo já terminado – “Li” – o livro de um
poeta místico. Depois, surge a ideia de riso – “E ri” – isto é, este é consequência dessa leitura. Aparece-lhe
associada a comparação “como quem tem chorado muito”, ou seja, aqueles que têm sido frequentemente
confrontados com situações que provocam a mágoa, quando riem, fazem-no de forma cautelosa e só com
motivos bem definidos, neste caso, as ideias presentes no livro.
Para clarificar os motivos da sua atitude, o eu explicita o que entende por “poeta místico”, recorrendo
a adjectivos essenciais: são homens “doentes” e “doidos”. Os motivos deste juízo são revelados na terceira
estrofe: estes poetas declaram que “as flores sentem”, “as pedras têm alma” e “os rios têm êxtases ao luar”.
O empolamento e o desajustamento destas situações fazem-nas surgir com um carácter artificial e ridículo.
Preso à realidade, que considera de forma objectiva, o sujeito, em estruturas paralelas, apresenta o seu
raciocínio, que tem como objectivo repor a verdade das situações: chamando a atenção para o carácter
hipotético e irreal das situações apresentadas, nega a possibilidade de esses elementos continuarem a ser o
que são – “não eram flores”, “não eram pedras” – se aquelas condições se verificassem, a sua realização
determinaria que se tornassem outra coisa – “eram gente”, “eram coisas vivas”, “seriam homens doentes”; e
o pretérito imperfeito do indicativo adquire neste contexto o valor inerente ao presente do modo condicional.
Abandonadas as hipóteses, o emissor retoma o presente do modo indicativo para falar das suas
certezas, que indicia através de um juízo que indica necessidade – “É preciso”.
Nos versos que se seguem, o sujeito contrapõe a relação dos outros, mais concretamente, dos
“poetas místicos”, com os elementos da natureza – “não saber o que são” – à sua – por pressuposição,
“saber o que são”. Desacredita, assim, qualquer juízo que eles possam formular.
Através da estrutura constituída pelo predicado “é falar” e pelos complementos de nome “De si
próprio” e “e dos seus falsos pensamentos”, que denuncia paralelismo com as expressões “falar dos
sentimentos” e “falar da alma”, o sujeito chama a atenção para a imaterialidade, para a abstracção do objecto
do discurso dos poetas místicos, denuncia a transposição dos sentimentos e dos pensamentos dos próprios
locutores para as coisas de que falam; e os pensamentos são “falsos”, uma vez que assentam em premissas
erradas. A sua poesia tem mais valor, porque se apresenta com objectividade.
Na estrofe seguinte, estabelece uma diferença entre os poetas místicos e si mesmo: enquanto
aqueles falam, o sujeito escreve, o que determina maior contenção e mais rigor. Assim, compreende a
natureza por fora porque a vê.
A última estrofe, sobretudo no último verso, chama a atenção para a impossibilidade de a natureza
“ter alma”, porque, se assim não fosse, não era natureza.
As duas primeiras estrofes deste poema são, por si só, todo um tratado anti-metafísico, ideia que se
prolonga no poema. Primeiro, porque denunciam a existência de poetas como artistas e está implícito que
não o deveriam ser, ou artesãos, nem deveriam precisar de trabalhar nos seus versos (“Que triste não saber
florir! / Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro”). Mas artistas ou artesãos são
justamente os poetas que tomam como ponto de partida a ideia de que fazer poesia é privilégio apenas
daqueles que dominam essa técnica. Segundo o sujeito poético, esses poetas antes deveriam ser naturais e
espontâneos, sem se obrigarem a um trabalho. Não é por acaso que se estabelece a comparação dos
poetas com os carpinteiros, fazedores de artefactos, nem é coincidência que essa comparação se prolongue
na estrofe seguinte com a “construção” de um muro e, logo, com a figura do arquitecto.
Neste poema, o sujeito poético exclui o pensamento. Confessa um grande afecto à Natureza com
uma linguagem suave e simples, mas que, se interpretada, mostra a sua verdadeira dimensão: O não pensar
e agir sem pensar para compreender e observar a verdadeira complexidade da Natureza. É como
contemplar uma bela paisagem: quando a vemos, é um regalo para os olhos, porém, se a começarmos a
comparar com outras, rapidamente perde o seu encanto.
Este é um poema que não apresenta um tem específico. No entanto, conseguimos identificar alguns
temas que costumam estar presentes em Alberto Caeiro, tais como a ausência de metafísica, a ausência do
pensamento e o uso das sensações. Temos o exemplo do seguinte excerto – “Compreendi isto com os
olhos, nunca com o pensamento” – em que é visível a temática da ausência do pensamento e o uso das
sensações.
O sujeito poético começa por se referir à sua biografia, dizendo que isso seria fácil de fazer, porque
apenas estaria presente a sua data de nascimento e a data da sua morte. Como observador da realidade,
afirmava que “pensar é estar doente dos olhos”. É por este motivo que, na última estrofe, recorre à metáfora
do sono de uma criança, comparando-o com a sua morte. No fundo, isto reflecte a sua posição perante a
vida, ou seja, quer aproximar-se da inocência de uma criança. O facto de ser como uma criança confere-lhe
a alegria de ver e o mundo é sempre uma descoberta que o fascina. Como não dá valor ao pensamento,
segue o seu instinto e deixa-se dormir o seu último sono como se fosse o primeiro. E o surpreendente é que
não se esquece de referir que foi o único poeta da Natureza, com uma certa vaidade e orgulho na sua obra.
São combinados três tempos nesta composição: o presente na primeira estrofe, o pretérito perfeito
na segunda e o pretérito imperfeito no final. É como se fosse escrita em três tempos diferentes. O primeiro
num dia vulgar, o segundo no último dia da sua vida, já que se apresenta como uma confissão e o terceiro
num dia longínquo, após a sua morte.